quarta-feira, 31 de maio de 2017
O Brasil em seu labirinto
Em julho de 2015, escrevi que, na mais grave crise de sua história, o Brasil caminhava para o labirinto; o Blog ainda estava no Estadão. O labirinto se faz aos poucos, no errante ziguezaguear dos passos e dos dias; quando se vê, está posto, com seus caminhos intrincados e redundantes. Numa dinâmica de tentativa e erro, os atores não se entendem; cometem equívocos, sem correção. Entram por uma porta, atravessam uma outra e mais outra, retornam ao mesmo ponto; não se vê saída.
Passados quase dois anos, o país permanece no labirinto: ao preservar o sistema político que se esgotou, persevera nos mesmos métodos, quase sempre fisiológicos; repete o desgastado padrão mental de cooptação parlamentar; bate cabeça. No final dos anos 1990, FHC já reclamava desse tipo de prática, no funcionamento do Congresso; a primeira vez em que ouvi o termo “voracidade fisiológica” foi pela boca de Pedro Malan, que havia pouco deixara o governo. O processo não seria sustentável.
Lula, por meio do Mensalão, depois pela adesão do PMDB, não alterou a lógica e embrenhou-se ainda mais nesse charco redundante. Dilma, em sua concepção burocrática da política, chegou a crer o Congresso como dispensável; comprou a tese do marqueteiro, seria “gerente”. Miserável tese, pobre Dilma, tomada pela ilusão de si mesma: 39 ministérios, um país quebrado e a convicção de que a distribuição de cargos e a liberação de esquemas bastaria. Não bastou.
Veio o impeachment e a pretensão de que Michel Temer — por vir do ventre dessa baleia —controlasse o processo. Mas, quem, estando dentro do labirinto, pode de fato contorná-lo? Assumido filho do sistema, a presidência da República era questão de manutenção do status quo: mudar tudo, para mudar nada. As necessárias reformas econômicas — Previdência e Trabalhista — como os anéis que o sistema custava a entregar.
O presidente agora se agarra ao que pode, nega indícios e evidências, desqualifica o tumor que corrói o sistema; manobra por dentro, não sai do lugar. Faz sentido: para Temer, renunciar não é simples questão de voltar para casa; ficar significa a sobrevivência política e a liberdade — sua e de seu grupo. Trata-se, então, da permanência de uma lógica agonizante que grita por socorro, que não quer morrer. Mas, que morre aos poucos, perdida no labirinto de cada dia.
Lamentar o leite derramado do desenvolvimento perdido é improdutivo: entrando pelas mesmas portas, o labirinto vai dar no mesmo descaminho da ingovernabilidade. O que se esperava era a mágica das reformas econômicas sem o desembaraço do nó político; alçar um voo de galinha, sufocar os jacobinos do Ministério Público com a reversão de expectativas. Nova falha de diagnóstico: não será a economia que salvará a política, mas o contrário. Insistir nos erros é mais que teimosia.
Quando se insiste na solução interna comprometida com o jogo viciado, os erros se repetem. A Câmara, aflita para afastar o pavor da Lava Jato e o pesadelo da perda de mandatos, quer um dos seus. Mas, o Minotauro do fisiologismo não perdoa: mais parecido com Saturno, devora os próprios filhos; Rodrigo Maia será a próxima iguaria servida no banquete da voracidade? No que seu nome alteraria o traçado repetitivo do desencontro com a saída?
Mais inteligente será mudar a lógica: enfrentar o Minotauro, descartar o fisiologismo, punir a cada um de acordo com a gravidade de cada crime; comunicar-se com a população, estabelecer outro diálogo com o Congresso, num governo de União Nacional; reformar estruturas. Resgatar a Política que significa História, buscando alguém comprometido com a mudança e, assim, realizar a transição. Com os olhos postos no futuro, conquistar a libertação do labirinto.
Carlos Melo
Passados quase dois anos, o país permanece no labirinto: ao preservar o sistema político que se esgotou, persevera nos mesmos métodos, quase sempre fisiológicos; repete o desgastado padrão mental de cooptação parlamentar; bate cabeça. No final dos anos 1990, FHC já reclamava desse tipo de prática, no funcionamento do Congresso; a primeira vez em que ouvi o termo “voracidade fisiológica” foi pela boca de Pedro Malan, que havia pouco deixara o governo. O processo não seria sustentável.
Lula, por meio do Mensalão, depois pela adesão do PMDB, não alterou a lógica e embrenhou-se ainda mais nesse charco redundante. Dilma, em sua concepção burocrática da política, chegou a crer o Congresso como dispensável; comprou a tese do marqueteiro, seria “gerente”. Miserável tese, pobre Dilma, tomada pela ilusão de si mesma: 39 ministérios, um país quebrado e a convicção de que a distribuição de cargos e a liberação de esquemas bastaria. Não bastou.
Veio o impeachment e a pretensão de que Michel Temer — por vir do ventre dessa baleia —controlasse o processo. Mas, quem, estando dentro do labirinto, pode de fato contorná-lo? Assumido filho do sistema, a presidência da República era questão de manutenção do status quo: mudar tudo, para mudar nada. As necessárias reformas econômicas — Previdência e Trabalhista — como os anéis que o sistema custava a entregar.
O presidente agora se agarra ao que pode, nega indícios e evidências, desqualifica o tumor que corrói o sistema; manobra por dentro, não sai do lugar. Faz sentido: para Temer, renunciar não é simples questão de voltar para casa; ficar significa a sobrevivência política e a liberdade — sua e de seu grupo. Trata-se, então, da permanência de uma lógica agonizante que grita por socorro, que não quer morrer. Mas, que morre aos poucos, perdida no labirinto de cada dia.
Lamentar o leite derramado do desenvolvimento perdido é improdutivo: entrando pelas mesmas portas, o labirinto vai dar no mesmo descaminho da ingovernabilidade. O que se esperava era a mágica das reformas econômicas sem o desembaraço do nó político; alçar um voo de galinha, sufocar os jacobinos do Ministério Público com a reversão de expectativas. Nova falha de diagnóstico: não será a economia que salvará a política, mas o contrário. Insistir nos erros é mais que teimosia.
Quando se insiste na solução interna comprometida com o jogo viciado, os erros se repetem. A Câmara, aflita para afastar o pavor da Lava Jato e o pesadelo da perda de mandatos, quer um dos seus. Mas, o Minotauro do fisiologismo não perdoa: mais parecido com Saturno, devora os próprios filhos; Rodrigo Maia será a próxima iguaria servida no banquete da voracidade? No que seu nome alteraria o traçado repetitivo do desencontro com a saída?
Mais inteligente será mudar a lógica: enfrentar o Minotauro, descartar o fisiologismo, punir a cada um de acordo com a gravidade de cada crime; comunicar-se com a população, estabelecer outro diálogo com o Congresso, num governo de União Nacional; reformar estruturas. Resgatar a Política que significa História, buscando alguém comprometido com a mudança e, assim, realizar a transição. Com os olhos postos no futuro, conquistar a libertação do labirinto.
Carlos Melo
A glamorização da barbárie
Por quase quatro horas Brasília esteve em chamas.
A batalha campal da última quarta-feira foi protagonizada por manifestantes, muitos deles mascarados, durante o protesto organizado por centrais sindicais e movimentos de esquerda contra as reformas que tramitam no Congresso Nacional, pela saída do presidente Michel Temer e por eleições diretas. Oito Ministérios foram depredados, dois incendiados e 49 pessoas feridas.
Diante da violência o presidente da República decidiu convocar o Exército em defesa da ordem pública.
Desde as grandes, heroicas e predominantemente pacíficas passeatas de 2013, o país assiste a esse tipo de barbárie. E com defensores enérgicos.
Como entender a enorme dificuldade de parte da nossa intelectualidade e da maioria dos partidos de esquerda em condenar atos de vandalismo cometidos por mascarados, black blocs e similares?
Membros da comunidade acadêmica fazem esforços teóricos gigantescos para justificar o quebra-quebra promovido por uma minoria violenta e antidemocrática. Alguns chegam a considerar a depredação de bancos na Avenida Paulista e de outras instituições privadas ou públicas como uma ação anticapitalista.
Dentro desta ótica, o vandalismo seria uma resposta à “violência do Estado” cometida contra jovens da periferia. Haveria, assim, um conteúdo revolucionário e contestador em um movimento que, na verdade, padece de conteúdo substantivo.
Não há ineditismo nesta interpretação. A violência e o banditismo já foram romantizados e traduzidos como um produto direto da pobreza. O que é absurdo.
A esmagadora maioria dos pobres não é composta de bandidos, assim como a maioria da juventude da periferia quer distância da selvageria dos mascarados.
No final dos anos 70, a “sociologia da miséria” conferiu glamour ao Comando Vermelho, como se ele promovesse a justiça social nas favelas cariocas. Criou-se o mito que o CV aprendeu com os grupos da esquerda armada, de quem teria absorvido tanto a tática dos grupos militaristas, como alguma “consciência política”.
À época, foi sucesso de bilheteria o filme “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia” - um assaltante de banco, que aderiu ao banditismo em resposta “às injustiças sociais” e à corrupção da polícia.
A ideologia do ressentimento, inerente aos segmentos que adotam a barbárie como forma de luta, tampouco leva à transformação da sociedade. Nada constrói. Ao contrário, destrói.
A bandeira do anticapitalismo, por si só, não quer dizer grande coisa. Na história, ela foi argamassa de regimes racistas e genocidas. O nazismo que o diga.
Como caracterizar a agressão de vândalos a lojistas (às vezes pequenos comerciantes), a profissionais de mídia, como os ataques às TVs Globo e Record? E o que há de revolucionário no ato de quebrar lixeira, placas de ruas e outros bens públicos?
Estas violências se assemelham aos métodos dos camisas negras na Itália fascista de Benito Mussolini. E são totalmente incompatíveis com o Estado de Direito Democrático.
A auto definição dos black blocs como anarquistas é uma injustiça para Bakunin, uma das grandes referências de uma ideologia cujo eixo é a pregação da autonomia e do fim do Estado.
Nossos vândalos não têm esta sofisticação intelectual. Não têm objetivos estratégicos claros. Eles promovem apenas a baderna. Uma espécie de banditismo que deveria ser condenado claramente por toda a intelectualidade, movimentos sociais e forças políticas.
Do início do século vinte até os dias de hoje, tivemos diversos embates: a revolução russa, o surgimento do fascismo e do nazismo, o stalinismo, duas guerras mundiais, Hiroshima, a guerra fria, a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria. O único valor que sobreviveu a tantos confrontos, e se fortaleceu, foi a democracia.
É ela que vem sendo atacada pelos mascarados de agora, daí seu caráter deletério.
A juventude de 1968 encarou a ditadura sem cobrir o rosto. Aliás, nos anos de chumbo os torturadores usavam capuz para que ninguém soubesse quem eram eles. O mesmo sempre fizeram os carrascos. Desde a idade média.
Como glamorizar movimentos que escondem a face? Na cultura brasileira, isso é prática de traficante, assaltante de banco, membro de milícia paramilitar.
Democrata que se preza vai às ruas de peito aberto e rosto à mostra.
A batalha campal da última quarta-feira foi protagonizada por manifestantes, muitos deles mascarados, durante o protesto organizado por centrais sindicais e movimentos de esquerda contra as reformas que tramitam no Congresso Nacional, pela saída do presidente Michel Temer e por eleições diretas. Oito Ministérios foram depredados, dois incendiados e 49 pessoas feridas.
Diante da violência o presidente da República decidiu convocar o Exército em defesa da ordem pública.
Desde as grandes, heroicas e predominantemente pacíficas passeatas de 2013, o país assiste a esse tipo de barbárie. E com defensores enérgicos.
Como entender a enorme dificuldade de parte da nossa intelectualidade e da maioria dos partidos de esquerda em condenar atos de vandalismo cometidos por mascarados, black blocs e similares?
Membros da comunidade acadêmica fazem esforços teóricos gigantescos para justificar o quebra-quebra promovido por uma minoria violenta e antidemocrática. Alguns chegam a considerar a depredação de bancos na Avenida Paulista e de outras instituições privadas ou públicas como uma ação anticapitalista.
Dentro desta ótica, o vandalismo seria uma resposta à “violência do Estado” cometida contra jovens da periferia. Haveria, assim, um conteúdo revolucionário e contestador em um movimento que, na verdade, padece de conteúdo substantivo.
Não há ineditismo nesta interpretação. A violência e o banditismo já foram romantizados e traduzidos como um produto direto da pobreza. O que é absurdo.
A esmagadora maioria dos pobres não é composta de bandidos, assim como a maioria da juventude da periferia quer distância da selvageria dos mascarados.
No final dos anos 70, a “sociologia da miséria” conferiu glamour ao Comando Vermelho, como se ele promovesse a justiça social nas favelas cariocas. Criou-se o mito que o CV aprendeu com os grupos da esquerda armada, de quem teria absorvido tanto a tática dos grupos militaristas, como alguma “consciência política”.
À época, foi sucesso de bilheteria o filme “Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia” - um assaltante de banco, que aderiu ao banditismo em resposta “às injustiças sociais” e à corrupção da polícia.
A ideologia do ressentimento, inerente aos segmentos que adotam a barbárie como forma de luta, tampouco leva à transformação da sociedade. Nada constrói. Ao contrário, destrói.
A bandeira do anticapitalismo, por si só, não quer dizer grande coisa. Na história, ela foi argamassa de regimes racistas e genocidas. O nazismo que o diga.
Como caracterizar a agressão de vândalos a lojistas (às vezes pequenos comerciantes), a profissionais de mídia, como os ataques às TVs Globo e Record? E o que há de revolucionário no ato de quebrar lixeira, placas de ruas e outros bens públicos?
Estas violências se assemelham aos métodos dos camisas negras na Itália fascista de Benito Mussolini. E são totalmente incompatíveis com o Estado de Direito Democrático.
A auto definição dos black blocs como anarquistas é uma injustiça para Bakunin, uma das grandes referências de uma ideologia cujo eixo é a pregação da autonomia e do fim do Estado.
Nossos vândalos não têm esta sofisticação intelectual. Não têm objetivos estratégicos claros. Eles promovem apenas a baderna. Uma espécie de banditismo que deveria ser condenado claramente por toda a intelectualidade, movimentos sociais e forças políticas.
Do início do século vinte até os dias de hoje, tivemos diversos embates: a revolução russa, o surgimento do fascismo e do nazismo, o stalinismo, duas guerras mundiais, Hiroshima, a guerra fria, a queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria. O único valor que sobreviveu a tantos confrontos, e se fortaleceu, foi a democracia.
