segunda-feira, 6 de abril de 2020

Que diria Susan Sontag sobre a Covid-19?

Quando a escritora americana Susan Sontag descobriu que tinha câncer, fez o que intelectuais como ela fazem nesse tipo de situação: pôs-se a escrever. O resultado, publicado em 1978 na "New York Review of Books", é um de seus ensaios mais conhecidos, sagazes e profundos: "Doença como metáfora". Em 1989, quando a aids devastava o planeta sem perspectiva de tratamento, veio o capítulo seguinte: "Aids e suas metáforas". Em ambos, Sontag desmonta a lógica perversa com que tratamos as doenças ao longo da história, expõe as metáforas subliminares usadas para transformar doentes em culpados pelo próprio mal, traduz a linguagem empregada para estigmatizá-los, isolá-los, afastá-los — e para nos manter distantes do mundo da morte. Sua crítica ao modo como nossa mente lida com a tuberculose, o câncer e a aids permanece viva e essencial. Que diria Sontag — que morreu de outro câncer, há 15 anos — sobre a Covid-19?


Parte da resposta está lá em seus escritos de 30 e 40 anos atrás. A infecção pelo novo coronavírus mistura, em nossa imaginação, ingredientes das doenças anteriores. Como o câncer, é insidiosa e sub-reptícia no modo como se espalha pelo corpo. Como a aids, é causada por um vírus misterioso, um mutante genético imperscrutável. Como o câncer, tem um caráter “primitivo”, “invasivo”, “coloniza” os pulmões. Como a aids, dribla as “defesas” do organismo, sem que ele possa controlar seu destino. Como o câncer, mobiliza recursos de inspiração militar, fala-se que vivemos uma “guerra”. Como a aids, espalha o terror dos resultados “positivo” e “negativo” nos exames. Como o câncer, está vinculada à vida moderna em cidades superpovoadas, ao desdém pela natureza, a produtos artificiais. Como a aids, atinge um grupo de risco, aqueles a quem será preciso manter isolados, protegidos não pelo “sexo seguro”, mas pelo “distanciamento social”. Como no caso do câncer, circula a máxima de que “o tratamento é pior que a doença” — para a economia, não para o paciente, já que, como no caso da aids, não há tratamento para quem der azar e se tornar “vítima” da variante mais severa e letal.

Os demais, em particular as crianças, não estão a salvo. Sentirão doravante a culpa de se tornar transmissores sem saber. Sem ter sintomas, sem fazer nada, guardarão o estigma do contágio por um reles abraço, aperto de mão ou beijo inocente. Onde câncer e aids espelhavam o fracasso de sociedades movidas pelo excesso, a Covid-19 traz o espectro do afastamento, das fronteiras fechadas, dos freios à globalização, do nacionalismo, do chauvinismo, dos rostos cobertos por máscaras, do adeus ao mundo em que, nas palavras do escritor católico Paul Elie, “viajamos para toda parte de avião, mas paramos de lavar as mãos”. A epidemia, ao contrário do que Sontag escrevia há três décadas, voltou a ser uma prova de caráter, como as pestes de outrora. A própria palavra “vírus”, a exemplo da palavra “câncer”, se tornou metáfora antes mesmo de a pandemia ser uma ameaça real. Em vez do “câncer” a representar o mal supremo que precisa ser extirpado — comparação “crassa” no entender de Sontag —, o “vírus” é o exemplo do mundo sem fricção, do “contágio” espontâneo via computadores e redes sociais.

O risco de tratar doenças como metáforas é esquecer os doentes e evitar o único tipo de discurso que pode aliviá-los ou curá-los: a discussão científica racional. “Meu ponto é que a doença não é uma metáfora, e a forma mais verdadeira de encará-la — e a mais saudável de ficar doente — é a mais resistente ao pensamento metafórico”, escreveu Sontag. Por uma dessas ironias que não escapam ao leitor atento, nem ela resistiu. Na primeira linha de seu ensaio, lança mão de uma metáfora: “A doença é o lado noturno da vida, uma cidadania mais onerosa. Cada um nasce com dupla cidadania, no reino dos sadios e no reino dos doentes. Embora todos prefiramos usar apenas o passaporte bom, cedo ou tarde cada um de nós é obrigado, nem que por um breve período, a nos identificar como cidadãos desse outro lugar”. É para lá que milhões deverão rumar nos próximos meses. Nem todos voltarão.

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