segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Entre o colonialismo e o terrorismo

No filme de Gillo Pontecorvo, “A Batalha de Argel” (1966), sobre a luta pela libertação da Argélia contra o domínio colonial francês, um líder da FLNA (Frente de Libertação Nacional da Argélia) capturado é interrogado pela imprensa sobre as ações do grupo. Os métodos da FLNA incluíam o recrutamento de mulheres para, passando despercebidas pelas forças francesas, depositarem bombas escondidas em cestas, carrinhos de bebê e outras formas de disfarce nos locais públicos da capital frequentados pelos franceses.

– O senhor não acha covarde e imoral usar mulheres portando cestos com bombas para matar inocentes nos cafés e restaurantes?

– Se os franceses me derem os seus helicópteros, podem ficar com os meus cestos.

A cena acima nos convida a uma reflexão necessária sobre o emprego político da violência a partir de duas categorias fundamentais na formação do mundo contemporâneo: colonialismo e terrorismo. Não se trata de justificar, mas de entender a violência, o que nos leva à política. É ela que está por trás da guerra e, paradoxalmente, somente ela pode produzir a paz. Por isso, qualquer avaliação que atribua a violência que ora testemunhamos ao puro ódio interdita uma solução política.

Antes de desbordar o problema, proponho uma reflexão (crucial em nosso tempo): Marx disse que “se aparência e essência coincidissem, toda ciência seria supérflua.” Quando olhamos algo, temos uma impressão. Essa impressão não é capaz de nos revelar a essência do que se vê. Ao observarmos o movimento do Sol, temos a impressão de que é ele que gira ao redor da Terra, e foi a essa conclusão que incontáveis gerações chegaram antes do método científico revelar a verdadeira essência do movimento. Da mesma forma, os fenômenos sociais demandam análise amparada por categorias e método para serem compreendidos.


Dito isso, uma das impressões mais comuns sobre o conflito que inspira esse texto é aquela segundo a qual trata-se de uma guerra religiosa, movida por puro ódio. Nada mais falso.

O objetivo central da política é “produzir” segurança. Isso significa, paradoxalmente, que ela detém a violência em sua essência, já que o preço da segurança é a capacidade de empregar a violência. Assim, quando a diplomacia e a dissuasão falham, a guerra pode se tornar inevitável. Eis, de forma sumária, a fórmula de Clausewitz, cânone da estratégia moderna.

Portanto, à política atribuímos a missão da pacificação indispensável à promoção da vida em sociedade, pois as diversas dimensões dessa vida só podem se realizar após a paz. Esse raciocínio faz da segurança o ativo nº 1 da civilização como a conhecemos (ou como se tornou dominante), e ensejou a formação de Estados capazes de demarcar o que é violência legítima e o que não é.

Passados séculos desde a formação dos Estados, habitamos um mundo dividido entre as regras do Direito Internacional (um dever ser) e a política das grandes potências, que usam a força para transgredir regras. Entre o dever ser e o que a realidade de fato é há um espaço onde operam a diplomacia, a opinião pública e as dimensões econômica, social, jurídica etc. Mas, no limite, o poder decide (ou, pelo menos, tem sido assim).

Segundo a teoria Realista, o sistema internacional pode ser analisado a partir do conceito de estado de natureza hobbesiano, que reitera o paradigma que confere a pretensão do monopólio legítimo da violência aos Estados. Nesse contexto, a guerra continua sendo “um ato de força para obrigar o inimigo a fazer a nossa vontade” (Clausewitz, 2010), e não existe independente da política, mas como outra gramática dela. Por isso, o emprego político da violência tem sido um elemento permanente na política internacional, e nada sugere que o deixará de ser no horizonte tangível.

“A Europa é indefensável”, disse Césaire (2020). O sentido histórico da frase é profundo. O mundo contemporâneo é produto de uma hierarquia de nações que, de modo esquemático, pensamos em dimensões correlatas: centro e periferia. A formação desse esquema geopolítico remonta à projeção de algumas nações europeias, que primeiro consolidaram o Estado Moderno, em busca da exploração de outros continentes e povos. Em fins do século XIX, esse processo havia culminado na dominação de 86% da superfície terrestre pelos europeus (Kennedy, 1989).

E no que consiste o colonialismo? Trata-se, inicialmente, de uma relação. Fanon (1968, p. 26) escreveu: “O colono e o colonizado são velhos conhecidos. (…) É o colono que fez e continua a fazer o colonizado.” Atavicamente ligado ao colonizado, o colonizador não está invulnerável à violência que pratica. Pelo contrário: a barbárie passa a constituí-lo, com impactos dentro da fortaleza colonial.

Ato contínuo, pensemos na original interpretação de Césaire sobre o nazismo. Segundo ele, o nazismo foi o impacto do colonialismo entre os europeus (daí, não parecer casual que campos de concentração tenham aparecido antes em território africano). Então, a diferença entre a violência colonial nas Américas, África, Ásia e Oceania para aquela vivenciada por judeus e outras minorias europeias por mãos nazistas, durante a II GM, é apenas o locus: enquanto o holocausto ocorreu no centro, o colonialismo se deu na periferia. Enquanto o rei belga Leopoldo II, responsável por 10 milhões de mortes no Congo, teria disciplinado “selvagens”, Hitler cometeu o desatino de levar a barbárie ao solo “civilizado”. Depois de Auschwitz, Hitler ilustra as piores páginas escritas pela humanidade, mas Leopoldo segue imponente em estátuas pela Bélgica.

Disso concluímos que há os que devem viver e os que devem morrer (Mbembe, 2018). Essa diferenciação é uma das estruturas vertebrais das relações internacionais e está na raiz do desprezo pelo drama palestino, que também nasce no que Said (2012) classificou como “Orientalismo”: determinar o Oriente (outro) como uma caricatura que consubstancie cultural e moralmente sua subordinação política. Essa caricatura desconstrói sua humanidade e faz dele uma ameaça ao… colonizador! Ou seja: a colonização se dá não apenas pela força, mas pela aniquilação cultural do outro, negando-lhe qualquer existência fora da condição colonial, fazendo dele um sujeito ontologicamente colonizado. E quando ele renega a condição imposta, suscita a reação do colonizador amparada pela legitimidade de quem está devolvendo as coisas ao seu “devido lugar”. É essa a relação política que informa o direito em situações de apartheid e condena uma violência promovendo outra, anterior e maior, emulando da condição sine qua non do Estado, o monopólio da violência, o pretenso direito à aplicação da força contra aquele (o colonizado) que infringe a lei (o apartheid). O apartheid, pois, consiste numa ordem indisfarçadamente violenta.

Pensamento do Dia

 


Concentração de riqueza e racismo no Brasil

Na coluna de hoje trago um pouco sobre o bate-papo com o Fernando Maskobi, consultor financeiro estrategista que aborda a concentração de riqueza no Brasil e como isso está interligado ao racismo. A concentração de riqueza e o racismo são dois problemas interligados que persistem no Brasil, alimentando desigualdades profundas e persistentes na sociedade. Essas questões têm raízes históricas que remontam ao período colonial e à escravidão.

Conforme cita Fernando: “Num país onde a metade mais pobre possui menos de 1% da riqueza, fica difícil esperar um Brasil melhor sem encararmos o tema de concentração de riquezas de frente e com maturidade. De onde nasce a desigualdade social e qual a sua relação com o racismo? Qual o custo de viver numa sociedade com tamanha diferença social?

Vamos voltar um pouco na história. Do ponto de vista social, o Brasil foi um dos, senão o último, país a sair do período escravocrata, em 1888. Naquela época, a abolição foi votada pela elite, evitando a reforma agrária. Portanto, numa população na qual negros e pardos representam mais do que 50%, tivemos um total de 0% dessa etnia com direito a compra de terras.

Sob o prisma econômico, vivemos num sistema monetário baseado no crédito, no qual temos juros em cima de juros. Sem delonga no sistema classista, comitês de diversidade nas empresas e movimentos como o black lives matter (vidas negras importam) são fundamentais. Entretanto, é como ‘colocar de colher enquanto o sistema econômico tira de pá’, como dizia uma antiga chefe minha.

Precisamos ir mais fundo. A conta não fecha e, por isso, mesmo com tanta visibilidade para o tema nos últimos anos, a concentração de riquezas continua ampliando. Se não falarmos do tema com maturidade, continuaremos romantizando o garoto(a) da comunidade que pegava trem sem tênis e conseguiu uma bolsa em Harvard mesmo assim.”

A disparidade racial é igualmente evidente em relação à educação e ao emprego. A taxa de analfabetismo entre negros é consideravelmente mais alta do que entre brancos, e a representatividade de negros em posições de liderança e cargos de alta remuneração ainda é limitada.