É ela que vem sendo atacada pelos mascarados de agora, daí seu caráter deletério.
A juventude de 1968 encarou a ditadura sem cobrir o rosto. Aliás, nos anos de chumbo os torturadores usavam capuz para que ninguém soubesse quem eram eles. O mesmo sempre fizeram os carrascos. Desde a idade média.
Como glamorizar movimentos que escondem a face? Na cultura brasileira, isso é prática de traficante, assaltante de banco, membro de milícia paramilitar.
Democrata que se preza vai às ruas de peito aberto e rosto à mostra.
Temer assume o satanismo e pretende se transformar num 'presidente zumbi'
Um dos aspectos mais curiosos da Lava Jato foi o relato do marqueteiro João Santana sobre o presidente Michel Temer. O publicitário revelou que em 2010 o PT fez pesquisas que revelaram queda nas intenções de voto para Dilma Rousseff quando o então candidato a vice participava das propagandas. O motivo seria uma suposta vinculação da imagem de Temer ao satanismo. Dando risadas, Santana disse ter feito um estudo sobre ocultismo e encontrou um personagem do século 17 que tinha o mesmo nome do atual presidente e era adepto do satanismo.
É claro que uma coisa nada tem a ver com a outra, porque no caso de Temer quem inventou essa estória foi o então senador Antonio Carlos Magalhães, do antigo PFL, quando presidia o Senado. Em 1999, ACM comprou uma briga com Temer, que presidia a Câmara, e o apelidou de “Mordomo de Filme de Terror”. De lá para cá, a piada vem sendo repetida.
Em dezembro de 2015, Renan Calheiros era presidente do Senado e também se desentendeu com Temer. Disse no plenário que iria sugerir ao vice-presidente que, se perdesse o cargo no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, poderia pensar em outros empregos, como “mordomo de filme de terror ou carteiro”, referindo-se à carta que Temer acabara de mandar a Dilma Rousseff, dizendo-se desprestigiado no governo do PT.
É claro que uma coisa nada tem a ver com a outra, porque no caso de Temer quem inventou essa estória foi o então senador Antonio Carlos Magalhães, do antigo PFL, quando presidia o Senado. Em 1999, ACM comprou uma briga com Temer, que presidia a Câmara, e o apelidou de “Mordomo de Filme de Terror”. De lá para cá, a piada vem sendo repetida.
Em dezembro de 2015, Renan Calheiros era presidente do Senado e também se desentendeu com Temer. Disse no plenário que iria sugerir ao vice-presidente que, se perdesse o cargo no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral, poderia pensar em outros empregos, como “mordomo de filme de terror ou carteiro”, referindo-se à carta que Temer acabara de mandar a Dilma Rousseff, dizendo-se desprestigiado no governo do PT.
No final de março de 2016, em pleno processo do impeachment, o deputado Davidson Magalhães (PCdoB-BA) fez um discurso na tribuna da Câmara, para acusar Temer de conspirador, e seguiu na mesma balada: “Se ACM o taxava de ‘Mordomo de Filme de Terror’, eu acrescento que hoje ele é o Drácula da Democracia”.
Pouco mais de um ano depois, agora Michel Temer parece ter incorporado o personagem vislumbrado por ACM e ameaça se transformar num presidente-zumbi, para assombrar o Planalto na convivência com os fantasmas que declarou vislumbrar no Palácio Alvorada quando se mudou para lá, cujas aparições fizeram com que voltasse a residir no Jaburu.
Sua rejeição bate todos os recordes, sua imagem pública está destroçada, mas Temer finge governar, convoca reuniões e dá ordens à base aliada, que finge obedecer. Ele continua nessa encenação e no domingo resolver nomear um novo ministro que aceita fazer sua defesa sem cobrar nada, contentando-se apenas com aqueles 15 minutos de fama celebrizados pela genialidade de Andy Warhol.
Mas não há como segurar Temer, porque o deputado que recebeu a mala dos R$ 500 mil vai fazer delação, para destruir o que ainda resta do presidente. Mesmo assim, ele não renuncia. Pelo contrário, conta com a amizade e cumplicidade de ministros do TSE para retardar o julgamento e manter mais algum tempo esse governo morto-vivo.
Sua rejeição bate todos os recordes, sua imagem pública está destroçada, mas Temer finge governar, convoca reuniões e dá ordens à base aliada, que finge obedecer. Ele continua nessa encenação e no domingo resolver nomear um novo ministro que aceita fazer sua defesa sem cobrar nada, contentando-se apenas com aqueles 15 minutos de fama celebrizados pela genialidade de Andy Warhol.
Mas não há como segurar Temer, porque o deputado que recebeu a mala dos R$ 500 mil vai fazer delação, para destruir o que ainda resta do presidente. Mesmo assim, ele não renuncia. Pelo contrário, conta com a amizade e cumplicidade de ministros do TSE para retardar o julgamento e manter mais algum tempo esse governo morto-vivo.
A inexistência de governo traz consequências, é claro. Ao invés de estarem preocupados em reduzir direitos sociais, os três Poderes deveriam se dedicar a outras missões mais necessárias, como desativar a boma-relógio da dívida pública ou reduzir a criminalidade, adotando leis mais duras e tolerância zero. Mas como fazê-lo, se o crime se instalou lá na Praça dos Três Poderes, subvencionado com recursos públicos e protegido pelo foro privilegiado.
Se a Justiça funcionasse, a impunidade diminuiria, haveria um maior respeito às leis. Mas os ministros do Supremo são os primeiros a dar o exemplo, ao libertar perigosos meliantes devido a meras tecnicalidades processuais, e ainda chamam isso de Justiça.
Se a Justiça funcionasse, a impunidade diminuiria, haveria um maior respeito às leis. Mas os ministros do Supremo são os primeiros a dar o exemplo, ao libertar perigosos meliantes devido a meras tecnicalidades processuais, e ainda chamam isso de Justiça.
Sangria desatada
O mecanismo
Eu era jovem quando, em Minas Gerais, ouvi a palavra “mecanismo” ser usada fora dos quadros da mecânica dos relógios, para designar um misterioso e inexorável impulso humano relativo a desordem ética, a dualidade entre norma e desejo, e a autodestruição.
Um membro de nossa “turma” de esporte e “brincadeiras” - reuniões dançantes nas quais podíamos chegar perto das moças pegando suas mãos, sopesando seus corpos e sentindo o seu hálito - fugira de casa!
Sabíamos de sua revolta aberta contra o “Pai” radical na obediência às convenções. Afinal, quem é que ia de bom grado à missa das naqueles domingos frios por puro catolicismo e não para pecaminosamente vislumbrar a namorada - então o grande e infinito amor de sua vida?
Talvez o Gabriel, cuja vocação sacerdotal era inegável. Mas a maioria fugia da igreja como o diabo da cruz e eis que, um belo dia, fomos obrigados a viver não na tela do cinema Palácio mas, na vida real, o sumiço do Carlos Alberto.
Era claro que o Carlinhos tentava sair do seu aprisionamento familiar. Fugiu para o Rio levando com ele os pagamentos em dinheiro da empresa na qual seu pai, um homem de prestígio esmagador, o havia empregado.
“Cometeu um enorme pecado”, disse o padre Geraldo na reunião para a qual nos convocou na sala de visita da igreja Senhor do Passos.
“Não, padre, desculpe...Ele usou um mecanismo bem conhecido”, disse o Dr. Freitas, psiquiatra amigo da família que, para escândalo dos círculos mais cultivados e ardorosamente católicos da cidade, falava muito num perigoso Dr. Freud.
“Ele rompeu”, prosseguiu o Dr. Freitas, “com os recalques. Ousou escapar da roda implacável do mecanismo que junta, nas suas correias, as regras de controle que devem valer para todos, com seus fabricantes e controladores - essas pessoas que, por isso mesmo, ficam maiores do que as leis. No processo, há uma luta entre normas institucionais e super-indivíduos ou pessoas. A mentira aparece como um valor e a desonestidade vira virtude. Corre-se o risco do suicídio - esse exagero de egoísmos rasos com altruísmos confusos. Esses crimes para dentro, como o assalto a coletividade. Disto resulta uma culpa que vaga pedindo punição, mas punir é também algo complexo pois exige admissão do erro. Algo complicado na nossa cidade.”
Leis e desejos, regras gerais e interesses particulares. A fuga do companheiro colocava o absurdo: todos temos apenas um destino, mas o nosso coração encerra muitas vidas e possibilidades. Inúmeras fugas, a maioria fugaz e fantasiosa. Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo.
Quando o fujão voltou, nós o cercamos com perguntas. Viajou para o Rio de noite, hospedou-se no Hotel Serrado, comeu nos melhores restaurantes e “pegou algumas mulheres”, pois, naqueles tempos, “pegavam-se (imagine só...) mulheres”. Mas logo entrou num regime de angustia.
Disse sem rodeios: “Quanto mais meu pai c... regras, mais ele as descumpria. Chegamos num ponto onde não se distinguia mais o legal do ilegal, pois todos agiam de acordo com as lei, mas seguindo seus interesses. Lá em casa fazíamos interpretações de interpretações de interpretações. Elas ficaram maiores que os fatos e então eu criei um arremedo de morte - fugi de casa.
“Entendi”, continuou o fugitivo, “que o ético não é apenas o certo, é o que está dentro dos nossos corações. Podemos descumprir e dispensar as regras, mas não podemos arrancar do nosso peito o nosso coração”. “Agora eu entendo”, disse o menino perdido e jamais achado, “o problema do Pai é que ele imagina que o mundo pode ser resolvido por leis quando, de fato, as leis são aplicadas, interpretadas e limitadas por pessoas. Dentro de uma fatal e abençoada liberdade que engendra o mecanismo. Pois, quanto mais leis, mais se reforçam e se instrumentam as amizades. E quanto mais arranjos pessoais, mais leis e mais hipocrisia e má-fé”.
P.S.: Sei que, exceto pela mera coincidência, isso nada tem a ver com a chamada crise brasileira que, por ignorar o mecanismo, repete-se e reitera-se como uma indecorosa rotina.
Um membro de nossa “turma” de esporte e “brincadeiras” - reuniões dançantes nas quais podíamos chegar perto das moças pegando suas mãos, sopesando seus corpos e sentindo o seu hálito - fugira de casa!
Sabíamos de sua revolta aberta contra o “Pai” radical na obediência às convenções. Afinal, quem é que ia de bom grado à missa das naqueles domingos frios por puro catolicismo e não para pecaminosamente vislumbrar a namorada - então o grande e infinito amor de sua vida?
Era claro que o Carlinhos tentava sair do seu aprisionamento familiar. Fugiu para o Rio levando com ele os pagamentos em dinheiro da empresa na qual seu pai, um homem de prestígio esmagador, o havia empregado.
“Cometeu um enorme pecado”, disse o padre Geraldo na reunião para a qual nos convocou na sala de visita da igreja Senhor do Passos.
“Não, padre, desculpe...Ele usou um mecanismo bem conhecido”, disse o Dr. Freitas, psiquiatra amigo da família que, para escândalo dos círculos mais cultivados e ardorosamente católicos da cidade, falava muito num perigoso Dr. Freud.
“Ele rompeu”, prosseguiu o Dr. Freitas, “com os recalques. Ousou escapar da roda implacável do mecanismo que junta, nas suas correias, as regras de controle que devem valer para todos, com seus fabricantes e controladores - essas pessoas que, por isso mesmo, ficam maiores do que as leis. No processo, há uma luta entre normas institucionais e super-indivíduos ou pessoas. A mentira aparece como um valor e a desonestidade vira virtude. Corre-se o risco do suicídio - esse exagero de egoísmos rasos com altruísmos confusos. Esses crimes para dentro, como o assalto a coletividade. Disto resulta uma culpa que vaga pedindo punição, mas punir é também algo complexo pois exige admissão do erro. Algo complicado na nossa cidade.”
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Leis e desejos, regras gerais e interesses particulares. A fuga do companheiro colocava o absurdo: todos temos apenas um destino, mas o nosso coração encerra muitas vidas e possibilidades. Inúmeras fugas, a maioria fugaz e fantasiosa. Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo.
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Quando o fujão voltou, nós o cercamos com perguntas. Viajou para o Rio de noite, hospedou-se no Hotel Serrado, comeu nos melhores restaurantes e “pegou algumas mulheres”, pois, naqueles tempos, “pegavam-se (imagine só...) mulheres”. Mas logo entrou num regime de angustia.
Disse sem rodeios: “Quanto mais meu pai c... regras, mais ele as descumpria. Chegamos num ponto onde não se distinguia mais o legal do ilegal, pois todos agiam de acordo com as lei, mas seguindo seus interesses. Lá em casa fazíamos interpretações de interpretações de interpretações. Elas ficaram maiores que os fatos e então eu criei um arremedo de morte - fugi de casa.
“Entendi”, continuou o fugitivo, “que o ético não é apenas o certo, é o que está dentro dos nossos corações. Podemos descumprir e dispensar as regras, mas não podemos arrancar do nosso peito o nosso coração”. “Agora eu entendo”, disse o menino perdido e jamais achado, “o problema do Pai é que ele imagina que o mundo pode ser resolvido por leis quando, de fato, as leis são aplicadas, interpretadas e limitadas por pessoas. Dentro de uma fatal e abençoada liberdade que engendra o mecanismo. Pois, quanto mais leis, mais se reforçam e se instrumentam as amizades. E quanto mais arranjos pessoais, mais leis e mais hipocrisia e má-fé”.
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P.S.: Sei que, exceto pela mera coincidência, isso nada tem a ver com a chamada crise brasileira que, por ignorar o mecanismo, repete-se e reitera-se como uma indecorosa rotina.
A república dos compadres
Em nossa capital dos convescotes, onde os três Poderes da República se confraternizam nos fins de semana e passam os dias úteis conspirando para salvar as próprias peles e esfolar a Nação, a máfia dos compadritos, malfeitores portenhos da ficção genial de Jorge Luis Borges, se esfalfa para não ser extinta.
No Poder Legislativo, bocas malditas dão conta à boca pequena que se conspira para dar de mão beijada aos ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (por que não Fernando Collor?) indulgência perpétua para manter Michel Temer solto, caso seja defenestrado, como o major boliviano Gualberto Villarroel. Este foi atirado pela janela do palácio de Quemados e linchado pela malta enfurecida em 21 de julho de 1946. Ninguém espera que Temer seja atirado vidraça afora do Palácio do Planalto, tendo a palavra defenestrado sido usada apenas como um reforço de linguagem, uma metáfora do desejo da quase totalidade da população brasileira que o prefere sem poder. Mas que saia inteiro, como a rainha da sofrência Roberta Miranda, se dirige ao ex-amor no sucesso Vá com Deus. Embora seja mais difícil querer que ele saia íntegro desde a explosão sobre a faixa presidencial da Bomba H da delação de Joesley Batista, o marchante de Anápolis que virou tranchã do próspero negócio da proteína animal no mundo.
