“De acordo com a prática naquela unidade militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas. Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura. Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória História.
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