segunda-feira, 29 de maio de 2017

Se um rato morto me disser

Ao contrário do que afirmei na minha última coluna, já não deverei assistir com a minha filha, Vera Regina, ao show de Ariana Grande, previsto para o próximo dia 11 de junho, em Lisboa. A jovem cantora norte-americana suspendeu a digressão europeia, na sequência do terrível atentado, em Manchester, que matou 22 pessoas, entre as quais várias crianças. Como a maior parte dos fãs de Ariana, Vera é muito jovem. Tem apenas 12 anos. Tentei ler um artigo intitulado “Como explicar o atentado de Manchester a crianças”, mas não consegui terminar. Não há como explicar aquele horror a crianças — nem sequer a adultos.

Ansiamos por explicações. Pior do que o horror é não sermos capazes de o compreender. Acreditamos que se conseguirmos explicar a escuridão esta se dissipará para sempre. Contudo, não só faz mais escuro no interior de certas pessoas do que nos confins do universo, como a natureza dessa escuridão é infinitamente mais misteriosa. Por outro lado, mesmo que seja possível compreender as razões profundas dos terroristas, sejam eles fundamentalistas islâmicos ou cristãos, de direita ou de esquerda, teremos de continuar a lidar com a pavorosa insensatez dos seus atos.

Há uma frase de Eça de Queirós, n'"A correspondência de Fradique Mendes" da qual me recordo com frequência: “Se um rato morto me disser, cheiro mal por isto e por aquilo e sobretudo porque apodreci, eu nem por isso deixo de o varrer do meu quarto”.

Compreender não significa aceitar. É preciso tentar compreender, sem dúvida, mas não podemos deixar de varrer o quarto.

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O terrorismo não foi inventado ontem. Tampouco os terroristas suicidas. No século X, a Ordem dos Assassinos de Hassan i Sabbah, o Velho-da-Montanha, transformou o assassinato político e religioso numa complexa e imaginativa forma de arte. A palavra assassino, segundo uma lenda muito divulgada, embora jamais comprovada, faria referência ao fato de esses loucos se intoxicarem com haxixe antes de lançarem os seus ataques suicidas. No século XIX, os anarquistas russos inventaram o homem-bomba. No século XX surgiram os pilotos kamikazes japoneses. Muito antes, milhares de anos antes, já se assassinavam crianças a pretexto de motivações diversas.

A única consolação que podemos ter, olhando para os horrores do passado, é a certeza de que vivemos numa época um pouquinho menos cruel e violenta. Evidentemente, sempre que ocorre um atentado terrorista, assalta-nos a dúvida de que isso seja verdade, ou seja, de que a Humanidade se aperfeiçoou, ética e moralmente, ao longo dos séculos. Acreditem: melhoramos. O número de guerras tem vindo a diminuir, de forma consistente, nas últimas décadas. A tortura também, bem como a exploração infantil e outras inúmeras perversões sociais.

Ainda assim, é claro, aconteceu Manchester, e, muito provavelmente, continuarão a ocorrer ataques semelhantes no Ocidente ao longo dos próximos anos.

O pior terrorista não é o que se faz explodir, assassinando ao mesmo tempo pessoas inocentes. São aqueles que se escondem por detrás do gesto suicida. Esses são os verdadeiros canalhas esféricos, para utilizar uma expressão que, não obstante a utilidade e atualidade, me parece ter caído em desuso. Tal como uma esfera é sempre uma esfera sob qualquer ângulo que se examine, um canalha esférico é sempre um canalha, qualquer que seja a perspectiva.

Fico pensando no que pensam os homens secretos, os tais canalhas esféricos, que preparam os atentados terroristas. Tento imaginar-me na pele deles: vejo-os conversando, enquanto tomam chá. Debatendo uns com os outros, amenamente, a qualidade dos diferentes tipos de explosivos, e dos diversos tipos de chá. “Quantas crianças pode matar um quilo desse explosivo?” — Pergunta um. O colega esclarece-o. Discutem qual será a melhor hora para o assassino se fazer explodir, maximizando o número de vítimas. A seguir o primeiro dirigente terrorista queixa-se de dores nas articulações, não se tem sentido muito bem, talvez ande comendo demasiada carne vermelha, e o segundo aconselha-o a visitar um massagista famoso por operar milagres. Retomam os assuntos de trabalho. Bebericam o chá: quem escolherão para se fazer explodir? Um sugere W., um rapaz inteligente, porém tristonho, cuja noiva morreu na Síria, durante um ataque americano. O outro prefere K., filho de um sujeito a quem deve favores. Discutem durante breves minutos qual a melhor opção. W. é gordo e forte, conseguirá transportar mais quilos de explosivos, despertando menos suspeitas. K. é mais determinado. Nunca os deixará ficar mal. Optam por W., e, tendo decidido isso, passam a discutir futebol.

Tento examinar o espírito desses homens por todos os ângulos. Faço um esforço enorme, mas não encontro neles nenhuma luz de humanidade. E isso dói.

José Eduardo Agualusa

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