Dado a tirar vantagem em tudo, e em encher os bolsos para não ter que gastar, Bolsonaro estava careca de saber que um ex-presidente da República não tem direito a carro blindado por conta do Estado.
Em abril de 2021, Lula pediu que o seu fosse um carro blindado, e acertadamente o governo Bolsonaro negou. Não está previsto na Lei no 7.474, de 8 de maio de 1986, que regula a questão.
Então, por que mal desembarcou no Brasil depois de 89 dias com tudo pago e casa de graça nos Estados Unidos, Bolsonaro foi logo reclamando da falta de um carro blindado à sua disposição?
Não foi por ignorância, foi para fazer negócio. Três empresas do ramo, segundo Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação, correram a oferecer a ele gratuitamente um carro blindado.
Para elas, nada mal poder alardear que um dos seus carros blindados serve a um ex-presidente da República. Foi também assim que Bolsonaro sempre pôde dispor de motos para passear.
Não sei por que, mas isso e outras coisas como presentes recebidos por baixo dos panos sempre me remetem ao caso das rachadinhas. Família de espertos, os Bolsonaro.
sexta-feira, 31 de março de 2023
Escutem e não esqueçam
Nesta sexta-feira 31 de março, quando se completam 59 anos do golpe que durou 21 anos, o melhor é não esquecer e expiar a dor, ouvindo ao vivo o discurso de Jango Goulart na Central do Brasil anunciando as reformas de base – reformas agrária, tributária, eleitoral, além da nacionalização das refinarias, a regulamentação dos preços gerais e dos aluguéis.
Como ouvir o discurso que seria a sentença de morte do presidente desde 1961 ao incitar todos a “lutar com todas as forças” pela reforma? Um discurso que também foi numa sexta-feira, 13 de março de 1964, sem prever que dezoito dias depois, no fatídico 31 de março — ou talvez 1º de abril — os militares tomariam o poder frustrando políticos como Carlos Lacerda, o governador da Guanabara que não se conformou, como prova o áudio do jingle anunciando Lacerda para presidente em 1965.
Esses tesouros estão inseridos na exposição sobre “As Cantoras e a História do Rádio no Brasil”, entre 250 fotos, 114 objetos e recursos sonoros e audiovisuais. Nesse passeio pela linha do tempo que o rádio construiu no Brasil, principalmente entre as décadas de 1920 e 1960, está a história viva que todos os brasileiros, professores e alunos deveriam buscar até 25 de junho, no Farol Santander em São Paulo, rua João Brícola: o rádio como receptor da História.
Porque, emendando a fala de Getúlio, o áudio remete ao locutor anunciando que as tropas do II Exército, com o General Kruel à frente, já sitiaram o Estado da Guanabara, e que a presidência da República está vaga para ser ocupada pelo presidente da Câmara. Ranieri Mazzilli assume de fato no dia 2 de abril. Frustração: no dia seguinte, os militares desencadeiam a onda de prisões de líderes políticos, como o governador de Pernambuco Miguel Arraes, de dirigentes sindicais e camponeses, enquanto Jango se refugia no Uruguai. E no dia 9 de abril, a troica de militares que governa de fato o Brasil, composta pelo general Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Rademaker e o Tenente-Brigadeiro Correia de Melo, decreta o Ato Institucional no 1º. Com uma anunciada eleição indireta para presidente da República em 1966, que nunca aconteceu, começa o circo de horrores que levaria à tortura, desaparecimento, sequestros e morte violenta de milhares de brasileiros.
Como ouvir o discurso que seria a sentença de morte do presidente desde 1961 ao incitar todos a “lutar com todas as forças” pela reforma? Um discurso que também foi numa sexta-feira, 13 de março de 1964, sem prever que dezoito dias depois, no fatídico 31 de março — ou talvez 1º de abril — os militares tomariam o poder frustrando políticos como Carlos Lacerda, o governador da Guanabara que não se conformou, como prova o áudio do jingle anunciando Lacerda para presidente em 1965.
Esses tesouros estão inseridos na exposição sobre “As Cantoras e a História do Rádio no Brasil”, entre 250 fotos, 114 objetos e recursos sonoros e audiovisuais. Nesse passeio pela linha do tempo que o rádio construiu no Brasil, principalmente entre as décadas de 1920 e 1960, está a história viva que todos os brasileiros, professores e alunos deveriam buscar até 25 de junho, no Farol Santander em São Paulo, rua João Brícola: o rádio como receptor da História.
Porque, emendando a fala de Getúlio, o áudio remete ao locutor anunciando que as tropas do II Exército, com o General Kruel à frente, já sitiaram o Estado da Guanabara, e que a presidência da República está vaga para ser ocupada pelo presidente da Câmara. Ranieri Mazzilli assume de fato no dia 2 de abril. Frustração: no dia seguinte, os militares desencadeiam a onda de prisões de líderes políticos, como o governador de Pernambuco Miguel Arraes, de dirigentes sindicais e camponeses, enquanto Jango se refugia no Uruguai. E no dia 9 de abril, a troica de militares que governa de fato o Brasil, composta pelo general Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Rademaker e o Tenente-Brigadeiro Correia de Melo, decreta o Ato Institucional no 1º. Com uma anunciada eleição indireta para presidente da República em 1966, que nunca aconteceu, começa o circo de horrores que levaria à tortura, desaparecimento, sequestros e morte violenta de milhares de brasileiros.
quarta-feira, 29 de março de 2023
A volta de Bolsonaro e o 31 de Março
Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.
O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.
Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.
Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.
Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.
Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.
A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazifascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.
O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.
Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.
Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.
Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.
Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.
A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazifascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.
Os ricos, ricos e os pobres, pobres
A cultura, o sentido cultural, tem hoje muito mais que ver com o espetáculo do que com a cultura reflexiva, ponderada, que faz pensar. Tudo virou espetáculo.
Todos os dias desaparecem espécies animais, vegetais, idiomas, profissões. Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. A cada dia há uma minoria que sabe mais e uma maioria que sabe menos. A ignorância se expande de forma espantosa. Temos um problema grave na redistribuição da riqueza. A exploração atingiu uma esquisitice diabólica. As multinacionais dominarão o mundo […].
Todos os dias desaparecem espécies animais, vegetais, idiomas, profissões. Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. A cada dia há uma minoria que sabe mais e uma maioria que sabe menos. A ignorância se expande de forma espantosa. Temos um problema grave na redistribuição da riqueza. A exploração atingiu uma esquisitice diabólica. As multinacionais dominarão o mundo […].
Não sei se são as sombras ou as imagens que ocultam de nós a realidade. Isso pode ser discutido indefinidamente, mas estamos perdendo a capacidade crítica em relação ao que acontece no mundo […].
Estamos abandonando nossa responsabilidade de pensar, de agir.
José Saramago, "As palavras de Saramago"
José Saramago, "As palavras de Saramago"
O mistério das 3 malas com presentes e novas joias para Bolsonaro
Se não cancelar a volta em cima da hora, se ao chegar amanhã não for preso por ordem de um juiz de fim de semana em busca de 10 minutos de fama, Bolsonaro irá direto para sua nova casa, em um condomínio perto do Jardim Botânico de Brasília, alugada pelo PL, partido que o abriga, paga salário e se aproveita de Michelle como garota propaganda. Ou melhor: senhora propaganda.
Dependendo dele, Bolsonaro seria recebido por uma multidão barulhenta ou histérica no aeroporto, e dali, em carro aberto, atravessaria parte da cidade. Foi o que pediu a Valdemar Costa Neto, presidente do PL, mas não será assim. Ele deixará o aeroporto por uma porta lateral, e em carro fechado irá para casa. Salvo se um juiz de fim de semana, sabe como é…
Como conta Bela Megale, repórter de O Globo, a prisão de Bolsonaro chegou, ontem à tarde, a ser tratada na reunião entre a Polícia Federal, a Secretaria de Segurança do Distrito Federal e outras autoridades. Se fosse preso, para onde ele seria levado? Como ex-presidente da República, teria direito a uma cela especial, sem grades, e a um atendimento também especial.
Foi assim com Lula quando o então juiz Sérgio Moro, depois declarado “parcial” pelo Supremo Tribunal Federal, o prendeu. Foi assim com o ex-presidente Michel Temer (MDB) preso no meio da rua em São Paulo e transferido para o Rio por ordem de Marcelo Bretas, juiz da Lava Jato. O Conselho Nacional de Justiça investiga Bretas por supostas irregularidades na condução de processos.
A reunião para decidir onde Bolsonaro ficaria preso terminou sem definir o local. Poucos acreditam na prisão, e se ela ocorrer, decide-se na hora para onde levá-lo. Sem a imunidade que o cargo lhe conferia, ele responde a processos na justiça comum. Seu destino está nas mãos de uma dezena de juízes, embora responda também a processos no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral.
Em breve, terá que encarar mais um. Sabia-se que o casal presidencial fora presenteado pela ditadura da Arábia Saudita com dois estojos de joias no valor de 176 milhões de reais. O estojo de Michelle acabou apreendido pela Receita Federal; o de Bolsonaro, entrou no país ilegalmente, como se fosse contrabando, e foi entregue a ele que o escondeu, sendo obrigado a devolvê-lo.
Mas não foi só isso. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a agência Sportlight de jornalismo obteve um documento que mostra que foram três malas com presentes que a ditadura enviou a Bolsonaro. No documento, o tenente da Marinha Marcos André Soeiro diz que pagou o equivalente a pouco mais de 4 mil reais à companhia aérea Qatar Airways para despachar as malas:
“[O custo foi referente à] necessidade de despachar três malas extras, contendo itens ofertados pelo Reino Saudita ao Estado Brasileiro, cujos comprovantes encontram-se em anexo”.
Três malas com “itens ofertados pelo Reino Saudita ao Estado Brasileiro”? O que mais havia nessas malas? Talvez um terceiro estojo. O jornal O Estado de S. Paulo descobriu que Bolsonaro recebeu dos sauditas um terceiro conjunto de joias de ouro branco e diamantes avaliado em mais de R$ 500 mil. Só um relógio Rolex cravejado de pedras vale mais de R$ 360 mil.
Bem-vindo, Bolsonaro!