Passadas duas semanas das revelações do delator premiado, Temer não contestou nenhuma das acusações que lhe faz, com base na delação, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no pedido de abertura de inquérito, encaminhado ao relator da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Edson Fachin: corrupção passiva, organização criminosa e obstrução à investigação. Em vez disso, contratou o perito Ricardo Molina para acusar a gravação da conversa nada republicana de delator com delatado de má qualidade e de prova de incompetência e ingenuidade dos procuradores que a negociaram. OK. E daí?
O Palácio do Planalto já desmentiu o procurador-geral. Mas, junto com o desmentido, foi dada a prova mais evidente de culpa do chefe do governo, ao introduzir o roque do xadrez na gestão pública para qualquer cidadão com quociente de inteligência superior a 50. Insatisfeito com a “timidez” de seu ministro da Justiça na direção da Polícia Federal (PF), ele demitiu o deputado Osmar Serraglio (PMDB) e o substituiu pelo jurista Torquato Jardim, cuja opinião depende tanto do interesse do patrão quanto a do atrapalhado legista. Renan Truffi revelou neste jornal que, em texto escrito em julho de 2015, ele escreveu que, “desconstituído o diploma da presidente Dilma, cassado estará o do vice Michel”.
Como se sabe, em maio de 2016, dez meses depois, o vice Michel era presidente e, no mês seguinte, o renomado causídico assumiu a pasta da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Desde então, tornou-se um devoto discípulo do “Velho Capitão” Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, cujo engenho, mesclado à flexibilidade ética que praticava, produziu a pérola que pode servir de lema para o brasão do mais ilustre membro do clã Jardim: “A coerência é a virtude dos imbecis”. É ou não é?
Segundo Felipe Luchete, do site de notícias jurídicas Conjurs, em 21 de fevereiro passado, o ministro criticou procedimentos da operação Lava Jato: ele “listou problemas como as longas prisões provisórias, com duração de até 30 meses, e condenações sem provas, já reconhecidas pela Justiça. Ao comentar a operação, ele afirmou ainda que vazamentos seletivos geram ‘nulidade absoluta’ de processos”, segundo o relato. ODiário do Povo do Piauí publicou no dia de sua posse no ministério de Temer, sua profecia de que a Lava Jato teria igual destino ao das operações anteriores da Polícia Federal, caso da Castelo de Areia, sepultada no STF. Bidu!
Fiel ao brocado de Chatô professado pelo chefe, sua assessoria desmentiu os fatos acima revelados, contrários à opinião da maioria da população, em nota ao Fantástico, que os noticiara. Mas isso não quer dizer que sua troca por Osmar Serraglio difira da substituição por Dilma Rousseff do advogado José Eduardo Martins Cardozo pelo procurador Eugênio Aragão, alcunhado por seu chefe, ex-amigo e agora desafeto, Janot, de “Arengão”.
Mais pernóstica do que a missão que ele nega, contudo, é a transferência de seu antecessor para a pasta que antes o incoerente ocupava. O boquirroto Serraglio se jactava a quem se dispusesse a lhe dar um minuto de atenção de que não era “pato manco” no governo Temer. E todos sabemos que isso se devia a que sua permanência na pasta garantia o salvo-conduto para o suplente Rodrigo da Rocha Loures continuar no lado bom do dilema “ou foro ou Moro”, mantendo o foro privilegiado na cadeira para a qual o novo ministro da Transparência fora eleito.
O episódio cancela todos os significados que os dicionários reservam para definir as palavras transparência, fiscalização, controle, justiça e outras, já jogadas no lixo da prática administrativa e política do Brasil, tais como ética, decoro e vergonha. Mas essa consequência é menor do que o motivo real do “movimento combinado do rei e de uma das torres, que se desloca para uma posição mais atuante para dar mais segurança ao rei”, como o Dicionário Houaissdefine o roque, jogada de xadrez citada no início deste texto.
Assim como a tentativa de desqualificar o depoimento do marchante delinquente por causa de seus crimes pregressos ou da má qualidade da gravação que fez nos porões do palácio, a matéria orgânica, à tona de 17 de maio para cá, já ficou insuportável. E exige mais atenção às manobras com que os compadritos da política tentam manter o status quo. Desfaçatez, chicanas e negaças não perfumam o ar apodrecido das catacumbas da máfia multipartidária que nos governa.
No Poder Legislativo, bocas malditas dão conta à boca pequena que se conspira para dar de mão beijada aos ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (por que não Fernando Collor?) indulgência perpétua para manter Michel Temer solto, caso seja defenestrado, como o major boliviano Gualberto Villarroel. Este foi atirado pela janela do palácio de Quemados e linchado pela malta enfurecida em 21 de julho de 1946. Ninguém espera que Temer seja atirado vidraça afora do Palácio do Planalto, tendo a palavra defenestrado sido usada apenas como um reforço de linguagem, uma metáfora do desejo da quase totalidade da população brasileira que o prefere sem poder. Mas que saia inteiro, como a rainha da sofrência Roberta Miranda, se dirige ao ex-amor no sucesso Vá com Deus. Embora seja mais difícil querer que ele saia íntegro desde a explosão sobre a faixa presidencial da Bomba H da delação de Joesley Batista, o marchante de Anápolis que virou tranchã do próspero negócio da proteína animal no mundo.
O Palácio do Planalto já desmentiu o procurador-geral. Mas, junto com o desmentido, foi dada a prova mais evidente de culpa do chefe do governo, ao introduzir o roque do xadrez na gestão pública para qualquer cidadão com quociente de inteligência superior a 50. Insatisfeito com a “timidez” de seu ministro da Justiça na direção da Polícia Federal (PF), ele demitiu o deputado Osmar Serraglio (PMDB) e o substituiu pelo jurista Torquato Jardim, cuja opinião depende tanto do interesse do patrão quanto a do atrapalhado legista. Renan Truffi revelou neste jornal que, em texto escrito em julho de 2015, ele escreveu que, “desconstituído o diploma da presidente Dilma, cassado estará o do vice Michel”.
Como se sabe, em maio de 2016, dez meses depois, o vice Michel era presidente e, no mês seguinte, o renomado causídico assumiu a pasta da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Desde então, tornou-se um devoto discípulo do “Velho Capitão” Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, cujo engenho, mesclado à flexibilidade ética que praticava, produziu a pérola que pode servir de lema para o brasão do mais ilustre membro do clã Jardim: “A coerência é a virtude dos imbecis”. É ou não é?
Segundo Felipe Luchete, do site de notícias jurídicas Conjurs, em 21 de fevereiro passado, o ministro criticou procedimentos da operação Lava Jato: ele “listou problemas como as longas prisões provisórias, com duração de até 30 meses, e condenações sem provas, já reconhecidas pela Justiça. Ao comentar a operação, ele afirmou ainda que vazamentos seletivos geram ‘nulidade absoluta’ de processos”, segundo o relato. ODiário do Povo do Piauí publicou no dia de sua posse no ministério de Temer, sua profecia de que a Lava Jato teria igual destino ao das operações anteriores da Polícia Federal, caso da Castelo de Areia, sepultada no STF. Bidu!
Fiel ao brocado de Chatô professado pelo chefe, sua assessoria desmentiu os fatos acima revelados, contrários à opinião da maioria da população, em nota ao Fantástico, que os noticiara. Mas isso não quer dizer que sua troca por Osmar Serraglio difira da substituição por Dilma Rousseff do advogado José Eduardo Martins Cardozo pelo procurador Eugênio Aragão, alcunhado por seu chefe, ex-amigo e agora desafeto, Janot, de “Arengão”.
Mais pernóstica do que a missão que ele nega, contudo, é a transferência de seu antecessor para a pasta que antes o incoerente ocupava. O boquirroto Serraglio se jactava a quem se dispusesse a lhe dar um minuto de atenção de que não era “pato manco” no governo Temer. E todos sabemos que isso se devia a que sua permanência na pasta garantia o salvo-conduto para o suplente Rodrigo da Rocha Loures continuar no lado bom do dilema “ou foro ou Moro”, mantendo o foro privilegiado na cadeira para a qual o novo ministro da Transparência fora eleito.
O episódio cancela todos os significados que os dicionários reservam para definir as palavras transparência, fiscalização, controle, justiça e outras, já jogadas no lixo da prática administrativa e política do Brasil, tais como ética, decoro e vergonha. Mas essa consequência é menor do que o motivo real do “movimento combinado do rei e de uma das torres, que se desloca para uma posição mais atuante para dar mais segurança ao rei”, como o Dicionário Houaissdefine o roque, jogada de xadrez citada no início deste texto.
Assim como a tentativa de desqualificar o depoimento do marchante delinquente por causa de seus crimes pregressos ou da má qualidade da gravação que fez nos porões do palácio, a matéria orgânica, à tona de 17 de maio para cá, já ficou insuportável. E exige mais atenção às manobras com que os compadritos da política tentam manter o status quo. Desfaçatez, chicanas e negaças não perfumam o ar apodrecido das catacumbas da máfia multipartidária que nos governa.
Originalidade
Originalidade marcada, só nos homens da roça que não leem jornais. Ideias proprias, pontos de visa unicos, personalíssimos, e a sublime coragem do pitoresco mental.
Nas cidades grandes, o jornal ingerido pela manhã desoriginaliza, bota-nos a todos bitolados pela mesma regra de pensar.
A opinião publica só existe nos lugarejos. Nas capitais desaparece substituida pela opinião que se publica.
Monteiro Lobato
Temer transformou país em república de bananas
Pela manhã, Michel Temer discursou para investidores estrangeiros em São Paulo. “A responsabilidade rende frutos”, declarou. À tarde, de volta a Brasília, Temer assumiu o comando de uma articulação irresponsável para assegurar que o suplente de deputado Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala, não perca o escudo do foro privilegiado. Como um centauro metafórico, o governo Temer mantém a cabeça nas alturas do mercado globalizado e o corpo aqui embaixo, na politicagem enlameada, nos arranjos de um presidente investigado que tenta evitar a aparição de outro delator.
Para demonstrar que ainda dispõe de apoio congressual, Temer levou ao seminário com investidores os presidentes da Câmara e do Senado: Rodrigo Maia, o ‘Botafogo’ das planilhas da Odebrecht; e Eunício Oliveira, o ‘Índio’ da escrituração do departamento de propinas da construtora. A dupla soltou a língua em discursos sobre reformas modernizadoras. Também derramaram saliva pelas reformas e por Temer os investigados tucanos Geraldo Alckmin e Aloysio Nunes, além do neotucano João Doria.
Em Brasília, para segurar a língua do potencial delator Rocha Loures, Temer corre atrás de um deputado paranaense que se disponha a assumir uma vaga no ministério, pois Osmar Serraglio (PMDB-PR), que cedera a poltrona ao suplente da mala, não topou ser rebaixado da pasta da Justiça para o Ministério da Transparência. Conselheiros do presidente avisam que a utilização tão escancarada do organograma do Estado pode pegar mal. Aconselham moderação. Mas a simples cogitação de plantar um deputado qualquer na sacrossanta pasta da Transparência apenas para adular um potencial delator é reveladora do ponto a que chegou a gestão Temer.
A cabeça do centauro assegura que o governo vive situação de franca normalidade. Mas o Supremo Tribunal Federal autorizou a Polícia Federal a interrogar o investigado Temer sobre a movimentação anormal do corpo do centauro, dado a travar diálogos desqualificados com empresários suspeitos no escurinho do Palácio do Jaburu.
Aos pouquinhos, Temer vai consolidando o projeto iniciado nos 13 anos de administrações petistas. Consiste em transformar o Brasil numa república de bananas. Assim eram chamadas as nações da América Central governadas por oligarquias corruptas e subservientes ao capital estrangeiro. Uma Banana Republic era, normalmente, pequena. Mas o Brasilzão, com suas peculiaridades, entra no clube como um bananão onde a corrupção generalizou-se de tal forma que tudo tende a acabar em palavras com a desinência ‘ão’ —como acordão, por exemplo.
Em Brasília, para segurar a língua do potencial delator Rocha Loures, Temer corre atrás de um deputado paranaense que se disponha a assumir uma vaga no ministério, pois Osmar Serraglio (PMDB-PR), que cedera a poltrona ao suplente da mala, não topou ser rebaixado da pasta da Justiça para o Ministério da Transparência. Conselheiros do presidente avisam que a utilização tão escancarada do organograma do Estado pode pegar mal. Aconselham moderação. Mas a simples cogitação de plantar um deputado qualquer na sacrossanta pasta da Transparência apenas para adular um potencial delator é reveladora do ponto a que chegou a gestão Temer.
A cabeça do centauro assegura que o governo vive situação de franca normalidade. Mas o Supremo Tribunal Federal autorizou a Polícia Federal a interrogar o investigado Temer sobre a movimentação anormal do corpo do centauro, dado a travar diálogos desqualificados com empresários suspeitos no escurinho do Palácio do Jaburu.
Aos pouquinhos, Temer vai consolidando o projeto iniciado nos 13 anos de administrações petistas. Consiste em transformar o Brasil numa república de bananas. Assim eram chamadas as nações da América Central governadas por oligarquias corruptas e subservientes ao capital estrangeiro. Uma Banana Republic era, normalmente, pequena. Mas o Brasilzão, com suas peculiaridades, entra no clube como um bananão onde a corrupção generalizou-se de tal forma que tudo tende a acabar em palavras com a desinência ‘ão’ —como acordão, por exemplo.
Cotidiano de exceção
Cartaz da edição brasileira do livro 'Sobre a tirania' |
O sobressalto encarnou-se nos dias. Não é mais inerente ao cotidiano, mas o próprio cotidiano. Temos vivido no Brasil (e acredito que em boa parte do mundo), aos espasmos. Um espasmo, outro espasmo, mais um espasmo. A cada noite, dormimos (ou tentamos dormir) sem saber o que acontecerá no país. Ou mesmo com qual presidente o dia terminará. Não há mais como imaginar o dia de amanhã. Às vezes, não dá para imaginar a hora seguinte. O sobressalto tece a experiência – tanto a coletiva, a maneira como estamos com os outros, como a individual, nosso modo de estar consigo mesmos. Acusamos o impacto nas nossas vísceras, o sentimos na ansiedade misturada aos goles de café, mas não somos capazes de dimensionar. É assim que a exceção vai se infiltrando nas horas – e também nas almas. E é assim também que ela mina a nossa resistência. Como persistir, então?
