A última grande pandemia de gripe aconteceu em 1968 e matou um milhão de pessoas. Muitas das vítimas da atual Covid-19 a viveram. “Que triste que, apesar de todos os avanços médicos obtidos desde então [...], os tratamentos que podemos oferecer aos pacientes em muitas áreas atingidas pela Covid-19 sejam os mesmos que teríamos adotado há mais de 50 anos”, confessam os médicos John Hick e Paul Biddinger, especialistas em emergências médicas das universidades de Minnesota e Harvard, em um artigo recente publicado em uma das revistas médicas de maior prestígio do mundo.
É mais que isso: as principais armas com as quais o mundo luta hoje contra a pandemia de coronavírus remontam ao século XIX. Ao contrário do que se possa pensar, não há razão para deixar de usá-las.
A primeira pandemia do século XXI, a SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês), também foi causada por um coronavírus, o SARS-CoV, que foi o primeiro grande vírus impulsionado pela globalização. Pulou para os humanos das civetas e de outros mamíferos vendidos em mercados úmidos da China. O vírus se espalhou pelo mundo a bordo de voos comerciais, chegando a 29 países. Durante os 20 meses de duração da epidemia, mais de 8.000 infecções e quase 800 mortes foram confirmadas. São números que em janeiro ―há apenas dois meses― ainda pareciam longínquos, mas agora ficaram para trás como um algo praticamente insignificante. Só na Espanha, a Covid-19 mata mais pessoas por dia do que a SARS em toda a sua história.
Contra a SARS “os Estados aplicaram medidas do século XIX, como o monitoramento dos contatos de cada infectado, a quarentena e o isolamento social”, lembra o médico japonês Shigeru Omi, chefe da OMS na Ásia durante a pandemia, em um livro sobre como se conseguiu acabar com aquele vírus.
Autoridades inspecionam grupo de socorristas em Chicago, em 1918 |
Embora seja impossível saber o resultado da atual pandemia, tudo indica que agora também serão as medidas clássicas que acabarão com a epidemia, reconhece o enfermeiro Luis Encinas, que trabalha para os Médicos sem Fronteiras (MSF) desde 1994 e viveu algumas das piores epidemias de ebola na África. Ele integra agora o conselho consultivo dos MSF contra a Covid-19. “Por enquanto, não há outra forma de conter o vírus, não temos outras medidas no curto prazo”, explica. “Mas nem mesmo o isolamento será suficiente. É como se você se jogasse no fundo de uma piscina para evitar um tiroteio. Você pode se salvar, mas se as balas continuarem por muito tempo, você tem de sair de novo e agir”. O enfermeiro lamenta que nem Espanha nem muitos outros países tivessem pronta uma estratégia a seguir em caso de pandemias, com medidas de ação para curto, médio e longo prazo.
“Desta vez tivemos sorte”, dizia outra das grandes lições que a OMS tirou da epidemia de SARS. Conter aquele vírus foi muito mais fácil do que agora. Os infectados só eram contagiosos quando começavam os sintomas, principalmente a febre, por isso podiam ser identificados com um simples termômetro, e a expansão do vírus pôde ser contida internando-os e colocando seus contatos em quarentena. “O agente patogênico se movia melhor dentro dos hospitais do que fora, por isso foi mais fácil contê-lo”, recorda Isabel Sola, microbiologista do Centro Nacional de Tecnologia da Espanha (CNB-CSIC). “Além disso, o animal que tinha originado a zoonose foi identificado rapidamente e os contatos com humanos foram radicalmente evitados”, lembra.
A outra tecnologia mais necessária no momento, os testes rápidos de anticorpos, também não é uma tecnologia de ponta do século XXI, requerem apenas métodos que foram aperfeiçoados no século XX. “A única coisa necessária para fazer um teste rápido é ter a capacidade de criar uma tira, um suporte físico no qual colocar o fluido e que indique se há infecção, algo ao alcance de muitas empresas de biotecnologia”, explica Sola.
Os infectados pelo SARS-CoV-2, o novo coronavírus, podem passar dias, até mesmo semanas, sem nenhum sintoma. Durante esse tempo, podem espalhar o vírus por onde forem. Esses infectados nunca detectados pelas autoridades provavelmente explicam a rápida expansão da pandemia na China, Itália e Espanha, e mostram como será difícil contê-la.