Dependendo dele, Bolsonaro seria recebido por uma multidão barulhenta ou histérica no aeroporto, e dali, em carro aberto, atravessaria parte da cidade. Foi o que pediu a Valdemar Costa Neto, presidente do PL, mas não será assim. Ele deixará o aeroporto por uma porta lateral, e em carro fechado irá para casa. Salvo se um juiz de fim de semana, sabe como é…
Como conta Bela Megale, repórter de O Globo, a prisão de Bolsonaro chegou, ontem à tarde, a ser tratada na reunião entre a Polícia Federal, a Secretaria de Segurança do Distrito Federal e outras autoridades. Se fosse preso, para onde ele seria levado? Como ex-presidente da República, teria direito a uma cela especial, sem grades, e a um atendimento também especial.
Foi assim com Lula quando o então juiz Sérgio Moro, depois declarado “parcial” pelo Supremo Tribunal Federal, o prendeu. Foi assim com o ex-presidente Michel Temer (MDB) preso no meio da rua em São Paulo e transferido para o Rio por ordem de Marcelo Bretas, juiz da Lava Jato. O Conselho Nacional de Justiça investiga Bretas por supostas irregularidades na condução de processos.
A reunião para decidir onde Bolsonaro ficaria preso terminou sem definir o local. Poucos acreditam na prisão, e se ela ocorrer, decide-se na hora para onde levá-lo. Sem a imunidade que o cargo lhe conferia, ele responde a processos na justiça comum. Seu destino está nas mãos de uma dezena de juízes, embora responda também a processos no Supremo e no Tribunal Superior Eleitoral.
Em breve, terá que encarar mais um. Sabia-se que o casal presidencial fora presenteado pela ditadura da Arábia Saudita com dois estojos de joias no valor de 176 milhões de reais. O estojo de Michelle acabou apreendido pela Receita Federal; o de Bolsonaro, entrou no país ilegalmente, como se fosse contrabando, e foi entregue a ele que o escondeu, sendo obrigado a devolvê-lo.
Mas não foi só isso. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a agência Sportlight de jornalismo obteve um documento que mostra que foram três malas com presentes que a ditadura enviou a Bolsonaro. No documento, o tenente da Marinha Marcos André Soeiro diz que pagou o equivalente a pouco mais de 4 mil reais à companhia aérea Qatar Airways para despachar as malas:
“[O custo foi referente à] necessidade de despachar três malas extras, contendo itens ofertados pelo Reino Saudita ao Estado Brasileiro, cujos comprovantes encontram-se em anexo”.
Três malas com “itens ofertados pelo Reino Saudita ao Estado Brasileiro”? O que mais havia nessas malas? Talvez um terceiro estojo. O jornal O Estado de S. Paulo descobriu que Bolsonaro recebeu dos sauditas um terceiro conjunto de joias de ouro branco e diamantes avaliado em mais de R$ 500 mil. Só um relógio Rolex cravejado de pedras vale mais de R$ 360 mil.
Bem-vindo, Bolsonaro!
terça-feira, 28 de março de 2023
A última trincheira da escravidão
Quem conhece o livro “A Última Trincheira da Escravidão”, publicado pela Editora da Universidade Zumbi dos Palmares, sabe que as recentes denúncias de escravidão são consequência de uma fonte inesgotável de escravos dentro do Brasil: a desigualdade como a educação é oferecida. Antes, os escravos eram arrancados da África, agora, são arrancados da escola. A falta de educação necessária para trabalho qualificado leva brasileiros a emprego em condições similares à escravidão.
Em 1871, os escravocratas aceitaram a Lei do Ventre Livre ao perceberem que ela soltava, mas não libertava aos filhos das escravas. Para soltar, basta retirar as algemas; para libertar, precisa dar um mapa para que o solto saiba orientar-se no caminho que escolher. Esse mapa vem da escola. Depois de 17 anos, repetiram a mesma estratégia, aprovando a Lei Áurea, que soltou, mas não libertou os escravos, por falta de escola que lhes daria o mapa para um emprego, renda, alternativas sociais.
O Brasil precisou esperar o século XXI para ter uma lei que assegura vaga na escola a toda criança brasileira, a partir dos 4 até os 17 anos de idade. Mesmo assim, a lei não é cumprida e a última trincheira da escravidão foi mantida sob a forma da escola desigual: “escola casa grande”, para alguns, e “escola senzala”, para a maioria.
Dezenas de quase-escravos foram soltos nas últimas semanas, mas, por falta de educação, milhões só encontram trabalho em condições semelhantes à escravidão. Eles não foram buscados na África, não podem ser vendidos, mas são condenados ao desemprego ou renda insuficiente, e são submetidos a formas escravocratas de trabalho. Felizmente, temos o Ministério Público desfazendo estas condições, mas estão apenas soltando, não estão libertando os escravos atuais, e deixam milhões de outros em situação semelhante, como forma para sobrevivência.
A última trincheira da escravidão continuará enquanto o Brasil não tiver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base para todos brasileiros, com a máxima qualidade, da primeira infância até o final do ensino médio, alfabetizando para a contemporaneidade, independente da renda e do endereço.
A partir dos anos 1860, a população brasileira começou a se mobilizar pela Abolição da Escravatura, mas não se vê movimento parecido para completar o que foi feito naquela época, eliminando agora a última trincheira da escravidão. Talvez nem os educadores, nem o Ministério da Educação tenham consciência desta responsabilidade, nem da contribuição dada pela Universidade Zumbi dos Palmares na tentativa de despertar o Brasil para o fato que soltar não é libertar. Libertar é educar quem foi solto.
Em 1871, os escravocratas aceitaram a Lei do Ventre Livre ao perceberem que ela soltava, mas não libertava aos filhos das escravas. Para soltar, basta retirar as algemas; para libertar, precisa dar um mapa para que o solto saiba orientar-se no caminho que escolher. Esse mapa vem da escola. Depois de 17 anos, repetiram a mesma estratégia, aprovando a Lei Áurea, que soltou, mas não libertou os escravos, por falta de escola que lhes daria o mapa para um emprego, renda, alternativas sociais.
O Brasil precisou esperar o século XXI para ter uma lei que assegura vaga na escola a toda criança brasileira, a partir dos 4 até os 17 anos de idade. Mesmo assim, a lei não é cumprida e a última trincheira da escravidão foi mantida sob a forma da escola desigual: “escola casa grande”, para alguns, e “escola senzala”, para a maioria.
Dezenas de quase-escravos foram soltos nas últimas semanas, mas, por falta de educação, milhões só encontram trabalho em condições semelhantes à escravidão. Eles não foram buscados na África, não podem ser vendidos, mas são condenados ao desemprego ou renda insuficiente, e são submetidos a formas escravocratas de trabalho. Felizmente, temos o Ministério Público desfazendo estas condições, mas estão apenas soltando, não estão libertando os escravos atuais, e deixam milhões de outros em situação semelhante, como forma para sobrevivência.
A última trincheira da escravidão continuará enquanto o Brasil não tiver um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base para todos brasileiros, com a máxima qualidade, da primeira infância até o final do ensino médio, alfabetizando para a contemporaneidade, independente da renda e do endereço.
A partir dos anos 1860, a população brasileira começou a se mobilizar pela Abolição da Escravatura, mas não se vê movimento parecido para completar o que foi feito naquela época, eliminando agora a última trincheira da escravidão. Talvez nem os educadores, nem o Ministério da Educação tenham consciência desta responsabilidade, nem da contribuição dada pela Universidade Zumbi dos Palmares na tentativa de despertar o Brasil para o fato que soltar não é libertar. Libertar é educar quem foi solto.
Corrupção e colheres de prata
Quando se fala de corrupção debruçamo-nos sobre a sua definição, mas geralmente não discutimos a sua natureza, de onde vem e por que motivo parece ser tão antiga quanto a própria humanidade. De facto, a corrupção funda-se numa característica humana essencial, que sob determinada perspetiva é também uma das mais importantes virtudes: a reciprocidade. É precisamente por isso que a corrupção é dificílima de debelar, uma vez que é um fenómeno profundamente ligado ao comportamento humano mais básico, e que na verdade é axial para a nossa espécie: somos seres gregários que precisam de cooperar para sobreviver e singrar: “Uma oferta ‘desinteressada’ é paga com um favor” (Carlo Alberto Brioschi, em Corruption – A short history).
Esta forma de reciprocidade foi gravada na pedra e, em alguns casos, tornou-se lei, como no Islão, por exemplo. Mas o lado mais perverso da reciprocidade é que não funciona somente com o altruísmo, mas também com a vingança, o «olho por olho, dente por dente». Se é verdade que tendemos a retribuir os favores, também temos uma pulsão idêntica no que respeita às sevícias que nos infligem. “A uma vingança segue-se outra, e facilmente se chega a uma guerra», escreveu Dobelli, em A arte de pensar com clareza, acrescentando que «o que Jesus pregou, ou seja, interromper o círculo vicioso oferecendo ao agressor a outra face, é muito difícil porque há mais de cem mil milhões de anos que a reciprocidade pertence ao nosso sólido programa de sobrevivência. O mais antigo código penal, o de Hammurabi, já incluía o “olho por olho, dente por dente”».
Quando se diz que a corrupção sempre existiu – desde que existe humanidade – a sentença deve ser tomada literalmente. Estamos a falar de uma relíquia biológica.
A corrupção não só atravessou os tempos, como também costuma ser, no que respeita à sua natureza, suavizada, normalizada ou até elogiada. Albert Cossery escreveu o seguinte em As Cores da Infâmia: “O banditismo nas altas esferas da sociedade é uma peripécia admitida em todas as nações do mundo. O povo já está habituado e até aplaude esse género de proezas.”
Não é raro ouvir comentários em que se crítica a ingenuidade e sinceridade de alguns políticos – como incapazes ou inábeis – e se encomia a prática manhosa de outros.
É ainda interessante lembrar que a corrupção é frequentemente associada a salários baixos, contudo não parece ser uma ideia sustentada cientificamente1. Nada contra salários altos, evidentemente, mas é uma distorção aumentá-los a determinadas pessoas em determinados lugares para evitar comportamentos criminosos. Chesterton tinha uma noção clara sobre esta questão: “A nossa pretensão nacional à incorruptibilidade na política assenta precisamente no contrário: na teoria de que, colocando homens abastados em posições seguras, eles não se sentirão tentados a meter-se em fraudes financeiras. Não me interessa agora saber se a história da aristocracia inglesa — desde a espoliação dos mosteiros até à anexação das minas — permite sustentar esta teoria: que a riqueza serve de proteção contra a corrupção política. O estadista inglês é subornado para não ser subornado. Nasce com uma colher de prata na boca para evitar que de futuro lhe venham a descobrir as colheres de prata no bolso”.
