quarta-feira, 30 de março de 2022

Joe Biden tem razão: Putin não pode permanecer no poder

Ao declarar que o agressor bélico Vladimir Putin não pode mais permanecer no poder, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem razão. Ele apenas disse espontaneamente o que muitos pensam e que seria o imperativo moral: o ditador no Kremlin, que provoca sofrimento a milhões de seres humanos, tem que ser deposto e julgado como criminoso de guerra.

Só foi infeliz expressar esse pensamento agora, quando se precisa de Putin como interlocutor nas negociações para, de algum jeito, dar fim à guerra desencadeada por ele na Ucrânia, através de um armistício. O próprio Biden não recua de sua declaração, após discussões nos EUA, mas ao mesmo tempo insiste que seu país não persegue como política oficial a troca de poder em Moscou. As duas coisas não combinam: ou um, ou outro.

No momento a prioridade é acabar com o terror das bombas contra a população ucraniana e sustar o avanço russo. Depois deve ficar claro que não pode mais haver cooperação com Putin e seus asseclas, os quais os EUA e a União Europeia culpam abertamente por crimes de guerra.

Quanto mais rápido ele e seu regime de dominação forem superados, melhor. Não pode mais haver relações políticas e econômicas com a Rússia sob Putin. Falando na TV nacional, o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, também deixou esse ponto claro, embora não tenha qualificado o chefe do Kremlin diretamente de criminoso de guerra.


O argumento de que não se deve provocar Putin, não procede. Pois o autocrata sabe perfeitamente que o Ocidente não deseja nada mais ardentemente do que a deposição dele, independente de alguém o dizer publicamente. Decisivo é o fato de que uma mudança de regime não será fácil, na prática.

Como a Organização do Tratado do Atlântico Norte descartou a mobilização de tropas, em princípio um assassinato direcionado de Putin não entra em cogitação. Fica excluída, assim, uma solução como as aplicadas no caso de Osama bin Laden, Muammar al Kadafi, Saddam Hussein ou Nicolae Ceaucescu. Não por não ser moral ou legalmente justiificada, mas porque no momento é quase impossível chegar de fora até Putin, e porque na própria Rússia não há um movimento de resistência forte.

Partindo-se do princípio que o chefe de Estado não renunciará voluntariamente a seu posto, só resta a deposição do tirano por assassínio planejado, como se tem praticado desde a Antiguidade até os nossos dias. Certos especialistas em ética moral e direito internacional argumentarão que tal ato seria moralmente desprezível e fora dos limites da legalidade.

Em princípio, está correto. No entanto, pode-se encarar Putin como o supremo comandante de um partido que trava guerra. Assim, seu assassinato por combatentes inimigos seria justificável perante o direito internacional e a Convenção de Genebra sobre os direitos humanos.

A solução também poderia ser um Brutus próximo a Vladimir Putin, como expressou o senador Lindsey Graham, referindo-se ao político que, na Roma de 44 a.C., assassinou o ditador Júlio César. O conservador americano conclamou os russos a tomarem seu destino nas próprias mãos. Talvez alguns oligarcas ou outros da panela de liderança de Putin estejam dispostos a executar esse atentado.

Poderia ser, por exemplo, uma versão russa e mais bem-sucedida do coronel Claus von Stauffenberg, que em 1944 quase conseguiu matar com uma bomba o tirano nazista Adolf Hitler, e que hoje é justamente homenageado na Alemanha como herói. A questão também é: quem ou o que viria depois? O brutal sistema entrará em colapso se lhe faltar a cabeça? Ou um outro tirano simplesmente tomará o lugar?

A história ensina que é preciso se defender de tiranos. Pode-se descartar que o chefe do Kremlin, que sonha com uma ressurreição da União Soviética, não vá recorrer a meios outros? Ele próprio ameaçou a Otan com consequências jamais vistas, caso ela intervenha. O que quis dizer? Ofensivas atômicas? Um inverno nuclear?

Desse ponto de vista, o presidente Biden tem certamente razão: Putin não deveria ocupar o poder nem poder ordenar mortes sem sentido por mais um só dia. Uma mudança de regime é necessária. O assassínio de um tirano poderia ser uma solução, mas que provavelmente permanecerá no campo dos sonhos.

Patriotismo e governo

"Já por várias vezes tive a oportunidade de manifestar a ideia de que o patriotismo é, no nosso tempo, um sentimento antinatural, insensato, nocivo, causador de grande parte das desgraças que a humanidade sofre, e que por isso não deve ser ensinado como hoje se faz - pelo contrário , deve ser reprimido e eliminado por todos os meios ao alcance das pessoas sensatas"

A situação piora constantemente e não há qualquer possibilidade de parar esse agravamento, que leva a uma evidente perdição. A única saída em que acreditavam as pessoas crédulas foi agora fechada pelos acontecimentos dos últimos tempos; refiro-me à Conferência de Haia e à guerra entre a Inglaterra e o Transval , que se lhe seguiu imediatamente.


