sábado, 31 de dezembro de 2022

Regressando ao século XXI

Hoje, o mundo despede-se de 2022. O Brasil despede-se também de Jair Bolsonaro, algo que a maioria dos habitantes do planeta Terra aplaude forte e alegremente.

Consta que Jair buscará exílio na residência de Donald Trump em Mar-a-Lago. Não consigo imaginar pior castigo para Donald — nem pior castigo para Jair.



O melhor show a que assisti durante o ano que hoje termina, e um dos momentos mais emocionantes de toda a minha vida, aconteceu no passado dia 30 de outubro, em Lisboa, na Fábrica do Braço de Prata, espaço enorme, preparado para acolher todo o tipo de festivais. Naquele fim de tarde estava atulhado de imigrantes brasileiros, que acompanhavam, entre o medo e a esperança, o avanço dos resultados eleitorais, projetados numa enorme tela. No instante em que a contagem virou, Lisboa inteira estremeceu com o grito eufórico da multidão.

Já passava da meia-noite quando, ainda com o coração aos saltos e lágrimas nos olhos, saí da Fábrica do Braço de Prata, na companhia do escritor moçambicano Mia Couto. O taxista que nos foi buscar também era brasileiro, e não estava feliz com o resultado das eleições:

— Os comunistas ganharam. — comentou, mal-humorado. — Vai ser uma desgraça.

— Não discutas. — segredou-me Mia, que, como a maioria dos moçambicanos, abomina brigas. Tentei fazer a vontade ao meu amigo.

— Tem toda a razão. — disse ao taxista, com o tom de voz mais doce e amigável que consegui. — O lado bom é que você não terá de se exilar para fugir do comunismo. Afinal, você já vive num país governado pela esquerdalha, onde o aborto é legal, o consumo de drogas também, e as pessoas de bem nem sequer podem andar armadas pelas ruas, atrás dos negros e dos comunistas. Duvido que o Lula chegue tão longe…

Duvido mesmo. Já ficaria muito feliz se nos próximos quatro anos o novo governo brasileiro conseguisse controlar a venda de armas e a mortandade dos jovens negros às mãos das forças policiais.

O desafio imediato do presidente Lula passa por devolver o Brasil ao território da racionalidade e do mais elementar bom senso. Um ministro pode nem ser muito eficaz, mas convém que acredite na importância da pasta que assumiu. Por exemplo, o ministro responsável pelo meio ambiente deve acreditar na preservação da floresta amazônica, ao invés de estar empenhado na sua destruição; o ministro da Cultura deve gostar de música, literatura e artes em geral, e lutar pelo seu fortalecimento — e assim por diante.

O presidente Lula tem pela frente outro enorme desafio: o da reconciliação nacional. Não me parece tarefa fácil. Exige, primeiro, uma completa desbolsonarização dos espíritos — ou seja: um verdadeiro exorcismo.

Espero que na próxima ceia de Natal as famílias brasileiras já consigam reunir-se, e conversar sobre qualquer assunto, sem pavor de que uma palavra errada dê origem a uma tentativa de assassinato.

Quando visitei o Brasil pela primeira vez, há uns bons 30 anos, fiquei completamente encantado com a simpatia e a hospitalidade dos brasileiros. Durante anos acreditei na excepcionalidade do Brasil — um país vocacionado para a arte do encontro (“embora haja tanto desencontro pela vida”, como escreveu Vinicius). Essa arte do encontro precisa ser recuperada.

Um belíssimo Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
Cor de arco-íris, ou da cor da sua paz
Ano Novo sem comparação
Como todo o tempo já vivido
(Mal vivido ou talvez sem sentido)

Não precisa fazer lista
De boas intenções
Para arquivá-las na gaveta
Não precisa chorar de arrependimento
Pelas besteiras consumadas

Para ganhar um Ano-Novo
Que mereça esse nome
Você, meu caro, tem de merecê-lo
Tem de fazê-lo de novo
Eu sei que não é fácil
Mas tente, experimente, consciente
É dentro de você que o ano novo
Cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Motociata cara

Alexandre de Moraes, presidente do TSE

Final melancólico

Depois de dois meses de silêncio, no último dia útil do seu governo, Bolsonaro falou. Foi elíptico e evasivo sobre os temas importantes e fugiu logo em seguida para os Estados Unidos. Foi um final melancólico para uma aventura perigosa. A democracia brasileira sobreviveu, mas saiu chamuscada. Ganhamos um respiro, mas o risco não foi de todo afastado.

A maior parte do pronunciamento de mais de 50 minutos foi dedicada a celebrar as realizações do governo. Mas, entre louvores ao preço baixo dos combustíveis e à criação do Auxílio Emergencial, surgiram alertas sobre a volta do PT e justificativas para ele não ter atendido aos radicais acampados nos quartéis. Tudo sob uma chuva de comentários de espectadores no YouTube pedindo intervenção militar.

Bolsonaro disse que, nestes dois meses de silêncio estratégico, não ficou parado: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. As alternativas, sabemos pelas movimentações noticiadas pelos jornais, foram a busca do apoio das Forças Armadas e do Parlamento para uma ruptura autoritária.


Reunindo as menções elípticas, espalhadas pelos discurso, dá para ter uma ideia do que ele quis dizer: “Tem gente chateada comigo, [dizendo] que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”. E se defendeu: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.

Bolsonaro quis atender aos golpistas acampados nos quartéis, mas simplesmente não conseguiu apoio. “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais”, concluiu. Bolsonaro não teve ou não conseguiu criar as condições para cumprir seus propósitos autoritários. Mas tentou. Enfrentou, porém, a resistência firme da sociedade civil e da imprensa séria.

Enfrentou também a resistência do Parlamento, principalmente quando esteve sob a liderança política de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Em nenhum momento o Parlamento sinalizou que daria apoio a um movimento de ruptura, por meio da decretação de Estado de Sítio. O Congresso conteve a ofensiva legislativa na arena dos costumes e moderou os ataques de Paulo Guedes contra os direitos dos trabalhadores. Foi o Parlamento, também, que elevou os programas de transferência de renda a um patamar mais digno, aumentando o valor e ampliando a cobertura. O Parlamento, por meio da CPI da Covid, também desvelou a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro com relação à compra das vacinas.

Bolsonaro enfrentou também a resistência da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou alguns dos ataques mais danosos ao sistema de proteção ambiental e deu autonomia aos governadores para que pudessem proteger a população no momento mais crítico da pandemia. Quando as mobilizações golpistas se disseminaram, foi a ação firme do ministro Alexandre de Moraes que as conteve. Sem a mão dura dele, é bem possível que não tivéssemos chegado até aqui.

Servidores públicos no ICMBio, na Polícia Federal e no Ministério Público também desafiaram as orientações políticas dos chefes e batalharam para fazer as instituições cumprir suas funções legais.

Sem os limites impostos pela sociedade civil, pela imprensa, pelo Parlamento, pela Justiça e por corajosos servidores públicos, não teríamos atravessado o deserto. Devemos a cada um desses atores um caloroso “obrigado”.

Durante quatro anos, Bolsonaro repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos, temeroso de que, com a volta do domínio da lei, seus crimes sejam investigados e ele termine devidamente preso. É inevitável comparar a ignomínia de Bolsonaro com a altivez de Lula, que, podendo fugir, se submeteu com dignidade a mais de dois anos de prisão. Bolsonaro não é pequeno, é minúsculo.

A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário.

Com a fuga para não ser preso, a obra de Bolsonaro está completa

Bolsonaro abandonou o país sem completar seu mandato e deixou os custos de sua fuga para o Tesouro Nacional, alimentado pelo dinheiro de impostos que todos pagamos. Ou melhor: que a maior parte dos brasileiros paga, porque a outra, dos mais ricos e remediados, tem meios e modos de não pagar nada ou quase nada.