A corrupção é assim um dos lados negros da reciprocidade. Existem vários, como certas leis que também elas implicam uma relação de simetria, como a vingança ou o “o olho por olho, dente por dente”. Escrevi o seguinte em Jalan Jalan: «A reciprocidade é um comportamento social muito antigo e fundamental à sobrevivência. Quando caçávamos e não tínhamos maneira de conservar o que sobrava de um animal, partilhávamos. Essa dádiva era o nosso frigorífico, celeiro, ou uma espécie de banco. Ao partilhar, esperávamos que fizessem o mesmo connosco e a comida oferecida, mais tarde ou mais cedo, seria de algum modo devolvida. Num período de escassez seria expectável que o outro nos salvasse da fome. A partilha substituía a acumulação e a propriedade. Não era preciso fechar a comida à chave, pelo contrário, era essencial oferecê-la.
Esta forma de reciprocidade foi gravada na pedra e, em alguns casos, tornou-se lei, como no Islão, por exemplo. Mas o lado mais perverso da reciprocidade é que não funciona somente com o altruísmo, mas também com a vingança, o «olho por olho, dente por dente». Se é verdade que tendemos a retribuir os favores, também temos uma pulsão idêntica no que respeita às sevícias que nos infligem. “A uma vingança segue-se outra, e facilmente se chega a uma guerra», escreveu Dobelli, em A arte de pensar com clareza, acrescentando que «o que Jesus pregou, ou seja, interromper o círculo vicioso oferecendo ao agressor a outra face, é muito difícil porque há mais de cem mil milhões de anos que a reciprocidade pertence ao nosso sólido programa de sobrevivência. O mais antigo código penal, o de Hammurabi, já incluía o “olho por olho, dente por dente”».
Quando se diz que a corrupção sempre existiu – desde que existe humanidade – a sentença deve ser tomada literalmente. Estamos a falar de uma relíquia biológica.
A corrupção não só atravessou os tempos, como também costuma ser, no que respeita à sua natureza, suavizada, normalizada ou até elogiada. Albert Cossery escreveu o seguinte em As Cores da Infâmia: “O banditismo nas altas esferas da sociedade é uma peripécia admitida em todas as nações do mundo. O povo já está habituado e até aplaude esse género de proezas.”
Não é raro ouvir comentários em que se crítica a ingenuidade e sinceridade de alguns políticos – como incapazes ou inábeis – e se encomia a prática manhosa de outros.
É ainda interessante lembrar que a corrupção é frequentemente associada a salários baixos, contudo não parece ser uma ideia sustentada cientificamente1. Nada contra salários altos, evidentemente, mas é uma distorção aumentá-los a determinadas pessoas em determinados lugares para evitar comportamentos criminosos. Chesterton tinha uma noção clara sobre esta questão: “A nossa pretensão nacional à incorruptibilidade na política assenta precisamente no contrário: na teoria de que, colocando homens abastados em posições seguras, eles não se sentirão tentados a meter-se em fraudes financeiras. Não me interessa agora saber se a história da aristocracia inglesa — desde a espoliação dos mosteiros até à anexação das minas — permite sustentar esta teoria: que a riqueza serve de proteção contra a corrupção política. O estadista inglês é subornado para não ser subornado. Nasce com uma colher de prata na boca para evitar que de futuro lhe venham a descobrir as colheres de prata no bolso”.
Ideia de jerico: o governo quer dizer o que é verdade e o que não é
O Poder mente, seja ele qual for. Sempre foi assim e sempre será. Mente-se mais em regimes autoritários, autocráticos, mas nas democracias também se mente muito.
Daqui a três dias, celebraremos A Grande Mentira de 64 – o golpe militar que por décadas se chamou Revolução e que suspendeu a democracia por 21 anos a pretexto de defendê-la.
Há duas semanas, os Estados Unidos relembraram outra grande mentira – a invasão do Iraque há 20 anos porque o ditador Saddam Hussein armazenava armas de destruição em massa.
E as provas disso? Fotos de satélites mostradas ao mundo numa sessão do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Hussein foi preso e enforcado. Não havia armas.
A Rússia, à época comunista, pôs armas, sim, em Cuba, a poucos quilômetros dos Estados Unidos, e por isso as duas grandes potências nucleares quase foram à guerra, a 3ª Mundial.
Mas era só para negociar. As armas foram retiradas em troca da remoção de mísseis atômicos americanos estacionados a pouca distância de Moscou. Um blefa, o outro blefa e a vida continua.
Portanto, desconfie, desconfie muito dos que os governos dizem, embora eles não admitam que mentem. E de iniciativas que eles possam ter em defesa do que apresentam como verdade.
À falta do que fazer, ou talvez porque não saiba o que fazer, a Secretaria de Comunicação (Secom) da presidência da República acaba de lançar uma plataforma oficial de checagem de notícias.
Seu objetivo: combater a disseminação de fakes news. Ora, mas já não existem tantas plataformas que fazem isso? Ou a da Secom se ocupará em só desmentir notícias que incomodem o governo?
Mesmo dessas, ou principalmente dessas, se encarregam, porém, as plataformas já existentes que carregam o selo de credibilidade conferido por agências públicas e veículos de comunicação.
A Secom se propõe a fazer um trabalho melhor? Dispõe de gente para isso, ou contratará para dar conta da tarefa? E quando for pressionada a dizer que é mentira o que é verdade?
Se partimos do princípio de que todos os governos mentem, em algum momento a Secom será pressionada a mentir pelo governo. A depender do que fizer, será a glória ou o fim do serviço.
Dificilmente será a glória, até porque ela costuma ser efêmera. Quem se lembrará que, um dia, a Secom tentou dizer a verdade, somente a verdade, e seus responsáveis acabaram dispensados?
Se mentir, e descobrir-se que mentiu, será um grande desastre para o governo que avalizou sua decisão de só informar a verdade, além de um desperdício de dinheiro, de energia e de tempo.
Melhor é não mexer com isso. E aconselhar o presidente a falar pouco e a só desmentir o que estiver 100% confirmado que se trata de uma mentira. O presidente, não, um porta-voz qualquer.
Por sinal, este governo carece de um. Carece de outras coisas também.
Daqui a três dias, celebraremos A Grande Mentira de 64 – o golpe militar que por décadas se chamou Revolução e que suspendeu a democracia por 21 anos a pretexto de defendê-la.
Há duas semanas, os Estados Unidos relembraram outra grande mentira – a invasão do Iraque há 20 anos porque o ditador Saddam Hussein armazenava armas de destruição em massa.
E as provas disso? Fotos de satélites mostradas ao mundo numa sessão do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Hussein foi preso e enforcado. Não havia armas.
A Rússia, à época comunista, pôs armas, sim, em Cuba, a poucos quilômetros dos Estados Unidos, e por isso as duas grandes potências nucleares quase foram à guerra, a 3ª Mundial.
Mas era só para negociar. As armas foram retiradas em troca da remoção de mísseis atômicos americanos estacionados a pouca distância de Moscou. Um blefa, o outro blefa e a vida continua.
Portanto, desconfie, desconfie muito dos que os governos dizem, embora eles não admitam que mentem. E de iniciativas que eles possam ter em defesa do que apresentam como verdade.
À falta do que fazer, ou talvez porque não saiba o que fazer, a Secretaria de Comunicação (Secom) da presidência da República acaba de lançar uma plataforma oficial de checagem de notícias.
Seu objetivo: combater a disseminação de fakes news. Ora, mas já não existem tantas plataformas que fazem isso? Ou a da Secom se ocupará em só desmentir notícias que incomodem o governo?
Mesmo dessas, ou principalmente dessas, se encarregam, porém, as plataformas já existentes que carregam o selo de credibilidade conferido por agências públicas e veículos de comunicação.
A Secom se propõe a fazer um trabalho melhor? Dispõe de gente para isso, ou contratará para dar conta da tarefa? E quando for pressionada a dizer que é mentira o que é verdade?
Se partimos do princípio de que todos os governos mentem, em algum momento a Secom será pressionada a mentir pelo governo. A depender do que fizer, será a glória ou o fim do serviço.
Dificilmente será a glória, até porque ela costuma ser efêmera. Quem se lembrará que, um dia, a Secom tentou dizer a verdade, somente a verdade, e seus responsáveis acabaram dispensados?
Se mentir, e descobrir-se que mentiu, será um grande desastre para o governo que avalizou sua decisão de só informar a verdade, além de um desperdício de dinheiro, de energia e de tempo.
Melhor é não mexer com isso. E aconselhar o presidente a falar pouco e a só desmentir o que estiver 100% confirmado que se trata de uma mentira. O presidente, não, um porta-voz qualquer.
Por sinal, este governo carece de um. Carece de outras coisas também.
A inteligência artificial coloca a humanidade em risco?
A foto do papa Francisco usando um casacão branco de inverno marca um novo momento na cultura. Uma foto sem nenhuma agenda secreta, apenas uma brincadeira com a imagem do papa, que circulou pelas redes, enganando muitas pessoas e até um ou outro veículo de imprensa. Tratava-se de uma imagem inteiramente criada por inteligência artificial.
Enquanto isso, ferramentas de escrita por IA não só escrevem cartas como já criam histórias, formulam argumentos e até passam em exames admissionais humanos. Não existe inteligência real por trás da ferramenta; ela apenas ordena palavras seguindo padrões estatísticos de uma base de dados de bilhões de textos humanos espalhados pela internet. É uma versão mais poderosa do autocompletar dos nossos celulares. Mesmo assim, o resultado é espantoso.
Isso justifica a apreensão que muitos têm sentido com as novas tecnologias, como Yuval Harari em artigo no New York Times e Antônio Prata aqui na Folha. Confesso que o medo existencial —o medo propalado pelos próprios criadores/entusiastas de IA de que ela possa extinguir a humanidade— me parece exagerado. Tanto que Harari não é capaz de descrever um cenário plausível que leve a esse fim. Ele nem tenta. Mas há sim motivos de preocupação mais mundanos.
O primeiro é o impacto econômico. Profissões que antes demandavam horas de trabalho humano agora serão substituídas por segundos de processamento de dados. Meu trabalho como colunista pode estar com os dias contados. A capacidade criativa de pensar novas imagens e construir argumentos fora do comum ainda é valiosa (não sabemos por quanto tempo). Mas a habilidade de dar forma a essas ideias —seja em imagens ou texto— está rapidamente se tornando supérflua. Ilustrações, textos e programação rotineiros, então, já podem ser tranquilamente automatizados. A requalificação dessa mão de obra para outras áreas não virá sem custo.