O controle é, desde sempre, uma ilusão. Mas em momentos como este, estamos além da possibilidade de ilusão. Se isso não é novo na história da humanidade, e obviamente não é, há algo que acentua e amplia essa percepção da realidade, que é a vida conectada pela internet, em que segundo a segundo algo salta na tela para contar de um sobressalto, sobressaltando. E, sobressaltados, replicamos o que nos sobressalta, sobressaltando outros. E, assim, criamos um mundo de gente que suspende a respiração – e às vezes também o pensamento.
Em épocas como esta, as armadilhas são várias. E talvez a maior delas esteja na reação. Há uma diferença entre reagir por reflexão – e reagir por reflexo. A reação por reflexo obedece à mesma lógica de alguém que se coça ao sentir a picada de um pernilongo. Assemelha-se a uma resposta sem pensamento, rápida como um “curtir” das redes sociais. É difícil alcançar qual é o efeito de uma reação generalizada por reflexo. Mas é importante perceber que, neste momento, há parcelas da sociedade que disputam o poder – ou lutam para mantê-lo – que reagem com pensamento e reagem com planejamento. E parte do seu pensamento e do seu planejamento é contar com o fato de que a maioria seguirá reagindo por reflexo.
Resistir neste momento é também deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir a partir da reflexão. Quando tudo parece caótico, quando tudo fica meio misturado e parecido, é preciso olhar para os fatos. Olhar para os fatos com toda a atenção. São eles que nos apontam onde estão as verdades e nos ajudam a enxergar onde está a manipulação, assim como a falsificação. O pensamento é ainda a melhor forma de resistência.
Há um livro que pode nos ajudar a pensar sobre este momento. Sobre a tirania – Vinte lições do século XX para o presente será lançado pela Companhia das Letras no início de junho. Perturbado pela chocante eleição de Donald Trump, Timothy Snyder, professor de história da universidade de Yale, postou um texto no Facebook que se tornou viral. Ele começava assim: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”. O texto foi ampliado e se tornou um livro best-seller nos Estados Unidos, já convertido para várias línguas. Agora chega ao Brasil, traduzido por Donaldson M. Garschagen.
Escrito para os americanos, o livro diz muito também para os brasileiros, já que as novas máscaras do velho autoritarismo são tão globalizadas como o mundo que as gesta. A seguir, faço uma conversa minha com este livro, a partir da experiência de viver no Brasil o que chamo de “cotidiano de exceção”.
Em épocas como esta, as armadilhas são várias. E talvez a maior delas esteja na reação. Há uma diferença entre reagir por reflexão – e reagir por reflexo. A reação por reflexo obedece à mesma lógica de alguém que se coça ao sentir a picada de um pernilongo. Assemelha-se a uma resposta sem pensamento, rápida como um “curtir” das redes sociais. É difícil alcançar qual é o efeito de uma reação generalizada por reflexo. Mas é importante perceber que, neste momento, há parcelas da sociedade que disputam o poder – ou lutam para mantê-lo – que reagem com pensamento e reagem com planejamento. E parte do seu pensamento e do seu planejamento é contar com o fato de que a maioria seguirá reagindo por reflexo.
No tempo da aceleração, o que se infiltra nas horas é esta sensação de anormalidade que não passa. Convertida num presente contínuo, é como se o dia seguinte nunca chegasse. O risco é que, para recuperar a “normalidade”, qualquer normalidade, se aceite o inaceitável. Quanto maior for o anseio por “normalidade”, mesmo que ilusória, mais as pessoas e grupos tornam-se dispostos a conceder e a perder direitos. E é aí que mora o perigo.Resistir ao autoritarismo é deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir por reflexão
Resistir neste momento é também deixar de reagir por reflexo – e passar a reagir a partir da reflexão. Quando tudo parece caótico, quando tudo fica meio misturado e parecido, é preciso olhar para os fatos. Olhar para os fatos com toda a atenção. São eles que nos apontam onde estão as verdades e nos ajudam a enxergar onde está a manipulação, assim como a falsificação. O pensamento é ainda a melhor forma de resistência.
Há um livro que pode nos ajudar a pensar sobre este momento. Sobre a tirania – Vinte lições do século XX para o presente será lançado pela Companhia das Letras no início de junho. Perturbado pela chocante eleição de Donald Trump, Timothy Snyder, professor de história da universidade de Yale, postou um texto no Facebook que se tornou viral. Ele começava assim: “Os americanos não são mais sábios que os europeus, que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo. Nossa única vantagem é ser capaz de aprender com a experiência deles”. O texto foi ampliado e se tornou um livro best-seller nos Estados Unidos, já convertido para várias línguas. Agora chega ao Brasil, traduzido por Donaldson M. Garschagen.
Escrito para os americanos, o livro diz muito também para os brasileiros, já que as novas máscaras do velho autoritarismo são tão globalizadas como o mundo que as gesta. A seguir, faço uma conversa minha com este livro, a partir da experiência de viver no Brasil o que chamo de “cotidiano de exceção”.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
Classe de desclassificados
Você tem uma classe que ganhou autonomia em relação à sociedade. Ela é intocável, é uma classe que está aí desde a ditadura militar. Vivemos num país que não conseguiu aprofundar a participação popular dentro do processo de política institucional. Conseguimos criar uma situação em que a estrutura política é completamente autista em relação à pressão popularVladimir Safatle
Governabilidade de escárnio
Quando a cadeira presidencial balança, o ocupante não vacila em subir nas tamancas. Alguns vão mais além: tiram do armário a fantasia, limpam a poeira e a naftalina, para mais se exibir com o garbo de quem sonhou com uma coroa de pedrarias de poder.
Com Michel Temer, bastou cair a máscara de beato político, senhor de leis, que as cumpre assim e assado, para se autocoroar. Nada de se estranhar no país do ministro Gilmar Mendes que "está se tornando uma grande organização Tabajara".
Infelizmente não é programa humorístico, mas uma grande patuscada da casta político-governamental, que se deixa corromper em nome de uma governabilidade de escárnio.
Desde que pego pela língua tentando justificar-se e passando por cima dos crimes na calada da noite, jogou no lixo a toga de tribuno. Está nu e fede como qualquer parlamentar brasileiro investigado.
Quem iria levar o país à estabilidade e entrar na História não passa de outro, mais um da infindável série, mascarado. Faz no privado o que condena no público.
Para recuperar o já irrecuperável, troca seis por meia dúzia em plena crise política. Acuado pelo flagra da não explicação, confessa-se mais uma vez como reles político. A troca ministerial na Justiça, renda ou não frutos para seu carreirismo, desesteabiliza ainda mais a instável sociedade. Dar cartadas em prol da garantia no cargo, quando deveria governar, e não imperar, é mostra de que quer salvar uma biogrfia já enlameada.
Mais uma vezo país assiste às lideranças jogarem um Estado no fogo para livrar a pele entre a fumaça. É o espírito público da canalha.
Com Michel Temer, bastou cair a máscara de beato político, senhor de leis, que as cumpre assim e assado, para se autocoroar. Nada de se estranhar no país do ministro Gilmar Mendes que "está se tornando uma grande organização Tabajara".
Infelizmente não é programa humorístico, mas uma grande patuscada da casta político-governamental, que se deixa corromper em nome de uma governabilidade de escárnio.
Quem iria levar o país à estabilidade e entrar na História não passa de outro, mais um da infindável série, mascarado. Faz no privado o que condena no público.
Para recuperar o já irrecuperável, troca seis por meia dúzia em plena crise política. Acuado pelo flagra da não explicação, confessa-se mais uma vez como reles político. A troca ministerial na Justiça, renda ou não frutos para seu carreirismo, desesteabiliza ainda mais a instável sociedade. Dar cartadas em prol da garantia no cargo, quando deveria governar, e não imperar, é mostra de que quer salvar uma biogrfia já enlameada.
Mais uma vezo país assiste às lideranças jogarem um Estado no fogo para livrar a pele entre a fumaça. É o espírito público da canalha.
Luiz Gadelha
O golpismo das celebridade em Copacabana
Quando se trata de juntar gente para dizer que o povo comparece a seus eventos, a esquerda reúne companheiros de viagem, pilotos de vôo pelos ares da utopia, figurinhas carimbadas, cantores, atores, músicos e promovem grande espetáculo. Alguma conta no exterior paga os cachês ou o crédito fica gerado e certificado para futuros resgates.
Sublinhe-se: foi para evitar casuísmos golpistas, voltados a atender interesses de oportunistas como os que recheavam o palanque de Copacabana, que os constituintes de 1988 definiram a periodicidade das eleições como cláusula pétrea da Carta maior da República.
Mas não podemos querer que a turma daquele palanque entenda e se conforme com isso, não é mesmo?
Percival Puggina
Então, pequenas multidões são atraídas pela oportunidade de um show que seria totalmente grátis não fora o dever de escutar discursos políticos proferidos por pessoas cujo pouco conhecimento enche a paciência antes de encher uma xícara de cafezinho. Sem artistas e celebridades, vai-se o público. Cria-se, então, um insolúvel mistério: quem é que estava ali, mesmo? A permanência dessa dúvida nos eventos da esquerda é uma clamorosa denúncia do esvaziamento de suas pautas e de sua credibilidade.
A concentração ocorrida em Copacabana neste último domingo reuniu numa dessas aglomerações algo entre 10 mil e 30 mil pessoas. A turma do palanque queria diretas já. Ali estavam, pelo que li, Caetano Veloso, Criolo, Mano Brown, Maria Gadu, Milton Nascimento, Gregório Duvivier, Sophie Charlotte, Daniel Oliveira, Maria Casadeval, Antônio Pitanga, Bete Mendes e Zezé Motta. Não sei se alguém se deixa conduzir pelas posições políticas desse pessoal, mas o evento em si, misturando música, dança de rua e diretas já, como afirmei antes, tem o peso político de uma rolha.
Por outro lado, os oradores, ao apelarem para a ruptura com a ordem constitucional, alegam uma suposta ilegitimidade do Congresso para cumprir o preceito que determina eleição indireta se a vacância ocorrer depois da primeira metade do mandato presidencial. Ora, a legitimidade do Congresso só foi contestada pelo PT após o impeachment da presidente Dilma; e se ele é ilegítimo para cumprir o preceito constitucional e promover a eleição indireta, onde irá buscar legitimidade para alterar a Constituição e romper a periodicidade das eleições presidenciais?
A concentração ocorrida em Copacabana neste último domingo reuniu numa dessas aglomerações algo entre 10 mil e 30 mil pessoas. A turma do palanque queria diretas já. Ali estavam, pelo que li, Caetano Veloso, Criolo, Mano Brown, Maria Gadu, Milton Nascimento, Gregório Duvivier, Sophie Charlotte, Daniel Oliveira, Maria Casadeval, Antônio Pitanga, Bete Mendes e Zezé Motta. Não sei se alguém se deixa conduzir pelas posições políticas desse pessoal, mas o evento em si, misturando música, dança de rua e diretas já, como afirmei antes, tem o peso político de uma rolha.
Por outro lado, os oradores, ao apelarem para a ruptura com a ordem constitucional, alegam uma suposta ilegitimidade do Congresso para cumprir o preceito que determina eleição indireta se a vacância ocorrer depois da primeira metade do mandato presidencial. Ora, a legitimidade do Congresso só foi contestada pelo PT após o impeachment da presidente Dilma; e se ele é ilegítimo para cumprir o preceito constitucional e promover a eleição indireta, onde irá buscar legitimidade para alterar a Constituição e romper a periodicidade das eleições presidenciais?
Sublinhe-se: foi para evitar casuísmos golpistas, voltados a atender interesses de oportunistas como os que recheavam o palanque de Copacabana, que os constituintes de 1988 definiram a periodicidade das eleições como cláusula pétrea da Carta maior da República.
Mas não podemos querer que a turma daquele palanque entenda e se conforme com isso, não é mesmo?
Percival Puggina
terça-feira, 30 de maio de 2017
Ótica do tudo ou nada não serve para enxergar a crise brasileira
Poucas aberturas de romance são tão trovejantes como a de "Um Conto de Duas Cidades", de Charles Dickens. "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; (...) era a estação das Luzes, era a estação das Trevas; era a primavera da esperança, era o inverno do desespero."
A Paris revolucionária do final do século 18, onde os personagens londrinos Darnay e Carton vivem a sua agonia, torna verossímil a imagética apocalíptica contida naquelas sentenças iniciais. O Brasil em transe desde 2013 não é para tanto.
A violência ao final do último protesto em Brasília não destoou da habitual. Células neoanarquistas abrigadas nas marchas da esquerda botaram para quebrar.
Não há multidões a guerrear contra o statu quo. Tampouco há tropas do czar patrocinando banhos de sangue em reação. As PMs são mal preparadas para a repressão, mas não deixaram rastro de cadáveres ao atuarem nos protestos, alguns bem violentos, dos últimos quatro anos.
O "Exército nas ruas" era uma piada das redes esquerdistas que às vezes gostam de alegorias como as de Dickens. Um punhado de soldados a resguardar prédios da União após as depredações em nada remete a autoritarismo ou ditadura.
O chamado mercado também tem seus momentos barrocos. O "tudo ou nada" associado à realização breve da reforma da Previdência é um exagero. Vamos logo observar indicadores e expectativas se acomodarem, com prejuízo modesto, à perspectiva de que esse importante acerto de contas aconteça apenas em 2019.
E o que dizer das propostas que brotam no noticiário de punição coletiva aos políticos com atropelo de regras constitucionais? Antecipar eleições gerais? Com que poder revolucionário o faríamos? Quem lideraria a cruzada? Os templários do Ministério Público e do Poder Judiciário?
Um pouco de ceticismo nos faria bem. O Brasil não vai acabar nem se salvar amanhã.
Vinicius Mota
A Paris revolucionária do final do século 18, onde os personagens londrinos Darnay e Carton vivem a sua agonia, torna verossímil a imagética apocalíptica contida naquelas sentenças iniciais. O Brasil em transe desde 2013 não é para tanto.
A violência ao final do último protesto em Brasília não destoou da habitual. Células neoanarquistas abrigadas nas marchas da esquerda botaram para quebrar.
Não há multidões a guerrear contra o statu quo. Tampouco há tropas do czar patrocinando banhos de sangue em reação. As PMs são mal preparadas para a repressão, mas não deixaram rastro de cadáveres ao atuarem nos protestos, alguns bem violentos, dos últimos quatro anos.
O "Exército nas ruas" era uma piada das redes esquerdistas que às vezes gostam de alegorias como as de Dickens. Um punhado de soldados a resguardar prédios da União após as depredações em nada remete a autoritarismo ou ditadura.