Segundo pesquisa do Instituto de Referência Negra Peregum e do Projeto Seta, 81% das pessoas afirmam que o Brasil é um país racista. A coleta de dados foi realizada em 127 municípios em 2023, com participantes acima de 16 anos, num total de 2 mil pessoas. A pesquisa buscou identificar como as pessoas compreendem o racismo.

“Mas vamos entender ainda melhor essa engrenagem socioeconômica. Foram tirados os direitos dos negros de comprarem terras e de terem acesso à educação, logo foram financeiramente e socialmente prejudicados. Sem esse acesso, não participam na formulação e aprovação de leis que ditam as ‘regras do jogo’. Com poder aquisitivo reduzido, são as pessoas que se veem obrigadas a parcelar seus bens em inúmeras vezes pedindo mais crédito aos bancos (aqui incide juros em cima de juros).

Comparado ainda aos Estados Unidos, a criticidade no Brasil e muito maior. Falar de diversidade é considerar que os negros são uma minoria. Porém, no Brasil, estamos falando da maioria. É muito mais que diversidade, é direito de existir.

A cegueira social nos deixa cada vez mais separados e apáticos, nos levando a naturalizar situações que não deveriam ser comuns. Estamos tão identificados com a desigualdade social que sequer conseguimos imaginar a sensação de liberdade que teríamos se vivêssemos numa sociedade equilibrada. Ou será que é tão prazeroso assim viver cercado de seguranças confinados em nossas bolhas?

O atual sistema claramente não funciona para o pobre, que ainda luta todos os dias para sobreviver, mas não funciona para o rico também, que precisa se isolar em suas bolhas. Nosso passado precisa ser encarado e, acima de tudo, reparado. Pode parecer desafiador, mas precisamos refletir e reparar!

Talvez, no mais íntimo, estejamos enfrentando o medo de renunciar a conveniências e privilégios. Afinal, num sistema no qual a competição é incentivada, talvez seja confortável viver em circunstâncias em que a competitividade é baixa e a massa, desqualificada.”

Temos um grande caminho pela frente no caminho da igualdade. Precisamos dar oportunidade, voz e amparo para aqueles que foram discriminados durante toda sua existência. Precisamos lutar por um país equânime.

Preparar a paz


Se é preciso na paz preparar a guerra, como diz a sabedoria das nações, indispensável também se torna na guerra preparar a paz
Romain Rolland

Barbárie tem fonte, mas não tem identidade

Até agora, as sínteses de especialistas sobre o conflito entre Israel e o Hamas acentuam expressões fortes e pessimistas como "abismo de ódio" e "nenhuma porta de saída". Unânime é o reconhecimento enfático da barbárie perpetrada pelo Hamas contra a massa desarmada de mil e quatrocentos israelenses, embora a mesma ênfase arrefeça quanto à morte por bombardeios de mil e novecentas crianças, dentre um total de seis mil palestinos.

Barbárie tem fonte, mas não tem identidade. Nem se avalia por números. O extermínio massivo no Oriente Médio é tão bárbaro quanto o terror semanal na zona oeste ou na Baixada Fluminense, as endêmicas mortes de crianças por balas aleatórias, as execuções de turistas na paisagem carioca. O que assombra a consciência global é o estado de desvario em que a dizimação do outro parece destino irrecorrível. É a condição convulsa da guerra perpétua.


Essa condição foi pressentida por Sigmund Freud numa carta a Chaim Koffler, membro da Fundação para a Reinstalação dos Judeus na Palestina, quando diz não acreditar "que a Palestina possa jamais se tornar um Estado judeu (...) Parece-me mais avisado fundar uma pátria judia sobre um solo historicamente não carregado" (26/2/1930). Ele deplora "que o fanatismo pouco realista dos nossos compatriotas (Volksgenossen) tenha sua parte de responsabilidade no despertar a desconfiança dos árabes".

Judeu, o criador da psicanálise não viveu para ver o Estado de Israel nem as guerras que asseguraram, com apoio norte-americano, o domínio colonial da região. Mas já manifestava regozijo com a prosperidade de "nossos Siedlungen (colonos)". Aqui há um deslize na tradução de "Siedlung", que significa assentamento urbanizado, e não agência de colonização. Os povoamentos a que Freud se refere não tinham nada a ver com as práticas do já findo império colonial alemão.

Mas modernizar implica urbanizar. A modernização do Estado israelense sempre dependeu da urbanização de territórios arrebatados aos palestinos. É a lógica colonial na nova ordem pós-racial (pós-Segunda Guerra) da tomada de terras: constrói-se um Estado de colonizadores brancos à revelia da população nativa.

Método hard, limpeza de terreno pela violência: "Em nossa terra só há lugar para nós. Vamos dizer aos árabes: saiam" (Isaac Rolf, rabino alemão, antes da Segunda Guerra). Método soft, narrativas de exclusividade dos lugares santos lastreadas por uma estatização teocrática. Freud pensava e sentia: pressentia. Daí sua acidez contra "uma piedade mal interpretada, que faz de um pedaço do muro de Herodes uma relíquia nacional". Quanto à barbárie, diz a perversa Lei de Murphy que "se algo pode dar errado, dará". Só que tem piorado.

O fim do mundo e o fim do mês

O combate às alterações climáticas é demasiado importante e decisivo para que, em seu nome, se desperdicem armas e argumentos que pouco ou nada contribuem para a transição energética e para a redução das emissões de gases com efeito de estufa. Este é um combate tão fulcral que, para ser vencido, precisa da colaboração de todos, por implicar mudanças nos hábitos de vida e de consumo, além de uma profunda transformação dos modelos de desenvolvimento económico em que alicerçámos as nossas vidas, nas últimas décadas. Tendo em conta o impacto dos recentes fenómenos climáticos extremos que têm irrompido pelo planeta, este é também um combate cada vez mais urgente e necessário. Precisamos rapidamente de recuperar o tempo perdido, para não entrarmos num caminho irreversível, em que já não será possível evitar a multiplicação de incêndios, de secas e de inundações por causa do aumento da temperatura global. Precisamos de nos proteger e de estancar, na medida em que ainda for viável, a proliferação de ondas de calor em cada vez mais regiões do globo. E temos a obrigação de impedir a redução drástica da biodiversidade, num planeta em que, nesse cenário, as condições de vida serão críticas para a espécie humana.

Estamos naquilo a que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chamou a “autoestrada para o inferno” – num dos seus muitos alertas que todos aplaudem, mas ninguém verdadeiramente escuta. Contudo, precisamente por isso, não podemos virar na saída errada, nem deixarmo-nos enganar no caminho.


Ao contrário do que tem sido tantas vezes o discurso oficial, a transição energética não vai ser um passeio no parque, rumo a um arco-íris luminoso, onde se esconde um pote de ouro, que nos deixará a todos alegres e felizes. Se é verdade que há muitas oportunidades de negócio e de criação de riqueza nesta transição, também não podemos ignorar que nenhuma transformação deste género será feita sem que existam vítimas e custos que não podem ser negligenciados.

De um modo ou de outro, vai ser preciso, ao longo de todo o processo, penalizar as atividades que prejudicam o ambiente e, em simultâneo, apoiar e beneficiar aquelas que contribuem para formas de energia mais limpa, que promovem um consumo responsável e, por isso, ajudam a criar uma economia sustentável.

Neste contexto, faz todo o sentido a ampliação da chamada fiscalidade verde – a criação de impostos que penalizem quem mais emite carbono para a atmosfera. Mas é necessário que a receita desse tipo de taxas ou de impostos seja, depois, utilizada na criação de alternativas amigas do ambiente, na promoção de atividades e de comportamentos que reduzam efetivamente as emissões nocivas. E ainda é mais necessário que, em simultâneo com o anúncio desse custo adicional que passa a recair sobre os contribuintes, sejam explicadas, ao pormenor e com frontalidade, as razões dessa medida e de como ela, no futuro, pode mudar coletivamente as nossas vidas.

Ora, foi precisamente o contrário disto tudo que o Governo fez em relação à sua proposta de penalização do Imposto Único de Circulação (IUC), nos mais de três milhões de veículos, anteriores a 2007, que circulam em Portugal. Com os resultados que estão à vista: em vez de ser vista como uma medida ambiental, foi lida por todos como uma receita suplementar para o Orçamento do Estado. Em especial quando, ao contrário do que seria desejável numa lógica de redução de emissões, a medida foi apresentada como uma forma de compensação pela diminuição dos preços em seis autoestradas.