Se o preço a pagar para nos livrarmos dele fosse só esse, estaríamos no lucro, mas não. Ele deixa um país mais dividido do que o que recebeu, e com a maioria dos seus problemas agravados. Alguém será capaz de lembrar uma única obra que ele fez? Por não ter feito, passou a dizer que terminou obras inacabadas.

Educação, saúde, meio-ambiente, cultura, saneamento urbano, direitos humanos, assistência social, tudo piorou. Algo como 33 milhões de pessoas passam fome. Há mais de 10 milhões desempregadas. E quando Bolsonaro resolveu gastar dinheiro com os mais pobres foi só pensando em se reeleger.


Deixou um país mais armado, os militares politicamente mais ativos, e uma democracia que sofreu graves abalos, embora tenha triunfado. Ao Poder Judiciário, os méritos de não se acovardar diante de um presidente e de generais que o ameaçaram. Há muito ainda a ser contado sobre os bastidores da peleja farda contra toga.

O maior desafio que o presidente eleito tem pela frente não será governar melhor que o seu antecessor, tarefa fácil por comparação, mas o de pacificar o país como prometeu durante a campanha. Não é sobre esquerda e direita, é sobre os que prezam o Estado de Direito e têm ódio e nojo de ditaduras de qualquer cor.

O PT cometeu muitos pecados nos quase 14 anos em que governou o país, mas nunca pôs as liberdades em risco. Do fim da ditadura de 64 para cá, só se ouviu falar em golpe quando chegou ao poder o ex-capitão afastado do Exército que planejou detonar bombas em quartéis se não recebesse um salário, ao seu gosto, mais decente.

Agora que ele se foi porque sabe muito bem o que fez em todas as estações dos últimos quatro anos e tinha medo de ser preso se permanecesse aqui, o país terá que reconstruir com a celeridade necessária as bases para que nunca mais volte, e para que ninguém igual ou parecido com ele venha um dia a sucedê-lo.

Lula derrotou Bolsonaro na eleição mais comprada por um presidente que já tentou se reeleger, daí porque o resultado foi tão apertado. Alvíssaras pela proeza, mas não basta. O bolsonarismo precisa ser reduzido a pó. É trabalho de todos, não só dele.

A última live de Bolsonaro

Desde o início de seu governo, Jair Bolsonaro fez a opção de se dirigir apenas aos seus apoiadores. O final de sua passagem pelo Planalto não foi diferente.

Após dois meses de recolhimento, sua última live no poder foi dedicada a todas as pessoas que permanecem acampadas nos arredores de quartéis à espera de um golpe militar.

Durante a transmissão ficou claro que tal caminho não será trilhado: "não tem tudo ou nada". Para minimizar o clima de velório face à iminência do despejo, a frase "o Brasil não vai acabar no dia 1° de janeiro" foi repetida várias vezes pelo mandatário.

Tais esforços não são em vão. Afinal, o que importa ao bolsonarismo é manter sua base constantemente mobilizada. Sobretudo nos tempos difíceis que se avizinham, a julgar pelos recentes ataques terroristas e pelo que vem se passando acima da linha do Equador.

No último dia 23, a Comissão de Inquérito da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, responsável por investigar a invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2021, chegou a uma decisão final. Donald Trump foi acusado de conspiração. Por essa razão, a Comissão recomendou que o ex-presidente seja indiciado pelo Departamento de Justiça e impedido de se candidatar e ocupar cargos públicos.

Segundo o relatório produzido, Trump pretendia obstruir a vontade do povo e derrubar a democracia americana. Para tanto, teria contado com o apoio de seus advogados, o secretário-geral da Casa Branca e parlamentares, que, por meio de redes sociais, estimulavam uma insurreição para impedir que Joe Biden fosse diplomado como presidente dos Estados Unidos.

Qualquer semelhança com o Brasil não é coincidência. Para o futuro ministro da defesa, José Múcio Monteiro, Bolsonaro "colocou a digital" nos atos golpistas ao se dirigir a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada no dia 9 de dezembro. De acordo com Múcio, antes "a gente não podia dizer ‘está por trás’. Hoje, o presidente falou."
Camila Rocha

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O pacto de Bolsonaro com os violentos

Enquanto o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) negocia os ministérios que ainda estão vagos com os aliados de centro que o apoiaram no segundo turno — um jogo de xadrez cuja rainha é a senadora Simone Tebet, que concorreu à Presidência da República pelo MDB — aumenta a tensão entre os atores encarregados da segurança de sua posse, principalmente depois de uma bomba ter sido desativada em um caminhão tanque de querosene de aviação, nas proximidades do Aeroporto Internacional de Brasília.

No começo, imaginou-se que era apenas uma provocação, mas o avançar das investigações mostra que estava realmente sendo preparado um atentado terrorista. George Washington de Oliveira Sousa, um empresário de 54 anos, responsável por instalar o “artefato explosivo”, apoiador de Bolsonaro, confessou sua intenção de atentado, na expectativa de que o ato provocasse o caos e uma intervenção militar antes da posse de Lula.

No apartamento que o extremista alugou no Sudoeste, no Distrito Federal, os policiais encontraram um fuzil, espingardas, revólveres, munição e outros artefatos explosivos. A Polícia Civil afirma saber que o homem teve ajuda e atua para identificar e prender os outros envolvidos. George Washington era frequentador de audiências públicas no Congresso e participava do acampamento de bolsonaristas defronte ao Quartel Geral (QG) do Exército, que continua sendo o principal ponto de concentração dos radicais de extrema direita que não aceitam a vitória do candidato petista.

Um outro artefato foi encontrado domingo, no Gama, região administrativa do Distrito Federal, pesando 40kg. Ainda não se sabe quem colocou a bomba no local e se o explosivo, desativado por policiais do Grupo de Operações da Polícia Civil, tem relação com o artefato colocado do empresário no eixo de um caminhão-tanque, abastecido com 63 mil litros de querosene de aviação (28 mil no primeiro compartimento, e 35 mil no segundo), no sábado passado.

Ontem, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio foi preso, a pedido da Polícia Federal, com aval da Procuradoria-Geral da República (PGR), por ordem do ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF). A prisão não tem nada a ver diretamente com o fracassado atentado terrorista, a ordem já havia sido dada por Moraes durante a semana. Eustáquio não tem cumprido as medidas cautelares impostas após a revogação de sua prisão. O blogueiro foi preso em junho de 2020, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), também por envolvimento com atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Em prisão domiciliar, o blogueiro já foi proibido de usar redes sociais e manter contato com outros investigados por fatos recentes, como o ataque ao prédio da Polícia Federal e a uma Delegacia de Polícia Civil no setor hoteleiro Norte.

O presidente Jair Bolsonaro não fez nenhum comentário sobre ambos os casos e continua alimentando a esperança dos radicais de que ainda vai dar um golpe de Estado. Os seus partidários mais fanáticos continuam à porta dos quartéis, sem que nada seja feito pelas autoridades locais nem pelo Exército. O atual chefe do Executivo tem um pacto com os violentos. Primeiro, com as milícias do Rio de Janeiro, cujo modelo de atuação naturalizou e traduziu para a política. Aproveitando-se dos interesses corporativos de categoriais profissionais embrutecidas pelos riscos da própria atividade, além de atiradores e indivíduos que cultuam a violência por temperamento ou ideologia, o presidente da República formou uma milícia política, armada até os dentes, que começa a dar sinais de que pode recorrer à luta armada e ao terrorismo para tentar fazer valer seus propósitos golpistas.