O segundo risco é o impacto no debate público. É mera questão de tempo até que imagens realistas falsas passem a circular com intenções políticas, sociais e econômicas. E, logo mais, vídeos. Um vídeo comprometedor às vésperas de uma eleição acirrada pode mudar um resultado. Textos gerados continuamente para alimentar nossa predisposição político-ideológica da maneira mais eficiente possível —inclusive com mais e novas mentiras— chegarão a nós por todos os lados.
Não vejo qualquer chance de que agências de governo possam —"criteriosamente"— liberar inovações de acordo com um cronograma seguro e com as devidas limitações para o uso da população. Nossas lideranças políticas sequer entendem a tecnologia. E ela é facilmente reprodutível. Esse poder estará ao alcance de muita gente sem qualquer possibilidade real de controle.
É melhor se preparar para uma nova realidade em que toda notícia, imagem ou vídeo comprometedor será potencialmente falso, e feito com uma qualidade que um olhar leigo —e, em breve, mesmo um olhar técnico— é incapaz de diferenciar. Isso terá que ser internalizado.
Mais do que nunca, precisaremos desenvolver mais ceticismo geral e construir vínculos de confiança com fontes seguras de informação. A confiança, por exemplo, de que o jornalista que compartilha uma fala de uma figura pública conversou com testemunhas que a viram acontecer, que comparou-a com outras gravações e assim pode dar garantia de que a imagem é confiável. Justamente a confiança que parece erodir mais a cada dia conforme a imprensa é atacada, seja pela direita ou pela esquerda.
Enquanto isso, ferramentas de escrita por IA não só escrevem cartas como já criam histórias, formulam argumentos e até passam em exames admissionais humanos. Não existe inteligência real por trás da ferramenta; ela apenas ordena palavras seguindo padrões estatísticos de uma base de dados de bilhões de textos humanos espalhados pela internet. É uma versão mais poderosa do autocompletar dos nossos celulares. Mesmo assim, o resultado é espantoso.
Isso justifica a apreensão que muitos têm sentido com as novas tecnologias, como Yuval Harari em artigo no New York Times e Antônio Prata aqui na Folha. Confesso que o medo existencial —o medo propalado pelos próprios criadores/entusiastas de IA de que ela possa extinguir a humanidade— me parece exagerado. Tanto que Harari não é capaz de descrever um cenário plausível que leve a esse fim. Ele nem tenta. Mas há sim motivos de preocupação mais mundanos.
O primeiro é o impacto econômico. Profissões que antes demandavam horas de trabalho humano agora serão substituídas por segundos de processamento de dados. Meu trabalho como colunista pode estar com os dias contados. A capacidade criativa de pensar novas imagens e construir argumentos fora do comum ainda é valiosa (não sabemos por quanto tempo). Mas a habilidade de dar forma a essas ideias —seja em imagens ou texto— está rapidamente se tornando supérflua. Ilustrações, textos e programação rotineiros, então, já podem ser tranquilamente automatizados. A requalificação dessa mão de obra para outras áreas não virá sem custo.
O segundo risco é o impacto no debate público. É mera questão de tempo até que imagens realistas falsas passem a circular com intenções políticas, sociais e econômicas. E, logo mais, vídeos. Um vídeo comprometedor às vésperas de uma eleição acirrada pode mudar um resultado. Textos gerados continuamente para alimentar nossa predisposição político-ideológica da maneira mais eficiente possível —inclusive com mais e novas mentiras— chegarão a nós por todos os lados.
Não vejo qualquer chance de que agências de governo possam —"criteriosamente"— liberar inovações de acordo com um cronograma seguro e com as devidas limitações para o uso da população. Nossas lideranças políticas sequer entendem a tecnologia. E ela é facilmente reprodutível. Esse poder estará ao alcance de muita gente sem qualquer possibilidade real de controle.
É melhor se preparar para uma nova realidade em que toda notícia, imagem ou vídeo comprometedor será potencialmente falso, e feito com uma qualidade que um olhar leigo —e, em breve, mesmo um olhar técnico— é incapaz de diferenciar. Isso terá que ser internalizado.
Mais do que nunca, precisaremos desenvolver mais ceticismo geral e construir vínculos de confiança com fontes seguras de informação. A confiança, por exemplo, de que o jornalista que compartilha uma fala de uma figura pública conversou com testemunhas que a viram acontecer, que comparou-a com outras gravações e assim pode dar garantia de que a imagem é confiável. Justamente a confiança que parece erodir mais a cada dia conforme a imprensa é atacada, seja pela direita ou pela esquerda.
segunda-feira, 27 de março de 2023
Era um dia frio
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.
O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.
Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.
Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.
Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.
Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.
O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.
O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, exceto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.
Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma fatia de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITÓRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gim, contraiu-se para o choque e engoliu-a de vez, como uma dose de remédio.
Instantaneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida parecia ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITÓRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.
Por um motivo qualquer, a teletela da sala fora colocada em posição fora do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fora posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fora provavelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto.
Em parte, fora a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, mas fora também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, cor de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fora acometido imediatamente do invencível desejo de possuí-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns (“transacionar no mercado livre,” dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.
O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e ele conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lápis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um tremor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miúda e desajeitada escreveu:
4 de abril de 1984
George Orwell, "1984"
Desperdício de dinheiro público e falta de vergonha
A União gasta por ano 3 bilhões de reais com o pagamento de pensões a 60 mil filhas solteiras de ex-servidores públicos, informa o jornal O Estado de S. Paulo.
São filhas de diplomatas, auditores e desembargadores. Lei para isso foi criada em 1958. Em 1990, o governo deixou de reconhecer novas beneficiárias, mas a pensão continuou sendo paga a quem recebia.
Ocorre que 2,3 mil desse contingente já se casaram ou mantém relações estáveis; e 1,7 mil ingressaram no serviço público, descobriu a Controladoria Geral da União ao cruzar dados.
Essas mulheres deixaram, portanto, de atender aos requisitos da lei. E não se lembraram de avisar ao Estado. Avisar para quê? Para que suspendessem a pensão?
Um relatório do Tribunal de Contas da União, de meados de 2020, mostrou que até àquela data 620 mil pessoas receberam sem ter direito o Auxílio Emergencial para o combate à Covid-19.
À mesma época, pesquisa do Instituto Locomotiva conferiu que 3,89 milhões de famílias integrantes da parcela mais rica da população brasileira pediram e receberam o benefício de 600 reais.
Uma vergonha. Ou falta dela.
São filhas de diplomatas, auditores e desembargadores. Lei para isso foi criada em 1958. Em 1990, o governo deixou de reconhecer novas beneficiárias, mas a pensão continuou sendo paga a quem recebia.
Ocorre que 2,3 mil desse contingente já se casaram ou mantém relações estáveis; e 1,7 mil ingressaram no serviço público, descobriu a Controladoria Geral da União ao cruzar dados.
Essas mulheres deixaram, portanto, de atender aos requisitos da lei. E não se lembraram de avisar ao Estado. Avisar para quê? Para que suspendessem a pensão?
Um relatório do Tribunal de Contas da União, de meados de 2020, mostrou que até àquela data 620 mil pessoas receberam sem ter direito o Auxílio Emergencial para o combate à Covid-19.
À mesma época, pesquisa do Instituto Locomotiva conferiu que 3,89 milhões de famílias integrantes da parcela mais rica da população brasileira pediram e receberam o benefício de 600 reais.
Uma vergonha. Ou falta dela.
Anticomunismo de conveniência
Pesquisa realizada pelo Ipec e divulgada em O Globo (19/3) causou certo impacto ao indicar que 44% dos brasileiros acreditam que, com a eleição de Lula, aumentou o risco de se configurar uma “ameaça comunista” no Brasil.
Não é de surpreender. Toda vez que se falou em reformas, distribuição de renda e redução da desigualdade no Brasil, agitou-se a bandeira do anticomunismo. Foi assim no golpe de 1964, por exemplo. Políticos reacionários, populistas de extrema direita e conservadores pouco esclarecidos têm-se valido de uma imagem fantasmagórica do comunismo para induzir a população a acreditar que os comunistas estão atrás da porta, prontos para comer criancinhas. Bolsonaro fez isso em seu governo.
Nos últimos tempos, algumas coisas complicaram o argumento.
Por um lado, o comunismo desapareceu como proposta política, junto com a crise do bloco soviético e as transformações da hipermodernidade. Hoje ele pertence ao passado. Tem sua dignidade filosófica, mas não tem mais quem lhe dê propulsão. Sumiram os proletários industriais que davam base aos partidos comunistas e estes, por sua vez, não conseguiram se renovar. Foram desaparecendo ou se transfigurando em personagens de que não se tem uma imagem clara. Não há nenhuma revolução no mundo sendo planejada com programas comunistas.
Por outro lado, o conservadorismo avançou pelo terreno religioso. O pentecostalismo evangélico quebrou o monopólio da Igreja Católica e impôs novas pautas de costumes e novas maneiras de enxergar o mundo. Uma espécie de terraplanismo genérico e negacionista cresceu por esta senda, sendo rapidamente capturado pela extrema direita, com suas taras e suas falsificações simplificadoras.
Para complicar ainda mais, a desagregação da classe operária tradicional e a crise do trabalho fizeram-se acompanhar da ideia de empreendedorismo plantada pelo neoliberalismo e que aos poucos foi ganhando vida própria. A maioria dos trabalhadores brasileiros sonha em ter seu próprio negócio, ver-se livre de patrões e horários impostos, ser um pequeno empresário. É um empreendedorismo refratário ao Estado, a programas de estatização, a regras coercitivas, a tributos excessivos, vistos como cerceadores da liberdade econômica e, por extensão, como “comunistas”.
Acrescente-se a isso a ojeriza da opinião pública a regimes autocráticos como os de Maduro e Ortega, que são criticados por serem “comunistas”, embora não tenham coisa alguma que ver com comunismo.
O anticomunismo tem funcionado, entre nós, como combustível para diferentes modalidades de autoritarismo: um expediente tosco, cômodo e conveniente para contestar o sistema democrático e as reformas sociais. O golpismo bolsonarista o reforçou, valendo-se da instrumentalização das mídias sociais e de campanhas contra a esquerda e a democracia, que atacaram principalmente o PT, único partido brasileiro com alguma base popular.