Mais grave é o que a medida representa em termos de injustiça social, ao penalizar aqueles que, por falta de recursos, têm menos condições para poder trocar de carro. Isto, ainda por cima, num País que privilegiou o automóvel como sinal de desenvolvimento, com uma aposta total em autoestradas em detrimento do caminho de ferro. Mas também um País onde o automóvel tem estado no centro de grandes movimentos de contestação aos governos, como se viu no bloqueio da ponte em 1994, nos últimos anos do cavaquismo, ou em tantos protestos contra portagens ou más condições de estradas que, ciclicamente, unem populações e são a chama até para boicotes eleitorais.

Quando se confundem as medidas para evitar o fim do mundo climático com aquelas que dificultam às famílias chegar ao fim do mês sem sobressaltos financeiros, fica aberto o caminho para a revolta. Mas fica ainda mais frágil o combate necessário às alterações climáticas: quando se dão tiros nos pés, como este aumento mal direcionado do IUC, quem fica a perder é o ambiente.

domingo, 29 de outubro de 2023

Responda, silêncio!

Pergunto ao Ocidente: vão criar uma nova atmosfera de cruzadas contra o Crescente [emblema da religião muçulmana]? Vocês lamentaram as crianças mortas na Ucrânia, por que esse silêncio diante das crianças mortas em Gaza?
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia

De olhos bem abertos

As comunidades humanas sempre viveram atentas ao que estava fora do local em que habitavam. Bestas selvagens, invasores, salteadores, contrabandistas, ladrões, vizinhos cobiçosos, tudo representava perigo. Fogueiras, vigilantes, muros, cercas, fossos, torres, trincheiras, rochas e estacas pontiagudas, muita coisa foi usada para proteger o território de referência.

Os olhos que se abriam para fora também precisavam olhar para dentro, para os inimigos internos, servidores corruptos, conspiradores, malfeitores. A ideia de segurança nasceu colada ao poder político.

As ameaças internas e externas aumentaram quando as sociedades ficaram maiores e mais encorpadas: pressões internacionais, transações fraudulentas, corrupção, tráfico, crime organizado. As tecnologias passaram a prover recursos de defesa, ataque, vigilância e segurança aos Estados, que aos poucos se tornaram complexos industrial-militares, prontos para a guerra e para a submissão de outros povos e Estados.

Negociadores, embaixadores, diplomatas, estadistas acompanharam esse processo. Sem eles, a história da humanidade seria contada de outra maneira, haveria muito mais sangue a tingir a paisagem. Tal corpo de amigos da paz, da palavra, do diálogo, forma o que os humanos produziram de melhor. Com ele, forjou-se uma cultura disposta a evitar o prolongamento insano de guerras e conflitos.

Quando estes profissionais do diálogo faltam, Estados e governos passam a liberar toxinas que envenenam vidas e sistemas: entregam-se à agressão, ao próprio fortalecimento, estimulam resistências inflamadas, que descambam no terror e geram reações recíprocas igualmente terroristas.


Conflitos dramáticos podem surgir por causas fortuitas. Outras vezes, os motivos são étnicos, religiosos, ligados a terras tidas como sagradas e a postulações identitárias. Não raro, conflitos nascem e crescem embalados por motivações justas e injustas, erros de cálculo, desentendimentos que atravessam os tempos e se cristalizam.

Ao olhar para esta estúpida guerra entre Israel e Hamas, não consigo deixar de pensar que ela se desencadeou porque os amigos da paz e os estadistas deixaram de prevalecer. No lugar deles, instalou-se um deserto de ideias e iniciativas construtivas. A raiva, o ódio acumulado, a miséria palestina, o medo israelense atiçaram os lados em conflito. A região ficou vazia de talentos para produzir sensatez e moderação. A política submergiu e a autoridade política esfarelou. O conflito, com isso, foi-se tornando fato consumado, entranhando-se nos corações e nas mentes de povos irmãos.

Populações impedidas de viver livremente em suas terras ancestrais em algum momento se revoltarão. Passarão a hostilizar seus opressores. Trocarão a ação política pela violência, animadas por extremistas, pela emoção e pela paixão. O que se chama de terrorismo, como o do Hamas, nasce e cresce neste solo de desolação, desesperança e exasperação. Quando, por outro lado, as revoltas privilegiam a política, convertem-se em atores com legitimidade e capacidade de negociação. Foi o que tentou fazer Yasser Arafat nos anos 1970, quando afastou o Fatah e a OLP do terrorismo e os converteu em organizações políticas, dedicadas a “criar uma Palestina unida e democrática, na qual cristãos, judeus e muçulmanos possam viver juntos em condições de igualdade”.

Governantes podem ir à guerra para obter apoio interno. Podem fazer isso para recuperar o apoio perdido e, sem se dar conta, produzir mais divisão interna e, no limite, não conseguir mais se legitimar. Podem se cercar de fanáticos fundamentalistas, tão malignos quanto os piores terroristas. Aderem, assim, ao si vis pacem, para bellum. Netanyahu é o melhor exemplo atual.

Conflitos regionais despertam os vizinhos e as grandes potências. Manobras por hegemonia e interesses geopolíticos prevalecem sobre as perspectivas humanitárias. Guerras são processos dificilmente controláveis, expostas que estão a partes mal coordenadas, a disputas entre potências, a extremistas e fanáticos, a raivas e ódios mal processados. São a continuação da política por outros meios, mas sempre tendem, ao serem escaladas, a perder sua politicidade e a ficar sem política. Atingem seu ápice quando se convertem em confronto desencarnado entre extremistas inimigos da paz.

Hoje, com um sistema internacional fragmentado, ao sabor de novos arranjos entre as potências e com pouca coordenação, equilíbrios e entendimentos ficaram onerosos. Judeus e palestinos precisam do mundo. Mas de um mundo politicamente articulado, sem condutas unilaterais, como as de Netanyahu e dos EUA.

Há muitas trevas onde deveria prevalecer a luz. Misturamse fatos, desinformação, narrativas e disputas pela verdade. A sensação é de que todos sabem de tudo, quando, no fundo, muitos poucos sabem alguma coisa. Ninguém compreende como um conflito pode se arrastar por décadas sem que se vislumbrem vias de superação.

Se, nestes dias funestos, a humanidade ficasse diante do espelho, sentiria vergonha de si própria.

Oração de um povo sofrido

Deus me livre dos corruptos. Dos vendidos. Dos que vendem. Dos que trocam seu povo honesto por qualquer propina e milhão.

Deus me livre dos sonsos e cínicos. Dos que riem e me arrombam a alma. Dos que ganham meu voto e me desprotegem. Dos que só pensam em seu tostão.

Deus me livre dos que desviam. Tanto que levam à falências. Dos que deixam seu povo à míngua. Humilhado e sem salários.

Deus me livre dos que fecham universidades e hospitais. Dos que sucateiam escolas. Dos que trocam seu povo por qualquer anel.


Deus me livre das escolhas podres. De me contentar em escolher o menos pior.

Deus me livre dos ruins. Dos corruptos. Dos sem lei. Dos sem culpa. Sem remorsos. Dos que maltratam por sentir prazer.

Deus me livre da cara limpa que esconde a alma suja. Deus me livre da justiça injusta. Dos que olham e fingem não ver. Deus proteja os pobres. Esse povo que ninguém cuida.

Deus me livre dos homicidas. Eleitos por um povo ingênuo. Deus me livre de todos eles. E perdoe o voto meu.

Deus olhe por esse povo sofrido. E dê de volta a esperança que essa gente má comeu.
Mônica Raouf El Bayeh

Entre a sede de vingança e os horrores da guerra

Circula nas redes sociais a foto de dois meninos de mãos dadas, um com a camisa azul de Israel e seu quipá, e outro com a bandeira palestina e seu lenço quadriculado. É uma mensagem utópica: a convivência fraterna entre palestinos e israelenses. O presente na Palestina é absurdamente distópico. Na guerra da Faixa de Gaza, ambos os lados têm lugar de fala, com um rosário de argumentos para ir à guerra. Entretanto, nada justifica o ataque terrorista do Hamas ao território de Israel, nem legitima o massacre de civis palestinos, principalmente crianças, mulheres e idosos pelo Exército israelense. É uma espécie de Lei de Talião ao quadrado: olho por olhos, dente por dentes.

Havia um “tit for tat” na relação de Israel com seus inimigos na região. A expressão vem do holandês dit vor dat, “este por esse”, que corresponde à expressão latina quid pro quo — “uma coisa pela outra”. Consistia numa política que alternava retaliação ao Hamas, sempre que havia uma agressão, e cooperação tácita, após o cessar-fogo. Essa estratégia enfraquecia a Autoridade Palestina, inviabilizava a criação de um Estado palestino independente e possibilitava a colonização nos territórios ocupados por Israel na Cisjordânia. Entretanto, saiu do controle. O Hamas se fortaleceu e promoveu um violento ataque terrorista, que pegou de surpresa o governo de Benjamin Netanyahu.