A democracia é uma conquista civil da qual não se pode abrir mão precisamente porque, onde ela foi instaurada, substituiu a violenta luta pela conquista do poder por uma disputa partidária com base na livre discussão de ideias. Condenar as eleições, esse ato fundamental do sistema democrático, em nome da guerra ideológica, significa atingir a essência não do Estado, mas da única forma de convivência possível na liberdade e por meio da liberdade que até agora conseguimos realizar, na longa história de prepotência e violência da nossa sociedade. O povo resolveu a disputa pelo voto, em eleições pacíficas e ordeiras, mas um grupo de radicais de extrema-direita ainda acredita que os militares, liderados por Bolsonaro, darão um golpe. De certa forma, até que a posse se realize, a existência dos acampamentos alimenta essa esperança.
 Luiz Carlos Azedo

Em que lugar dos Estados Unidos se refugiará Bolsonaro

Conta a lenda que, um dia, duas das maiores raposas da política brasileira se encontraram no aeroporto de Belo Horizonte – José Maria Alckmin, deputado federal muitas vezes, ex-ministro da Fazenda e vice-presidente da República no governo Castelo Branco, e Benedito Valadares, deputado federal, senador e governador de Minas Gerais nos anos 1930, ambos do velho PSD.

Alckmin, então, perguntou a Valadares no cafezinho do aeroporto:

– Você vai para onde, Benedito?

– Vou para o Rio – respondeu Valadares.

Despediram-se. E a um amigo que o acompanhava, Alckmin sussurrou depois:

– Ele disse que vai para o Rio para que eu pense que ele irá para Brasília, mas ele irá para o Rio mesmo.

Bolsonaro está de malas arrumadas para voar aos Estados Unidos, como confidenciam seus principais assessores. Mas nem eles sabiam até ontem qual seria exatamente o destino dele – Miami ou Orlando, na Flórida? Ou outra cidade qualquer? Sob o manto protetor do ex-presidente americano Donald Trump, derrotado como ele, ou por conta própria?


Bolsonaro disse que irá para um lugar onde não possa encontrar brasileiros. Miami e Orlando estão cheias deles. O escalão precursor da viagem decola hoje para onde ele quiser. O Itamaraty será informado em seguida. Quem pagará as despesas da viagem e o exílio que poderá durar de dois a três meses? Talvez Bolsonaro decrete sigilo sobre essas e outras informações.

O mentor do chamado “Gabinete do Ódio”, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), está nos Estados Unidos à espera do pai. De lá, instruiu seus seguidores a espalharem nas redes sociais que Bolsonaro, sua família e os aliados mais fiéis serão alvo de uma “perseguição cruel e implacável” tão logo Lula tome posse. Ele fala na condição de especialista no assunto.

É mais do que certo que Lula suspenderá o sigilo de 50 e de até 100 anos que encobre informações que, se reveladas, causarão profundo incômodo à primeira família presidencial brasileira e aos seus serviçais. Várias delas poderão resultar na abertura de novos processos contra Bolsonaro ou reforçar processos que ele responde por abuso de poder e atos antidemocráticos.

A fuga para outro país se justifica por isso. Distante, ele não será assediado pela imprensa para responder a cada nova acusação e estará a salvo de juízes da primeira instância que poderiam prendê-lo. Falta saber se a primeira-dama Michelle o acompanhará ou não. Michelle e Carlos se detestam. E Carlos acha que ela é culpada em parte pela derrota do pai.

Falta saber também quem o substituirá na presidência. Seu mandato termina à meia-noite de sábado. Lula será empossado a partir das 14h do domingo. O país não pode ficar sem presidente. O vice, general Hamilton Mourão, eleito senador pelo Rio Grande do Sul, deveria assumir, mas não quer. O terceiro na linha de sucessão é o deputado Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Pensamento do Dia

 


Vingança, não, por favor!

A cultura brasileira glorifica duas negações à vingança que geraram grandes obras no teatro e na literatura pelo abandono do velho hábito rural da legenda do talião bíblico do olho por olho, dente por dente. Quando João Suassuna foi assassinado no Rio por um pistoleiro profissional para punir com a morte o chefe político acusado de ter sido o mandante da execução de João Pessoa, em Recife, a matriarca Ritinha Vilar reuniu os filhos e os fez jurarem que jamais vingariam o pai. Desde os três anos, Ariano seguiu a lei dos irmãos mais velhos e se dedicou a honrar a memória paterna em sua vasta obra teatral e romanesca.

Um ano mais novo do que Ariano e nascido no longínquo sertão do mesmo Estado da Paraíba, Francisco Pereira da Nóbrega assumiu compromisso similar com a mãe, Jardelina, e interrompeu o derramamento mútuo de sangue. Assim, rompeu a corrente da vendeta do pai, o cangaceiro Chico Pereira, assassinado pela polícia de seu Estado. Padre, filósofo, membro da Academia Paraibana de Letras, escreveu o primoroso Vingança, não! sobre a saga familiar. A crônica policial é pródiga de exemplos em que a violência da tradição tem sido substituída pelo convívio pacífico de antigos inimigos mortais.

Na vida pública, o talião também pode ser trocado por reconciliação de ex-desafetos. A Paraíba, palco dos fatos narrados, tem bons exemplos disso: em 1950, José Américo de Almeida saiu da União Democrática Nacional (UDN) e foi para o Partido Liberal (PL) para derrotar na eleição para governador o chefão de sua ex-legenda. Teve, então, o apoio do arquiadversário Partido Social Democrático (PSD). Em 1986, os inimigos João Agripino Filho e Ernani Sátiro se uniram para apoiar a indicação de Antônio Mariz, que perdeu a eleição indireta para o indicado de Zé Américo, Tarcísio Burity. Destino inglório também teve a Frente Ampla formada por Juscelino Kubistchek e João Goulart com o ex-rival Carlos Lacerda, em 1966. A iniciativa foi abortada pelos antigos aliados da ditadura militar de 1964.


Caso clássico a ser narrado ainda é o do Partido Popular (PP), fundado pelo udenista Magalhães Pinto e por seu antiquíssimo rival, o pessedista Tancredo Neves, em 1980. Mas só duraria dois anos, após reforma partidária imposta pelos sequazes da ditadura. Ou seja, são exemplos eloquentes, mas nem todos deram certo.

Ainda é cedo para determinar êxito ou fiasco da tentativa de qualificar a Frente Ampla partidária formada para atender ao clamor popular pelo fim do desgoverno nazifascistoide de Jair Messias Bolsonaro. Mas manda a prudência temer pela possibilidade de não dar certo a gestão a ser empreendida pela Frente Amplíssima necessária para dar à chapa eleita pelos Partidos dos Trabalhadores (PT) e Socialista Brasileiro (PSB). Pois há nítidos indícios de que o PT não prioriza o fortalecimento de uma aliança multipartidária e mutiideológica para reconstruir o Estado e dar continuidade ao projeto democrático contido na Constituição de 1988, implodidos pela perversa atuação da extrema direita no poder desde 2019.

O emedebista Michel Temer, duas vezes eleito pela população vicepresidente na chapa de Dilma Rousseff, foi excluído da lista de convidados para a diplomação de Lula e Alckmin. Este é o claro recado de que os petistas não desistiram da vingança do impeachment de Dilma, esquecendo que madame não teria mandatos a cumprir sem os votos do aliado da chapa. E mais: que as eleições não foram fraudadas e, portanto, ele não foi golpista, mas eleito pelo voto popular que a elegeu. Isso é grave, mas não é tudo. Pior ainda é a conformação de um governo que não promete ser de um Lula novo, mas a recuperação de um velho desastre econômico que resultou em grotesco arremedo de Pietá nos jardins do Alvorada abandonado por Jair Messias e Michelle Bolsonaro. O Dilma 2 e meio.

A outra vingança é a volta por cima da temporada do líder máximo na prisão da Polícia Federal em Curitiba. Iniciada com a colaboração do adversário favorito na farsa da transformação de multicondenado em inocente-mor, ela se concretiza na tentativa de tornar o presidente eleito uma versão sindical de Nelson Mandela. Consagrando por evidente a desnecessidade de qualquer tipo de arrependimento. Ou da garantia de que um Lula 3 não repita seu passado oculto nas trevas desse nefando acordo com o Congresso de Arhur Lira e seus nefastos orçamento secreto e PEC da Gastança, aumentos absurdos de vencimentos de maiorais de republiqueta e indulgência absoluta para a mais suprema impunidade.