Se as pessoas que raciocinam pouco e superficialmente ainda se podiam consolar com a ideia de que os tribunais internacionais podem afastar as desgraças da guerra e dos armamentos sempre crescentes, a Conferência de Haia e a guerra que se lhe seguiu mostrou da maneira mais evidente a impossibilidade de solução do problema por essa via. Depois da Conferência de Haia, tornou-se evidente que, enquanto houver governos com exércitos, é impossível pôr fim aos armamentos e às guerras. Para que seja possível um acordo, é necessário que as partes concordantes confiem umas nas outras. E para que as potências possam confiar umas nas outras, devem depor as armas, como fazem os parlamentares quando se reúnem para conferenciar. Mas enquanto os governos, desconfiando uns dos outros , não só não destroem como aumentam os exércitos em correspondência com os aumentos feitos pelos vizinhos , e por meio de espiões seguem cada movimentação das tropas , sabendo que qualquer potência se lançará contra o vizinho assim que tiver uma oportunidade para isso, não é possível nenhum acordo, e qualquer conferência é uma tolice, ou uma brincadeira, ou um engano, ou uma impertinência, ou todas essas coisas juntas.

Cabia precisamente ao governo russo , mais do que aos outros, ser o enfant terrible dessa conferência. O governo russo tão mal habituado porque dentro do país ninguém levanta objecções a todos os seus manifestos e rescritos claramente mentirosos, e, sem a mínima hesitação, arruinou o seu povo com o armamento, estrangulou a Polónia, roubou o Turquestão, a China, e asfixia a Finlândia com especial aspereza - propôs aos governos o desarmamento, com plena confiança em que acreditariam nele.

Mas , coisa estranha, por inesperada e indecente que fosse essa proposta, em especial no mesmo momento em que se tomava uma disposição para o aumento do exército, as palavras proferidas publicamente eram tais que os governos não podiam perante os seus povos recusar as conferências cómicas e manifestamente falsas; e os delegados reuniram-se , sabendo de antemão que dali nada podia sair, e ao longo de vários meses, durante os quais auferiram bons ordenados, embora andassem a rir-se à socapa , todos a fingir conscienciosamente que andavam muito ocupados a estabelecer a paz entre os povos.

A Conferência de Haia, que terminou com um horrível morticínio - a guerra do Transval, que ninguém tentou parar -, foi em todo o caso útil, embora de modo nenhum por aquilo que dela se esperava; ela foi útil porque mostrou , da maneira mais patente, que o mal de que os povos sofrem não pode ser remediado pelos governos, que os governos, mesmo que o quisessem a sério, não poderiam acabar com os armamentos nem com as guerras. Para existirem, os governos têm de defender o seu povo dos ataques de outros povos, mas nenhum povo deseja atacar nem ataca outro, e por isso os governos não só não querem a paz, como exercitam zelosamente o ódio de outros povos. Ao despertarem nos outros povos o ódio para consigo e o patriotismo no seu próprio povo, os governos convencem o seu povo de que está em perigo e precisa de se defender.

E tendo o poder nas suas mãos, os governos podem irritar os outros povos, e exercitar o patriotismo no seu próprio povo , e fazem zelosamente uma e outra coisa, e não podem deixar de o fazer porque nisso se baseia a sua existência.
Se dantes os governos eram necessários para defender os seus povos dos ataques de outros, agora, pelo contrário os governos perturbam artificialmente a paz que existe entre os povos, e provocam a hostilidade entre eles.

Se era necessário lavrar para semear, a lavoura foi uma coisa sensata; mas, evidentemente , é absurdo e prejudicial lavrar quando a sementeira está feita. E é isso que os governos obrigam os seus povos a fazer - destruir a unidade que existe e que nada perturbaria se não houvesse governos. 

Lev Tolstoi, "Os Últimos Escritos"

O Brasil precisa virar Ocidente

Invadida pela Rússia, a Ucrânia luta heroicamente pela manutenção do seu território, pela preservação da sua identidade nacional e, não menos importante, pela defesa dos valores da democracia ocidental, embora esteja localizada numa Europa Oriental com tradições que diferem das do oeste europeu. Porque o Ocidente não é uma expressão geográfica, mas uma ideia de liberdade — ou de liberdades. Liberdades individuais, liberdade econômica, liberdade de imprensa, liberdade de manifestação, liberdade de a sociedade escolher os seus representantes dentro dos limites estabelecidos por uma Constituição. Não há nada mais nobre do que a defesa das liberdades fundamentais numa guerra. Mas, mesmo em época de paz, a batalha pela conservação dessas liberdades é diária. O espectro do autoritarismo está sempre presente. Ele pode esconder-se numa sentença judicial, na aprovação de uma lei, no editorial de um jornal, no abuso de poder governamental e na interdição do debate por meio de movimentos articulados nos canais de expressão sociais, como mostra a cultura do cancelamento.