Não há dúvida de que Israel será vitorioso contra o Hamas, graças ao seu poderio bélico, que inclui armamento nuclear, e o apoio militar e diplomático dos Estados Unidos, que inibe ação dos demais inimigos de Israel, principalmente o Irã. O pronunciamento de Netanyahu, ontem, mostra a disposição de levar a guerra às últimas consequências, ou seja, reduzir a Faixa de Gaza a escombros. A ofensiva em Gaza é tratada pelo governo de Israel como uma segunda guerra da independência.


É uma remissão à Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando a Síria e o Egito invadiram Israel, cujo bastidor é retratado no filme Golda — A mulher de uma Nação, com a atriz Helen Mirren. O diretor Guy Nattiv conduz a narrativa para mostrar um modo de fazer política no qual o objetivo de salvar o país e resgatar seus soldados presos, porém, nunca esteve descolado da ambição de conquistar o reconhecimento diplomático e um acordo de fronteira com o principal agressor, o Egito.

Golda Meyerson, Mabovitch quando solteira, nasceu em Kiev, na Ucrânia, em 3 de maio de 1898. Ainda criança, emigrou com os pais para os Estados Unidos (1906) e, em 1921, estabeleceu-se na Palestina. Ali, começou a trabalhar para a criação do Estado de Israel, aliando-se ao movimento sindical Histadrut e ao Partido Trabalhista (Mapai). Foi embaixadora na União Soviética, ministra do Trabalho, chanceler e secretária-geral do Mapai. Tornou-se primeira-ministra em 1969, após a morte de Levi Eschkols. De centro esquerda, o Mapai é sionista e social democrata.

Benjamin “Bibi” Netanyahu ocupa o cargo de primeiro-ministro de Israel pela terceira vez. Chefe do partido Likud, já havia liderado o país de 1996 a 1999 e de 2009 a 2021. Natural de Tel Aviv, é o primeiro-chefe de Estado que nasceu em Israel, em 21 de outubro de 1949. O Likud congrega a centro-direita e a direita conservadora. Foi criado em 1973, como uma coalizão liderada pelo partido Herut, que representa os sionistas revisionistas. Acusado de corrupção, Netanyahu enfrenta forte oposição popular, por causa de sua proposta de reforma do Judiciário, cujo objetivo é transformar a democracia de Israel num regime iliberal.

A retaliação de Israel ao Hamas ganha contornos de limpeza étnica, com a expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza, que só não ocorreu ainda porque as fronteiras com o Egito estão fechadas. Em tese, só haverá paz quando a sede de vingança for ultrapassada pela consciência dos horrores da guerra. E as crianças que aparecem na foto, qual o destino delas? Sem um acordo de paz que possibilite a erradicação do terrorismo e a criação do Estado palestino, serão inimigas pelo resto das suas vidas?

Em setembro de 2015, a imagem de outra criança viralizou nas redes sociais: o corpo de Alan Kurdi, de 3 anos, amanheceu numa praia da costa da Turquia. A foto de Nilüfer Demi chocou a opinião pública mundial e desnudou a tragédia humanitária que ocorre no Mediterrâneo, com milhões de refugiados. Abdullah Kurdi, com a mulher e dois filhos, naufragou num bote de borracha no qual embarcara em Bodrum, na Turquia, para chegar a Cós, ilha grega no Mar Egeu. O objetivo da família era migrar para o Canadá e começar uma nova vida, com ajuda de Teema, tia do menino, que lá trabalhava como cabeleireira em Vancouver. Somente Abdullah sobreviveu. Poderiam ter feito esse trajeto de avião, mas não tinham passaportes. Como os curdos da Turquia, os palestinos da Faixa de Gaza serão tratados como párias.

As fronteiras abertas

A faixa de Gaza brasileira pode ser colocada em diversos pontos do imenso território nacional. Nos últimos tempos, ela se estabeleceu no Rio de Janeiro, especificamente na Zona Oeste da cidade, que une condomínios de alto luxo a residências pobres e favelas. Em meio a tudo isso operam aparentemente sem qualquer controle do estado as milícias que brigam entre sí para vender proteção, produtos, serviços e drogas para a população. As polícias no Rio de Janeiro são parte do problema e não da solução.

O governador Cláudio Castro embarcou rapidamente para Brasília em busca de algum auxílio. Cerca de 300 soldados da Força Nacional já estão nas terras cariocas com objetivo de fiscalizar as rodovias federais, cuidadosamente orientados para não trabalhar em conjunto com as polícias do estado. Não é bom misturar os esforços naquele pedaço. Mas os militares fizeram, ao tempo do governo Temer, uma intervenção federal que custou mais de um bilhão e meio de reais e a situação continua péssima. Não há secretaria de segurança pública no Rio.

Este é o retrato da situação da segurança no Rio de Janeiro. Mas há outro ângulo para observar o fenômeno. O Brasil não produz cocaína. Os principais produtores são, pela ordem: Colômbia, Peru e Bolívia. O maior mercado consumidor é o norte-americano. A droga escoa das costas colombianas, e da Venezuela, por mar ou ar para alcançar às cidades do hemisfério norte. Outro grande mercado consumidor é a Europa. Mas entre o produtor e o consumidor está o Brasil. As rotas são conhecidas. Vem pelo Rio Solimões, voa para Suriname, entra pelo Paraguai, pela rodovia interoceânica que chega ao Acre, entre outros caminhos. Este é um problema sério. O governo Lula cogita de aumentar a presença do Estado na faixa de fronteira de 150 para 250 quilômetros.



Mas com apenas os 150 quilômetros atuais, a faixa de fronteira já abrange 588 municípios de 11 Estados – Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Essa área corresponde a 27% do território brasileiro. E milhões de pessoas vivem nela. Outra ideia é realocar o programa Calha Norte, que deixaria de ser do Ministério da Defesa para ficar sob a proteção do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O Calha Norte foi criado em 1985 e conectado à pasta da Defesa em 1999, orientado para promover a ocupação nas áreas de fronteira.

No plano da realidade, as fronteiras brasileiras são muito mal policiadas e defendidas. A Aeronáutica não dispõe do material necessário para realizar a vigilância mínima na enorme fronteira seca do país que vai desde a Guina Francesa até a fronteira com o Uruguai. O Exército faz alguns movimentos para demonstrar sua capacidade, está instalado em todo território nacional, mas não possui uma força de deslocamento rápido. O Exército foi criado em torno do projeto de combate contra os países do sul. Lentamente, ele percebeu que os possíveis inimigos estão no Norte, na selva amazônica. É por ali, por terra, ar e via fluvial, que entram as drogas.

A Marinha é um caso escandaloso. O poder naval tem sofrido o maior nível de degradação nos últimos anos. A falta de prioridade de sucessivos governos e a redução de investimentos para obtenção, operação, manutenção e modernização de meios contribuiu para uma diminuição gradativa e constante da Marinha do Brasil. A força enfrenta a obsolescência de navios, que levará a uma redução da atual frota em cerca de 40 % até o ano de 2028. É inquestionável a importância da construção de submarinos convencionais e um nuclear em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Mas o Álvaro Alberto só deverá ser incorporado em 2037, se as negociações para transferência de tecnologia sensível com governo francês chegarem a bom termo.

Neste ano de 2023, três submarinos foram desincorporados, ou aposentados. O Timbira, o Tapajós e Tamoio. O Brasil não possui Guarda Costeira e a Marinha não consegue vigiar toda a vasta costa brasileira, nem fazer a vigilância razoável nos rios da Amazônia. A costa norte do país é completamente desprotegida. Trata-se de um paraíso para contrabandistas de todos os quilates. A Marinha mantém a base aérea em São Pedro de Aldeia, no estado do Rio de Janeiro, onde utiliza os velhos A4 Skyhawk que deveriam pousar em porta-aviões, mas a força naval não mais possui um navio aeródromo. A Marinha do Brasil opera 70 mil funcionários, somando civis e militares. A Polícia Militar de São Paulo possui mais de 100 mil funcionários, 28 aeronaves, dois navios de combate, 452 embarcações, 16 mil veículos, 450 cavalos, 430 cães e 120 batalhões. A Marinha é menor que a polícia paulista.

sábado, 28 de outubro de 2023

Pensamento do Dia

 


A vitória dos néscios

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.

Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Homo sapiens sapiens: Gaza, o fracasso da espécie

Não posso deixar de me espantar. O que ouço e vejo é a razão da irracionalidade. O Egito abre um corredor humanitário em sua fronteira com Gaza para que entrem 20 caminhões com alimentos, água e medicamentos na Palestina, cuja população está bloqueada por decisão de Israel. A comunidade internacional, Nações Unidas, União Europeia, OTAN, demonstra satisfação. Os meios de comunicação comentam tal ato como um triunfo humanitário. Aplaudem e pedem mais trailers autorizados.

