O meu corretor ortográfico continua a sinalizar a vermelho a palavra coronavírus, tratando-a como erro. A linguagem está quase sempre atrasada em relação à vida. Ou então adiantada. Isso pode ser perigoso.
Por estes dias, não consigo raciocinar como deve ser, muito menos pensar histórias. Uma coisa e outra exigem um fio invisível que ligue com alguma coerência o princípio e o fim, e o meu pensamento está sempre a partir-se. Um vidro frágil que se estilhaça em pedaços pontiagudos e cortantes. O medo é um deles.
Sigo um grupo de psicólogos no Facebook. Lá, é explicado que, nestas circunstâncias, é normal ter medo, estar-se confuso, zangado, inseguro. Sinto algum conforto por ser normal quando tudo desaba. Quis acreditar na Direção-Geral da Saúde, que informou, em janeiro, ser pouco provável o vírus chegar a Portugal. O futuro tratado com doses iguais de Ciência e de Fé. As notícias sobre a epidemia na China continuavam a ser recebidas com a indiferença que dispensamos ao que é distante, ou ao que é próximo e não nos interessa. Pelo sim, pelo não, alguns de nós deixaram de ir a lojas e restaurantes geridos por asiáticos e o assunto parecia arrumado.
Num par de semanas, o novo vírus estava na Europa. O dia em que se soube do primeiro infetado em Itália calhou ser o mesmo em que fui ao Teatro São Luiz ver o primeiro solo da Mónica Calle de Isto é o meu corpo. A Lombardia não ficava tão longe de nós quanto a província de Hubei, mas ainda era suficientemente longe para que pudéssemos continuar a confiar que estávamos a salvo. Nada foi travando a tragédia. Em breve, havia dezenas de infetados noutros países europeus. E finalmente soube-se do primeiro em Portugal.
Não percebo nada de matemática, mas sei a tabuada do dois. Dois vezes um, dois, dois vezes dois, quatro, quatro vezes dois, oito, oito vezes dois, dezasseis… E sei contar pelos dedos. Aparentemente, se não se fizer nada para conter a Covid-19, o número de infetados duplica a cada dois dias. Sexta-feira, 13, foi o último dia em que as escolas estiveram abertas. Pela tabuada do dois devia haver, então, sessenta e quatro infetados em Portugal. Havia cento e doze. O governo só decretou medidas que permitiam um recolhimento mais generalizado dos portugueses quase uma semana depois, porque – dizem – a economia não pode parar. Entretanto, a tabuada do dois também não tinha parado e, segundo ela, nessa altura haveria quinhentos e doze infetados. Havia setecentos e oitenta e cinco. O período de incubação do vírus faz com que qualquer medida de contenção leve duas semanas a produzir resultados. Sabendo o número de camas dos hospitais portugueses, os recursos humanos hospitalares, a quantidade de ventiladores existentes – pouco mais de mil – e fazendo as contas…
Prometo a mim própria que só verei notícias de três em três horas. Nunca consigo cumprir. Se pelo menos soubesse o que fazer com tanta informação desencontrada. É, no entanto, certo que pertenço a um dos grupos de risco, caso seja infetada.
Fazia uma residência literária na Alemanha quando percebi que havia qualquer coisa errada nos meus pulmões. Foi há dez anos. Entretanto, os médicos têm-se inclinado para que seja um problema congénito, apesar de que nem eu nem os que me são mais próximos demos conta disso. Ninguém deu importância ao facto de eu, quando era criança, não querer entrar no concurso de encher balões que os miúdos do bairro organizavam a pretexto das festas de aniversários. Logo eu, que era tão exuberantemente participativa em todas as brincadeiras. Depois de cheios, os balões coloridos eram pendurados nas folhas de palmeiras que cobriam os muros de cimento do quintal do aniversariante. Ficava sem fôlego a encher balões e por isso esquivava-me, Não me apetece. Se tivesse dito a verdade, talvez alguém se tivesse apercebido.
Tenho medo. Não propriamente da morte. Pelo menos da minha. Morrer não deve ser nada de especial. Deve ser alguém a apagar-nos a luz, como a minha mãe ao sair do meu quarto de criança, Agora dorme. Tenho medo da morte da minha mãe, da morte daqueles que amo. Um medo enorme. E mais do que da morte, do sofrimento. Do sofrimento de que não voltamos.
Pertenço também ao grupo dos desprevenidos, dos que não se abasteceram a tempo. Tenho a despensa quase vazia. O dono da loja da esquina ofereceu-me generosamente a possibilidade de comprar uma garrafinha de álcool por nove euros, Só para os clientes como a senhora, disse. Ainda não toquei na preciosidade que coloquei majestosamente em cima do armário da casa de banho. Tenho desinfetado tudo com lixívia. A minha casa e eu cheiramos às vizinhas da minha infância.
Não saio de casa desde o dia 11 de março. Vou arrumando armários. Encontrei a caixa dos frasquinhos de gel de banho que trazia de hotéis estrangeiros, quando os meus livros começaram a levar-me de um lado para o outro. As viagens foram-se sucedendo e perdi interesse em ter tantos bocadinhos de mundo na minha casa de banho. Ontem à noite, ao tomar duche, usei um gel que cheirava a bergamota e tangerina que trouxe de Bruxelas. Por instantes, fui transportada para o hotel Metrópole, mas logo uma âncora pesada me puxou para aqui e para agora.
Mantenho-me em contacto com os outros pelo WhatsApp, Messenger, Skype, Zoom, Houseparty. Tenho trocado mensagens com pessoas com quem já não falava há muito tempo. Algumas despedem-se desejando-me boa sorte. Como se eu fosse concorrer a alguma coisa ou estivesse a entrar num casino. Também dizem, Coragem.
Não sei quanto tempo terei de estar fechada em casa, mas existe, de certeza, tanta coisa para descobrir aqui dentro. Todas as casas têm passagens secretas. Se nos pusermos a procurá-las, descobri-las-emos. Hão de levar-nos a sítios onde nunca fomos. Se nos unirmos nessa busca, poderemos torná-los maravilhosos. E outro futuro há de chegar.
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