Li o artigo que Sergio Moro publicou no sábado, em O Antagonista, sobre a visita que ele fez à Alemanha, para encontrar-se com representantes políticos daquele país. Não há como não concordar com o que ele afirmou:

“Há uma percepção negativa de que o Brasil está cada vez mais se afastando das democracias ocidentais. Além de não vermos progresso na abertura da economia brasileira para o mundo, os movimentos de Bolsonaro na direção de Putin foram notados. A visita dele, na semana anterior ao início da guerra, e a declaração de solidariedade à Rússia fizeram um estrago na já deteriorada imagem do Governo.

Para piorar, Lula e o PT, padecendo da doença infantil do antiamericanismo e saudosos da União Soviética, foram também incapazes de se manifestar de maneira clara contra a invasão da Ucrânia e em condenar a Rússia.”

Jair Bolsonaro é um saudosista da ditadura militar e nunca deixará de sê-lo, embora se diga defensor da democracia; Lula é outro liberticida, com histórico de tentativas de amordaçar a imprensa, sabotagem do processo eleitoral, por meio de campanhas financiadas com dinheiro roubado, e apoio a ditaduras de esquerda na América Latina, apesar de vender-se como o contrário. Ambos são adeptos da compra financeira de parlamentares, o que está longe de constar da cartilha democrática. Nenhum deles considera, de fato, a democracia um valor universal, mas estratégico. Ou seja, como um meio para perpetuar-se no poder. Nenhum deles poderia prezar, de fato, o Ocidente e as suas liberdades.

Entre tantas escolhas que precisam ser feitas pelos brasileiros, esta não é a menos importante: se queremos que o país integre o Ocidente ou não. Em momentos de guerra, como a que está em curso na Europa, o nosso desalinhamento com os valores ocidentais fica mais evidente. Mas a verdade é que a posição do Brasil, assim como a de outros países da América Latina, sempre foi dúbia. Não somos Ocidente. Talvez sejamos uma espécie de Ocidente Próximo, nada além disso. Recentemente, numa conversa com um diplomata europeu que serviu em Genebra, sede de organizações internacionais de realce, ele me disse exatamente isto: que era notável como o Brasil e muitos dos seus vizinhos resistiam a aderir a ações coordenadas do Ocidente. O passado colonial criou certa desconfiança, imagino, em relação às antigas metrópoles; o fato de os Estados Unidos tratarem o subcontinente como quintal deve pesar; o fato de sermos o cemitério de ideologia esquerdistas tem o seu peso também. Mas precisamos superar esses obstáculos, se quisermos preservar as liberdades que nos fortalecerão como nação interna e externamente. O Brasil tem de virar Ocidente, antes que o mar vire sertão.

terça-feira, 29 de março de 2022

Dá um embrulho no estômago ouvir as mentiras do 'capitão do povo'

Bolsonaro não era capitão quando começou o processo que acabaria por afastá-lo do Exército por conduta antiética. Para o general Ernesto Geisel, o terceiro presidente da ditadura, ele foi um mau militar. Concederam-lhe a patente de capitão em troca de não criar mais confusão e despir a farda sem maior barulho.

No encontro promovido pelo PL, em Brasília, para filiar o presidente e alguns ministros, Bolsonaro, que planejou atentados a bomba a quartéis, apresentou-se como “o capitão do povo”. Reescrever a história é um mero detalhe, recurso comumente usado pelo marketing político para promover os candidatos. Ninguém liga.

Liga para o que o candidato fez, promete e diz. E o que disse Bolsonaro, em mais um ato escancarado de campanha, pode ter agradado aos seus seguidores, mas não lhe assegurou um voto fora da bolha. Quem vota nele continuará votando. Por ora, ele cresce com a volta dos que procuravam um candidato nem-nem.

Os ministros da ala política do governo, que sonham com a reencarnação do Jairzinho Paz e Amor, fantasia vestida por Bolsonaro depois do fracasso do golpe militar de 7 de setembro último, não gostaram quando ele disse que, por vezes, dá um embrulho no seu estômago ter que respeitar a Constituição.


Ao tomar posse, um presidente jura cumprir a Constituição. Bolsonaro jurou, assim como prometeu governar para todos os brasileiros, não só para aqueles que o elegeram. A Constituição pode ser mudada pelo Congresso, mas ela tem dispositivos que não podem ser mudados. São conhecidos como “cláusulas pétreas”.

Agrupam-se no artigo 60, parágrafo 4, da Constituição. São eles: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação e independência dos Três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário); e os direitos e garantias individuais.

Direitos individuais são aqueles que oferecem o básico aos cidadãos, como a liberdade de ir e vir, liberdade de expressão, livre trabalho, saúde e educação. Dá vontade de vomitar ouvir um presidente dizer que a Constituição, às vezes, embrulha o seu estômago. Se a Constituição falasse, talvez dissesse o mesmo dele.