O chamado mercado também tem seus momentos barrocos. O "tudo ou nada" associado à realização breve da reforma da Previdência é um exagero. Vamos logo observar indicadores e expectativas se acomodarem, com prejuízo modesto, à perspectiva de que esse importante acerto de contas aconteça apenas em 2019.
E o que dizer das propostas que brotam no noticiário de punição coletiva aos políticos com atropelo de regras constitucionais? Antecipar eleições gerais? Com que poder revolucionário o faríamos? Quem lideraria a cruzada? Os templários do Ministério Público e do Poder Judiciário?
Um pouco de ceticismo nos faria bem. O Brasil não vai acabar nem se salvar amanhã.
Vinicius Mota
A história dolorosa de um fracasso
Se a divulgação das escutas telefônicas feitas pela Polícia Federal serviu para alguma coisa, no mínimo elas fizeram o país ter a dimensão do caráter de seus representantes no Executivo e no Parlamento. Que fino tratamento se dispensam, especialmente quando se veem afetados pela infidelidade de delatores, antes seus cúmplices prediletos. Raramente as mães, talvez por ser o mês de maio, foram tão lembradas. Porque espantado ninguém fica mais.
A profusão de escândalos e bandalheiras de que se tem conhecimento é estarrecedora e já anestesiou completamente a sensibilidade do brasileiro. Nunca neste país se furtou tanto, desviou-se tanto, apropriou-se tanto do Orçamento público como nestes tempos. Em denúncias anteriores, as empreiteiras de obras públicas comandaram a festa. Agora foi a vez dos frigoríficos da família Batista e companhia, reconhecidos sem favor algum como os homens mais ricos do Brasil e, com destaque, os maiores caras de pau de que já se teve notícia nas cercanias do poder político e econômico.
Risonhamente, falando como se estivessem num encontro de amigos, eles inundaram o noticiário nacional com revelações as mais contundentes, instalando o pânico no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, na Minas Arena, no civil e no religioso. Sobrou pra todo mundo, com farta comprovação de fotos, vídeos, gravações, recibos de depósito, malas com chip, o que nos deixa a certeza de nossas precariedades, de nossa absoluta insegurança, política e jurídica.
Um grupo empresarial tornado poderoso graças, especialmente, a sua capacidade de aliciar políticos e técnicos de governos passeou de forma olímpica pelos bancos estatais, BNDES, Caixa e Banco do Brasil, fabricou sob medida e aprovou no Congresso leis que tornaram mais lucrativos e prósperos seus negócios, subornou, comprou opiniões e consciências (?), concedeu empréstimos para pagar advogados de políticos que não lograram “fazer dinheiro em sua vida pública”, manejando cifras absurdas e nunca vistas.
No curso de suas manobras, negociaram com o Ministério Público Federal uma robusta delação, surpreendentemente aprovada em tempo recorde pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), para assim não serem mais incomodados em seu descanso. Fecharam a questão e foram para Nova York, de onde já saíram, sem deixar endereço, curtindo alegremente o achincalhe, o deboche imposto nossas instituições.
Deixaram assanhados nas ruas de domingo os movimentos “Fora, Temer” como se tivéssemos uma nesga de solução, uma perspectiva séria e exequível, um nome mais ou menos aceitável para assumir o comando de um país que todos os dias surpreende-se com o joguete que viramos nas mãos de aproveitadores, de bandalhos, de políticos sem compromisso e sem a dimensão de seus atos. Não temos opções, em quem confiar. Que fracasso! Valei-nos, Mário Lago.
A profusão de escândalos e bandalheiras de que se tem conhecimento é estarrecedora e já anestesiou completamente a sensibilidade do brasileiro. Nunca neste país se furtou tanto, desviou-se tanto, apropriou-se tanto do Orçamento público como nestes tempos. Em denúncias anteriores, as empreiteiras de obras públicas comandaram a festa. Agora foi a vez dos frigoríficos da família Batista e companhia, reconhecidos sem favor algum como os homens mais ricos do Brasil e, com destaque, os maiores caras de pau de que já se teve notícia nas cercanias do poder político e econômico.
Um grupo empresarial tornado poderoso graças, especialmente, a sua capacidade de aliciar políticos e técnicos de governos passeou de forma olímpica pelos bancos estatais, BNDES, Caixa e Banco do Brasil, fabricou sob medida e aprovou no Congresso leis que tornaram mais lucrativos e prósperos seus negócios, subornou, comprou opiniões e consciências (?), concedeu empréstimos para pagar advogados de políticos que não lograram “fazer dinheiro em sua vida pública”, manejando cifras absurdas e nunca vistas.
No curso de suas manobras, negociaram com o Ministério Público Federal uma robusta delação, surpreendentemente aprovada em tempo recorde pelo ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), para assim não serem mais incomodados em seu descanso. Fecharam a questão e foram para Nova York, de onde já saíram, sem deixar endereço, curtindo alegremente o achincalhe, o deboche imposto nossas instituições.
Deixaram assanhados nas ruas de domingo os movimentos “Fora, Temer” como se tivéssemos uma nesga de solução, uma perspectiva séria e exequível, um nome mais ou menos aceitável para assumir o comando de um país que todos os dias surpreende-se com o joguete que viramos nas mãos de aproveitadores, de bandalhos, de políticos sem compromisso e sem a dimensão de seus atos. Não temos opções, em quem confiar. Que fracasso! Valei-nos, Mário Lago.
Extrema unção
É da medicina que a atividade cerebral se acelera antes da morte e aquela aparência de frágil debilidade subitamente se transforma em movimentos que, pela vivacidade, impressionam aos que vão levar a extrema unção. Mas é hora da morte: não há como resistir. É escolher a melhor gravata porque, mesmo entre os mortos, há os que se mexem depois da guilhotina.
A situação chegou a um ponto de paroxismo da falta de vergonha que se quer dar agora a impressão de anormal normalidade, pondo-se em votação a agenda das reformas, pretendendo tocar o governo as usual e ganhando tempo em busca de uma saída menos desonrosa.
Parece que, desta vez, o susto foi tão grande que até malas de dinheiro extraviadas nos ingênuos porões da pouca vergonha foram reencontradas, faltando nelas pequena parte reservada para o vinho, afinal também confessadamente devolvida.
A hora é grave e, sem hipérbole, terrível, admitia o velho Negrão de Lima, Ministro da Justiça testemunha da aguda crise do governo Vargas no Palácio do Catete. Agora, os ameaçados ministros se penduram nos foros privilegiados, demitindo, nomeando, ameaçando no interesse do Brasil, enquanto os assessores salvam-se como podem, pulando como ratos no mar de lama.
Outra grave hora chega e, quando o Brasil se vê caindo no abismo da desesperança, deve bater um pouco de juízo na cabeça de quem tem algum papel de liderança. Como dizia o sábio da política: está de vaca não reconhecer bezerro no curral. E, nessas horas, é melhor ter juízo do que fingir de doido de rua, atacando para defender.
Nos bastidores fervilham as apostas: quem será o timoneiro da pinguela até 2018? Muitos ambicionam, ninguém se apresenta “candidato ao doce sacrifício”. Como será? Eleições diretas como a voz das ruas ou indiretas como reza a Constituição? Que saída se dará? A votação do TSE, antes terrível ameaça de cassação da chapa, agora aparece como bóia de honrosa salvação: uma saída pela frente provocada por erros de outros.
Indulto para o presidente? Asilo no Uruguai? Embaixada no Paraguai? Licença para curtir a dor no Equador? Subindo o Maia como controlar o festeiro Ramalho? Reformas às pressas podem acabar como frankensteins mal acabados. Pode-se decretar o recesso do Congresso por falta de compostura e a vacância do governo por falta de assessores. Há uma desconfiança geral de armação, de perdões aos pecados da carne e é melhor botar as barbas de molho.
O maior pecado em política é revelar a verdade antes da hora. O presidente cometeu o pecado do general Castelo Branco ao dizer, cedo demais, que não seria candidato à sucessão. Jogou fora as cartas de negociação e saiu da mesa do poder.
Les jeux sont faits, diria o crupiê vendo a ruína do cassino.
A situação chegou a um ponto de paroxismo da falta de vergonha que se quer dar agora a impressão de anormal normalidade, pondo-se em votação a agenda das reformas, pretendendo tocar o governo as usual e ganhando tempo em busca de uma saída menos desonrosa.
Parece que, desta vez, o susto foi tão grande que até malas de dinheiro extraviadas nos ingênuos porões da pouca vergonha foram reencontradas, faltando nelas pequena parte reservada para o vinho, afinal também confessadamente devolvida.
Outra grave hora chega e, quando o Brasil se vê caindo no abismo da desesperança, deve bater um pouco de juízo na cabeça de quem tem algum papel de liderança. Como dizia o sábio da política: está de vaca não reconhecer bezerro no curral. E, nessas horas, é melhor ter juízo do que fingir de doido de rua, atacando para defender.
Nos bastidores fervilham as apostas: quem será o timoneiro da pinguela até 2018? Muitos ambicionam, ninguém se apresenta “candidato ao doce sacrifício”. Como será? Eleições diretas como a voz das ruas ou indiretas como reza a Constituição? Que saída se dará? A votação do TSE, antes terrível ameaça de cassação da chapa, agora aparece como bóia de honrosa salvação: uma saída pela frente provocada por erros de outros.
Indulto para o presidente? Asilo no Uruguai? Embaixada no Paraguai? Licença para curtir a dor no Equador? Subindo o Maia como controlar o festeiro Ramalho? Reformas às pressas podem acabar como frankensteins mal acabados. Pode-se decretar o recesso do Congresso por falta de compostura e a vacância do governo por falta de assessores. Há uma desconfiança geral de armação, de perdões aos pecados da carne e é melhor botar as barbas de molho.
O maior pecado em política é revelar a verdade antes da hora. O presidente cometeu o pecado do general Castelo Branco ao dizer, cedo demais, que não seria candidato à sucessão. Jogou fora as cartas de negociação e saiu da mesa do poder.
Les jeux sont faits, diria o crupiê vendo a ruína do cassino.
A marchinha da moda: 'Mamãe eu quero' votar em corrupto
Muitos brasileiros que votaram num dos traidores do povo para presidente, o que foi derrotado, estão enojados, perplexos, revoltados. Na maioria das vezes, nem sabem quem apoiar nesse momento. Na falta de tudo, até de esperança, rejeitam todos.
Entre aqueles que votaram nos traidores que venceram, muitos estão tristes, desiludidos, arrasados pela perfídia criminosa dos que consideravam defensores do povo. Não sabem como reagir ou o que fazer.
No meio destes, uma minoria detém todas as certezas. Atendem a manifestações convocadas por artistas e chacoalham ao som de Mamãe Eu Quero, a mais auto-referente e deliciosamente edipiana de todas as marchinhas de carnaval.
Os conhecedores dessa arte popular dizem que boa parte da marcha foi inventada na hora da gravação, em 1936, por seus autores, Jararaca e Vicente Paiva.
Os que a repetem, hoje, exigindo Diretas Já, convocação roubada do original, autêntico, pensam mesmo é na volta da Jararaca.
São, na maioria, militantes ou simpatizantes dos pequenos partidos de esquerda. Aqueles mesmo que gritam, incitam à destruição e têm “a mão dilacerada”, na voz passiva, como se não estivessem segurando o rojão para jogar na cara dos que evitaram, mais uma vez, a incineração de patrimônio pertencente à nação.
Depois de gritar, cuspir, agredir, quebrar e incendiar, com a honrosa e elogiável exceção dos que só cantaram Mamãe Eu Quero, acabam todos fazendo a mesma coisa: votando na Jararaca ou se aliando ao partido da Jararaca.
Esta, evidentemente, é fiel ao imperativo dos répteis venenosos. Manda a massa de manobra pedir Diretas Já, mas prepara o bote para escapar ao serpentário de Curitiba.
Não é segredo para ninguém, tudo tem sido feito praticamente à luz do dia. O que explica que, fora a pelegada e os profissionais, pessoas inteligentes, educadas nas melhores escolas, com alto nível de espírito crítico e acesso a todo tipo de informação, incorram nesse tipo de auto-engano?
Não são ingênuas. E quem acredita nessa palavra depois que foi invocada pelo participante-chave no encontro que intoxicou o Brasil?
Não são iludidas. E, se fossem, teriam que arcar com a responsabilidade de fechar olhos, ouvidos e nariz à podridão, ao estrondo e ao fedor do que está acontecendo à nossa volta.
Seriam mal resolvidas? Reconhecer que defendem sabotadores de seus próprios ideais talvez seja difícil demais. Talvez afete egos despreparados para distinguir entre a auto-imagem e os sonhos que confiaram aos traidores do povo.
Artistas, em especial, são movidos por egos especialmente sensíveis. Querem encantar, seduzir, hipnotizar. Querem ser incondicionalmente amados, como todo mundo. Mas com a intensidade avassaladora dos que vivem na maior de todas as bolhas, o mundo único da celebridade.
Um mundo onde só recebem aplausos, elogios, louvores, apologias, loas, encômios. Adoração total e incondicional.
Por isso, sofrem quando descobrem que podem ser amados por sua arte, por sua inteligência criativa, por suas músicas maravilhosas, por suas espetaculares interpretações; mas criticados, repudiados e até ridicularizados por suas posições políticas.
Vão para a rua e cantam Mamãe Eu Quero.
Como tudo o que fazem tem enorme destaque, ganham intensa cobertura. Acham que estão defendendo uma causa nobre, comandando as massas, liderando a revolução etc etc. Não entendem quando riem da cara deles.
Estão encantados, seduzidos, hipnotizados pela ideia de votar na Jararaca. Se entendessem que sua visibilidade excepcional também implica em responsabilidade maior pelo que dizem em público, estariam menos comprometidos.
Se tivessem menos certezas absolutas e mais dúvidas, estariam em companhia melhor.
Entre aqueles que votaram nos traidores que venceram, muitos estão tristes, desiludidos, arrasados pela perfídia criminosa dos que consideravam defensores do povo. Não sabem como reagir ou o que fazer.
Os conhecedores dessa arte popular dizem que boa parte da marcha foi inventada na hora da gravação, em 1936, por seus autores, Jararaca e Vicente Paiva.
Os que a repetem, hoje, exigindo Diretas Já, convocação roubada do original, autêntico, pensam mesmo é na volta da Jararaca.
São, na maioria, militantes ou simpatizantes dos pequenos partidos de esquerda. Aqueles mesmo que gritam, incitam à destruição e têm “a mão dilacerada”, na voz passiva, como se não estivessem segurando o rojão para jogar na cara dos que evitaram, mais uma vez, a incineração de patrimônio pertencente à nação.