Diante de tais fatos nefastos resta a esperança que a divisão do País, refletida nas votações dos candidatos a presidente, sirva de alerta contra abusos repetitivos e insuportáveis. O povo brasileiro não suporta mais farsas e avanços absurdos de assaltos ao erário, seja em arrombamentos dos cofres das viúvas, seja no aumento da dívida pública para sustentar sombra, água fresca e luxo nos palácios de ostentação de uma casta indiferente, insensível e insaciável. A história já deu várias demonstrações de que quando a situação chega a esses extremos, uma explosão pode se tornar inevitável. É melhor criar juízo e consertar.

País doente

O fanatismo tirou a consciência da nossa sociedade. Infelizmente o Brasil ficou um país doente. Vamos ver se a gente se recupera dessa pandemia de fake news e de falta de responsabilidade
General Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Bolsonaro

Forças Armadas perdem ao se envolver em disputa política

“O respeito do povo americano por seus militares está despencando. Caiu 22 pontos percentuais nos últimos cinco anos, segundo pesquisas realizadas pela Fundação Reagan”. O texto acima está no artigo “Don’t drag military into politics”, da analista Kori Schake, publicado no site War on the Rocks. Traz um alerta sobre o perigo de envolver militares nas disputas políticas partidárias.

Kori é do Instituto Hoover da Universidade Stanford. Já trabalhou nos departamentos de Defesa e de Estado, foi diretora de estratégia e requisitos de defesa no National Security Council (NSC) e ocupou a cadeira em estudos de segurança internacional de West Point.

Não é um comentário amador, feito por pseudoanalista de Google em busca de likes. Está fundamentado em experiências pretéritas que devem ser avaliadas pelas lideranças americanas neste momento de tamanha divisão em sua sociedade.

Segundo a articulista, e com base na última pesquisa daquela fundação, mais de 60% dos entrevistados disseram que perderam a confiança em suas Forças Armadas porque a liderança militar se tornou excessivamente politizada.

Vaticina Kori que a América, para ter uma força de combate eficaz, precisará corrigir essa percepção pública, isolar os militares, impedindo-os de ser peões em disputas partidárias.

Ela não aponta o dedo seletivamente. A mira de sua metralhadora enquadra opiniões nos extremos da discussão acadêmica e ideológica.

Dos militares, defende que devem lutar para manter as principais funções da profissão perante o Estado — representativa, consultiva e executiva —, esquivando-se das pendengas políticas.

Dos congressistas, critica a postura de se camuflarem atrás dos uniformes (ainda respeitados apesar da queda de confiança) para promulgar políticas impopulares, mesmo as relacionadas aos casos mais relevantes de segurança nacional.

A pesquisa não combina com a avaliação interna dos militares quanto a seu papel. Eles acreditam que são modelos de profissionalismo, apartidários e, consoante com a narrativa, trabalham para massificar essa atitude por meio de uma educação militar estritamente profissional.

Ainda assim, as lideranças castrenses estão preocupadas com o ativismo político dos veteranos, que vem se avolumando e se refletindo sobre a força em serviço ativo.

Lembra a pesquisadora que o endosso dos veteranos aos candidatos presidenciais tem sido uma verdadeira corrida militarista, desde que o ex-comandante da Marinha Paul Kelley apoiou o ex-presidente George H.W. Bush em 1988.

Destaca que os ex-presidentes Barack Obama e Donald Trump nomearam veteranos para altos cargos civis. E que o presidente Joe Biden indicou o general da reserva Lloyd Austin, há pouco aposentado, para o delicado cargo de secretário de Defesa.

Hoje, os comitês eleitorais republicanos ou democratas divulgam ruidosamente listas com nomes de oficiais aposentados de altas patentes que os apoiam vibrantemente e incluem imagens de militares uniformizados em anúncios de campanha. Como elixir, ela exorta os congressistas americanos a resistir à tentação de chamar para dançar a música da política o desengonçado estamento militar, um amador nesse salão de baile.

Kori conclui que a esmagadora maioria dos militares americanos está implorando para ser deixada fora da política pantanosa.

Eles querem o devido reconhecimento por defenderem o povo e seus interesses, a soberania dos Estados Unidos, os valores da cultura americana. Não é pouco.

Num exercício de imaginação, próximo da realidade contemporânea, se o artigo da professora descrevesse outros países, revelaria o mesmo dilema da mistura entre o profissionalismo militar e as artimanhas políticas, variando a intensidade conforme a democracia estivesse mais ou menos madura nessas sociedades.

Para o bem dos países que se vestem da normalidade institucional, a sociedade, os políticos e os militares devem prestar atenção aos apelos da professora doutora Kori Schake. Ela sabe o que diz.

Terroristas que pedem golpe militar estão à procura de um cadáver

Todo cuidado é pouco até o domingo, dia da posse do presidente eleito; e depois também, só que sob nova administração. Já não há governo desde que Bolsonaro perdeu, e ele pode fugir do país a pretexto de descansar, na verdade com medo de ser preso.

No sábado, véspera de Natal, o motorista de um caminhão-tanque que abasteceria os postos de gasolina do aeroporto de Brasília notou que algo estranho se passava. Descobriu que havia um artefato agarrado ao eixo do caminhão; tirou-o e chamou a polícia.

Sabia que arriscava sua vida. O que não sabia, e a polícia só soube depois, é que se tratava de uma bomba mal feita; obra de amador. Acionada para que explodisse, não explodiu. A perícia constatou que alguém antes tentou explodi-la, sem sucesso.

No domingo, um telefonema anônimo deu conta à polícia da existência de outra bomba, desta vez na cidade do Gama, a 3,2 quilômetros de Brasília. Não era uma bomba. Eram bananas de dinamite embrulhadas em panos e jogadas dentro de um matagal.


A equipe de transição do novo governo fez a leitura correta pelo menos até aqui: a bomba que não estourou, e os 40 quilos de explosivos encontrados no matagal do Gama, foram usados para provocar um susto e diminuir o tamanho da festa da posse.

Os terroristas alcançaram seu objetivo. A equipe de transição já registra sinais de desistência de caravanas de ônibus que partiriam de outros Estados para Brasília. Justifica-se o temor: há 15 dias, Brasília foi palco de queima de ônibus e de ataques a prédios.

Os baderneiros agiram sob o olhar cúmplice da polícia. Ninguém foi preso. A maioria deles continua acampada à porta do QG do Exército. E foi ali, segundo o réu confesso George Washington Sousa, que se planejou pôr a bomba no caminhão-tanque.

Hoje, na Esplanada dos Ministérios, haverá o primeiro ensaio do esquema de segurança da festa de posse. O segundo e último ensaio será na próxima sexta-feira. Espera-se que até amanhã estejam preenchidas todas as vagas de ministros de Estado.

O futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, diz que o plano da festa será revisto. Se depender dos responsáveis pela segurança, Lula e Janja desfilarão pela Esplanada em carro fechado; se depender do PT, em carro aberto. Lula dará a palavra final só no domingo.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Acampamentos perto de quartéis viram incubadoras de terroristas

As impressões digitais do único presidente da República que não conseguiu se reeleger estão na tentativa de um dos seus devotos de explodir uma bomba nas vizinhanças do aeroporto de Brasília, e outra numa subestação de energia em Taguatinga.

A primeira bomba foi instalada em um caminhão cheio de combustível que teria acesso à parte interna do aeroporto. Não explodiu porque o motorista do caminhão descobriu-a a tempo e avisou à polícia. Ontem à noite, a polícia soube da segunda.


