E ele não está sozinho em sua defesa do maquiavelismo. Nos últimos meses, chegaram às livrarias títulos que destacam a originalidade do pensamento de Maquiavel e contestam sua fama de mau. Não só o autor de “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” não é nenhum professor de tiranos — ele nunca disse que os fins justificam os meios —, como também oferece valiosas lições de liderança e até de democracia.
Ou melhor: de republicanismo. Estudiosos enxergam em Maquiavel um herdeiro de uma tradição que remonta à filosofia grega e foi renovada pelos chamados humanistas cívicos nos primórdios da Modernidade, período em que viveu o autor. O velho Nicolau, quem diria, era um defensor do “governo largo” ou “misto”, o qual, diferentemente da monarquia e da aristocracia, assegura os direitos dos “Grandes” e também do povo.
Autor de “Maquiavelianas: lições de política republicana” (Editora 34), Sérgio Cardoso afirma que o florentino tem um bocado a ensinar sobre democracia porque reconhece que a divisão social é uma realidade inultrapassável. Em “O príncipe”, ele escreveu que “em toda Cidade”, encontram-se dois “humores distintos”: o do povo, que deseja não ser comandado e oprimido pelos “Grandes”, e o dos “Grandes”, que desejam comandar e oprimir o povo (e acumular riquezas, é claro).
— Para Maquiavel, as instituições são republicanas na medida em que são capazes de trazer o humor popular para a cena política. Ele propõe uma democracia que não é meramente formal ao mostrar que é a pressão popular, o conflito entre o povo e os Grandes, que dá força às leis. Assim, ele nos ajuda a pensar o que hoje chamamos de movimentos sociais — diz Cardoso, que também é professor do Departamento de Filosofia da USP.
Por que, então, maquiavélico se tornou sinônimo de diabólico? Na Inglaterra do século XVII, “Old Nick” virou até um dos nomes do coisa-ruim! Ribeiro explica: Maquiavel irritou as elites ao revelar a natureza pouco decente do poder. Não à toa, “O príncipe” foi proibido pela Igreja Católica. Cardoso lembra que os protestantes franceses fizeram a caveira do autor ainda no século XVI. Os chamados huguenotes se opunham à importação da cultura florentina por Franciso I e à rainha Catarina de Médici, filha da nobreza toscana e acusada de ser um “Maquiavel de saias” (ela é por vezes responsabilizada pelo massacre dos protestantes na infame Noite de São Bartolomeu, em 1572).
No século XX, porém, Maquiavel foi reabilitado por pensadores como o italiano Antonio Gramsci, os franceses Maurice Merleau-Ponty e Claude Lefort (que formou uma geração de maquiavelianos brasileiros) e os ingleses John Popock e Quentin Skinner. Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Aldo Fornazieri explica que a crise das ideologias (do liberalismo ao marxismo), no final do século XX, e da própria democracia, nas últimas duas décadas, levou estudiosos a revistar Maquiavel num esforço para reanimar a política democrática. Além de não ocultar a divisão social, o florentino defendia que as boas leis nasciam justamente dos conflitos entre os “Grandes” e o povo.
— Na democracia liberal, as elites dominam o sistema político e servem-se eleitoralmente das massas, mas perdem a legitimidade ao chegar ao poder por não terem contato real com o povo. O conceito maquiaveliano de república implica participação e controle popular do poder — diz o autor de “Liderança e poder” (Contracorrente), no qual escreve que não há nada mais contrário a Maquiavel do que “governar contra o povo”. — A leitura de “O príncipe” é fundamental para entender como se processam as mudanças políticas. É uma teoria da liderança política que qualifica o que é um líder virtuoso, algo de que o mundo carece atualmente.
Obra mais controversa de Maquiavel, “O príncipe” ensina como governantes dotados de virtù são capazes de driblar a fortuna (o acaso, as circunstâncias) e se agarrar ao poder — nem que para isso atentem contra a virtude cristã. Mas virtù (que vem de vir, varão), não é sinônimo de vício. Muito pelo contrário. Fornazieri a descreve “a disposição para lutar pela liberdade, pela vida, por justiça, pelo grupo, pela comunidade, pela pátria”. Já Ribeiro afirma que virtù é “a ação humana planejada, consequente, com vistas a resultados”.
Em seu livro, o ex-ministro da Educação questiona se os presidentes do Brasil desde a redemocratização governaram com virtù ou ao sabor dos vendavais da fortuna. Só Lula passou na prova: chegou ao poder e lá se manteve pela própria virtù. Fernando Henrique Cardoso conquistou o poder graças à fortuna (o Plano Real e a indicação do então presidente Itamar Franco avalizaram sua candidatura), mas teve a virtù de “conseguir a aliança das classes antes chamadas ‘conservadoras’, em torno de um projeto que incluía, ainda que modestamente, programas sociais”. Já Bolsonaro se elegeu favorecido pela fortuna (o humor popular rejeitava a política tradicional), mas sua falta de virtù o privou de um segundo mandato.
O príncipe, no entanto, não deve usar a virtù apenas para permanecer o poder, mas sobretudo para agir, para implementar mudanças que contemplem o humor popular. É essa, diz Ribeiro, a principal lição que a política brasileira pode tirar de Maquiavel.
— O Brasil precisa de muita mudança. Saímos do mapa da fome, mas voltamos. Nossos valores democráticos se mostraram muito frágeis — afirma Ribeiro, lembrando que, numa república, não só o príncipe, mas também o povo deve demonstrar virtù. — Seja o governo de esquerda ou de direita, a sociedade brasileira precisa assumir os valores da Constituição. Nos últimos anos, terceirizamos nossa democracia, como se a resistência a um golpe dependesse só dos EUA ou dos militares e não do povo. O que diferencia a democracia e de outros regimes é a virtù do povo.
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