Muitos comunistas ajudaram a forjar este caldo de cultura, com suas pregações maximalistas, seus exageros retóricos, sua incapacidade de ouvir a sociedade e se ajustar aos tempos. Nos últimos anos, os democratas também deram sua contribuição, ao se entregarem a disputas estéreis e polarizações artificiais no próprio terreno da democracia. Enquanto petistas e tucanos brigavam para saber quem era mais reformista, a extrema direita se expandia e o sistema político enferrujava. O anticomunismo reapareceu na esteira desse processo.
Hoje, não há mais comunismo, mas a esquerda continua viva. Chega aos governos por via eleitoral, mas não dispõe de um programa concatenado para gerir o capitalismo e responder com inteligência às demandas sociais. Muitas vezes, perde-se nos meandros de um identitarismo exacerbado, com o que preserva certos nichos eleitorais, mas entra em atrito com as grandes maiorias conservadoras, assustando-as com propostas emancipadoras e libertárias. Não são poucos os que temem que a insistência em temas identitários leve à adoção de programas contrários à família, à liberdade religiosa e à educação moral dos jovens.
Diferentemente da extrema direita, a esquerda brasileira interage de modo negativo com o conservadorismo, que tem raízes longínquas e foi turbinado pelas igrejas neopentecostais, que, em muitos casos, fornecem a seus fiéis um acolhimento e um suporte que o Estado não consegue prover.
A extrema direita estigmatiza a “ameaça comunista” porque deseja bloquear as transformações que preparam o futuro. É um reacionarismo que não sabe lidar com as mudanças frenéticas dos nossos dias e que só pode sobreviver escondendose em redes e nichos fanatizados, de onde vende ilusões, fabrica maldades e conspira.
O anticomunismo tem bases materiais, políticas e socioculturais. De algum modo, tornou-se uma ameaça à democracia e às liberdades. Não será varrido no plano retórico. O combate a ele precisa ser feito no longo prazo, centrado na educação, na institucionalidade democrática, nos direitos, na governança positiva e em boas políticas públicas.
Não é de surpreender. Toda vez que se falou em reformas, distribuição de renda e redução da desigualdade no Brasil, agitou-se a bandeira do anticomunismo. Foi assim no golpe de 1964, por exemplo. Políticos reacionários, populistas de extrema direita e conservadores pouco esclarecidos têm-se valido de uma imagem fantasmagórica do comunismo para induzir a população a acreditar que os comunistas estão atrás da porta, prontos para comer criancinhas. Bolsonaro fez isso em seu governo.
Nos últimos tempos, algumas coisas complicaram o argumento.
Por um lado, o comunismo desapareceu como proposta política, junto com a crise do bloco soviético e as transformações da hipermodernidade. Hoje ele pertence ao passado. Tem sua dignidade filosófica, mas não tem mais quem lhe dê propulsão. Sumiram os proletários industriais que davam base aos partidos comunistas e estes, por sua vez, não conseguiram se renovar. Foram desaparecendo ou se transfigurando em personagens de que não se tem uma imagem clara. Não há nenhuma revolução no mundo sendo planejada com programas comunistas.
Por outro lado, o conservadorismo avançou pelo terreno religioso. O pentecostalismo evangélico quebrou o monopólio da Igreja Católica e impôs novas pautas de costumes e novas maneiras de enxergar o mundo. Uma espécie de terraplanismo genérico e negacionista cresceu por esta senda, sendo rapidamente capturado pela extrema direita, com suas taras e suas falsificações simplificadoras.
Para complicar ainda mais, a desagregação da classe operária tradicional e a crise do trabalho fizeram-se acompanhar da ideia de empreendedorismo plantada pelo neoliberalismo e que aos poucos foi ganhando vida própria. A maioria dos trabalhadores brasileiros sonha em ter seu próprio negócio, ver-se livre de patrões e horários impostos, ser um pequeno empresário. É um empreendedorismo refratário ao Estado, a programas de estatização, a regras coercitivas, a tributos excessivos, vistos como cerceadores da liberdade econômica e, por extensão, como “comunistas”.
Acrescente-se a isso a ojeriza da opinião pública a regimes autocráticos como os de Maduro e Ortega, que são criticados por serem “comunistas”, embora não tenham coisa alguma que ver com comunismo.
O anticomunismo tem funcionado, entre nós, como combustível para diferentes modalidades de autoritarismo: um expediente tosco, cômodo e conveniente para contestar o sistema democrático e as reformas sociais. O golpismo bolsonarista o reforçou, valendo-se da instrumentalização das mídias sociais e de campanhas contra a esquerda e a democracia, que atacaram principalmente o PT, único partido brasileiro com alguma base popular.
Muitos comunistas ajudaram a forjar este caldo de cultura, com suas pregações maximalistas, seus exageros retóricos, sua incapacidade de ouvir a sociedade e se ajustar aos tempos. Nos últimos anos, os democratas também deram sua contribuição, ao se entregarem a disputas estéreis e polarizações artificiais no próprio terreno da democracia. Enquanto petistas e tucanos brigavam para saber quem era mais reformista, a extrema direita se expandia e o sistema político enferrujava. O anticomunismo reapareceu na esteira desse processo.
Hoje, não há mais comunismo, mas a esquerda continua viva. Chega aos governos por via eleitoral, mas não dispõe de um programa concatenado para gerir o capitalismo e responder com inteligência às demandas sociais. Muitas vezes, perde-se nos meandros de um identitarismo exacerbado, com o que preserva certos nichos eleitorais, mas entra em atrito com as grandes maiorias conservadoras, assustando-as com propostas emancipadoras e libertárias. Não são poucos os que temem que a insistência em temas identitários leve à adoção de programas contrários à família, à liberdade religiosa e à educação moral dos jovens.
Diferentemente da extrema direita, a esquerda brasileira interage de modo negativo com o conservadorismo, que tem raízes longínquas e foi turbinado pelas igrejas neopentecostais, que, em muitos casos, fornecem a seus fiéis um acolhimento e um suporte que o Estado não consegue prover.
A extrema direita estigmatiza a “ameaça comunista” porque deseja bloquear as transformações que preparam o futuro. É um reacionarismo que não sabe lidar com as mudanças frenéticas dos nossos dias e que só pode sobreviver escondendose em redes e nichos fanatizados, de onde vende ilusões, fabrica maldades e conspira.
O anticomunismo tem bases materiais, políticas e socioculturais. De algum modo, tornou-se uma ameaça à democracia e às liberdades. Não será varrido no plano retórico. O combate a ele precisa ser feito no longo prazo, centrado na educação, na institucionalidade democrática, nos direitos, na governança positiva e em boas políticas públicas.
Leilão tortuoso
Quase passaram despercebidas as duas páginas datilografadas e velhuscas, datadas de 29 de março de 1976, que compunham o lote número 350 do leilão Postais, Documentos, Publicações e Afins, marcado para a terça-feira 5 de abril, no Rio de Janeiro. As folhas em questão formavam uma “Declaração” na primeira pessoa de um oficial da Aeronáutica brasileira. No documento, ele atesta ter participado da prisão, interrogatórios, torturas e assassinato do preso político Stuart Angel, em 1971. O oficial declarante se identifica como Marco Aurélio Carvalho, não declina sua patente à época, mas relata em dez parágrafos secos a sequência de desumanização a que Stuart, de 25 anos, foi submetido no centro de tortura da Base Aérea do Galeão.
“De acordo com a prática naquela unidade militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas. Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura. Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória História.
“De acordo com a prática naquela unidade militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas. Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura. Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória História.
sexta-feira, 24 de março de 2023
Por que não te calas, Lula?
Este blog havia completado apenas 3 dos 19 anos que tem hoje quando as redes sociais, no fim de 2007, estremeceram com um episódio que repercutiu no mundo todo durante semanas.
Em Santiago do Chile estava sendo realizada a XVII Conferência Ibero-Americana, que reunia dezenas de chefes de Estado e observadores. Era a sessão de encerramento.
Discursava o então primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista, e a todo instante interrompia sua fala o presidente da Venezuela, o coronel Hugo Chávez.
A tudo assistia, calado, o rei Juan Carlos 1, da Espanha, até que, de repente, ele perdeu a paciência, mandou às favas as regras do protocolo e gritou, colérico, na direção de Chávez:
“¿Por qué no te callas?”.
Falta quem tenha coragem de admoestar Lula com a mesma frase ou com outra parecida. Talvez o senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo, pudesse se encarregar da tarefa.
Lula e ele são amigos de longa data. Em 2018, antes de escalar Fernando Haddad (PT) para substituí-lo como candidato a presidente, Lula tentou convencer Wagner a aceitar a missão.
Chamou-o a Curitiba, onde estava preso; os dois conversaram, mas Wagner preferiu candidatar-se a senador pela Bahia. Esta semana, foi o senador Sergio Moro (União-PR) que procurou Wagner.
Queixou-se da revelação feita por Lula em entrevista de que só pensava em fodê-lo. Wagner minimizou a ofensa: esse foi o sentimento de Lula quando estava preso, mas não é o de hoje.
Ocorre que menos de 24 horas depois de a Polícia Federal ter desbaratado um plano da facção criminosa PCC para matar ou sequestrar Moro e outras autoridades, Lula voltou à carga.
Primeiro, disse:
“Eu não vou ficar atacando ninguém sem ter provas. Eu acho que é mais uma armação e, se for mais uma armação, ele (Moro) vai ficar mais desmascarado ainda. Não sei mais o que ele vai fazer da vida se continuar mentindo como está mentindo”.
E disse mais tarde, a pretexto de corrigir-se:
“Quero ser cauteloso. Vou descobrir o que aconteceu. É visível que é uma armação do Moro”.
Ou seja: nas duas ocasiões, Lula sugeriu, alegando não dispor de provas, que foi armação de Moro a operação montada pela Polícia Federal que abortou mais um crime tramado pelo PCC.
Está mais do que provado que o PCC planejava assassinar Moro ou sequestrá-lo; ele próprio fora avisado e andava cercado de seguranças. A Polícia Federal acompanhava o caso desde janeiro.
Na quarta (22/3), quando a PF prendeu nove suspeitos de envolvimento no crime, estrelas reluzentes do PT saudaram a eficiência da Polícia Federal e exaltaram Lula “por fazer o bem sem interessar a quem”.