Enquanto isso, Israel convida para que a zona norte de Gaza seja abandonada, prolongando seus bombardeios. É o mundo de cabeça para baixo. Membros da espécie humana praticam o extermínio de seus semelhantes, com a anuência de outros seres humanos. Suas razões, sejam quais forem, demonstram o desprezo pela vida. A esta altura, alguém deve estar se perguntando, se já não fez isto, como chegamos até aqui?

Em vez de promover a paz, líderes mundiais estimulam a guerra, exigindo que suas regras sejam respeitadas. É preciso matar sem exagerar. Com argumentos canalhas, clamam que Israel tem o direito de se defender, concedendo uma licença para cometer o genocídio do povo palestino.

O que se diz de Israel serve para o genocídio dos povos originários e para as mais de 30 guerras ativas que sacodem o planeta. Não importa se você é um conservador, liberal, progressista ou da autodenominada esquerda democrática, todos confluem: é preciso salvar o capitalismo a qualquer preço, mesmo que isso signifique o fim da nossa espécie.

Para não cair em duplas ou triplas morais, falo do humano que nos faz humanos. Os milhares de migrantes mortos no Mediterrâneo deveriam ser um exemplo suficiente da desumanização que nos afeta.


Não se conhece espécie social que pratique a guerra, a competitividade, a exploração, estimule o ódio, a inveja e a desigualdade como parte de sua organização social. Também não há evidências de espécies cuja existência resulte no colapso de seu nicho ecológico. As crises de extinção são alheias à vontade dos seres vivos que habitam o planeta.

Agora, se nos atermos ao Homo sapiens sapiens, essa máxima não se aplica. Um ser que sabe que sabe, reflete e tem consciência de seus atos, acaba se esquivando de suas responsabilidades. O humano, a relação ética que une a natureza biológica e social, é negado em prol de justificar seus holocaustos. Refiro-me aos fatos.

Nos últimos 100 anos, o ser humano provocou duas guerras mundiais, lançou bombas atômicas sobre a população civil, desenvolveu armas químicas e biológicas com o objetivo de impor uma vontade, seja a favor de uma raça, de um deus ou uma razão cultural. Aviões, drones, submarinos, porta-aviões, tanques de guerra. Tecnologias de morte criadas para gerar terror, medo e submissão.

Os cidadãos do mundo protestam, levantam a voz, saem às ruas, pedem o fim das guerras, desnudando as vergonhas de seus dirigentes. No entanto, nada muda. Ouvidos surdos. A desumanização avança em ritmo acelerado. O verdadeiro vencedor do processo de desumanização é o complexo financeiro-industrial-militar. Na página digital Estrategias de Inversión, a jornalista Raquel Jiménez publica o atual artigo "As empresas armamentistas, as grandes beneficiadas do conflito entre Israel e Hamas na bolsa".

Desde a escalada do conflito palestino-israelense, dirá, quatro empresas estadunidenses viram subir os seus valores na bolsa e aumentar seus lucros. A Lockheed Martin recebeu mais de 5,7 bilhões de dólares em contratos com Israel. As ações da Raytheon Technologies sobem desde o dia 7 de outubro, 5,5%. A General Dynamics obtém um lucro de 9,3% e a Northrop Grumman, a quinta maior fabricante de armas do mundo, tem uma rentabilidade de 15,5%, em 10 dias.

Junto a isso, deve-se somar os altos retornos da companhia francesa Dassaut Aviation, com 8,3%; a britânica BAE Systems, a segunda maior contratista militar do mundo, com lucros de 9,6%, e as alemãs MTU Aero Engines e Rheinmetall AG, cujas ações demonstram uma alta de 4 e 15%, desde o dia 7 de outubro. Sem nos esquecer do grupo italiano Leonardo, que está com lucros anuais máximos.

A espécie humana fracassou. O que nos torna humanos, o reconhecimento do outro, a empatia diante do sofrimento, enclausurou-se em nome dos poderosos. Primo Levi, em sua Trilogia de Auschwitz, define a desumanização. É assim que o povo palestino deve se sentir hoje:

“Pela primeira vez, então, percebemos que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem. Em um instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível: uma condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Não temos nada nosso. (…) Vão nos tirar até o nome: e se quisermos mantê-lo, teremos que encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, algo nosso, algo do que somos, permaneça (…). Na história e na vida, parece-nos, às vezes, vislumbrar uma lei feroz que soa: a quem já tem, será dado, de quem não tem, será tirado”. 

Esse algo é a dignidade. Por isso, luta-se.

Crianças não declaram guerra

Nas duas primeiras semanas de guerra no Oriente Médio, 20 jornalistas foram mortos. Merecem nosso reconhecimento por terem dado a vida fornecendo a matéria-prima para que possamos saber do que se passa no front e tentar entender o futuro deste conflito. Temos mais perguntas do que certezas. Creio que será assim por muito tempo. Não adianta colar nos aparelhos de tevê, ler os principais jornais do mundo, comprar livros – tudo o que conseguimos é uma visão parcial. Mesmo os especialistas que não vivem a realidade cotidiana da região têm dificuldades para interpretá-la fielmente.

Meus avôs vieram do Líbano, no princípio do século passado. Já tinham memória de conflitos religiosos. Minha avó tinha uma cruz tatuada no braço e nem sempre a vida foi fácil para os cristãos libaneses. Uma região de antigos conflitos.


No momento em que Israel se prepara para uma invasão de Gaza, tento me lembrar de outras guerras urbanas. Será como Faluja ou mesmo Mossul, no Iraque, onde o combate ao Isis superou as expectativas em mortos. Em Faluja, morreu tanta gente que os cemitérios não deram vazão e as pessoas eram enterradas nos jardins das casas. Mossul, além de superar tudo, ainda tinha uma enorme barragem com potencial de inundar o país.

Não creio que os exemplos anteriores possam ser avaliados mecanicamente. Gaza tem uma rede de túneis especialmente construída pelo Hamas. Neste momento, as informações indicam que de 15% a 30% das edificações já foram destruídas. A existência desses túneis pode resultar numa destruição que não deixará pedra sobre pedra.

Será o fim do Hamas? Naturalmente, o processo de destruição será explorado e a própria juventude árabe estará mais aberta a organizações violentas. Além do mais, alguns dirigentes do Hamas nem vivem em Gaza, preferem Doha, no Catar, um pequeno país com uma altíssima renda per capita anual, em torno de US$ 60 mil.

Em caso de vitória de Israel e ampla destruição do Hamas, quem governa a região? A Autoridade Palestina teria condição de fazê-lo, enfraquecida pela corrupção e pela falta de consultas eleitorais? O Hamas também não faz eleições desde 2006.

Há dois grandes temas que precisam ser avaliados antes e depois da invasão: a morte de civis e a morte de crianças.

Quando se diz que o Hamas não representa a Palestina, muitos não acreditam nisso em Israel.

Alguns artigos do Jerusalem Post questionam essa afirmativa. Acham que existe uma forte cumplicidade entre palestinos e o Hamas. Ainda que isso fosse verdadeiro, o problema é que 30% dos habitantes de Gaza são crianças e adolescentes. Eles não têm condições de questionar ou muito menos derrubar um governo indesejado.

Numa guerra assimétrica em que a propaganda tem um peso maior que as manobras militares, Israel corre um grande risco com as mortes entre os civis. Além disso, há as crianças. O Brasil fez o que pôde na ONU para atenuar a intensidade do conflito. Não conseguiu. Mas, na voz do presidente Lula, manifestou preocupação com as crianças. Para conseguir alguma coisa, talvez o País tenha de se concentrar num tema: as crianças merecem um enfoque especial.

Para começar, há aquelas que dependem de eletricidade nas incubadoras e podem morrer sem ela. Inúmeras atividades hospitalares dependem da gasolina, que não entra. É necessário abrir um corredor também para o combustível. O Hamas pode sequestrá-lo para fins bélicos? Se o fizer, matará as crianças e terá também de responder por isso. Será uma manobra desesperada e o combustível para tocar hospitais é mínimo, se encarado como suprimento bélico.

Há crianças raptadas pelo Hamas e crianças presas por Israel na Palestina. Surgiu um movimento para que fossem trocadas, e isso pode ser um caminho para que as crianças sejam afastadas do clima de hostilidade.

Mas creio que não bastará. Crianças precisam brincar. E não se brinca com bombas. Inclusive, no passado, uma das mais importantes campanhas contra bombas de fragmentação aconteceu porque ameaçavam as crianças, que as confundiam com brinquedos.

O que é possível fazer na Palestina – na Cisjordânia e em Gaza

– é criar alguns espaços que as crianças possam frequentar com seus pais, espaços protegidos por acordo internacional, com anuência das partes.