Bolsonaro embrulhou o estômago alheio, mais uma vez, ao não deixar passar a oportunidade de exaltar a memória do seu amigo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único militar condenado pela Justiça por tortura de presos políticos à época da ditadura de 64. A presidente Dilma foi torturada por Ustra.

Embrulhou outra vez ao usar de tom belicoso, claramente armamentista, para proclamar:

“[Em defesa da nossa liberdade e da nossa democracia], eu tomarei a decisão contra quem quer que seja. E a certeza do sucesso é que eu tenho um exército do meu lado. E esse exército é composto por cada um de vocês.”

Os militares golpistas de 64 invocaram o direito à liberdade e a democracia ao depor um presidente legitimamente eleito e instalar uma ditadura que durou 21 anos, torturou, matou e instituiu a censura. Bolsonaro não esconde que sente saudades dela. Apenas lamenta que ela tenha matado tão poucos.

Se dependesse unicamente dele, liberdade só haveria a seu favor. Isso novamente ficou demonstrado quando o PL, agora sob sua orientação, e a pretexto de que era propaganda eleitoral antes da hora, tentou calar manifestações políticas de artistas no festival Lollapalooza, realizado em São Paulo.

Foi mais um tiro que Bolsonaro deu no próprio pé. Ele deve detestar o pé. Então, as manifestações se multiplicaram, o público aderiu com entusiasmo, e descobriu-se que o juiz que atendeu sua queixa, proibindo o que não deveria proibir, favoreceu-o há poucos dias ao impedir a remoção de um outdoor com o seu retrato.

Só os ucranianos, às voltas com os russos, ignoram que Bolsonaro está em campanha à reeleição desde o seu primeiro dia de governo, e mais ostensivamente do fim do ano passado para cá. E com todas as despesas pagas pela Presidência da República. O que são as motociatas? E as inaugurações de obras prontas?

É melhor já irem se acostumando os aliados de cabeça fria do presidente: Jairzinho Paz e Amor, invenção do ex-presidente Temer, foi abortado logo depois do seu nascimento. Não tem lugar para ele nos palanques de campanha de Bolsonaro. Tratem, portanto, de apelar a outras mentiras para enganar o povo.

Pastores que querem impor sua visão de mundo

No delicioso “Rato de redação: Sig e a história do Pasquim”, de Márcio Pinheiro, com histórias do hebdomadário Pasquim, há registro de uma cena — ocorrida no final de 1970! — que mostra a definitiva atualidade do renitente atraso brasileiro.

No quadro “Independência ou morte”, de Pedro Américo, o cartunista Jaguar aplicou um balão em cima da figura de Dom Pedro I, como se fossem seus dizeres: “Eu quero mocotó” — e seguiam dois pontos de exclamação.

O novo Grito do Ipiranga emulava o estribilho da canção homônima de Jorge Benjor, defendida no V Festival Internacional da Canção por Erlon Chaves e sua Banda Veneno. Por causa da sensualidade de seu coro feminino, Erlon teve de dar explicações na delegacia.

A irreverência de Jaguar custou-lhe uma cana. Boa parte da redação do Pasquim seguiria também para a mesma cela por quase três meses.


Ocupando meia página, o cartum de Jaguar nem sequer ganhara destaque no tabloide. Ao ser interrogado, soube que estava ali detido por haver desrespeitado um símbolo nacional.

— Mas esse quadro é uma porcaria, além de ser plágio — informou Jaguar, em seguida posto atrás das grades.

O poder nunca soube lidar com o humor, com os chistes. A ironia fina crucifica os ridículos. Jaguar e a turma do Pasquim enfrentavam a barra dura da ditadura militar — naquele ano de 1970, o padrão eram prisões seguidas de torturas.

Décadas antes, em 1922, a dupla Freire Júnior e Luís Sampaio (o “Careca”) compôs a marcha “Ai, seu Mé”. Nilo Peçanha e Artur Bernardes, conhecido pelo apelido de “Seu Mé”, disputavam a eleição presidencial. Vitorioso, o vingativo Bernardes mandou prender os autores. Freire Júnior ficou escondido, mas Careca padeceu dias no xilindró.

Era tarde, porque a população continuou cantando a marchinha pelas ruas. A mesma desobediência civil (aqui, sendo generosos com os golpistas) ocorreria com “Apesar de você”, de Chico Buarque, lançada sob o governo Médici. A censura não entendeu a letra e a liberou para gravação, logo transformada em sucesso com milhares de cópias vendidas em pouco tempo. Até que alguma autoridade com mais tutano compreendeu o recado — hoje você é quem manda/falou, tá falado/não tem discussão —, e a música foi proibida.

De novo, era tarde, porque é difícil ainda hoje não encontrar quem não cantarole que apesar de você/amanhã há de ser outro dia, mesmo sem saber o contexto da letra.