Escreveu Humberto Costa (PT-PE), ex-ministro da Saúde do primeiro governo Lula:
“A PF de Lula salvou a vida de Moro. E essa operação prova por A mais B que Lula governa para todos. Fiz o L pra isso”.
Escreveu Gleisi Hoffmann, presidente do PT:
“Juiz parcial, que não se importou com o ódio que alimentou com a Lava Jato, tem aula de civilidade e democracia do governo Lula”.
Ambos e outros mais, na prática, foram desautorizados por Lula. A reputação da Polícia Federal foi posta em dúvida por Lula. E Moro, de algoz, passou à condição de vítima da fúria de Lula.
Para atenuar as falas desastradas de Lula, seus porta-vozes passaram a dizer que ele perde a “estabilidade emocional” toda vez que lembra dos 580 dias em que ficou preso por decisão de Moro.
Quanto tempo mais o país ficará sujeito à instabilidade emocional do presidente da República que se elegeu prometendo restabelecer a harmonia entre os Poderes corrompida por seu antecessor?
O que diriam Lula e os dirigentes do PT se alguma voz da extrema direita tivesse replicado:
“Eu não vou ficar atacando ninguém sem ter provas. Mas acho que a morte do prefeito Celso Daniel (PT-SP) foi mais uma armação da esquerda, como foi a facada que levou Bolsonaro”.
Dizem que Lula há bastante tempo padece de dor em um dos joelhos que o impede de dormir direito e altera seu humor. Quando chora, em parte seria também por causa disso.
Trate-se e fique bom. Mas, até lá, cale-se ou fale pouco. Seu governo mal começou e começou mal sob alguns aspectos. Tem muito tempo à frente para mostrar serviço. Boa sorte!
Só faltava quem derrotou Bolsonaro dar lugar a um fantoche dele em 2026. O Brasil não merece.
Em Santiago do Chile estava sendo realizada a XVII Conferência Ibero-Americana, que reunia dezenas de chefes de Estado e observadores. Era a sessão de encerramento.
Discursava o então primeiro-ministro espanhol José Luis Rodríguez Zapatero, do Partido Socialista, e a todo instante interrompia sua fala o presidente da Venezuela, o coronel Hugo Chávez.
A tudo assistia, calado, o rei Juan Carlos 1, da Espanha, até que, de repente, ele perdeu a paciência, mandou às favas as regras do protocolo e gritou, colérico, na direção de Chávez:
“¿Por qué no te callas?”.
Falta quem tenha coragem de admoestar Lula com a mesma frase ou com outra parecida. Talvez o senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo, pudesse se encarregar da tarefa.
Lula e ele são amigos de longa data. Em 2018, antes de escalar Fernando Haddad (PT) para substituí-lo como candidato a presidente, Lula tentou convencer Wagner a aceitar a missão.
Chamou-o a Curitiba, onde estava preso; os dois conversaram, mas Wagner preferiu candidatar-se a senador pela Bahia. Esta semana, foi o senador Sergio Moro (União-PR) que procurou Wagner.
Queixou-se da revelação feita por Lula em entrevista de que só pensava em fodê-lo. Wagner minimizou a ofensa: esse foi o sentimento de Lula quando estava preso, mas não é o de hoje.
Ocorre que menos de 24 horas depois de a Polícia Federal ter desbaratado um plano da facção criminosa PCC para matar ou sequestrar Moro e outras autoridades, Lula voltou à carga.
Primeiro, disse:
“Eu não vou ficar atacando ninguém sem ter provas. Eu acho que é mais uma armação e, se for mais uma armação, ele (Moro) vai ficar mais desmascarado ainda. Não sei mais o que ele vai fazer da vida se continuar mentindo como está mentindo”.
E disse mais tarde, a pretexto de corrigir-se:
“Quero ser cauteloso. Vou descobrir o que aconteceu. É visível que é uma armação do Moro”.
Ou seja: nas duas ocasiões, Lula sugeriu, alegando não dispor de provas, que foi armação de Moro a operação montada pela Polícia Federal que abortou mais um crime tramado pelo PCC.
Está mais do que provado que o PCC planejava assassinar Moro ou sequestrá-lo; ele próprio fora avisado e andava cercado de seguranças. A Polícia Federal acompanhava o caso desde janeiro.
Na quarta (22/3), quando a PF prendeu nove suspeitos de envolvimento no crime, estrelas reluzentes do PT saudaram a eficiência da Polícia Federal e exaltaram Lula “por fazer o bem sem interessar a quem”.
Escreveu Humberto Costa (PT-PE), ex-ministro da Saúde do primeiro governo Lula:
“A PF de Lula salvou a vida de Moro. E essa operação prova por A mais B que Lula governa para todos. Fiz o L pra isso”.
Escreveu Gleisi Hoffmann, presidente do PT:
“Juiz parcial, que não se importou com o ódio que alimentou com a Lava Jato, tem aula de civilidade e democracia do governo Lula”.
Ambos e outros mais, na prática, foram desautorizados por Lula. A reputação da Polícia Federal foi posta em dúvida por Lula. E Moro, de algoz, passou à condição de vítima da fúria de Lula.
Para atenuar as falas desastradas de Lula, seus porta-vozes passaram a dizer que ele perde a “estabilidade emocional” toda vez que lembra dos 580 dias em que ficou preso por decisão de Moro.
Quanto tempo mais o país ficará sujeito à instabilidade emocional do presidente da República que se elegeu prometendo restabelecer a harmonia entre os Poderes corrompida por seu antecessor?
O que diriam Lula e os dirigentes do PT se alguma voz da extrema direita tivesse replicado:
“Eu não vou ficar atacando ninguém sem ter provas. Mas acho que a morte do prefeito Celso Daniel (PT-SP) foi mais uma armação da esquerda, como foi a facada que levou Bolsonaro”.
Dizem que Lula há bastante tempo padece de dor em um dos joelhos que o impede de dormir direito e altera seu humor. Quando chora, em parte seria também por causa disso.
Trate-se e fique bom. Mas, até lá, cale-se ou fale pouco. Seu governo mal começou e começou mal sob alguns aspectos. Tem muito tempo à frente para mostrar serviço. Boa sorte!
Só faltava quem derrotou Bolsonaro dar lugar a um fantoche dele em 2026. O Brasil não merece.
O algoritmo loquaz
Sim, você sabe o que é o ChatGPT. Claro que sabe: já leu a respeito, já viu notícias nos telejornais e, talvez, até já tenha brincado com ele. O chatbot desenvolvido pelo Open AI Institute explodiu nas preferências das massas interconectadas. A versão 3,5, que funciona pela combinação de 175 bilhões de parâmetros simultaneamente, já bateu a marca de 120 milhões de usuários. A versão 4,0, a caminho, conta com 1 trilhão de parâmetros.
As pessoas não falam de outra coisa. As máquinas também: não falam de outra coisa. Isso mesmo: agora, as máquinas conversam, escrevem sobre temas abstratos, muito além do “pegue a segunda saída à esquerda” ou de “por favor, espere na linha, a sua ligação é muito importante para nós”. Computadores e celulares foram promovidos a seres falantes, e já com ares de seres pensantes. O sujeito vai lá e pergunta: “Que verso de Bocage eu posso citar para a minha namorada hoje no jantar?”. O negócio responde, por escrito. “Como faço um bolo de laranja?” Ele ensina, em um segundo. “Qual a diferença entre um emir e um califa?” “Quem foi Ésquilo?” “Como reverter o aquecimento global?” “Vladimir Putin é movido pelas paixões tristes de que falou Espinosa?” “A trigonometria será um dia dispensável em cálculos geométricos?” “Vale a pena ler artigos no Estadão?”
Os templos do conhecimento se alvoroçam. O cyber-oráculo tem aspectos viciantes, já sabemos, mas são os aspectos viciosos que mais agitam a comunidade acadêmica. Estudantes recorrem a ele para redigir seus deveres de casa. Como fica o professor? Como saber se aquele texto é, mesmo, de quem o assina? Os métodos de avaliação escolar estão em xeque. O plágio mudou de patamar. Direitos autorais para robôs entram na pauta.
As provas feitas em sala de aula, baseadas na velha tecnologia de papel e caneta, renascem. As mais prestigiosas revistas científicas do mundo se apressam em anunciar normas editoriais urgentes: não aceitam papers redigidos por Inteligência Artificial (IA), embora admitam usar a famigerada IA para melhor distribuir “conteúdos” nas redes.
Daqui para a frente, tudo vai ser diferente. “O que vem por aí é uma enxurrada de inovações e nada no passado se compara ao que está para acontecer”, avisou o professor Glauco Arbix, do Departamento de Sociologia da USP, no seminário ChatGPT: potencial, limites e implicações para a universidade, que ocorreu no Instituto de Estudos Avançados da USP, em São Paulo, na terça-feira passada. Um dos mais influentes pesquisadores brasileiros da Inteligência Artificial, Glauco diz que as tecnologias em marcha não são “ferramentas” neutras: “não são uma reles chave de fenda”.
Em resumo: já começou a grande mutação no modo como os seres humanos se relacionam entre si e com o conhecimento, o trabalho, o consumo e a cultura. As máquinas ainda não começaram a aprender a ser gente, mas já começaram a se comportar como sujeitos de linguagem.
Problemas à vista. Se você for perguntar aos psicanalistas o que distingue o humano dos outros animais, eles dirão que só o humano é sujeito de linguagem, ao contrário das minhocas e das calculadoras. Um antropólogo esboçará uma resposta na mesma linha. O bicho-homem se distingue porque fala e, ao falar, ativa representações abstratas e encadeia proposições orientadas por valores morais. Ora, o ChatGPT faz tudo isso – ou, pelo menos, simula muito bem. Não que ele seja humano, não é isso, mas as diferenças entre o humano e o não-humano vão ficando mais e mais nubladas. Se máquinas são seres de linguagem (e se já há gente nos Estados Unidos usando aplicativos conversadores para fazer terapia psicológica), o que, afinal de contas, separa uma pessoa de carne e osso de um algoritmo palrador?
Há os que evitam o debate e se refugiam em alegações técnicas. O ChatGPT comete erros, dizem, com alívio. De fato, no dizer dos programadores e dos estudiosos da computação, a engenhoca entra em alucinações: erra, induz a erro, mente – e tudo isso sem enrubescer.