Com George Washington de Oliveira Sousa, o terrorista preso, foram encontradas duas escopetas calibre 12, dois revólveres calibre .357, três pistolas, um fuzil Springfield calibre .308, mais de mil munições de diversos calibres e cinco bananas de dinamite.

“O que me motivou a adquirir as armas foram as palavras do presidente Bolsonaro, que sempre enfatizava a importância do armamento civil dizendo o seguinte: ‘Um povo armado jamais será escravizado'” – confessou Sousa à polícia.

Segundo ele, a explosão das bombas em pelo menos dois locais do Distrito Federal daria “início ao caos” que levaria à “decretação do estado de sítio no país”, provocando “uma intervenção das Forças Armadas”. O motorista do caminhão estragou o plano.

Bolsonaro foi excluído do Exército em meados dos anos 1980 porque planejou detonar bombas em quartéis se não lhe pagassem salário mais alto. Candidato a presidente, defendeu o acesso às armas como meio eficaz para enfrentar a violência no país.

De acordo com o Anuário de Segurança Pública, divulgado no dia 28 de junho deste ano, a quantidade de licenças para armas de fogo passou de 117.467 em 2018 para 673.818 em 2022 – um aumento de 473,6% nos quatro anos de governo do ex-capitão.

Existem mais de 2 mil clubes de tiro em atividade no Brasil e praticamente a metade (1.006) foi aberta entre janeiro de 2019 e maio de 2022. No que tudo isso poderia resultar, sem contar o empenho de Bolsonaro em desacreditar o processo eleitoral?

Resultou na rebelião que os ingênuos supunham desarmada de parte dos seguidores de Bolsonaro. Deu nos acampamentos à porta de unidades militares, área de segurança nacional, estimulados por Bolsonaro e tolerados pelos comandantes das Forças Armadas.

Se Lula tivesse perdido a eleição, se parte dos que votaram nele tivessem batido a porta de quartéis pedindo um golpe militar, o que teria acontecido? Ainda estariam por lá a essa altura? Quantas horas teriam ficado? Por que os bolsonaristas ainda estão?

Nada se viu igual nem nos estertores da ditadura militar de 64. Agentes do Serviço Nacional de Informações picharam paredes e distribuíram panfletos em Brasília ligando os comunistas à campanha de Tancredo Neves, candidato da oposição a presidente.

Eleito e internado na véspera da posse para ser operado de emergência, Tancredo temia que os militares não transferissem o poder para seu vice, José Sarney. A transferência se deu. Desde então, jamais se questionou a validade de uma eleição. Até que…

Até que Bolsonaro, eleito com o apoio entusiástico dos militares, sustentado por eles que desejavam vê-lo reeleito, entrou em cena e não queria deixá-la. Será obrigado a fazê-lo até o próximo domingo. Faltam apenas cinco dias. O que mais ocorrerá até lá?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Pensamento do Dia

 


Humanos são espírito, nunca consumidores

Quando muito poucos são donos de muito, e muito poucos ficam com bem pouco, está na hora de se repensar este "religioso" espírito de Natal, à venda em shopping, supermercados, lojas de eletrodomésticos. Criaram a materialização espiritual com o consumismo que transformou gente em robotizados do mercado.

A Noite é para se pensar que humanos são o próprio espírito. O domínio de pouquíssimos sobre a miserabilidade de bilhões nunca apareceu em presépio.

Bom Natal





Noite de Natal

Fernando Silva dirige o hospital de crianças, em Manágua. Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes esposavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.

Fez um último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada pela morte e aqueles olhos que pediam desculpas ou talvez pedissem licença.

Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão: — Diga para… — sussurrou o menino —. Diga para alguém que eu estou aqui.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"

Poema de Natal

Tempo de desarmar os espíritos

No período do Natal instala-se um clima de congraçamento e reflexão, de esperança e renovação, de fim de um ciclo e início de outro. Tempo propício para que desarmemos os espíritos, recuperemos a capacidade de diálogo e respeito à diversidade, resgatemos a disposição de convívio com aqueles que vivem e pensam de forma diferente. Poucas vezes em nossa história vivenciamos dias de tamanha intolerância. O Natal nos abre uma porta para abrirmos corações e mentes em favor da tolerância e celebrarmos a liberdade e a democracia.

A democracia nos permite a convivência plural, a liberdade de pensamento e ação, e deveria ser para todos um instrumento de construção de consensos progressivos a partir do tratamento respeitoso e tolerante das divergências, do diálogo franco e aberto, sem anulação de identidades legítimas, mas com a boa fé de construção de um caminho comum. Cristo não veio ao mundo para dividir e sim para unir as pessoas em torno dos valores da solidariedade humana e da compreensão mútua. Boa chance para repensarmos os rumos de nosso país.

A busca da verdade é uma obra em permanente construção. Não é uma realidade pronta e acabada. E é preciso ter o espírito aberto para rever opiniões e posicionamentos. É preciso que todos tenham humildade e propensão à mudança. O sectarismo é o atalho mais curto para a intolerância.

A liberdade é essa palavra de difícil explicação, mas que não há quem não entenda, como quis Cecília Meireles. A vida em sociedade impõe certos limites à liberdade individual. A arbitragem das fronteiras entre a necessidade social e a liberdade individual não é nada fácil. Mas no mundo contemporâneo ela está ameaçada. E cabe a cada um de nós defende-la como valor permanente e universal. E o caminho é tolerância zero com a intolerância. Em relação a ela propôs o filósofo liberal Karl Popper em seu paradoxo da tolerância: “Devemos, pois, reservar o direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes”.

Não é a primeira vez que experimentamos forte radicalização política no Brasil. Polarizações intensas marcaram vários momentos de nossa história. Mas é verdade que a era das redes sociais potencializou a intolerância com a maximização dos efeitos das fakenews, da cultura do ódio e das teorias da conspiração. Neste universo, como bem descreveu Giuliano Da Empoli em seu "Engenheiros do caos", a busca da verdade e do consenso não tem lugar já que “o algoritmo dos engenheiros do caos os força a sustentar não importa que posição, razoável ou absurda, realista ou intergaláctica, desde que ela intercepte as aspirações e os medos – principalmente os medos- dos eleitores”.

A sobrevivência da liberdade e da democracia dependem de duas normas básicas não escritas que fortalecem o sistema de freios e contrapesos: “a tolerância mútua, ou o entendimento de que as partes concorrentes se aceitam umas às outras como rivais legítimas, e a contenção, ou a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prerrogativas institucionais” (Como as democracias morrem, Levitsky & Zoblatt). O fundamento essencial da democracia não está nas leis, mas na consciência da sociedade e na cultura democrática coletiva.

Que o Natal seja um momento de comemoração e reafirmação dos valores da liberdade, da tolerância e do respeito ao próximo.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

As verdades vivem e sofrem


Importante e urgente
como libertar criaturas humanas
de prisões inumanas
é ir em socorro de verdades
prisioneiras de sistemas de ideias que as retêm e asfixiam

Dom Hélder Câmara, "Mil razões para viver"

Um país em busca de horizonte

A melhor maneira de um país aproveitar o ano novo é explorar seu horizonte de possibilidades. Dito assim, é muito abstrato. Segundo Yuval Harari, no seu livro Sapiens, horizonte de possibilidades significa o espectro de crenças, práticas e experiências que se apresentam diante de determinada sociedade, considerando suas limitações ecológicas, tecnológicas e culturais.

Uma sociedade, ou mesmo um indivíduo, nunca explora totalmente seu horizonte de possibilidades. Mas, diante de um novo ano, é razoável tentar realizar o máximo.

As chamadas limitações ecológicas, no caso brasileiro, são um ponto decisivo no seu horizonte de possibilidades. Depois da destruidora política ambiental do governo Bolsonaro, Lula fez um discurso animador em Sharm el-Sheikh, no Egito.