Para alguns especialistas, o mais provável é que não se consiga deter esta epidemia antes que o vírus tenha contagiado cerca de 60% da população. A estratégia seguida agora por países como a Espanha é tentar fazer com que essas infecções não aconteçam de uma só vez, e sim ao longo de meses, para evitar o colapso total dos hospitais. Enquanto isso, as velhas medidas do século XIX continuam salvando vistas. Uma projeção matemática do Imperial College de Londres calcula que as medidas de isolamento salvaram 16.000 vidas só na Espanha, quase 60.000 em toda a Europa, embora as margens de erro sejam altas.
“Nossas melhores armas continuam sendo o acompanhamento de todos os contatos que uma pessoa infectada teve, embora humanamente seja muito difícil fazer isso sem alta tecnologia”, afirma Ildefonso Hernández, porta-voz da Sociedade Espanhola de Saúde Pública. “De qualquer forma, as grandes contribuições científicas e tecnológicas que forem conseguidas, como os tratamentos e as vacinas, só estarão disponíveis, com sorte, para a próxima onda de coronavírus”, ressalta.
O novo coronavírus se espalha tão rápido e há tantas pessoas suspeitas de infecção que é impossível rastrear sua propagação à mão, como se fazia até agora. Pesquisadores da Universidade de Oxford desenvolveram um modelo matemático segundo o qual até metade dos contágios pelo novo coronavírus se devem a indivíduos não diagnosticados e sem sintomas aparentes. O número é semelhante ao observado em Cingapura (42%) e na China (62%). A única forma de derrotar um vírus tão invisível é usar um sistema automático que calcule quanta pessoas estiveram perto do indivíduo infectado durante dias, recorrendo, para isso, ao GPS dos celulares, explicaram pesquisadores esta semana na revista Science. Isso seria feito à custa, é claro, de sua privacidade e de sua liberdade individual, pois essas pessoas teriam de ficar obrigatoriamente de quarentena. E isso sem levar em conta os obstáculos burocráticos e legais que poderiam impedir que algo assim fosse posto em prática em boa parte do mundo.
O aparente sucesso de países como China, Coreia do Sul e Cingapura na contenção do SARS-CoV-2 se explica em parte porque depois da SARS e da MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), outro coronavírus que pulou de camelos para humanos em 2012 e continua ativo, eles sabiam que era preciso agir depressa. Mas o caso mais paradigmático no Sudeste Asiático é o do Vietnã, um país com menos recursos, que em fevereiro anunciou ter contido a pandemia. Todos os infectados se curaram. Nenhum habitante morreu. Mas foi uma vitória de pirro que prenuncia o que pode ocorrer com muitos outros países a partir de agora. No início deste mês, as autoridades vietnamitas reconheceram 35 novos casos, todos importados por avião, e os últimos dados indicam que já há 154 casos ativos. O Vietnã foi um dos países que agiu de forma mais rápida e decidida contra a SARS em 2003. Havia aprendido a lição.
Da epidemia de SARS, a OMS não se cansou de alertar o mundo de que talvez na próxima não houvesse tanta sorte. Em seu último relatório sobre o nível de preparação mundial para pandemias, de 2019, alertou: “O mundo não está preparado para uma pandemia viral respiratória de rápida expansão. A gripe de 1918 adoeceu um terço da população mundial e matou 50 milhões de pessoas. Se uma pandemia similar ocorresse hoje, com uma população quatro vezes maior que a daquela época e com tempos de viagem de menos de 36 horas para qualquer ponto do globo, até 80 milhões de pessoas poderiam morrer”.
Em termos econômicos, é muito lucrativo estar preparado. As perdas por uma pandemia alcançam 60 bilhões de euros (344 bilhões de reais) anuais, segundo um dos maiores painéis de especialistas internacionais no assunto, reunidos em 2016 pela Academia Nacional de Medicina dos EUA. Estar preparado para combatê-la em nível internacional custaria apenas 4,5 bilhões de euros (26 bilhões de reais) ao ano. Seria um dinheiro bem gasto, argumentam, pois permitiria não só conter vírus emergentes, como também combater a resistência a antibióticos, um problema que pode nos devolver à idade Média mais rápido do que imaginamos.
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