A tentativa de cercear a sociedade, seja na censura às artes, seja no cabresto imposto aos comportamentos, é um instituto abraçado por governos e grupos diversos. Em geral, minoritários sedentos de colocar na maioria seus guizos e de lançar seus preconceitos. Quase sempre lançam mão de epítetos genéricos como família, tradição e Deus para baixar o porrete ou forjar leis na tentativa de impor sua imagem de mundo.

Antes de chegarmos aos pastores de Bozo, um pouco de História, a partir do livro do antropólogo David Graeber e do arqueólogo David Wengrow. Em “The dawn of everything: a new history of humanity”, a dupla busca mostrar como o padrão das sociedades indígenas americanas, no século XVII, com seus conceitos de liberdade, solidariedade e igualdade, chocou os intelectuais europeus, por certo influenciando as ideias iluministas.

Se provocaram reflexões nos principais autores da época, causaram engulho nos jesuítas enviados ao Novo Mundo com a missão de catequizar os povos indígenas da América do Norte. A missão cristã se escandalizou com a liberdade sexual, de casamento, de repúdio à ideia de propriedade e com o descompromisso brutal em obedecer a ordens. Ou, no termo do antropólogo James C. Scott, com “o domínio da arte de não ser governado”.

Para os indígenas americanos, além de não haver o conceito de culpa (a culpa cristã), havia uma identificação e respeito com os entes da natureza. Em registros do pensamento de Kandiaronk, líder indígena responsável por dialogar com os europeus, há uma crítica curiosa, que balançou o coreto dos intelectuais: como é que eles passavam a vida atormentados pela busca de riqueza, dentro de uma sociedade que os tornava escravos uns dos outros? Para os autores do livro, a sabedoria dos autóctones americanos se tornou um presente ao Iluminismo, ainda mais pelos ideais de liberdade. O que leva Kandiaronk a questionar “a extraordinária autoimportância da convicção jesuíta de que um ser onisciente e onipotente escolheria livremente se prender em carne e sofrer terríveis sofrimentos, tudo por causa de uma única espécie”.

Apesar da permanência de suas ideias, sabemos o que aconteceu aos indígenas americanos (brasileiros também).

A luta (contra a maioria) continua. Uma pequena minoria evangélica (de pentecostais e neo), em seu projeto de poder, procura demonizar a maioria que não segue seu credo. Pedem tolerância e impõem sua idiossincrática intolerância. Usam nosso dinheiro (como isenção de impostos etc.), não para rezar, porém com manifesta má intenção de limitar nossa livre consciência e de cevar aleivosias. É hora de gritar: eu quero mocotó.

Nenhuma guerra é simples

Numa das minhas últimas colunas chamei a atenção para o perigo e o absurdo de se aceitar como normal que forças neonazis combatam ao lado dos ucranianos contra os invasores russos, inclusive integradas no aparelho militar do governo. Desde então venho recebendo mensagens de leitores. Alguns, os mais fiéis, enviam-me cartas indignadas, porém respeitosas; outros, os que apenas leram aquela coluna, insultam-me e ameaçam-me.

“Você está complicando algo que é bem simples”, explicou-me um dos leitores fiéis: “A Rússia invadiu a Ucrânia. Então, a Rússia é o lado mau. Você quer ficar do lado do Putin?”

Obviamente, não estou do lado de Putin, o qual, aliás, conta também com o apoio de forças da extrema direita, incluindo mercenários. 

Gostamos de pensar que numa guerra as escolhas são simples, um lado é bom e o outro ruim. Dessa forma nos sentimos autorizados a odiar o lado mau, sem freio e sem remorsos. Infelizmente, nenhuma guerra é simples. Nem a mais insignificante. Nem sequer uma guerra entre marido e mulher. 


Desejar que uma determinada situação seja simples é como desejar que um unicórnio irrompa, do nada, no jardim em frente. A realidade não simpatiza com unicórnios — nem com ideias simples.

Somos seres complexos, com um profundo horror à complexidade. 

Em primeiro lugar, o fato de um lado ser mau não significa que o outro seja bom. Além disso, o fato de alguém ter razão num determinado conflito não torna melhores as suas ideias más. Finalmente, a maldade do meu inimigo em nada me aprimora. Já a maldade dos meus aliados, essa sim, me degrada e diminui.

Ouço dizer que o Batalhão Azov está combatendo os invasores russos, em Mariupol, com extraordinária bravura. Aliás, foi graças a essa mesma ferocidade, lutando contra os independentistas de etnia russa do Donbass, que o referido batalhão acabou integrado à Guarda Nacional. 

Há certas virtudes que engrandecem as pessoas boas, mas pioram as pessoas perversas. A coragem é uma delas. Um racista corajoso é muito pior do que um racista covarde. Um neonazi intrépido é muitíssimo mais perigoso do que aquele que foge e se esconde. 

A Ucrânia pagará um preço elevadíssimo por ter institucionalizado movimentos neonazis. E o que dizer dos países ocidentais, que hoje fingem não ver a dimensão e o poder desses movimentos, e a sua ligação íntima ao atual governo ucraniano?