Mas por acaso isso lá é critério para garantir que o organismo não é humano? Errar é desumano? Desde quando? Outro dia, numa resposta dada a uma doutoranda da USP, o prodígio digital se saiu com um “à Deus”, com crase e tudo. O que pode haver de mais humano? Estamos às voltas com um Rolando Lero maquínico, um personagem que tem caradura para sustentar como óbvias afirmações despirocadas. E escreve “à Deus” com crase.
Outros dizem que o Chat não deveria nos preocupar porque, na verdade, não é inteligente, apenas finge ser. Para esses, o artefato passa a impressão de coerência lógica, mas não pensa coisa alguma. Pode ser que estejam certos. No entanto, o mundo está cheio de gente que ostenta a inteligência que não tem. Exatamente como o GPT. Serão elas menos humanas?
E assim estamos. Com algoritmos que falam (e, pior ainda, escutam), além de escrever (e até ler), a nossa irrelevância fica ainda mais indisfarçável. A máquina nos convida para o papel de coadjuvantes na nossa própria história. E fala pelos cotovelos de silício.
As pessoas não falam de outra coisa. As máquinas também: não falam de outra coisa. Isso mesmo: agora, as máquinas conversam, escrevem sobre temas abstratos, muito além do “pegue a segunda saída à esquerda” ou de “por favor, espere na linha, a sua ligação é muito importante para nós”. Computadores e celulares foram promovidos a seres falantes, e já com ares de seres pensantes. O sujeito vai lá e pergunta: “Que verso de Bocage eu posso citar para a minha namorada hoje no jantar?”. O negócio responde, por escrito. “Como faço um bolo de laranja?” Ele ensina, em um segundo. “Qual a diferença entre um emir e um califa?” “Quem foi Ésquilo?” “Como reverter o aquecimento global?” “Vladimir Putin é movido pelas paixões tristes de que falou Espinosa?” “A trigonometria será um dia dispensável em cálculos geométricos?” “Vale a pena ler artigos no Estadão?”
Os templos do conhecimento se alvoroçam. O cyber-oráculo tem aspectos viciantes, já sabemos, mas são os aspectos viciosos que mais agitam a comunidade acadêmica. Estudantes recorrem a ele para redigir seus deveres de casa. Como fica o professor? Como saber se aquele texto é, mesmo, de quem o assina? Os métodos de avaliação escolar estão em xeque. O plágio mudou de patamar. Direitos autorais para robôs entram na pauta.
As provas feitas em sala de aula, baseadas na velha tecnologia de papel e caneta, renascem. As mais prestigiosas revistas científicas do mundo se apressam em anunciar normas editoriais urgentes: não aceitam papers redigidos por Inteligência Artificial (IA), embora admitam usar a famigerada IA para melhor distribuir “conteúdos” nas redes.
Daqui para a frente, tudo vai ser diferente. “O que vem por aí é uma enxurrada de inovações e nada no passado se compara ao que está para acontecer”, avisou o professor Glauco Arbix, do Departamento de Sociologia da USP, no seminário ChatGPT: potencial, limites e implicações para a universidade, que ocorreu no Instituto de Estudos Avançados da USP, em São Paulo, na terça-feira passada. Um dos mais influentes pesquisadores brasileiros da Inteligência Artificial, Glauco diz que as tecnologias em marcha não são “ferramentas” neutras: “não são uma reles chave de fenda”.
Em resumo: já começou a grande mutação no modo como os seres humanos se relacionam entre si e com o conhecimento, o trabalho, o consumo e a cultura. As máquinas ainda não começaram a aprender a ser gente, mas já começaram a se comportar como sujeitos de linguagem.
Problemas à vista. Se você for perguntar aos psicanalistas o que distingue o humano dos outros animais, eles dirão que só o humano é sujeito de linguagem, ao contrário das minhocas e das calculadoras. Um antropólogo esboçará uma resposta na mesma linha. O bicho-homem se distingue porque fala e, ao falar, ativa representações abstratas e encadeia proposições orientadas por valores morais. Ora, o ChatGPT faz tudo isso – ou, pelo menos, simula muito bem. Não que ele seja humano, não é isso, mas as diferenças entre o humano e o não-humano vão ficando mais e mais nubladas. Se máquinas são seres de linguagem (e se já há gente nos Estados Unidos usando aplicativos conversadores para fazer terapia psicológica), o que, afinal de contas, separa uma pessoa de carne e osso de um algoritmo palrador?
Há os que evitam o debate e se refugiam em alegações técnicas. O ChatGPT comete erros, dizem, com alívio. De fato, no dizer dos programadores e dos estudiosos da computação, a engenhoca entra em alucinações: erra, induz a erro, mente – e tudo isso sem enrubescer.
Mas por acaso isso lá é critério para garantir que o organismo não é humano? Errar é desumano? Desde quando? Outro dia, numa resposta dada a uma doutoranda da USP, o prodígio digital se saiu com um “à Deus”, com crase e tudo. O que pode haver de mais humano? Estamos às voltas com um Rolando Lero maquínico, um personagem que tem caradura para sustentar como óbvias afirmações despirocadas. E escreve “à Deus” com crase.
Outros dizem que o Chat não deveria nos preocupar porque, na verdade, não é inteligente, apenas finge ser. Para esses, o artefato passa a impressão de coerência lógica, mas não pensa coisa alguma. Pode ser que estejam certos. No entanto, o mundo está cheio de gente que ostenta a inteligência que não tem. Exatamente como o GPT. Serão elas menos humanas?
E assim estamos. Com algoritmos que falam (e, pior ainda, escutam), além de escrever (e até ler), a nossa irrelevância fica ainda mais indisfarçável. A máquina nos convida para o papel de coadjuvantes na nossa própria história. E fala pelos cotovelos de silício.
O que salvou Moro foi o trabalho de inteligência sério
O plano da fação criminosa PCC de ataques a autoridades —entre elas o ex-juiz e hoje senador Sergio Moro (União Brasil – PR) e o promotor paulista Lincoln Gakiya, segundo a PF— é episódio de suma gravidade que não deve ser reduzido a farpas políticas, as quais deveriam cair no poço da irrelevância.
O episódio se soma à incidência recorrente de violência no Brasil. Em 2022, a violência política disparou 400% em comparação a 2018; e são comuns casos de juízes e promotores ameaçados no país. O que importa, agora, é avaliar o ocorrido.
É um alento verificar que a PF, depois de anos de tentativa de interferência pelo governo Bolsonaro —ao qual Moro serviu e do qual saiu, ao menos em suas palavras, em reação contrária a essa mesma interferência—, esteja hoje à frente do combate ao crime organizado.
Especialistas em segurança pública têm cobrado um papel mais direto do governo federal nesta seara; exercer a coordenação de ações contra o crime organizado, como a vista hoje, é justamente papel da PF. O caráter preventivo e o alcance geográfico da operação mostram sua robustez.
Dito isso, não é com soluções fáceis e midiáticas, comuns à carreira jurídico-política de Sergio Moro, que o crime será combatido. Como ministro, foi pouco propositivo no combate a milícias, alimentou a política de armas (que favorece o crime), endossou a violência policial e, de impacto, apenas transferiu lideranças do PCC para presídios federais. No mesmo dia da operação, o senador apresentou um projeto de lei (PL) a toque de caixa, tipificando a conduta de obstrução de ações contra o crime organizado.
É típico de Moro ver segurança pública de forma sensacionalista: o que o salvou não foi a criação de tipos penais vagos, mas o trabalho de inteligência sério. Moro é o rei Midas do espetáculo: tudo o que toca vira espelho; corre, infelizmente, o risco de utilizar o gravíssimo incidente para nutrir sua auto-imposta áurea de herói, em vez de discutir segurança pública como política de Estado.
O episódio se soma à incidência recorrente de violência no Brasil. Em 2022, a violência política disparou 400% em comparação a 2018; e são comuns casos de juízes e promotores ameaçados no país. O que importa, agora, é avaliar o ocorrido.
É um alento verificar que a PF, depois de anos de tentativa de interferência pelo governo Bolsonaro —ao qual Moro serviu e do qual saiu, ao menos em suas palavras, em reação contrária a essa mesma interferência—, esteja hoje à frente do combate ao crime organizado.
Especialistas em segurança pública têm cobrado um papel mais direto do governo federal nesta seara; exercer a coordenação de ações contra o crime organizado, como a vista hoje, é justamente papel da PF. O caráter preventivo e o alcance geográfico da operação mostram sua robustez.
Dito isso, não é com soluções fáceis e midiáticas, comuns à carreira jurídico-política de Sergio Moro, que o crime será combatido. Como ministro, foi pouco propositivo no combate a milícias, alimentou a política de armas (que favorece o crime), endossou a violência policial e, de impacto, apenas transferiu lideranças do PCC para presídios federais. No mesmo dia da operação, o senador apresentou um projeto de lei (PL) a toque de caixa, tipificando a conduta de obstrução de ações contra o crime organizado.
É típico de Moro ver segurança pública de forma sensacionalista: o que o salvou não foi a criação de tipos penais vagos, mas o trabalho de inteligência sério. Moro é o rei Midas do espetáculo: tudo o que toca vira espelho; corre, infelizmente, o risco de utilizar o gravíssimo incidente para nutrir sua auto-imposta áurea de herói, em vez de discutir segurança pública como política de Estado.
As necessidades e os desejos
Por óbvio, necessidade é diferente de desejo. Durante 99,99% da história humana, buscou-se basicamente satisfazer as necessidades, ainda que, em diferentes momentos, a nobreza e o clero buscassem se diferenciar dos demais, e os generais tenham substituído o objetivo de proteger a população pelo de conquistar novos espaços.
Tão importante era a busca pela satisfação das necessidades que surgiu um corpo de pensamento, a Economia, dedicado a analisar a escassez com vistas à superá-la. Na busca, o engenho humano encontrou maneiras de atender às necessidades de todos e todas. Então, o que seria solução se tornou um problema: com as necessidades atendidas, as vendas apenas cresceriam, fora a reposição dos itens desgastados, conforme o aumento da população, que até o século XX sempre foi menor que 1% ao ano.
Como fazer as vendas crescerem além do atendimento das necessidades? Essa uma das grandes questões enfrentadas por alguns ramos da Economia, já no século passado. Solução: criar necessidades e abreviar a duração dos produtos. Bingo!!!