O novo governo promete conter o desmatamento na Amazônia, expulsar garimpeiros das terras indígenas, fortalecer a exploração sustentável e abrir-se para a cooperação internacional.


Se levadas a cabo, essas decisões terão um papel econômico. A retenção do carbono na floresta pode render dividendos, o fim do garimpo ilegal deve reduzir os problemas de saúde provocados pelo mercúrio e o combate ao desmatamento pode garantir um regime de chuvas regular para nossa agricultura.

O replantio da floresta destruída tem possibilidades de abrir milhares de postos de trabalho. Mas seria limitado pensar a economia verde apenas nos termos da floresta. A transição energética para a produção de energia eólica e solar é outro caminho promissor.

Na verdade, a simples expressão economia verde já é limitada. Há toda uma economia azul que pode ser explorada ao longo de nosso costa. Tenho visto experiências vitoriosas de criação de moluscos como vieiras e coleta de algas que servem para sabão e protetores solares. A própria Marinha do Brasil já produziu uma coletânea intitulada Economia Azul, que pode ser uma referência.

Uma das nossas limitações infraestruturais é a dificuldade de acesso à internet. Já foi prometida uma bolsa para facilitar a inclusão. Mas é preciso tornála mais fácil, eficaz e barata. As chances de aumentar a renda das pessoas são muito maiores quando estão conectadas.

Esses dois pilares – economia verde no sentido mais amplo e inclusão digital – são instrumentos para que exploremos melhor nosso horizonte de possibilidades.

ATemos limitações culturais e políticas, que podem ser atenuadas. As culturais são muito amplas e difusas para tratar aqui – além do mais, não se resolvem facilmente no espaço de um ano.

No trabalho cotidiano, costuma-se acentuá-las. Durante a Copa do Mundo, todos acharam normal que o Brasil vencesse a Coreia por 4 a 0 no primeiro tempo e, no segundo tempo, simplesmente tenha parado de jogar. Achei que havia algo a discutir neste silêncio da crítica.

Da mesma forma, o fato de encerrarmos o ano sem saber direito como será o Orçamento, muito menos qual a composição do novo ministério, revela, ligeiramente, nossas dificuldades de planejar.

No campo político, entretanto, a superação do ódio será um grande passo na busca do horizonte de possibilidades. As chances de um debate mais tranquilo sobre o destino do País são importantes, porque ninguém detém a verdade. Meu querido Ferreira Gullar dizia que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Também os argumentos políticos, eventuais divergências, não foram feitos para estigmatizar ninguém.

O primeiro passo para a superação do abismo que criamos será um diálogo entre governo e oposição, diferente dos moldes que nos levaram a uma polarização maniqueísta.

Esse diálogo precisa ser ampliado com a sociedade. O universo político de Brasília é muito autocentrado. É preciso que se abra, antes que o abismo cresça demais e ele próprio caminhe compulsivamente para seu suicídio.

Mudando um pouco o comportamento das elites políticas, será possível tratar de problemas novos e complexos: a ira nas redes sociais, o tsunami de fake news.

Gostaria de ter a saída imediata para isso. Mas mentiria. A simples ideia de intervir de cima para baixo parece, no mínimo, ineficaz.

É preciso estudar a experiência internacional, aprender com a observação das redes e, inclusive, reformular o ensino para que as crianças, ao crescerem, tenham a mínima chance de questionar uma notícia falsa, de perceber quando são manipuladas por meio de números.

Esse é apenas um programa mínimo para explorar nosso horizonte de possibilidades. Já está dito que nunca o conseguimos completamente, no nível social ou mesmo no individual.

Não se sabe ainda qual será em toda a sua extensão o programa do novo governo. Certamente, quando vier à tona, será uma ampla proposta de como explorar nossos horizontes nos próximos quatro anos.

Isso me parece a forma mais prática de desejar um bom ano novo. Simplesmente, como às vezes fazemos em nossa vida particular, listar as principais medidas, explorar as qualidades, reduzir pontos vulneráveis, enfim, começar, finalmente, a cuidar de um país que esteve à deriva ao longo de quatro anos. Vivemos uma falta de horizonte, e isso corresponde à definição técnica do naufrágio.

Que tal cortar gastos?

PEC pra cá, PEC pra lá, orçamento secreto, emendas do relator, teto de gastos. Desde o início de novembro, o debate nacional está tomado por uma algaravia que se resume a três palavras: como gastar mais.

Cada despesa com o dinheiro da Viúva tem defensores capazes de justificar suas propostas. Quase sempre, falam em nome dos fracos e dos oprimidos. Não apareceu uma única voz propondo cortar gastos, como se o problema do Orçamento estivesse no andar de baixo.

Começando pelo topo, imagine-se uma reunião dos seis ex-presidentes, incluindo Jair Bolsonaro. Todos podem defender gastos, pelas mais altas razões. Falta dizer que eles custam à Viúva pelo menos R$ 5,76 milhões por mês. Tudo de acordo com a lei. Nessa estatística do Portal da Presidência, incluem-se o custeio de equipes, diárias de hotel, passagens e combustível. Ela não tabula aposentadorias e benefícios legalmente acumulados. Nela, o teto fica com Lula (R$ 129.700) e o piso com José Sarney (R$ 76.600).


No andar de cima do serviço público há de tudo. No primeiro semestre deste ano, pelo menos 353 juízes ganharam mais de R$ 100 mil num mês. Três receberam de R$ 432 mil a R$ 700 mil. Uma magistrada recebeu R$ 733 mil em abril. Teve general acumulando os vencimentos de militar (R$ 32 mil) com os de cargo civil (R$ 31 mil). No Superior Tribunal Militar, 22 viagens do seu presidente custaram R$ 235 mil. Tem ministro do Tribunal de Contas que custa mais com suas viagens (R$ 43.517 entre 25 de fevereiro e 14 de março) do que com os vencimentos (R$ 37.300 brutos). Três generais palacianos receberam num ano até R$ 350 mil acima do teto do serviço público. Em 12 meses, um deles recebeu R$ 874 mil brutos.

Furam-se tetos, tanto o do limite geral de gastos à custa da bolsa da Viúva, como de embolsos individuais. Tudo dentro da lei.

O que surpreende na má qualidade do debate é que existem dezenas de propostas para gastar mais, sem que tenha aparecido uma só ideia para gastar menos. É uma lógica que vai bem nos Emirados Árabes, mas não faz sentido em Pindorama. Aqui, gasta-se mais em nome dos pobres sem mexer nas excentricidades praticadas no andar de cima. Todo mundo é contra a desigualdade, desde que não se toque no seu pirão. Nenhuma das emendas do relator economizava um só centavo, só gastavam.

Pode-se argumentar que, com a magnitude do Orçamento, um corte aqui e outro ali não fazem diferença. Tudo bem, mas servem de exemplo, demonstram intenção. Até porque as arcas da Viúva não podem ser as únicas onde é impossível cortar alguma coisa. Afinal, custos são como as unhas: se não cortar, crescem.

Eleito por um arco de defensores da democracia, Lula apresenta-se como encarnação de uma frente de partidos. No arco democrático estava o economista Pedro Malan. Na frente de partidos está o de sempre.

Faz tempo, botaram um aumento no contracheque do brigadeiro Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea, duas vezes derrotado na disputa pela Presidência da República. Sem ter outra fonte de renda além do soldo, morava bem na Praia do Flamengo. Vivia só. Quando lhe deram um dinheiro que era legal, mas a seu ver impróprio, sem dizer uma palavra, fazia cheques mensais para os pobres de Petrópolis e para missões religiosas.

A herança maldita de Bolsonaro, o pior presidente da história

Ao seu modo elegante, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin observou: “O governo federal andou para atrás”. Poderia ter dito: “Bolsonaro destruiu o Brasil ou grande parte dele”. Mas se dissesse, não seria Alckmin; estaria mais para Lula.