A guerra rouba vidas, rouba, em muitos casos, o direito de ir e vir, arrasa com recursos econômicos. Por que a guerra teria também de acabar com a infância de quase 1 milhão de crianças? Por que condená-las à amargura na vida adulta e a alimentar uma predisposição ao ódio e à luta violenta?

Quando o Brasil deixar de ter a responsabilidade de dirigir o Conselho de Segurança da ONU, o que podemos fazer, dentro dos nossos limites, é exatamente uma campanha por todas as crianças que vivem em área de guerra.

Para ter alguma credibilidade, seria interessante também proibir a exportação de bombas de fragmentação – algo que tentei, por meio de projeto de lei, e fracassei diante do argumento de preservar empregos. E, naturalmente, atacar os problemas internos que fazem, por exemplo, as crianças de grande parte do Rio de Janeiro vítimas dos confrontos em áreas dominadas pelo tráfico e pela milícia.

Se não dá para fazer tudo, por que não tentar apenas preservar as novas gerações?

O regresso do antissemitismo

“Se compreender é impossível, conhecer é imperativo, porque o que aconteceu pode acontecer outra vez.” As palavras de Primo Levi, sobrevivente do Holocausto e autor de um dos livros obrigatórios sobre o século XX (Se Isto é um Homem), têm ecoado na minha cabeça nos últimos dias. “Nunca mais”, repetiu-se. Sim, o que aconteceu pode acontecer outra vez. Mas parece que conhecer não basta.

Para os israelitas, os atentados de 7 de outubro são uma segunda Shoá, a palavra hebraica para massacre que recorda o genocídio nazi de cerca de seis milhões de judeus. A carnificina e também as reações de apoio aos palestinianos contra a resposta do governo de Benjamin Netanyahu (excessiva e em violação de várias leis da guerra e do Direito Internacional Humanitário) mudaram drasticamente a forma como os habitantes de Israel, mas também muitos judeus não israelitas – ingleses, norte-americanos, europeus – olham hoje para si próprios e recordam as histórias dos seus antepassados. Muitos, que arquivaram as histórias da Inquisição, da Segunda Guerra Mundial e do Babi Yar num passado que lhes parecia longínquo, dizem que, pela primeira vez, passaram a sentir medo das suas origens e da sua fé. Algo que nunca imaginariam que fosse possível.

Chegam-nos notícias de ataques contra estabelecimentos e casas de judeus fora de Israel, lemos declarações de gente que defende que o Hamas faz resistência e exerce o direito à autodeterminação e que todos os meios são legítimos, vimos fotos de cartazes ofensivos em manifestações, como aquele da rapariga sorridente que pedia uma limpeza no mundo com a estrela de David azul enfiada num caixote de lixo.

Li, com consternação, a carta aberta assinada por historiadores como Simon Schama e Simon Sebag Montefiore, em que se assumem “de coração partido e enojados com a chocante falta de empatia de grande parte da autoproclamada esquerda global” e recordam que as vítimas em Israel também eram civis, que merecem o mesmo respeito que os palestinianos. Impressionou-me a descrição de Sergey Ponomarev, editor sénior da The Atlantic, quando a sua filha de 14 anos lhe perguntou se, para sua segurança, devia tirar o colar oferecido pelos avós, num artigo com o título A Esquerda Abandonou-me. Aquilo a que assistimos hoje é um recrudescer do mais puro antissemitismo, que vem desde os tempos greco-romanos pré-cristãos, em que o monoteísmo era fator de segregação.


Este antissemitismo, que começou por ser teológico e depressa se tornou político e que assumiu ao longo dos tempos formas altamente violentas, nunca desapareceu – muito pelo contrário. Anda, muitas vezes, de mãos dadas com o antissionismo. Está plenamente enraizado, mesmo nas democracias desenvolvidas, em algumas franjas da sociedade – que vão dos conspiracionistas aos radicais anti-imperialistas e antiamericanos, que veem Israel (e, no mesmo saco, os israelitas e os judeus) como uma força do mal. Há uma confusão frequente entre o povo e os seus dirigentes, a crença e a nacionalidade, os antepassados e os cidadãos contemporâneos.

Há dias, foram divulgados os dados do FBI sobre crimes de ódio contra judeus nos EUA: aumentaram em 2022 mais de 37%, atingindo o maior número em quase três décadas. Os judeus representam cerca de 2% da população americana e, no entanto, os incidentes relatados representaram quase 10% de todos os crimes de ódio. Um estudo da Universidade de Chicago mostrou que há uma relação clara entre antissemitismo, violência política e teorias da conspiração antidemocráticas, como a tese do Protocolo dos Sábios de Sião, que defende que os judeus têm um plano para controlar o mundo ocidental, e a tese da grande substituição, que propala que imigrantes e minorias estão a ser intencionalmente introduzidos num país para substituir a população nativa. As redes sociais e alguns populistas exacerbam estas tendências – veja-se como o húngaro Viktor Orbán fez do judeu Soros um inimigo público. Sim, extrema-direita e extrema-esquerda, nisto como noutras coisas, tocam-se.

Tudo isto é triste. E tudo isto parece o fado dos judeus, que volta sempre para os atormentar. Palestinianos e israelitas merecem, de igual forma, a nossa empatia. Os dois povos são vítimas de muitas camadas de História, de tensões geopolíticas globais, de crimes e más opções dos seus dirigentes. Compreender isto será essencial daqui para a frente, enquanto este conflito sangrento continuar a desenrolar-se diante dos nossos olhos.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A guerra

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)





Tudo que eles querem é guerra

All we need is love. A guerra é a continuidade de política por outros meios; eles, os políticos e demais governantes, precisam e querem a guerra para prosseguir com seus jogos de poder e dinheiro, na insana, danosa e ilusória corrida para ser o mais rico e poderoso.


A guerra inviabiliza o diálogo, e sem diálogo não há amor, que é all we need e não custa caro nem carece de queimar mais petróleo, nem de crescer o PIB nem, muito menos, de guerras. Pelo contrário!

Fala-se que crer que all we need is love é utópico, ilusório, mas tal crença não é mais irreal que sonhar tornar-se o mais rico e poderoso mediante armas, ouro e domínio sobre pessoas; o primeiro caminho traz esperança, cooperação, harmonia, paz; o segundo desesperança, intriga, ódio, disputa e guerra. Embora semelhantes quanto a serem utópicos ou distópicos, qual é melhor, qual mais promissor?


Imagine que não há mais países, nem religiões, nenhum motivo para matar ou morrer; tal utopia não é menos irreal que a distopia de imaginar que alguém conseguirá poder perene e absoluto, e é preferível a esta última! Temos que superar as ideias herdadas, de que a luta por poder e dinheiro é a única via!

Claro, tal luta existe, como nos mostram as guerras em curso, entre países e entre grupos, assim como a maioria das opções adotadas por políticos e demais governantes. Decisões que beneficiam, entre outros, produtores de armas, destroem a natureza e prejudicam crianças, idosos, jovens e quase todos! Tudo, em busca do sonho irreal de se tornar o mais rico e poderoso, e de tentar resistir aos ventos de mudança que solapam a fugaz e pretensa antiga dominância!

O mundo mudou e, assim, as ideias carecem de alteração. As atividades tradicionais de busca por riqueza, poder e glória já se revelaram o que são: ações a um só tempo genocidas e suicidas. Para que continuar no mesmo rumo, se tal trilha compromete a vida de nossos filhos e netos?

Toda guerra é uma negociata, travestida de (falsas) boas intenções! Há muito dinheiro sendo ganho; follow the money, é recomendação para que se encontrem os beneficiários, que são também os culpados pelos morticínios. Quem ganha com as guerras em curso? Pessoas em busca de poder e dinheiro, psicopatas que não se preocupam em fazer mal a outros e assumem governos e empresas não para promover um mundo sem guerras, cooperativo e fraterno, mas para continuar a minar as chances de sobrevivência da espécie humana e de outras.

Tudo, em busca do ideal não realizável nem sustentável de assumir controle total; melhor optar por caminho que valorize a convivência, a cooperação, a fraternidade. Esta última via, ridicularizada sob a acusação de ser irrealista, não é mais sonhadora que a opção de políticos e outros, que nos condena ao genocídio e ao suicídio. Ainda há tempo para acordarmos e alterarmos o rumo, mas essa janela está se fechando. Lembremo-nos, por mais que muitos evitem dizê-lo para não parecerem ingênuos: all we need is love!

Queridos estadunidenses

Queridos estadunidenses


Imagino-vos exaustos.