Depois de gritar, cuspir, agredir, quebrar e incendiar, com a honrosa e elogiável exceção dos que só cantaram Mamãe Eu Quero, acabam todos fazendo a mesma coisa: votando na Jararaca ou se aliando ao partido da Jararaca.
Esta, evidentemente, é fiel ao imperativo dos répteis venenosos. Manda a massa de manobra pedir Diretas Já, mas prepara o bote para escapar ao serpentário de Curitiba.
Não é segredo para ninguém, tudo tem sido feito praticamente à luz do dia. O que explica que, fora a pelegada e os profissionais, pessoas inteligentes, educadas nas melhores escolas, com alto nível de espírito crítico e acesso a todo tipo de informação, incorram nesse tipo de auto-engano?
Não são ingênuas. E quem acredita nessa palavra depois que foi invocada pelo participante-chave no encontro que intoxicou o Brasil?
Não são iludidas. E, se fossem, teriam que arcar com a responsabilidade de fechar olhos, ouvidos e nariz à podridão, ao estrondo e ao fedor do que está acontecendo à nossa volta.
Seriam mal resolvidas? Reconhecer que defendem sabotadores de seus próprios ideais talvez seja difícil demais. Talvez afete egos despreparados para distinguir entre a auto-imagem e os sonhos que confiaram aos traidores do povo.
Artistas, em especial, são movidos por egos especialmente sensíveis. Querem encantar, seduzir, hipnotizar. Querem ser incondicionalmente amados, como todo mundo. Mas com a intensidade avassaladora dos que vivem na maior de todas as bolhas, o mundo único da celebridade.
Um mundo onde só recebem aplausos, elogios, louvores, apologias, loas, encômios. Adoração total e incondicional.
Por isso, sofrem quando descobrem que podem ser amados por sua arte, por sua inteligência criativa, por suas músicas maravilhosas, por suas espetaculares interpretações; mas criticados, repudiados e até ridicularizados por suas posições políticas.
Vão para a rua e cantam Mamãe Eu Quero.
Como tudo o que fazem tem enorme destaque, ganham intensa cobertura. Acham que estão defendendo uma causa nobre, comandando as massas, liderando a revolução etc etc. Não entendem quando riem da cara deles.
Estão encantados, seduzidos, hipnotizados pela ideia de votar na Jararaca. Se entendessem que sua visibilidade excepcional também implica em responsabilidade maior pelo que dizem em público, estariam menos comprometidos.
Se tivessem menos certezas absolutas e mais dúvidas, estariam em companhia melhor.
13 pontos para embasar qualquer análise de conjuntura
1 – O foco do poder não está na política, mas na economia. Quem comanda a sociedade é o complexo financeiro-empresarial com dimensões globais e conformações específicas locais.
2 – Os donos do poder não são os políticos. Estes são apenas instrumentos dos verdadeiros donos do poder.
3 – O verdadeiro exercício do poder é invisível. O que vemos, na verdade, é a construção planejada de uma narrativa fantasiosa com aparência de realidade para criar a sensação de participação consciente e cidadã dos que se informam pelos meios de comunicação tradicionais.
4 – Os grandes meios de comunicação não se constituem mais em órgãos de “imprensa”, ou seja, instituições autônomas, cujo objeto é a notícia, e que podem ser independentes ou, eventualmente, compradas ou cooptadas por interesses. Eles são, atualmente, grandes conglomerados econômicos que também compõem o complexo financeiro-empresarial que comanda o poder invisível. Portanto, participam do exercício invisível do poder utilizando seus recursos de formação de consciência e opinião.
5 – Os donos do poder não apoiam partidos ou políticos específicos. Sua tática é apoiar quem lhes convém e destruir quem lhes estorva. Isso muda de acordo com a conjuntura. O exercício real do poder não tem partido e sua única ideologia é a supremacia do mercado e do lucro.
6 – O complexo financeiro-empresarial global pode apostar ora em Lula, ora em um político do PSDB, ora em Temer, ora em um aventureiro qualquer da política. E pode destruir qualquer um desses de acordo com sua conveniência.
7 – Por isso, o exercício do poder no campo subjetivo, responsabilidade da mídia corporativa, em um momento demoniza Lula, em outro Dilma, e logo depois Cunha, Temer, Aécio, etc. Tudo faz parte de um grande jogo estratégico com cuidadosas análises das condições objetivas e subjetivas da conjuntura.
8 – O complexo financeiro-empresarial não tem opção partidária, não veste nenhuma camisa na política, nem defende pessoas. Sua intenção é tornar as leis e a administração do país totalmente favoráveis para suas metas de maximização dos lucros.
9 – Assim, os donos do poder não querem um governo ou outro à toa: eles querem, na conjuntura atual, a reforma na previdência, o fim das leis trabalhistas, a manutenção do congelamento do orçamento primário, os cortes de gastos sociais para o serviço da dívida, as privatizações e o alívio dos tributos para os mais ricos.
10 – Se a conjuntura indicar que Temer não é o melhor para isso, não hesitarão em rifá-lo. A única coisa que não querem é que o povo brasileiro decida sobre o destino de seu país.
11 – Portanto, cada notícia é um lance no jogo. Cada escândalo é um movimento tático. Analisar a conjuntura não é ler notícia. É especular sobre a estratégia que justifica cada movimento tático do complexo financeiro-empresarial (do qual a mídia faz parte), para poder reagir também de maneira estratégica.
12 – A queda de Temer pode ser uma coisa boa. Mas é um movimento tático em uma estratégia mais ampla de quem comanda o poder. O que realmente importa é o que virá depois.
13 – Lembremo-nos: eles são mais espertos. Por isso estão no poder.
Maurício Abdalla
2 – Os donos do poder não são os políticos. Estes são apenas instrumentos dos verdadeiros donos do poder.
3 – O verdadeiro exercício do poder é invisível. O que vemos, na verdade, é a construção planejada de uma narrativa fantasiosa com aparência de realidade para criar a sensação de participação consciente e cidadã dos que se informam pelos meios de comunicação tradicionais.
4 – Os grandes meios de comunicação não se constituem mais em órgãos de “imprensa”, ou seja, instituições autônomas, cujo objeto é a notícia, e que podem ser independentes ou, eventualmente, compradas ou cooptadas por interesses. Eles são, atualmente, grandes conglomerados econômicos que também compõem o complexo financeiro-empresarial que comanda o poder invisível. Portanto, participam do exercício invisível do poder utilizando seus recursos de formação de consciência e opinião.
6 – O complexo financeiro-empresarial global pode apostar ora em Lula, ora em um político do PSDB, ora em Temer, ora em um aventureiro qualquer da política. E pode destruir qualquer um desses de acordo com sua conveniência.
7 – Por isso, o exercício do poder no campo subjetivo, responsabilidade da mídia corporativa, em um momento demoniza Lula, em outro Dilma, e logo depois Cunha, Temer, Aécio, etc. Tudo faz parte de um grande jogo estratégico com cuidadosas análises das condições objetivas e subjetivas da conjuntura.
8 – O complexo financeiro-empresarial não tem opção partidária, não veste nenhuma camisa na política, nem defende pessoas. Sua intenção é tornar as leis e a administração do país totalmente favoráveis para suas metas de maximização dos lucros.
9 – Assim, os donos do poder não querem um governo ou outro à toa: eles querem, na conjuntura atual, a reforma na previdência, o fim das leis trabalhistas, a manutenção do congelamento do orçamento primário, os cortes de gastos sociais para o serviço da dívida, as privatizações e o alívio dos tributos para os mais ricos.
10 – Se a conjuntura indicar que Temer não é o melhor para isso, não hesitarão em rifá-lo. A única coisa que não querem é que o povo brasileiro decida sobre o destino de seu país.
11 – Portanto, cada notícia é um lance no jogo. Cada escândalo é um movimento tático. Analisar a conjuntura não é ler notícia. É especular sobre a estratégia que justifica cada movimento tático do complexo financeiro-empresarial (do qual a mídia faz parte), para poder reagir também de maneira estratégica.
12 – A queda de Temer pode ser uma coisa boa. Mas é um movimento tático em uma estratégia mais ampla de quem comanda o poder. O que realmente importa é o que virá depois.
13 – Lembremo-nos: eles são mais espertos. Por isso estão no poder.
Maurício Abdalla
Cracolândia de Bogotá: dúvidas depois de um ano de intervenção policial
Por fora, o que resta do Bronx, espécie de cracolândia da capital colombiana, é um amontoado de tijolos e ferros. A prefeitura de Bogotá demoliu 23 das 62 edificações que formavam um dos maiores mercados de droga da Colômbia. Dentro, nas poucas casas que continuam de pé, roupas, brinquedos, móveis, papéis, doses de drogas, cachimbos para fumo... guardam o forte odor que lembra que no centro da cidade havia uma entrada para o inferno.
Passou um ano desde que mais de 2.000 policiais desocuparam o Bronx. A chuva e o frio de Bogotá não podem ir contra os fantasmas dessas quatro ruas para onde, todos os dias, cerca de 3.000 pessoas iam em busca de todo tipo de drogas. Em uma jornada, as famílias que dominavam o negócio podiam chegar a embolsar 40.000 dólares (130.000 reais). A Força Pública levou quase duas décadas para pisar nesse território protegido pelos sayayines, a segurança privada dos narcos, e pelos policiais que sucumbiram à extorsão.
Toda essa população, consumidores e narcotraficantes, abandonou a área em 28 de maio de 2016 para se distribuir por setores vizinhos. O prefeito Enrique Peñalosa acabou com a chamada “república independente do crime”. Não há uma nova onda (o nome que recebem esses mercados na Colômbia) tão grande na cidade. O que se encontra em um passeio pelo centro de Bogotá são pequenos herdeiros. Ao contrário do que aconteceu aos milhares de indigentes do Bronx, os chefões que controlavam este mercado não foram detidos durante a operação policial.
A Secretária de Segurança de Bogotá emitiu um relatório no qual garantia que a criminalidade na área tinha caído 12% desde a intervenção. As lesões e os homicídios diminuíram 48%, mas os furtos se mantêm quase no mesmo nível. O EL PAÍS entrou em contato com Daniel Mejía, responsável pela pasta na cidade, e que tem o comando das polícias, mas não obteve resposta para poder entender como foram feitas essas estatísticas, já que em 22 de maio passado a polícia desarticulou o bando Los Reyes, procedente do Bronx. Esse grupo tinha cometido entre 10 e 25 assassinatos em um setor próximo, em nove meses, segundo as autoridades.
A prefeitura diz ter atendido “integralmente”, sem especificar o tipo de assistência, mais de 2.000 indigentes que disseram vir da onda em alguma das sete unidades distribuídas pela cidade. Esses lugares têm capacidade para cerca de 2.000 pessoas, segundo informação da Secretária de Integração Social de Bogotá. “Há três estatísticas de quantos moradores de rua há na cidade e todas são velhas”, afirma Alirio Uribe, representante na Câmara do Polo Democrático, um partido de esquerda, e crítico do modo como foi feita a intervenção no Bronx. “Há uma da prefeitura que contabilizou 10.000; outra do Ministério da Saúde, de 2015, que afirma serem 22.000; e uma terceira, de 20.000”. Números que superam a capacidade de ajuda integral dos albergues que, por ora, estão funcionando. “Em 2017 serão abertas 10 novas unidades, com 730 novas vagas e ênfase na formação para o trabalho”, promete o prefeito.
Uribe propõe a criação de “zonas humanitárias”, lugares onde os indigentes e dependentes de drogas possam dormir, comer, fazer sua higiene, estar sob vigilância e ser atendidos em condições de salubridade. “A droga poderia ser dispensada a eles”, diz. Os atuais centros de assistência não podem ministrar nenhum tipo de entorpecente nem metadona durante o tempo que atendem aos consumidores. “Concordamos em que algo tem de ser feito, mas não se vê a solução.” Onde seriam construídas essas zonas humanitárias? “Ninguém os quer, nem suas famílias nem seus amigos nem os vizinhos nem os comerciantes”, explica. “Eles são as vítimas, em algum lugar é preciso mantê-los.”
Três famílias resistem nos edifícios que ainda não foram derrubados no Bronx. A polícia que vigia há um ano a área, cercada 24 horas por dia, explica que alguns vigiam as propriedades para seus donos e outros negociam a venda com a prefeitura. “Neste setor serão desenvolvidas novas indústrias da Economia Laranja: criação, design, publicidade, brinquedos, artesanato, artes cênicas, artes visuais, música, meios audiovisuais e moda”, diz o prefeito Peñalosa. “Além disso, haverá o serviço do TransMilenio [o sistema de ônibus de Bogotá] e uma estação da primeira linha do metrô.”
Os primeiros guindastes que aparecerem no Bronx se encarregarão da construção de uma sede administrativa da Prefeitura que deverá estar concluída em 2019, segundo informam na Empresa de Renovação e Desenvolvimento Urbano (ERU), encarregada do projeto. “Já foram investidos 13 bilhões de pesos [cerca de 13 bilhões de reais] nestas ruas”, explicam. Em paralelo, serão abertos concursos públicos para atrair instituições educacionais para que construam no centro da cidade suas escolas de artes. Ao mesmo tempo, a ERU afirma que será fortalecida a economia existente: as dezenas de ferrarias e outras oficinas que povoam esta área. Um plano que pretende também fazer com que novos tipos de comércio e serviços cheguem a estes bairros.
Na prefeitura de Bogotá há a consciência de que essa renovação não será visível em curto ou médio prazo. Os críticos, como Alirio Uribe, veem nesse plano a entrada perfeita para “os grandes investidores”. O preço do metro quadrado no bairro de San Victorino, uma zona comercial perto do Bronx, é similar ao da região mais cara de Bogotá, no norte da cidade, onde residem as camadas mais ricas. “Estamos usando uma base cadastral para a avaliação dos hectares”, dizem na empresa de urbanismo da prefeitura. “Quanto aos demais preços tratados, seria falar de especulação.”
Passou um ano desde que mais de 2.000 policiais desocuparam o Bronx. A chuva e o frio de Bogotá não podem ir contra os fantasmas dessas quatro ruas para onde, todos os dias, cerca de 3.000 pessoas iam em busca de todo tipo de drogas. Em uma jornada, as famílias que dominavam o negócio podiam chegar a embolsar 40.000 dólares (130.000 reais). A Força Pública levou quase duas décadas para pisar nesse território protegido pelos sayayines, a segurança privada dos narcos, e pelos policiais que sucumbiram à extorsão.