É o que mostram os dados colhidos pela equipe de transição do novo governo. O acompanhamento da vacinação infantil caiu de 68% para 45% nos últimos quatro anos na gestão Bolsonaro. No Cadastro Único para Programas Sociais, apenas 60% dos dados estão atualizados.


O Brasil voltou ao Mapa da Fome das Nações Unidas: mais 5,8 milhões passaram a viver em condição de extrema pobreza, levando o total a quase 18 milhões. Há 14 mil obras paradas, e 93% das rodovias federais não têm contrato de manutenção.

Nos órgãos ambientais, 2.103 cargos estão vagos. No Ibama só 700 atuam na fiscalização (nem todos em campo), quando já foram 1.800. O desmatamento da Amazônia aumentou 60%. O Fundo Amazônia foi congelado com R$ 3,3 bilhões em caixa.

O governo desprezou a agricultura familiar e desmantelou os estoques reguladores. A queda no armazenamento de arroz chegou a 95%. Isso favoreceu a escalada da inflação de alimentos. Na educação, a verba da merenda escolar estancou em 36 centavos por aluno.

Na assistência social, a espera pelo BPC saltou de 78 para 311 dias. Na habitação popular, a União zerou as contratações para famílias de baixa renda. No combate à seca, o programa que já levou 1 milhão de cisternas ao semiárido não entregará nem mil em 2022.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Vai, Brasil!

 

Silvano Mello

Se Bolsonaro ficar quietinho, a Justiça esquecerá seus crimes

Sossegue, Bolsonaro. Faltam 10 dias para o fim do seu governo. Se se comportar bem até lá, se depois permanecer discreto por um período de tempo razoável, quem sabe o Supremo Tribunal Federal não desiste de puni-lo por atentar contra a democracia?

Quem sabe também não fecha os olhos para outros crimes que cometeu, incluindo os dos filhos? O ideal seria que se afastasse de vez da política e fosse curtir a vida na companhia de Michelle e da filha Laura, como planejou fazer antes de se eleger presidente.

Não terá mais que se preocupar com gastos. Bastam-lhe as aposentadorias e a fortuna que construiu em mais de 30 anos como político. De resto, a condição de ex-presidente garante dois carros, secretários e agentes de segurança pagos pelo governo.


Dado ao seu peso econômico no mundo e ambições imperiais, o Brasil não quer parecer-se com outros países da América Latina. No início de 2001, por exemplo, em um intervalo de apenas 10 dias, a Argentina teve cinco presidentes.

No final de 2020, em uma semana, o Peru teve três presidentes. No momento, enfrenta grave turbulência com a deposição do presidente Pedro Castillo. Quatro ex-presidentes peruanos foram presos por corrupção na década passada, e um matou-se.

(Lembra algo? De 1954 a 1956, o Brasil foi governado por quatro presidentes: Getúlio Vargas, que se suicidou, Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos. De 1961 a 1964, por mais quatro: Jânio Quadros, Ranieri Mazzilli, João Goulart e Mazzilli novamente.)

Entre os ministros do Supremo, consolida-se a opinião de que depois de 21 anos de ditadura, dois impeachments de presidentes (Collor e Dilma) fizeram muito mal à imagem do país; sem falar da prisão de dois ex-presidentes (Lula e Michel Temer).

Bolsonaro só não caiu porque comprou o Congresso com o Orçamento Secreto, e os militares o apoiavam. Prendê-lo seria abrir mais uma ferida que levaria muitos anos para cicatrizar. Contudo, vai depender só dele para que isso não aconteça.

Maquiavel: o que o autor de 'O príncipe' tem a ensinar sobre democracia aos brasileiros?

Caso mudar o mundo esteja entre as suas resoluções de ano, vale a pena estudar obra de um diplomata florentino que, num livrinho chamado “O príncipe”, afirmou que um governante precisa estar disposto a “atuar contra a palavra dada, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião” se quiser conquistar e manter o poder: Nicolau Maquiavel (1469-1527). De cara, essa sugestão causa algum estranhamento. Afinal, “O príncipe” deu origem ao adjetivo “maquiavélico” (pérfido, ardiloso). No entanto, em “Maquiavel, a democracia e o Brasil” (Estação Liberdade), o professor do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro escreve que o “Secretário Florentino” é “uma boa inspiração para quem quer mudar o mundo”.

E ele não está sozinho em sua defesa do maquiavelismo. Nos últimos meses, chegaram às livrarias títulos que destacam a originalidade do pensamento de Maquiavel e contestam sua fama de mau. Não só o autor de “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” não é nenhum professor de tiranos — ele nunca disse que os fins justificam os meios —, como também oferece valiosas lições de liderança e até de democracia.

Ou melhor: de republicanismo. Estudiosos enxergam em Maquiavel um herdeiro de uma tradição que remonta à filosofia grega e foi renovada pelos chamados humanistas cívicos nos primórdios da Modernidade, período em que viveu o autor. O velho Nicolau, quem diria, era um defensor do “governo largo” ou “misto”, o qual, diferentemente da monarquia e da aristocracia, assegura os direitos dos “Grandes” e também do povo.


Autor de “Maquiavelianas: lições de política republicana” (Editora 34), Sérgio Cardoso afirma que o florentino tem um bocado a ensinar sobre democracia porque reconhece que a divisão social é uma realidade inultrapassável. Em “O príncipe”, ele escreveu que “em toda Cidade”, encontram-se dois “humores distintos”: o do povo, que deseja não ser comandado e oprimido pelos “Grandes”, e o dos “Grandes”, que desejam comandar e oprimir o povo (e acumular riquezas, é claro).

— Para Maquiavel, as instituições são republicanas na medida em que são capazes de trazer o humor popular para a cena política. Ele propõe uma democracia que não é meramente formal ao mostrar que é a pressão popular, o conflito entre o povo e os Grandes, que dá força às leis. Assim, ele nos ajuda a pensar o que hoje chamamos de movimentos sociais — diz Cardoso, que também é professor do Departamento de Filosofia da USP.

Por que, então, maquiavélico se tornou sinônimo de diabólico? Na Inglaterra do século XVII, “Old Nick” virou até um dos nomes do coisa-ruim! Ribeiro explica: Maquiavel irritou as elites ao revelar a natureza pouco decente do poder. Não à toa, “O príncipe” foi proibido pela Igreja Católica. Cardoso lembra que os protestantes franceses fizeram a caveira do autor ainda no século XVI. Os chamados huguenotes se opunham à importação da cultura florentina por Franciso I e à rainha Catarina de Médici, filha da nobreza toscana e acusada de ser um “Maquiavel de saias” (ela é por vezes responsabilizada pelo massacre dos protestantes na infame Noite de São Bartolomeu, em 1572).

No século XX, porém, Maquiavel foi reabilitado por pensadores como o italiano Antonio Gramsci, os franceses Maurice Merleau-Ponty e Claude Lefort (que formou uma geração de maquiavelianos brasileiros) e os ingleses John Popock e Quentin Skinner. Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Aldo Fornazieri explica que a crise das ideologias (do liberalismo ao marxismo), no final do século XX, e da própria democracia, nas últimas duas décadas, levou estudiosos a revistar Maquiavel num esforço para reanimar a política democrática. Além de não ocultar a divisão social, o florentino defendia que as boas leis nasciam justamente dos conflitos entre os “Grandes” e o povo.

— Na democracia liberal, as elites dominam o sistema político e servem-se eleitoralmente das massas, mas perdem a legitimidade ao chegar ao poder por não terem contato real com o povo. O conceito maquiaveliano de república implica participação e controle popular do poder — diz o autor de “Liderança e poder” (Contracorrente), no qual escreve que não há nada mais contrário a Maquiavel do que “governar contra o povo”. — A leitura de “O príncipe” é fundamental para entender como se processam as mudanças políticas. É uma teoria da liderança política que qualifica o que é um líder virtuoso, algo de que o mundo carece atualmente.