Tenho acompanhado as notícias. Vejo-vos atordoados, como pugilistas após um combate, cansados de defender a punho os vossos pensamentos e posicionamentos ideológicos, recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da luta que dura desde o nascimento da América, pelos cálculos dos indígenas norte-americanos e dos descendentes dos povos escravizados. Vejo-vos à procura do norte, entre o ruído de uma multidão de espectadores entusiasmados e outros tantos agitadores profissionais que só vos conhecem dos filmes e livros. Vencedores? Diria que não existem, porque à medida que as posições se extremam, a questão que nos resta fazer é apenas uma: quem realmente sairá beneficiado desse arranca-rabo entre gringos?

“Win or bust.” Temos vindo a interiorizar o mantra dos vitoriosos. Aprendemos que, seja qual for a circunstância, não esperamos nada menos do que o aplicar do esforço máximo para atingir o objetivo declarado, tendo o fracasso total como única alternativa. Os empates são inadmissíveis: ninguém se lembra deles. Não se escrevem canções, a Netflix não compra os direitos nem se vendem jornais com empates. Na política, não é diferente. O empate dói mais do que a derrota porque, ao fim de um par de dias, este desaparecerá da memória coletiva sem pompa, sem direito a placa comemorativa ou página na Wikipedia alusiva ao dia em que o bom senso reinou entre rivais.

Para quem apostou o seu dinheiro ou o seu carácter, ficar a chuchar no dedo sem poder gritar vitória, imagino que seja no mínimo frustrante. Heróis e vilões, precisa-se deles. São úteis para alimentar dogmas e utopias políticas, mesmo que o herói não tenha vocação para tal e o vilão até ajude velhinhas a atravessar a rua. Ver-vos assim acossados mete dó. Devem estar a sentir saudades dos bons velhos tempos. Pena que a Guerra Fria tenha esfriado, que a Cortina de Ferro já não exista e que a Cuba comunista, sem Fidel, já não seja bem a mesma. Nós, as minorias étnicas que conhecemos bem o sabor amargo da derrota, podemos afirmar: há de passar.


Queridos, vos quero bem. Também me virou o estômago ver a bandeira da Confederação desfilar pelos corredores da casa da democracia. Naquele momento, soou dentro de mim a melodia acompanhada dos versos: “Dormia/ A nossa pátria-mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”. O samba-exaltação é de Chico Buarque, tão genial e tão merecedor de um Nobel quanto Dylan, por ter também criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição da canção (sul) americana. E falando em canções, por favor, ouçam mais brasileiros, só vos fará bem. Eles, tal como vocês, fazem delas verdadeiras teses poéticas para entendermos a condição humana. Se jazz e blues são a vossa praia, sejam aventureiros e procurem Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha e lavem a alma no chorinho.

Lamento que não tenham resolvido, vocês que puseram o primeiro homem na Lua, essa coisa do racismo. Enquanto não o fizerem, outras nações se desculparão com a ladainha de sempre: nos Estados Unidos da América é pior. Como se existissem Olimpíadas do racismo e o ouro brilhasse sempre nos vossos pescoços. Salvo as menções honrosas para países como o Brasil e os do Leste Europeu, chega a ser poético olhar para a lista do Comité Olímpico: 1 — Estados Unidos, 1022 medalhas de ouro; 2 — Rússia, 395; 3 — Grã-Bretanha, 263; 4 — China, 227; 5 —França, 212.

Sabem, um comentário que proferi no passado e que me deixou na mira dos racistas de plantão que pululam nas redes sociais foi quando disse que todo homem negro, conscientemente ou não, à dada altura da vida, já odiou o homem branco: a sua cultura, a sua língua e o poder que exerce sobre nós, os negros. Já invejou — melhor, continua a invejar-lhe — o maior valor da humanidade, a liberdade de simplesmente existir. Desculpai trazer um assunto doloroso, mas não posso deixar de apontar que o ataque ao Capitólio foi um esfregar nas fuças de todos nós, homens, mulheres e queers que gritam “vidas negras importam”, esse tal de privilégio branco que os afetados por ele insistem em denunciar, mas todos os que dele se beneficiam insistem em negar — ou, ainda, os que sabem exatamente como o mundo funciona insistem em assobiar para o lado, como se não fosse com eles.

A violência perpetuada contra os corpos negros — nas mãos de civis, milícias, organizações racistas, grupos de extrema direita e até do próprio Estado — é a mesma violência que matou Abraham Lincoln e os dois Kennedy e subiu a colina do Capitólio e matou o agente Brian D. Sicknick. Essa raiva alimenta-se acima de tudo da indiferença cúmplice de pessoas do bem. Pagadores de impostos, devotos e amantes da lei e da ordem. Essa violência é também lucrativa, só assim podemos explicar que ainda se mantenha, agarrada ao inconsciente caucasiano onde a ideia de que a maldição divina aponta os africanos como descendentes de Caim, o primeiro homicida da história, é algo real. Eu, como fruto dessa árvore genealógica e solidário para com os irmãos e irmãs das diásporas americanas, rogo a Deus: livrai-nos dessa penitência.

Queridos estadunidenses, continuo a ter-vos afeto. Só isso explica as horas passadas colado ao ecrã a ver o repetir de imagens semelhantes às que me chegaram do norte de África há uma década, quando o jovem Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante formado em engenharia, viu ser-lhe confiscado o ganha-pão pela polícia. Além de lhe quebrarem o espírito, exigindo o jabaculê da praxe, infligiram-lhe humilhações que culminaram na sua autoimolação. Um protesto trágico contra o desemprego e a pobreza na Tunísia que deu início à Revolução de Jasmim e derrubou o ditador Ben Ali. As imagens da insurreição na sede da democracia norte-americana me fizeram lembrar as da Primavera Árabe e de todas as outras revoluções e transformações políticas que direta ou indiretamente tiveram o dedo dos Estados Unidos. Mas o que é chocante é que vós, estadunidenses patriotas, não pedis o fim de ditaduras, mas para que seja instaurada uma no vosso país.

O que a insurreição em Washington expôs não foram só as vossas divisões políticas. Eu, filho da Guerra Fria nascido e criado em Benguela, pendurado nos galhos duma mangueira no meu quintal que me servia de camarote, vi, na conturbada década de 1980, o capitalismo derrotar o socialismo marxista. Eu vi, ninguém me contou. Começou nas matas, depois no mar de Cabinda, passou para cidades e de seguida para dentrodas casas de angolanos como eu. E, de repente, o dólar nos fez confiar no seu poder divino e as kinguilas viram as sacerdotisas da economia paralela em Angola. Por isso, mas não apenas por isso, como não nos sentirmos afetados? Quer se queira, quer não, até o centro do mundo se mudar para Pequim, o vosso Capitólio é um pouco nosso também.

A maior tragédia norte-americana é o negacionismo da sua própria história. Martin Luther King, chamado a comentar a morte de John F. Kennedy, afirmou: “O padrão imperdoável da nossa sociedade foi o fracasso em prender os assassinos [de líderes dos direitos civis assassinados]”. É um julgamento severo, mas inegavelmente verdadeiro, que a causa da indiferença foi a identidade das vítimas. Quase todos eram negros. E assim a praga se alastrou até reivindicar o mais eminente dos norte-americanos, um presidente muito amado e respeitado. A indiferença talvez seja o vosso maior pecado.

Queridos estadunidenses, não vos faltaram vozes que pregassem, dos dois lados do corredor, o que acontece quando não se denuncia e condena a supremacia branca. Ouçam-nas e que Deus vos abençoe, que Deus salve os Estados Unidos da América.
Kalaf Epalanga, "Minha pátria é a língua pretuguesa"

Você que defende o Hamas, já foi à 'Faixa de Gaza' carioca?

Dez anos atrás, visitei por várias vezes o bairro de Varginha (Manguinhos), na Zona Norte do Rio. Aquela região pobre e violenta estava, na época, se preparando para receber a visita do papa Francisco, durante a Jornada Mundial da Juventude. É um bairro da região chamada de "Faixa de Gaza carioca", nome que se refere aos tiroteios entre traficantes rivais e as forças de segurança.

Sempre me pergunto como as pessoas conseguem viver num ambiente desses, de tanta violência. Claro, não há muita alternativa, não há para onde ir. E aparentemente não tem muita gente poderosa interessada em mudar o cenário.

Vivo na Zona Sul carioca, num bairro seguro e próspero. Tenho plena consciência que tal tranquilidade se deve à presença das forças de segurança. As mesmas forças que mataram, no ano passado, mais de 1.300 pessoas no Rio de Janeiro, numa cidade de talvez 7 milhões de habitantes.

Para você ter uma ideia: as forças policiais de todos os Estados Unidos mataram, no mesmo ano, um total de 1.200 pessoas. Em todo o país de 332 milhões de pessoas! E os ataques terroristas do grupo Hamas contra Israel, no dia 7 de outubro, mataram cerca de 1.400 israelenses. Num país de 9 milhões de habitantes.