Bronx de Bogotá |
A Secretária de Segurança de Bogotá emitiu um relatório no qual garantia que a criminalidade na área tinha caído 12% desde a intervenção. As lesões e os homicídios diminuíram 48%, mas os furtos se mantêm quase no mesmo nível. O EL PAÍS entrou em contato com Daniel Mejía, responsável pela pasta na cidade, e que tem o comando das polícias, mas não obteve resposta para poder entender como foram feitas essas estatísticas, já que em 22 de maio passado a polícia desarticulou o bando Los Reyes, procedente do Bronx. Esse grupo tinha cometido entre 10 e 25 assassinatos em um setor próximo, em nove meses, segundo as autoridades.
A prefeitura diz ter atendido “integralmente”, sem especificar o tipo de assistência, mais de 2.000 indigentes que disseram vir da onda em alguma das sete unidades distribuídas pela cidade. Esses lugares têm capacidade para cerca de 2.000 pessoas, segundo informação da Secretária de Integração Social de Bogotá. “Há três estatísticas de quantos moradores de rua há na cidade e todas são velhas”, afirma Alirio Uribe, representante na Câmara do Polo Democrático, um partido de esquerda, e crítico do modo como foi feita a intervenção no Bronx. “Há uma da prefeitura que contabilizou 10.000; outra do Ministério da Saúde, de 2015, que afirma serem 22.000; e uma terceira, de 20.000”. Números que superam a capacidade de ajuda integral dos albergues que, por ora, estão funcionando. “Em 2017 serão abertas 10 novas unidades, com 730 novas vagas e ênfase na formação para o trabalho”, promete o prefeito.
Uribe propõe a criação de “zonas humanitárias”, lugares onde os indigentes e dependentes de drogas possam dormir, comer, fazer sua higiene, estar sob vigilância e ser atendidos em condições de salubridade. “A droga poderia ser dispensada a eles”, diz. Os atuais centros de assistência não podem ministrar nenhum tipo de entorpecente nem metadona durante o tempo que atendem aos consumidores. “Concordamos em que algo tem de ser feito, mas não se vê a solução.” Onde seriam construídas essas zonas humanitárias? “Ninguém os quer, nem suas famílias nem seus amigos nem os vizinhos nem os comerciantes”, explica. “Eles são as vítimas, em algum lugar é preciso mantê-los.”
Três famílias resistem nos edifícios que ainda não foram derrubados no Bronx. A polícia que vigia há um ano a área, cercada 24 horas por dia, explica que alguns vigiam as propriedades para seus donos e outros negociam a venda com a prefeitura. “Neste setor serão desenvolvidas novas indústrias da Economia Laranja: criação, design, publicidade, brinquedos, artesanato, artes cênicas, artes visuais, música, meios audiovisuais e moda”, diz o prefeito Peñalosa. “Além disso, haverá o serviço do TransMilenio [o sistema de ônibus de Bogotá] e uma estação da primeira linha do metrô.”
Os primeiros guindastes que aparecerem no Bronx se encarregarão da construção de uma sede administrativa da Prefeitura que deverá estar concluída em 2019, segundo informam na Empresa de Renovação e Desenvolvimento Urbano (ERU), encarregada do projeto. “Já foram investidos 13 bilhões de pesos [cerca de 13 bilhões de reais] nestas ruas”, explicam. Em paralelo, serão abertos concursos públicos para atrair instituições educacionais para que construam no centro da cidade suas escolas de artes. Ao mesmo tempo, a ERU afirma que será fortalecida a economia existente: as dezenas de ferrarias e outras oficinas que povoam esta área. Um plano que pretende também fazer com que novos tipos de comércio e serviços cheguem a estes bairros.
Na prefeitura de Bogotá há a consciência de que essa renovação não será visível em curto ou médio prazo. Os críticos, como Alirio Uribe, veem nesse plano a entrada perfeita para “os grandes investidores”. O preço do metro quadrado no bairro de San Victorino, uma zona comercial perto do Bronx, é similar ao da região mais cara de Bogotá, no norte da cidade, onde residem as camadas mais ricas. “Estamos usando uma base cadastral para a avaliação dos hectares”, dizem na empresa de urbanismo da prefeitura. “Quanto aos demais preços tratados, seria falar de especulação.”
segunda-feira, 29 de maio de 2017
Futuro certo
Não é verdade que nosso passado seja incerto. Desconhecido, talvez. Falso, provavelmente. Fraudulento, certamente. Um país que acha que foi descoberto por acidente, não se pode mesmo levar a sério.
Desde a chegada das caravelas, a gente vem se auto enganando. A começar pelos elogios de Caminha. O Brasil foi se vendo, inventando e contando sua história como se tudo o que aconteceu e que acontecer seja sempre uma consequência das circunstancias.
Nossa história não é soma de mentiras combinadas. É simplesmente uma sucessão de fraudes. As vezes paralelas. As vezes interligadas. Não importa. Sempre fraudes. E a gente se acostumou com elas. Tanto que não mais as reconhecemos. Nem mesmo em face de suas consequências.
Já usamos crimes passionais como desculpa para golpe. Já chamamos revolução de golpe. E as vezes chamamos a aplicação da constituição de golpe. Vai entender. A gente sempre está a tentar distorcer os eventos de maneira a se encaixarem em narrativas incoerentes, ilógicas, e, acima de tudo, inúteis.
E a vida segue. Mesmo com cenário desolador. Grandes sucessos empresariais frequentemente são resultado de fraudes. Nada mais. Campeões nacionais são construídos azeitando relações privilegiada com o Estado, e tendo como combustível a mistura toxica da flexibilidade moral com o acesso fácil a bolsa da viúva. Apenas para entrar em colapso na areia movediça da fraude.
Alardeamos nossa capacidade analítica. Passamos a vida elogiando corpos técnicos autoproclamados competentes. Mas incapazes de identificar a existência do nada por trás das ações, dos investimentos, e das estratégias, públicas e privadas. No frigir dos ovo, apenas um punhado de corporações incapazes de ou desinteressadas em proteger os interesses de acionistas, pagadores de impostos e cidadãos.
O passado, portanto, não é incerto. Apenas fraudulento. O presente, dramático. E o futuro, lamentavelmente trágico. Resultado natural de um amontoado de fraudes.
Desde a chegada das caravelas, a gente vem se auto enganando. A começar pelos elogios de Caminha. O Brasil foi se vendo, inventando e contando sua história como se tudo o que aconteceu e que acontecer seja sempre uma consequência das circunstancias.
Já usamos crimes passionais como desculpa para golpe. Já chamamos revolução de golpe. E as vezes chamamos a aplicação da constituição de golpe. Vai entender. A gente sempre está a tentar distorcer os eventos de maneira a se encaixarem em narrativas incoerentes, ilógicas, e, acima de tudo, inúteis.
E a vida segue. Mesmo com cenário desolador. Grandes sucessos empresariais frequentemente são resultado de fraudes. Nada mais. Campeões nacionais são construídos azeitando relações privilegiada com o Estado, e tendo como combustível a mistura toxica da flexibilidade moral com o acesso fácil a bolsa da viúva. Apenas para entrar em colapso na areia movediça da fraude.
Alardeamos nossa capacidade analítica. Passamos a vida elogiando corpos técnicos autoproclamados competentes. Mas incapazes de identificar a existência do nada por trás das ações, dos investimentos, e das estratégias, públicas e privadas. No frigir dos ovo, apenas um punhado de corporações incapazes de ou desinteressadas em proteger os interesses de acionistas, pagadores de impostos e cidadãos.
O passado, portanto, não é incerto. Apenas fraudulento. O presente, dramático. E o futuro, lamentavelmente trágico. Resultado natural de um amontoado de fraudes.
O autor da crise
A escassez de lideranças políticas no Brasil é tão grave que permite que alguém como o chefão petista Lula da Silva ainda apareça como um candidato viável à Presidência da República, mesmo sendo ele o responsável direto, em todos os aspectos, pela devastadora crise que o País atravessa.
A esta altura, já deveria estar claro para todos que a passagem de Lula pelo poder, seja pessoalmente, seja por meio de sua criatura desengonçada, Dilma Rousseff, ao longo de penosos 13 anos, deixou um rastro de destruição econômica, política e moral sem paralelo em nossa história. Mesmo assim, para pasmo dos que não estão hipnotizados pelo escancarado populismo lulopetista, o demiurgo de Garanhuns não só se apresenta novamente como postulante ao Palácio do Planalto, como saiu a dizer que “o PT mostrou como se faz para tirar o País da crise” e que, “se a elite não tem condição de consertar esse País, nós temos”. Para coroar o cinismo, Lula também disse que “hoje o PT pode inclusive ensinar a combater a corrupção”. Só se for fazendo engenharia reversa.
Não é possível que a sociedade civil continue inerte diante de tamanho descaramento. Lula não pode continuar, sem ser contestado, a se oferecer como remédio para o mal que ele mesmo causou.
Tudo o que de ruim se passa no Brasil converge para Lula, o cérebro por trás do descomunal esquema de corrupção que assaltou a Petrobrás, que loteou o BNDES para empresários camaradas, que desfalcou os fundos de pensão das estatais, que despejou bilhões em obras superfaturadas que muitas vezes nem saíram do papel e que abastardou a política parlamentar com pagamentos em dinheiro feitos em quartos de hotel em Brasília.
Lula também é o cérebro por trás da adulteração da democracia ocorrida na eleição de 2014, vencida por Dilma Rousseff à base de dinheiro desviado de estatais e de golpes abaixo da linha da cintura na campanha, dividindo o País em “nós” e “eles”. Lula tem de ser igualmente responsabilizado pela catastrófica administração de Dilma, uma amadora que nos legou dois anos de recessão, a destruição do mercado de trabalho, a redução da renda, a ruína da imagem do Brasil no exterior e a perda de confiança dos brasileiros em geral no futuro do País.
Não bastasse essa extensa folha corrida, Lula é também o responsável pelo tumulto que o atual governo enfrenta, ao soltar seus mastins tanto para obstruir os trabalhos do Congresso na base até mesmo da violência física, impedindo-o de votar medidas importantes para o País, como para estimular confrontos com as forças de segurança em manifestações, com o objetivo de provocar a reação policial e, assim, transformar baderneiros em “vítimas da repressão”. Enquanto isso, os lulopetistas saem a vociferar por aí que o presidente Michel Temer foi “autoritário” ao convocar as Forças Armadas para garantir a segurança de Ministérios incendiados por essa turba. Houve até mesmo quem acusasse Temer de pretender restabelecer a ditadura.
Para Lula, tudo é mero cálculo político, ainda que, na sua matemática destrutiva, o País seja o grande prejudicado. Sua estratégia nefasta envenena o debate político, conduzindo-o para a demagogia barata, a irresponsabilidade e o açodamento. No momento em que o País tinha de estar inteiramente dedicado à discussão adulta de saídas para a crise, Lula empesteia o ambiente com suas lorotas caça-votos. “O PT ensinou como faz: é só criar milhões de empregos e aumentar salários”, discursou ele há alguns dias, em recente evento de sua campanha eleitoral fora de hora. Em outra oportunidade, jactou-se: “Se tem uma coisa que eu sei fazer na vida é cuidar das pessoas mais humildes, é incluir o pobre no Orçamento”. Para ele, o governo de Michel Temer “está destruindo a vida do brasileiro”, pois “a renda está caindo, não tem emprego e, o que é pior, o povo não tem esperança”.
É esse homem que, ademais de ter seis inquéritos policiais nas costas, pretende voltar a governar o Brasil. Que Deus – ou a Justiça – nos livre de tamanha desgraça.
O monstro terno
A realidade política brasileira tem sido comparada a um filme de terror. E com razão, porque, não importa para que lado se olhe, o cenário é de porões de castelos assombrados, caninos ensanguentados, homens peludos, mortos que caminham e mulheres de maus bofes. Para completar, vários dos nossos políticos têm o "physique du rôle" para interpretar Drácula, o Lobisomem, Norman Bates, Freddy Krueger e até Minnie Castevet, a vizinha de apartamento de "O Bebê de Rosemary".
Em muitas dessas comparações, as pessoas citam Boris Karloff —como se, por ter feito os papéis-título em "Frankenstein" (1931) e "A Múmia" (1932), ele fosse um símbolo do horror. Mas, olhe, é uma injustiça. Boris Karloff apenas viveu aqueles papéis, e os dois filmes ficaram entre os maiores do gênero. Na vida real, Karloff (1887-1969) foi um dos homens mais queridos de Hollywood.
Ele era, na verdade, inglês, com formação teatral, fã de Joseph Conrad e amigo de escritores e dramaturgos. Devia ser um grande ator, já que, conhecido por sua suavidade e ternura para com os amigos, os filmes só o queriam para viver loucos, drogados, carrascos, sádicos e até violadores de túmulos.
Karloff trabalhava em Hollywood, mas mantinha um apartamento em Nova York, no —logo onde— edifício Dakota, onde se passa "O Bebê de Rosemary" e onde John Lennon seria morto em 1981. No Halloween, Karloff deixava doces e balas à porta dos apartamentos do Dakota onde moravam crianças –adorava-as e não queria que tivessem medo dele. Para elas, gravou disquinhos infantis e trabalhou em "Alice no País das Maravilhas" e "Peter Pan" na Broadway.
Karloff dizia que, ao morrer, queria ser enterrado maquiado de Frankenstein. Não foi possível. Nossos políticos não terão esse problema — bastará que sejam enterrados como si mesmos.
Em muitas dessas comparações, as pessoas citam Boris Karloff —como se, por ter feito os papéis-título em "Frankenstein" (1931) e "A Múmia" (1932), ele fosse um símbolo do horror. Mas, olhe, é uma injustiça. Boris Karloff apenas viveu aqueles papéis, e os dois filmes ficaram entre os maiores do gênero. Na vida real, Karloff (1887-1969) foi um dos homens mais queridos de Hollywood.
Karloff trabalhava em Hollywood, mas mantinha um apartamento em Nova York, no —logo onde— edifício Dakota, onde se passa "O Bebê de Rosemary" e onde John Lennon seria morto em 1981. No Halloween, Karloff deixava doces e balas à porta dos apartamentos do Dakota onde moravam crianças –adorava-as e não queria que tivessem medo dele. Para elas, gravou disquinhos infantis e trabalhou em "Alice no País das Maravilhas" e "Peter Pan" na Broadway.
Karloff dizia que, ao morrer, queria ser enterrado maquiado de Frankenstein. Não foi possível. Nossos políticos não terão esse problema — bastará que sejam enterrados como si mesmos.
Desemprego e pensamento mágico
A partir de leitura muito extremada de Keynes, a heterodoxia supõe um mundo em que, na prática, não há restrição de recursos. A suposição de desemprego permanente de recursos produtivos permite, se as políticas de estímulo à demanda forem adotadas, que a economia cresça sem limites.