O crescimento das vendas foi explosivo, a tal ponto que rompeu os limites planetários ao gerar tanto lixo, C02, plásticos, extinção de espécies sem conta, degradação de rios, mares e solos, embora 80% dos humanos, ainda hoje, sobrevivam com menos de US$10,00/dia! Vale dizer, sem suas necessidades atendidas! Tudo isso para que as vendas, e com elas o PIB e os lucros, cresçam! Processo que coloca em risco a sobrevivência da humanidade.
A criação de necessidades utilizou os aportes de Freud ao conhecimento da mente humana. Seu sobrinho, Edward Bernays, aplicou os ensinamentos do tio sobre as motivações humanas para alcançar diversos objetivos em termos de mobilização de massa: romper o tabu que impedia as mulheres de fumar, transformar o isolacionismo da população norte-americana em apoio à entrada do país na primeira guerra mundial, ensinar os lobbies industriais a substituírem o atendimento das necessidades pela criação, e atendimento, de desejos…
Nesse processo, os “cidadãos” ou “trabalhadores” foram substituídos por “consumidores”, e não mais se carece de um instrumento de locomoção, mas deseja-se uma máquina que revele (suposta) potência sexual; não mais uma maneira (tóxica!) de se refrescar, mas alcançar a felicidade ao tomar um refrigerante; não mais uma vestimenta confortável que proteja, mas uma exibição de “distinção”; não mais um instrumento para marcar as horas, mas para exibir riqueza! E enquanto isso, 80% da população continua sem poder atender suas necessidades, e as condições de sobrevivência da espécie humana no planeta se esvaem!
A continuidade desse processo não nos levará a bom porto. Retomar a busca pelo atendimento das necessidades, e não dos desejos criados, é desafiador, necessário e urgente! Como disse Ghandi: o mundo é grande o bastante para atender às necessidades de todos, mas sempre demasiado pequeno para a ganância de alguns!
Tão importante era a busca pela satisfação das necessidades que surgiu um corpo de pensamento, a Economia, dedicado a analisar a escassez com vistas à superá-la. Na busca, o engenho humano encontrou maneiras de atender às necessidades de todos e todas. Então, o que seria solução se tornou um problema: com as necessidades atendidas, as vendas apenas cresceriam, fora a reposição dos itens desgastados, conforme o aumento da população, que até o século XX sempre foi menor que 1% ao ano.
Como fazer as vendas crescerem além do atendimento das necessidades? Essa uma das grandes questões enfrentadas por alguns ramos da Economia, já no século passado. Solução: criar necessidades e abreviar a duração dos produtos. Bingo!!!
O crescimento das vendas foi explosivo, a tal ponto que rompeu os limites planetários ao gerar tanto lixo, C02, plásticos, extinção de espécies sem conta, degradação de rios, mares e solos, embora 80% dos humanos, ainda hoje, sobrevivam com menos de US$10,00/dia! Vale dizer, sem suas necessidades atendidas! Tudo isso para que as vendas, e com elas o PIB e os lucros, cresçam! Processo que coloca em risco a sobrevivência da humanidade.
A criação de necessidades utilizou os aportes de Freud ao conhecimento da mente humana. Seu sobrinho, Edward Bernays, aplicou os ensinamentos do tio sobre as motivações humanas para alcançar diversos objetivos em termos de mobilização de massa: romper o tabu que impedia as mulheres de fumar, transformar o isolacionismo da população norte-americana em apoio à entrada do país na primeira guerra mundial, ensinar os lobbies industriais a substituírem o atendimento das necessidades pela criação, e atendimento, de desejos…
Nesse processo, os “cidadãos” ou “trabalhadores” foram substituídos por “consumidores”, e não mais se carece de um instrumento de locomoção, mas deseja-se uma máquina que revele (suposta) potência sexual; não mais uma maneira (tóxica!) de se refrescar, mas alcançar a felicidade ao tomar um refrigerante; não mais uma vestimenta confortável que proteja, mas uma exibição de “distinção”; não mais um instrumento para marcar as horas, mas para exibir riqueza! E enquanto isso, 80% da população continua sem poder atender suas necessidades, e as condições de sobrevivência da espécie humana no planeta se esvaem!
A continuidade desse processo não nos levará a bom porto. Retomar a busca pelo atendimento das necessidades, e não dos desejos criados, é desafiador, necessário e urgente! Como disse Ghandi: o mundo é grande o bastante para atender às necessidades de todos, mas sempre demasiado pequeno para a ganância de alguns!
quinta-feira, 23 de março de 2023
Gollum do Brasil
O dinheiro assemelha-se a um sexto sentido sem o qual não podemos fazer o uso completo dos outros cincoW. Somerset Maugham
Moro escapa de morrer no governo de quem pensou em ferrá-lo
A tentação de culpar Lula pelo crescimento do crime organizado no país é grande e em breve atrairá vozes estridentes. Algumas delas já reclamam da incapacidade do governo de devolver a paz ao conflagrado estado do Rio Grande do Norte.
Mas como não foi Lula que governou o país nos últimos 4 anos, nem nos últimos 8, nem nos últimos 12, talvez soe precipitado crucificá-lo. Também não foi ele que estimulou a população a se armar sabendo que parte das armas cairia nas mãos de criminosos.
Bem, mas Lula, que agora chora por tudo, cometeu a incontinência verbal de revelar o que respondia, quando preso, a quem lhe perguntava como estava passando. Invariavelmente, ele dizia:
“Só vai ficar bem quando eu foder com o Moro”.
Se pode servir de consolo a Lula, dá para inferir que ele não sabia que no dia seguinte a Polícia Federal iria prender integrantes do PCC, a facção mais famosa do crime organizado, que planejavam matar o ex-juiz Sérgio Moro e outras autoridades públicas.
E não era para saber. Como órgão de Estado, a Polícia Federal não informa com antecedência a ninguém sobre o que fará amanhã ou daqui a pouco, nem mesmo ao ministro da Justiça ao qual está subordinada, quanto mais ao presidente da República.
É razoável supor que se Lula tivesse sido informado sobre a operação, calasse sobre o que lhe passava pela cabeça nos 580 dias de prisão em Curitiba. Seus instintos mais primitivos estavam à flor da pele. Ele queria vingar-se do juiz parcial que o condenara.
Que ironia! Lula só pensava em “foder” Moro. Pois foi no seu governo que Moro escapou de morrer. Se Moro tivesse sido assassinado culpariam o governo. Como foi avisado há dois meses e era protegido, culpam o governo da mesma forma. Quem culpa?
Os derrotados nas eleições passadas que afinal viveram um dia de glória depois de semanas sob o sufoco do escândalo das joias enviadas de presente pela ditadura da Arábia Saudita para o casal Bolsonaro – um agradinho no valor de quase 17 milhões de reais.
Direto dos Estados Unidos, onde se refugiou com medo de ser preso, Bolsonaro deu a senha para que seus seguidores malhassem Lula, o governo e o PT por conta do que não aconteceu a Moro. Escreveu no Twitter, ou Carlos, o Zero Dois, escreveu por ele:
“Em 2002, Celso Daniel. Em 2018, Jair Bolsonaro e agora Sérgio Moro. Tudo não pode ser só coincidência. O poder absoluto a qualquer preço sempre foi o objetivo da esquerda”.
No Senado, Moro que saiu do governo passado acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal, discursou:
“Gosto de uma frase em sentido metafórico. Se vêm para cima da gente com uma faca, temos de usar um revólver. Se usam revólver, temos de vir com metralhadora. Se têm metralhadora, temos que ter um tanque ou um carro de combate.”
Deveria ter dito isso a Bolsonaro à época em que era seu ministro da Justiça. Vai ver que o disse e Bolsonaro não ligou. Os dois fizeram as pazes e estão numa boa.
Mas como não foi Lula que governou o país nos últimos 4 anos, nem nos últimos 8, nem nos últimos 12, talvez soe precipitado crucificá-lo. Também não foi ele que estimulou a população a se armar sabendo que parte das armas cairia nas mãos de criminosos.
Bem, mas Lula, que agora chora por tudo, cometeu a incontinência verbal de revelar o que respondia, quando preso, a quem lhe perguntava como estava passando. Invariavelmente, ele dizia:
“Só vai ficar bem quando eu foder com o Moro”.
Se pode servir de consolo a Lula, dá para inferir que ele não sabia que no dia seguinte a Polícia Federal iria prender integrantes do PCC, a facção mais famosa do crime organizado, que planejavam matar o ex-juiz Sérgio Moro e outras autoridades públicas.
E não era para saber. Como órgão de Estado, a Polícia Federal não informa com antecedência a ninguém sobre o que fará amanhã ou daqui a pouco, nem mesmo ao ministro da Justiça ao qual está subordinada, quanto mais ao presidente da República.
É razoável supor que se Lula tivesse sido informado sobre a operação, calasse sobre o que lhe passava pela cabeça nos 580 dias de prisão em Curitiba. Seus instintos mais primitivos estavam à flor da pele. Ele queria vingar-se do juiz parcial que o condenara.
Que ironia! Lula só pensava em “foder” Moro. Pois foi no seu governo que Moro escapou de morrer. Se Moro tivesse sido assassinado culpariam o governo. Como foi avisado há dois meses e era protegido, culpam o governo da mesma forma. Quem culpa?
Os derrotados nas eleições passadas que afinal viveram um dia de glória depois de semanas sob o sufoco do escândalo das joias enviadas de presente pela ditadura da Arábia Saudita para o casal Bolsonaro – um agradinho no valor de quase 17 milhões de reais.
Direto dos Estados Unidos, onde se refugiou com medo de ser preso, Bolsonaro deu a senha para que seus seguidores malhassem Lula, o governo e o PT por conta do que não aconteceu a Moro. Escreveu no Twitter, ou Carlos, o Zero Dois, escreveu por ele:
“Em 2002, Celso Daniel. Em 2018, Jair Bolsonaro e agora Sérgio Moro. Tudo não pode ser só coincidência. O poder absoluto a qualquer preço sempre foi o objetivo da esquerda”.
No Senado, Moro que saiu do governo passado acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal, discursou:
“Gosto de uma frase em sentido metafórico. Se vêm para cima da gente com uma faca, temos de usar um revólver. Se usam revólver, temos de vir com metralhadora. Se têm metralhadora, temos que ter um tanque ou um carro de combate.”
Deveria ter dito isso a Bolsonaro à época em que era seu ministro da Justiça. Vai ver que o disse e Bolsonaro não ligou. Os dois fizeram as pazes e estão numa boa.
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