Obra mais controversa de Maquiavel, “O príncipe” ensina como governantes dotados de virtù são capazes de driblar a fortuna (o acaso, as circunstâncias) e se agarrar ao poder — nem que para isso atentem contra a virtude cristã. Mas virtù (que vem de vir, varão), não é sinônimo de vício. Muito pelo contrário. Fornazieri a descreve “a disposição para lutar pela liberdade, pela vida, por justiça, pelo grupo, pela comunidade, pela pátria”. Já Ribeiro afirma que virtù é “a ação humana planejada, consequente, com vistas a resultados”.

Em seu livro, o ex-ministro da Educação questiona se os presidentes do Brasil desde a redemocratização governaram com virtù ou ao sabor dos vendavais da fortuna. Só Lula passou na prova: chegou ao poder e lá se manteve pela própria virtù. Fernando Henrique Cardoso conquistou o poder graças à fortuna (o Plano Real e a indicação do então presidente Itamar Franco avalizaram sua candidatura), mas teve a virtù de “conseguir a aliança das classes antes chamadas ‘conservadoras’, em torno de um projeto que incluía, ainda que modestamente, programas sociais”. Já Bolsonaro se elegeu favorecido pela fortuna (o humor popular rejeitava a política tradicional), mas sua falta de virtù o privou de um segundo mandato.

O príncipe, no entanto, não deve usar a virtù apenas para permanecer o poder, mas sobretudo para agir, para implementar mudanças que contemplem o humor popular. É essa, diz Ribeiro, a principal lição que a política brasileira pode tirar de Maquiavel.

— O Brasil precisa de muita mudança. Saímos do mapa da fome, mas voltamos. Nossos valores democráticos se mostraram muito frágeis — afirma Ribeiro, lembrando que, numa república, não só o príncipe, mas também o povo deve demonstrar virtù. — Seja o governo de esquerda ou de direita, a sociedade brasileira precisa assumir os valores da Constituição. Nos últimos anos, terceirizamos nossa democracia, como se a resistência a um golpe dependesse só dos EUA ou dos militares e não do povo. O que diferencia a democracia e de outros regimes é a virtù do povo.

As emendas secretas continuarão a existir

No romance “O Leopardo”, do italiano Tomasi di Lampedusa, há uma frase dita por Tancredi ao seu tio Fabrizio: “…Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. A frase deve ter servido de inspiração para as novas decisões do Congresso.

É grave e triste o que estamos presenciando. Uma emenda à Constituição Federal sendo construída a toque de caixa para dar uma resposta imediata e driblar uma decisão do STF. Com a intenção clara de manter o poder do Congresso sobre bilhões.



Assim, diluíram metade das emendas RP9 entre todos os parlamentares (RP-6). A outra metade (RP2), de uma forma ou de outra, será controlada pelos líderes. Vejam: ” Fica o relator-geral do PLOA 2023 autorizado a apresentar emendas para a ampliação das dotações… “. A equipe de transição PODERÁ ser atendida em suas solicitações.

As emendas de relator, portanto, continuarão a existir, contrariando o STF. Há uma referência no texto no sentido de que o relator-geral apresentará emendas para ações voltadas à execução de políticas públicas. Mas o termo “políticas públicas” tem que ser interpretado com rigor, o que significa planejamento com diagnóstico, indicadores, critérios, parâmetros, o q não se coaduna com indicações meramente políticas, o que foi vetado pelo STF. Dessa forma, as emendas de relator RP-2 não poderiam ter critérios políticos

Indiretamente também serão aumentados os recursos para as transferências especiais, as malfadadas emendas PIX.

Curiosamente, o acréscimo que a PEC propicia é maior no Senado do que na Câmara. Os valores de cada senador (R$ 59 milhões) são maiores do que os dos deputados( R$ 32,1 milhões).

Para efeito das novas emendas, um senador vale mais do que um deputado.

O Congresso está mudando tudo, para que tudo (ou quase tudo) continue como está.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Pensamento do Dia

 


O cheiro de queimado em Brasília

O cheiro de queimado aqui é metafórico. Tem chovido com frequência, e os sinais do fogo ainda podem ser vistos na grama defronte à delegacia atacada por extremistas de direita. Ônibus e carros destruídos já foram retirados das ruas, de forma discreta e rápida, como se retiram corpos de quem morre num hotel.

Brasília não foi feita para grandes manifestações. Os gritos se perdem na solidão do Planalto, ninguém abre as janelas para jogar papel picado, água ou mesmo máquina de escrever, como no Rio dos anos 1960. Mas o clima aqui mudou. A concentração diante do Q.G. do Exército ainda tem gente, embora não tanto quanto no princípio. Amiga que passa por lá diz que, de vez em quando, rezam ou cantam o Hino Nacional. Os vendedores ambulantes foram retirados, e o clima de feira livre se dissipou.

O cheiro de queimado ainda está no ar porque ninguém foi punido, até agora. Ninguém foi preso no dia do fogaréu. Tudo se passa como se Brasília fosse invadida por extraterrestres que voltaram ao espaço sideral: não há mais como alcançá-los. Apesar de tantos vídeos e rastros deixados no caminho.

Atos violentos costumam marcar o fim de movimentos de massa. São uma espécie de ruidosa extrema-unção. Mas, apesar disso, é preciso reconhecer que nunca se protestou tanto contra um resultado eleitoral. No passado, os perdedores tendiam à resignação ou mesmo à indiferença. Desta vez, houve um movimento intenso e capilarizado.

A cada dia, surgia uma esperança: o relatório das Forças Armadas, o Tribunal Internacional. Houve quem acreditasse que o vencedor tinha morrido, e um clone ocupara o seu lugar. Há uma psicologia de seita religiosa que, certamente, o curso dos meses atenuará. No entanto é preciso prudência.

O que acentua o cheiro de queimado no ar é a festa de uma eleição vitoriosa sem levar muito em conta esse clima. Estamos no momento da lua de mel, em que os vencedores se sentem à vontade. Uma lua de mel diferente. E parece que essa singularidade escapa às cabeças dominantes. A luta pelos ministérios deixa muita gente preocupada com cargos e honrarias, no momento em que é preciso desenhar um esquema de governo eficiente para realizar sua tarefa histórica.

A Lei da Estatais foi para o espaço. Num só dia, aumentou-se a cota de publicidade que as empresas podem usar, e retiraram-se os obstáculos para que políticos voltassem a ocupar os cargos diretivos. Observadores políticos reclamam que os erros do passado não foram entendidos. Mas os erros do passado foram esquecidos pela sociedade, que elegeu de novo os mesmos atores.

A verdadeira lição que o pragmatismo político ensina é esta: é possível cometer grandes erros históricos porque o preço é a vitória de uma extrema direita tosca e alucinada, que dura pouco no poder. Em menos de quatro anos, a maioria estará de novo sonhando com a volta do antigo esquema. Esse parece ser o círculo de ferro em que a História moderna do Brasil se encerrou. Não se pode perder nunca a esperança de quebrá-lo.

Ainda é tempo de evitar os mesmos erros e suprimir a extrema direita dessa alternância no poder. Um dos caminhos é compreender um governo de frente não como um ajuntamento, mas como resultado de uma escolha dos mais representativos e capazes. É desenhar o organograma não como um espaço elástico para acomodar todas as ambições, mas como um desenho inteligente para realizar a tarefa histórica.

Afinal, é pedir muito querer uma tentativa real de sair disso que o querido Cazuza chamava de “museu de grandes novidades”? Brasília ferve no calor dos incêndios extremistas, na temperatura da surda luta pelo poder, na força regressiva das velhas tendências fisiológicas do Centrão.

Enfim, apesar das chuvas, ainda não consigo afastar das narinas esse desconfortável cheiro de queimado.