Para essa tradição de pensamento, o sucesso do leste asiático não é fruto das elevadíssimas taxas de poupança, sempre acima de 35% do PIB, das prolongadíssimas jornadas de trabalho e dos melhores sistemas educacionais do mundo.
Para a heterodoxia brasileira, o sucesso do leste asiático deve-se ao BNDES deles e à capacidade que esse tipo de intervenção teria de alocar a poupança financeira aos setores "portadores de futuro", seja lá o que isso signifique. O escândalo do JBS, longe de ser caso isolado, sugere que mesmo nossos heterodoxos não sabem bem o que isso significa.
Reza a lógica heterodoxa: pau na máquina que o crescimento tudo resolve. Evidentemente, a heterodoxia brasileira não entende os motivos de os juros reais serem elevados, apesar de a inflação ser muito alta.
O pensamento mágico da heterodoxia brasileira tem sido particularmente alimentado pelo recente período de queda do desemprego, anterior à recessão. Segundo a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE, de 2003 até 2014 o desemprego recuou de 12,5% para 5%, expressiva queda de 7,5 pontos percentuais.
A política de pau na máquina teria sido responsável pela queda do desemprego.
A PME, pesquisa que foi descontinuada há pouco mais de um ano, cobre as seis principais regiões metropolitanas —Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador e Recife—, ou 25% do mercado de trabalho nacional.
Desde 2012, temos a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), de abrangência nacional, que é trimestral e substitui a PME.
Adicionalmente temos, desde 1981, a Pnad anual, que apresenta fotografia do mercado de trabalho nacional para meses de setembro.
Meus colegas do Ibre Bruno Ottoni Vaz e Tiago Barreira, cruzando os dados da PME, da Pnad anual e da PNADC, construíram uma série da taxa de desemprego a partir de setembro de 1992 para todo o território nacional, harmonizada com a metodologia da PNADC.
O resultado é muito menos animador. Em vez da redução de 7,5 pontos percentuais, houve, entre 2003 e 2014, queda bem menos expressiva, de 3,2 pontos percentuais (de 10,0% para 6,8%).
Além disso, metade da queda, ou 1,6 ponto percentual, ocorreu no primeiro mandato da presidente Dilma (de 8,4% em 2010 para 6,8% em 2014). O problema é que o regime de política econômica de Dilma foi claramente não sustentável: juros artificialmente baixos, tarifas represadas, deficit público e externo elevados, inflação crescente etc.
Nos oito anos do presidente Lula, com toda a ajuda da economia mundial, a taxa de desemprego reduziu-se em 1,6 ponto percentual (de 10,0% em 2003 para 8,4% em 2010) e, na média, foi ligeiramente pior do que o período FHC (9,2% em Lula ante 8,9% com FHC).
Desde a estabilização econômica, em 1995, a taxa de desemprego cresceu muito e só caiu para níveis relativamente baixos, como o de 6,8% em 2014, quando comprometemos o futuro com políticas populistas.
Urge aprovar a reforma trabalhista para conseguirmos, de forma sustentável, reduzir o desemprego.
Riqueza não é só dinheiro
Se um rato morto me disser
Ao contrário do que afirmei na minha última coluna, já não deverei assistir com a minha filha, Vera Regina, ao show de Ariana Grande, previsto para o próximo dia 11 de junho, em Lisboa. A jovem cantora norte-americana suspendeu a digressão europeia, na sequência do terrível atentado, em Manchester, que matou 22 pessoas, entre as quais várias crianças. Como a maior parte dos fãs de Ariana, Vera é muito jovem. Tem apenas 12 anos. Tentei ler um artigo intitulado “Como explicar o atentado de Manchester a crianças”, mas não consegui terminar. Não há como explicar aquele horror a crianças — nem sequer a adultos.
Ansiamos por explicações. Pior do que o horror é não sermos capazes de o compreender. Acreditamos que se conseguirmos explicar a escuridão esta se dissipará para sempre. Contudo, não só faz mais escuro no interior de certas pessoas do que nos confins do universo, como a natureza dessa escuridão é infinitamente mais misteriosa. Por outro lado, mesmo que seja possível compreender as razões profundas dos terroristas, sejam eles fundamentalistas islâmicos ou cristãos, de direita ou de esquerda, teremos de continuar a lidar com a pavorosa insensatez dos seus atos.
Há uma frase de Eça de Queirós, n'"A correspondência de Fradique Mendes" da qual me recordo com frequência: “Se um rato morto me disser, cheiro mal por isto e por aquilo e sobretudo porque apodreci, eu nem por isso deixo de o varrer do meu quarto”.
Compreender não significa aceitar. É preciso tentar compreender, sem dúvida, mas não podemos deixar de varrer o quarto.
O terrorismo não foi inventado ontem. Tampouco os terroristas suicidas. No século X, a Ordem dos Assassinos de Hassan i Sabbah, o Velho-da-Montanha, transformou o assassinato político e religioso numa complexa e imaginativa forma de arte. A palavra assassino, segundo uma lenda muito divulgada, embora jamais comprovada, faria referência ao fato de esses loucos se intoxicarem com haxixe antes de lançarem os seus ataques suicidas. No século XIX, os anarquistas russos inventaram o homem-bomba. No século XX surgiram os pilotos kamikazes japoneses. Muito antes, milhares de anos antes, já se assassinavam crianças a pretexto de motivações diversas.
A única consolação que podemos ter, olhando para os horrores do passado, é a certeza de que vivemos numa época um pouquinho menos cruel e violenta. Evidentemente, sempre que ocorre um atentado terrorista, assalta-nos a dúvida de que isso seja verdade, ou seja, de que a Humanidade se aperfeiçoou, ética e moralmente, ao longo dos séculos. Acreditem: melhoramos. O número de guerras tem vindo a diminuir, de forma consistente, nas últimas décadas. A tortura também, bem como a exploração infantil e outras inúmeras perversões sociais.
Ainda assim, é claro, aconteceu Manchester, e, muito provavelmente, continuarão a ocorrer ataques semelhantes no Ocidente ao longo dos próximos anos.
O pior terrorista não é o que se faz explodir, assassinando ao mesmo tempo pessoas inocentes. São aqueles que se escondem por detrás do gesto suicida. Esses são os verdadeiros canalhas esféricos, para utilizar uma expressão que, não obstante a utilidade e atualidade, me parece ter caído em desuso. Tal como uma esfera é sempre uma esfera sob qualquer ângulo que se examine, um canalha esférico é sempre um canalha, qualquer que seja a perspectiva.
Fico pensando no que pensam os homens secretos, os tais canalhas esféricos, que preparam os atentados terroristas. Tento imaginar-me na pele deles: vejo-os conversando, enquanto tomam chá. Debatendo uns com os outros, amenamente, a qualidade dos diferentes tipos de explosivos, e dos diversos tipos de chá. “Quantas crianças pode matar um quilo desse explosivo?” — Pergunta um. O colega esclarece-o. Discutem qual será a melhor hora para o assassino se fazer explodir, maximizando o número de vítimas. A seguir o primeiro dirigente terrorista queixa-se de dores nas articulações, não se tem sentido muito bem, talvez ande comendo demasiada carne vermelha, e o segundo aconselha-o a visitar um massagista famoso por operar milagres. Retomam os assuntos de trabalho. Bebericam o chá: quem escolherão para se fazer explodir? Um sugere W., um rapaz inteligente, porém tristonho, cuja noiva morreu na Síria, durante um ataque americano. O outro prefere K., filho de um sujeito a quem deve favores. Discutem durante breves minutos qual a melhor opção. W. é gordo e forte, conseguirá transportar mais quilos de explosivos, despertando menos suspeitas. K. é mais determinado. Nunca os deixará ficar mal. Optam por W., e, tendo decidido isso, passam a discutir futebol.
Tento examinar o espírito desses homens por todos os ângulos. Faço um esforço enorme, mas não encontro neles nenhuma luz de humanidade. E isso dói.
José Eduardo Agualusa
Ansiamos por explicações. Pior do que o horror é não sermos capazes de o compreender. Acreditamos que se conseguirmos explicar a escuridão esta se dissipará para sempre. Contudo, não só faz mais escuro no interior de certas pessoas do que nos confins do universo, como a natureza dessa escuridão é infinitamente mais misteriosa. Por outro lado, mesmo que seja possível compreender as razões profundas dos terroristas, sejam eles fundamentalistas islâmicos ou cristãos, de direita ou de esquerda, teremos de continuar a lidar com a pavorosa insensatez dos seus atos.
Há uma frase de Eça de Queirós, n'"A correspondência de Fradique Mendes" da qual me recordo com frequência: “Se um rato morto me disser, cheiro mal por isto e por aquilo e sobretudo porque apodreci, eu nem por isso deixo de o varrer do meu quarto”.
Compreender não significa aceitar. É preciso tentar compreender, sem dúvida, mas não podemos deixar de varrer o quarto.
A única consolação que podemos ter, olhando para os horrores do passado, é a certeza de que vivemos numa época um pouquinho menos cruel e violenta. Evidentemente, sempre que ocorre um atentado terrorista, assalta-nos a dúvida de que isso seja verdade, ou seja, de que a Humanidade se aperfeiçoou, ética e moralmente, ao longo dos séculos. Acreditem: melhoramos. O número de guerras tem vindo a diminuir, de forma consistente, nas últimas décadas. A tortura também, bem como a exploração infantil e outras inúmeras perversões sociais.
Ainda assim, é claro, aconteceu Manchester, e, muito provavelmente, continuarão a ocorrer ataques semelhantes no Ocidente ao longo dos próximos anos.
O pior terrorista não é o que se faz explodir, assassinando ao mesmo tempo pessoas inocentes. São aqueles que se escondem por detrás do gesto suicida. Esses são os verdadeiros canalhas esféricos, para utilizar uma expressão que, não obstante a utilidade e atualidade, me parece ter caído em desuso. Tal como uma esfera é sempre uma esfera sob qualquer ângulo que se examine, um canalha esférico é sempre um canalha, qualquer que seja a perspectiva.
Fico pensando no que pensam os homens secretos, os tais canalhas esféricos, que preparam os atentados terroristas. Tento imaginar-me na pele deles: vejo-os conversando, enquanto tomam chá. Debatendo uns com os outros, amenamente, a qualidade dos diferentes tipos de explosivos, e dos diversos tipos de chá. “Quantas crianças pode matar um quilo desse explosivo?” — Pergunta um. O colega esclarece-o. Discutem qual será a melhor hora para o assassino se fazer explodir, maximizando o número de vítimas. A seguir o primeiro dirigente terrorista queixa-se de dores nas articulações, não se tem sentido muito bem, talvez ande comendo demasiada carne vermelha, e o segundo aconselha-o a visitar um massagista famoso por operar milagres. Retomam os assuntos de trabalho. Bebericam o chá: quem escolherão para se fazer explodir? Um sugere W., um rapaz inteligente, porém tristonho, cuja noiva morreu na Síria, durante um ataque americano. O outro prefere K., filho de um sujeito a quem deve favores. Discutem durante breves minutos qual a melhor opção. W. é gordo e forte, conseguirá transportar mais quilos de explosivos, despertando menos suspeitas. K. é mais determinado. Nunca os deixará ficar mal. Optam por W., e, tendo decidido isso, passam a discutir futebol.
Tento examinar o espírito desses homens por todos os ângulos. Faço um esforço enorme, mas não encontro neles nenhuma luz de humanidade. E isso dói.
José Eduardo Agualusa
Juruna mostrou como se faz
Em outubro de 1984, o dublê de cacique e deputado Mario Juruna convocou a imprensa para fazer uma denúncia contra si mesmo. Ele havia recebido propina do empresário Calim Eid para votar em Paulo Maluf no Colégio Eleitoral. O xavante se disse arrependido e foi ao banco devolver 30 milhões de cruzeiros. A imagem do índio engravatado atrás de uma pilha de dinheiro resumiu o vale-tudo que embalou a sucessão do general Figueiredo.
Como Tancredo Neves venceu a disputa, ninguém quis investigar as suspeitas de suborno e caixa dois. Eid seguiu carreira como operador do malufismo. Juruna ficou desacreditado e não conseguiu se reeleger.
Mais de três décadas depois, o Brasil discute a possível escolha de outro presidente sem o voto popular. O senador Tasso Jereissati e o deputado Rodrigo Maia despontam como favoritos numa eleição indireta.
Políticos da situação e empresários não aceitam falar em diretas. A aliança que apoiava Michel Temer quer ungir um candidato comprometido com as reformas liberais. A ordem é mudar o presidente sem mudar a alma do governo em decomposição.
Em meio às conversas, articula-se um grande acordo para salvar investigados da Lava Jato. Entre as ideias mais cotadas, estão a anistia ao caixa dois e a concessão de algum tipo de imunidade a Temer, que poderia se estender a outros ex-presidentes.
Pelo roteiro das indiretas, o próximo inquilino do Planalto será escolhido por 513 deputados e 81 senadores. Boa parte deles é investigada sob suspeita de vender projetos de lei, MPs e outras mercadorias menos valiosas que a cadeira presidencial.
Nas últimas vezes que a turma elegeu os chefes da Câmara e do Senado, venceram Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira. Todos delatados na Lava Jato.
Além de mostrar o que acontece numa eleição indireta, Juruna ensinou a usar o gravador em conversas com políticos. O cacique era atrapalhado, mas sabia das coisas.
Como Tancredo Neves venceu a disputa, ninguém quis investigar as suspeitas de suborno e caixa dois. Eid seguiu carreira como operador do malufismo. Juruna ficou desacreditado e não conseguiu se reeleger.
Políticos da situação e empresários não aceitam falar em diretas. A aliança que apoiava Michel Temer quer ungir um candidato comprometido com as reformas liberais. A ordem é mudar o presidente sem mudar a alma do governo em decomposição.
Em meio às conversas, articula-se um grande acordo para salvar investigados da Lava Jato. Entre as ideias mais cotadas, estão a anistia ao caixa dois e a concessão de algum tipo de imunidade a Temer, que poderia se estender a outros ex-presidentes.
Pelo roteiro das indiretas, o próximo inquilino do Planalto será escolhido por 513 deputados e 81 senadores. Boa parte deles é investigada sob suspeita de vender projetos de lei, MPs e outras mercadorias menos valiosas que a cadeira presidencial.
Nas últimas vezes que a turma elegeu os chefes da Câmara e do Senado, venceram Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Rodrigo Maia e Eunício Oliveira. Todos delatados na Lava Jato.
Além de mostrar o que acontece numa eleição indireta, Juruna ensinou a usar o gravador em conversas com políticos. O cacique era atrapalhado, mas sabia das coisas.
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