Espanta-me ver como pessoas intelectuais, na maioria da tal "esquerda", condenam Israel e seus aliados e justificam as ações do Hamas. Principalmente quando se trata de pessoas de classe média e média-alta que também vivem na protegida Zona Sul carioca. Aliás, condenam a brutalidade policial no Rio, e com razão. Mas vivem suas vidas bacanas graças a essa mesma proteção policial.

A mesma polícia mata o traficante que vendeu a maconha para o tal "intelectual". Que, por outro lado, nasceu com uma vacina social que o protege da violência do Estado: ser branco e rico. E se os traficantes entrassem na casa dele para matar ou sequestrar os filhos dele, ele chamaria a polícia ou festejaria a "luta dos oprimidos"?

Sei que é difícil solucionar conflitos, tanto nas áreas pobres do Rio quanto no Oriente Médio. Também sei que há violações por todos os lados. E na falta de soluções, buscamos refúgio na nossa própria hipocrisia. Mas até para ela tem limite, acho. A atual capa da Carta Capital, chamando o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro israelense de "senhores da guerra", que se "unem por um mundo pior", o ultrapassou. "A mídia nativa insiste na tese do terrorismo do Hamas", escreve Mino Carta. Espanto total!

Mais uma vez, parte da intelligentsia se faz de idiota útil para defender terroristas, ditadores e a máfia, como o Hamas. Fazem a mesma coisa com os Putins, Ortegas, Assads e Castros da vida. A América Latina, marcada por sua herança católica, gosta dos seus ditadores, e costumam confundi-los com libertadores.

Acham que os brutais ditadores de países como Síria, Nicarágua ou Irã são heróis por se oporem aos yankee-imperialistas. Defendem países onde feministas e gays são perseguidos e onde a classe dominante tem vida boa enquanto o resto da população foge para os países ocidentais, buscando democracia e Estado de Direito, pois não querem viver num país mafioso ou numa loucura religiosa.

Eu me pergunto se esses mesmos intelectuais que defendem o Hamas aqui nas Zonas Suis brasileiras já pisaram na "Faixa de Gaza carioca".

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

A seguir: milícias nacionais

As milícias nasceram modestas. Eram policiais e bombeiros empenhados em combater por conta própria o tráfico em comunidades da Zona Oeste do Rio. Vendo-se prestigiados pelos cidadãos, dedicaram-se à oferta de "serviços" de combustível, transporte e comunicações. Com a adesão de civis, passaram a vender "proteção" contra violências perpetradas por eles próprios. E, agora, aderiram à venda das drogas que diziam combater. Devido à grande rentabilidade, suas atividades se tornaram de risco, sujeitas a divergências pontuais com milícias concorrentes, traficantes profissionais e até com sua eventual aliada, a polícia.

Tais querelas não são dirimidas ao redor de mesas de mogno, mas em locais ermos e inesperados, ideais para emboscadas, execuções e chacinas. Isso exige a posse de considerável arsenal e, como nos negócios tradicionais, um contato amistoso com o fornecedor, seja quem for. O principal mercado das milícias é o Rio. Mas o Rio não fabrica a matéria-prima que lhes dá sustentação: as armas.


Ao contrário, todos os fabricantes ficam longe. As Forjas Taurus, das maiores do mundo em armas leves e pesadas, têm sede em São Leopoldo (RS). A CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), que detém o monopólio da produção de munição militar e para segurança pública, em Ribeirão Pires (SP). E a estatal Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil), abastecedora de armas portáteis, munição e explosivos para o Exército, no DF, com sua unidade de produção de grosso calibre em Juiz de Fora (MG).

O Rio, servido por milicianos vindos de todos os estados, é apenas o escoamento disso e sua infeliz vitrine. Mas só por enquanto. Com a facilidade para desviar armas do Exército, tratar as fronteiras estaduais como peneiras e adquirir toda espécie de material bélico sob os narizes oficiais, as milícias descobriram que há um novo e promissor mercado a explorar.

O Brasil.

Milícia no Rio, algumas perguntas

"O crime organizado que não ouse desafiar o poder do Estado", disse Cláudio Castro enquanto 35 ônibus e um trem eram incendiados no Rio de Janeiro. À realidade coube consumar a ironia: é como se os fatos expusessem a inevitabilidade do caos que a falta de política de segurança já anunciara. Lembro de García Márquez em "Cem Anos de Solidão": "O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo"; apontar, sim, mas na cara de quem?

O governador quer que acreditemos que é uma luta de mocinhos contra bandidos; ele, claro, do lado dos primeiros. Quem dera a realidade fosse tão simples quanto sugere o maniqueísmo. Se fosse, a caça à cúpula de milicianos resolveria. Eis algumas questões. 

1: as autoridades fluminenses, de hoje e outrora, precisam explicar como permitiram que as milícias crescessem 387% em 16 anos, ocupando uma área de 64 Copacabanas. A resposta é que milícia lucra a partir e para o Estado. Sem desvendar os laços econômicos e sem controlar acesso a armas, nada será resolvido.

2: o governador precisa explicar por que nomeou, para chefiar a Polícia Civil, um policial influenciador digital homenageado por deputado ligado a miliciano; a resposta é que, em parte, a milícia manda no estado que nem sequer possui uma Secretaria da Segurança Publica.

3: os governos fluminense e federal precisam explicar por que jogar policiais de outros estados no Rio, via Força Nacional, resolveria a questão. Resposta: não resolverá. 

4: o MP-RJ precisa explicar por que, em 2021, extinguiu o órgão que apura má conduta de PMs (Gaesp).

5: Castro precisa explicar por que policiamento ostensivo também é seletivo: em 2019, apenas 6,5% das operações policiais no Rio ocorreram em áreas de milícia. Sem dizer como isso fortalece o mercado imobiliário das milícias, nada será resolvido. A tática de bangue-bangue não combaterá a milícia porque é, ela mesma, uma tática miliciana.
Thiago Amparo

Pelo fim da violência de um Estado sobre um povo sem Estado

Espera-se que a União Europeia (UE) apoie hoje, por unanimidade, um apelo a “pausas humanitárias” nos bombardeios israelenses em Gaza para permitir que alimentos, água, remédios e combustíveis cheguem aos palestinos com mais regularidade.

Quanto aos combustíveis, Israel insiste em dizer que é contra seu fornecimento. O Hamas, que governa Gaza, que se vire para obtê-los. Gaza entra no 20º dia de guerra às escuras. Mais de 100 recém-nascidos mantidos em incubadoras correm o risco de morrer.

Aparentemente, estabeleceu-se o consenso na UE depois do que um diplomata descreveu como “reuniões difíceis” entre os Estados-membros que gastaram dias a discutir sobre que terminologia utilizar em relação ao direito de Israel defender-se.


Rascunhos de uma declaração oficial a ser assinada numa conferência de líderes em Bruxelas, nesta quinta-feira, propunham um apelo a “uma pausa humanitária” para permitir “acesso rápido, seguro e sem entraves à ajuda a ser dada aos necessitados”.

O termo “pausa” foi considerado por vários Estados-membros demasiado próximo da expressão “cessar-fogo”, o que poderia enfraquecer o direito de Israel à autodefesa. Pausa ou pausas? Essa foi a discussão seguinte. Alguns Estados argumentaram:

“Se forem muitas pausas, elas beneficiarão o Hamas. Se forem menos, mas pausam muito longas, beneficiarão do mesmo jeito”.

A abertura permanente de um corredor humanitário talvez fosse pior. Como o direito de Israel ao ataque, em resposta ao ataque que sofreu, poderia conviver com a passagem contínua de ajuda humanitária? Isso equivaleria ao cessar-fogo que Israel não quer.

É dura, como se vê, a vida dos diplomatas, embora luxuoso, confortável e bem equipado o espaço onde se reúnem para debater os desafios da humanidade. Eles de nada carecem. Mas, para que tenham êxito, dependem do ok dos seus empregadores.

A dificuldade em chegar a acordo sobre a língua reflete um dos episódios mais embaraçosos para a UE em muitos anos. Uma fonte disse ao The Guardian que havia “uma variedade muito grande de pontos de vista sobre a crise” no Oriente Médio.

Não deixou de haver, mas o sofrimento dos palestinos impõe algum tipo de entendimento em seu socorro. À guerra entre Israel e Hamas, deve seguir-se de imediato a solução de dois Estados, segundo o presidente Joe Biden.

É tudo o que os palestinos querem desde que perderam para Israel a maior parte de suas terras no fim dos anos 1940, e desde que as maiores potências mundiais lhes asseguraram o direito à criação do próprio Estado.

O que temos hoje? A violência de um Estado sobre um povo sem Estado.