Em 2018, o Congresso dos EUA aprovou um projeto de lei que proibia a venda de armas ao Batalhão de Azov. Com a invasão russa, porém, tanto os EUA quanto a Europa começaram a fornecer toneladas de armamento aos ucranianos, sendo difícil acreditar que uma larga parte deste armamento não vá parar às mãos dos neonazis, tanto mais que são estes nas linhas da frente, batendo-se contra as tropas russas. 

E amanhã, quando os russos deixarem a Ucrânia, derrotados, ou na sequência de um qualquer acordo de paz? O que é que os americanos e europeus pensam fazer com os neonazis que armaram até aos dentes, e que entretanto ganharam força, credibilidade, e expressão internacional?

Já vimos algo assim acontecer no Afeganistão. Triste mundo.

A legislação eleitoral é pró-político, e não pró-cidadão

Os anos eleitorais são aqueles em que a liberdade de expressão mais padece no Brasil. Isso acontece por uma razão: a legislação eleitoral foi desenhada desde sempre para favorecer o interesse dos políticos de serem eleitos ou reeleitos, e não o direito dos cidadãos de fazerem escolhas bem informadas ou falarem em público sobre política. A decisão do TSE que proibiu artistas de fazerem “propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido” no festival Lollapalooza é um exemplo disso.

A decisão foi tomada porque a cantora Pablo Vittar mostrou uma bandeira de Lula e a cantora Marina mandou Jair Bolsonaro fazer uma coisa feia, ambas durante seus shows. O partido do ocupante do Planalto achou que manifestações desse tipo o prejudicam eleitoralmente. Embora nem Lula nem Bolsonaro sejam ainda pré-candidatos, muito menos candidatos registrados, a Justiça eleitoral achou por bem mandar os artistas fecharem o bico.

Preciso explicar que, se Lula e Bolsonaro estivessem eu posições invertidas, eu defenderia os mesmos argumentos? Espero que não. Adiante…

A sentença contra o Lollapalooza, que precisa manter suas atrações na linha, ou ser multado, não tem nada de inesperado. Pelo contrário, ela está em absoluta consonância com o espírito da legislação brasileira e a maneira como ela tem sido interpretada pelo TSE.


O problema dessa legislação é que ela não diferencia entre partidos, políticos e cidadãos comuns. Qualquer pessoa, ao expressar preferência por um candidato, se transforma num possível infrator. A lei tampouco define com clareza o que constitui propaganda eleitoral, especialmente a “propaganda negativa”, categoria em que a manifestação da cantora Marina contra Bolsonaro foi enquadrada. Com isso, os juízes têm um arbítrio enorme para estabelecer o que pode e o que não pode.

Todos os dias, inimigos como Lula e Bolsonaro se ofendem em público. Lula chama o presidente de “psicopata” em uma rádio de grande alcance. Bolsonaro, visitando uma cidade para lançar uma obra, empoleirado em um palanque oficial, refere-se ao petista como “ladrão de nove dedos”. Nada disso é punido – nem mesmo o uso do palanque pago com dinheiro público para fim eleitoral. No entanto, o gesto das cantoras é proscrito.

Não é só nas corridas presidenciais que essa lógica se manifesta. A situação é a mesma, sejam quais forem os cargos em disputa. Por isso, em anos eleitorais, os pedidos de remoção de conteúdo das redes sociais quintuplicam ou sextuplicam. Brasil afora, são muitos os casos registrados de cerceamento da imprensa, tentativas de calar humoristas ou cartunistas, e outras situações em que a liberdade de expressão da sociedade civil é submetida aos interesses dos políticos de parecerem limpinhos, imaculados.

Quer a prova de que as eleições impõem uma lógica draconiana à manifestação de pensamento? Por decisão do STF, boa parte desses conteúdos bloqueados pode ser posta no ar novamente, depois que sai o resultado das urnas.

Agora vem a questão mais difícil de um texto como este: e fake news? Pode? Não existe contradição entre dizer que deveria haver mais liberdade de expressão em anos eleitorais e propor que haja combate contra as fake news. É possível querer as duas coisas ao mesmo tempo, pois o apoio aberto de um cantor a fulano ou sicrano não afeta o jogo democrático da mesma forma que uma incitação ao golpe de estado, um ataque à legitimidade das eleições feitas com urnas eletrônicas, ou a difusão em massa, de forma semi-clandestina, de mensagens estapafúrdias sobre adversários. Porém, tanto a legislação brasileira quanto os juízes eleitorais acabam dando o mesmo peso às duas coisas. Essa cultura jurídica precisa mudar.

PS: Tramita no Congresso uma alteração das regras sobre propaganda oficial que impactaria as eleições. O projeto original, do deputado Cacá Leão (PP-BA), falava sobre contratação de agências de publicidade pelo poder público. Mas a relatora do tema, Celina Leão (PP-DF), acrescentou ao texto, com mão de gato, uma autorização para que o período de exibição da propaganda oficial aumente, bem como os limites de gastos de todos os governos para essa finalidade. A razão é nobre: viabilizar campanhas sobre a Covid. Mas há pegadinhas. Primeiro, um político pilantra e um publicitário esperto são capazes de vender mil maravilhas em trinta segundos. Em segundo lugar, publicidade oficial, mesmo quando feita com respeito às leis e falando de assuntos de interesse público, representa uma vantagem para quem está no cargo, contra seus adversários. Essa vantagem faz parte do jogo, mas querer ampliá-la em pleno ano eleitoral é casuísmo. Uma imoralidade.

domingo, 27 de março de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro aposta em ufanismo nos 200 anos da Independência

O governo tem sido cobrado a apresentar um plano para celebrar o bicentenário da Independência. Talvez seja melhor deixar a ideia para lá. Uma campanha da Secretaria Especial da Cultura expõe a visão bolsonarista da efeméride. É uma visão caricata, apoiada em patriotadas e mistificações.

“A Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma exclamação”, derrama-se o site oficial. “Na bravura, que arde como brasa, se revigora o espírito patriótico que, um dia, apontando o céu, nos bradou a liberdade”, prossegue.

O portal também carrega nas tintas ao descrever Pedro I. O herdeiro da Coroa portuguesa emerge como um herói sem defeitos. “Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação”, exalta o texto chapa-branca.


O palavrório falsifica a história ao narrar uma Independência fictícia. A cena épica só existiu na imaginação de Pedro Américo, autor do quadro “Independência ou Morte”, de 1888. O pintor plagiou uma tela do francês Ernest Meissonier, que retratou Napoleão na batalha de Friedland. Segundo testemunhos da época, o brado tupiniquim não foi tão retumbante. O príncipe estava abatido por uma infecção intestinal, vestia roupas simples e se equilibrava sobre uma mula.

“A tentativa de construir um herói idealizado, com sua espada flamejante a libertar um povo, certamente não se destina a quem tenha algum conhecimento da História do Brasil”, critica a historiadora Isabel Lustosa. “O relato romantizado segue o roteiro da construção do mito do herói. Esses exageros não contribuem para entender o que foi a Independência”, acrescenta a autora do livro “D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter”.

Entender as contradições da história não é o objetivo das cavalgaduras federais. Monarquistas, olavistas e generais de pijama preferem simplificar o passado em narrativas ufanistas. A fórmula já foi usada pela ditadura em 1972, quando a Independência fez 150 anos.

Os militares promoveram uma “gigantesca e bem-sucedida operação de apropriação do acontecimento histórico”, escreve a historiadora Heloisa Starling na última edição da revista Serrote. A propaganda exaltava o regime e estimulava o orgulho patriótico. Num lance espetaculoso, os restos mortais do imperador foram trazidos de Portugal e sepultados novamente no Museu do Ipiranga.

O governo Médici também recrutou artistas populares, como Roberto Carlos, para vender a história oficial. “É isso aí, bicho. Vai ter muita música, muita alegria. Porque vai ser a festa de paz e amor e todo brasileiro vai participar cantando a música de maior sucesso no país: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”, cantarolou o Rei, em gravação resgatada pela professora da UFMG.

Bolsonaro conhece o potencial do Sete de Setembro para mobilizar o eleitorado conservador. No ano passado, usou a data para promover atos golpistas. Ao convocá-los, subiu num cavalo e prometeu liderar uma “nova Independência do Brasil”. Em 2022, o capitão tentará usar o bicentenário como arma de campanha. A efeméride será celebrada a 25 dias do primeiro turno. O ufanismo do portal do governo é uma amostra do que vem por aí.

Guerra na Ucrânia inverte papel da Rússia de 1942

Na primavera europeia de 1942, as tropas da Alemanha nazista já haviam atropelado a Ucrânia e a Bielorússia, então ainda pertencentes à esfera soviética, e avançavam cada vez mais URSS adentro. Para os generais do Alto-Comando de Josef Stálin, não parecia haver dúvida: a Wehrmacht de Adolf Hitler tentaria conquistar o maior troféu daquela frente continental — Moscou, capital do Império Soviético. Erraram feio. A meta dos alemães era sitiar, ocupar e destruir Stalingrado, centro industrial e polo armamentista do país, que ainda por cima portava o nome do inimigo comunista.

Seguiu-se um épico de ferocidade histórica. Cada cidadão russo da cidade recebeu um fuzil e a mesma ordem de número 227: “Nenhum passo atrás”. Quem se rendesse ao inimigo podia ser executado. Também o exército invasor foi inequívoco nos seus comunicados aos moradores de Stalingrado: civis do sexo masculino (440 mil habitantes à época) seriam fuzilados. As mulheres, deportadas para trabalhos forçados na Alemanha.


De início, a um custo de mais de 200 mil mortos (sim, 200 mil), os russos conseguiram rechaçar as primeiras investidas nazistas. Porém logo ficou claro o tamanho do desequilíbrio de forças. A saída encontrada pelo lendário marechal Georgy Jukov e seu colega Aleksandr Vasilevsky consistiu em transformar Stalingrado numa ratoeira. Ratoeira para os 300 mil soldados alemães e romenos que nela entrassem. Montaram um eficaz anel defensivo nas montanhas ao redor e foram fechando esse anel contra os invasores da cidade. Ao final de seis meses de combates, os russos tinham em mãos 100 mil exauridos prisioneiros de guerra. Os 70% restantes do 6º Exército hitleriano morreram de frio, fome ou em combate. Do lado vitorioso, o horror não foi menor — sobraram apenas 34 mil civis, dentre os 440 mil russos que viviam ali. São cultuados como heróis até hoje. A Batalha de Stalingrado mudou a maré da Segunda Guerra Mundial.

Passados quase 80 anos, assistimos ao desenrolar de um novo épico. Desta vez, o solo é ucraniano, e as tropas russas de Vladimir Putin desempenham o papel de invasor, não mais de defensor. No mais, o paralelo histórico e o denominador comum saltam aos olhos. Falta saber se o embate final nas ruas de Kiev se dará antes ou depois de um cessar-fogo, antes ou depois da destruição final do que resta de vida também em outras cidades fantasmas do país.

Manuais de guerra ensinam que travar batalhas urbanas tende a ser oneroso para a força militar invasora. Esse tipo de combate neutraliza boa parte das vantagens táticas que costumam favorecer o atacante. Sabidamente, tanques, blindados, mísseis e artilharia pesada de pouco servem em combates corpo a corpo, casa a casa, rua a rua. Para um exército defensivo, mesmo quando inferior em armamento ou soldadesca, a disposição de combater qualquer que seja o custo em vidas pode ser decisiva. Volodymyr Zelensky, pelo jeito, optou por essa estratégia para defender a sua Ucrânia. Do ponto de vista estritamente estratégico, argumenta o historiador Benjamin Carter Hett, do Graduate Center da City University de Nova York (Cuny), pode fazer sentido — mesmo que Putin bombardeie as cidades ucranianas até elas virarem ruína, as montanhas de destroços serão usadas de amparo para seus defensores.

Mas e do ponto de vista moral e humano, não há limite? Pelas contas mais recentes do Unicef, em apenas um mês de guerra, 4,3 milhões de crianças ucranianas estão refugiadas ou foram deslocadas — mais da metade da população infantil do país. O custo de uma infância roubada com tanta brutalidade é alto. Que tipo de sociedade brotará desse colapso civilizatório? Historiadores e aqueles que já vivenciaram guerras sabem que a desesperança maior vem no day after, não durante o sufoco. Enquanto há guerra, o ser humano foca no essencial — tentar sobreviver e esperançar pelo fim dos combates. Apenas quando a guerra acaba podemos nos dar ao luxo de perceber o horror passado e de ver do que fomos capazes. Só então começamos a julgar e a doer no mundo que sobrou.

Não será muito diferente no conflito atual, qualquer que seja o desfecho. É provável que o ucraniano Zelensky esteja seguindo ao pé da letra o ensinamento básico de Napoleão: nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro. E erros é o que não falta à estratégia militar de Vladimir Putin. Voltamos então a Stalingrado? Ou a algo pior? Misericórdia.
Dorrit Harazim

Por um tempo sem heróis

1.Três semanas depois, o crime continua e vai continuar até não se sabe quando – cada vez mais destruidor, violento, revoltante, porque se mantém toda a sua cruel desumanidade e se agravam as suas tremendas consequências. Consequências para a Ucrânia e o povo ucraniano, em primeiríssimo lugar, mas também para outros países e povos: para as relações entre eles, para as suas condições de vida e para as garantias da soberania nacional. E consequências para esse valor supremo que é a paz no mundo. Assim, de que mais poderei aqui falar?


2. As imagens que sem cessar nos chegam de cidades bombardeadas, bairros residenciais e edifícios atingidos, a arder ou em ruínas, famílias com falta de tudo ou já destroçadas, inumeráveis feridos, mortos até abandonados nas ruas, velhos, mulheres e crianças (crianças com um sorriso lindo ou um olhar de espanto) em fuga do invasor estrangeiro, em estado penoso, deixando a sua pátria, a sua terra, a sua casa – as imagens falam por si.

Não é só, não é tudo, há “outro(s) lado(s)”? Pode ser. Mas tais imagens evidenciam uma realidade terrível, com uma causa indesmentível. Face a elas, e a tudo o mais que se sabe, não há, não pode haver, justificações nem atenuantes para o que a Rússia de Putin está a perpetrar. Justificações ou atenuantes só podiam existir se a Rússia estivesse a responder a uma invasão semelhante, ou para evitar uma sua comprovada iminência, o que obviamente não é o caso.

3. Há muitas situações horríveis a ocorrer noutras latitudes? Claro que sim, embora do ponto de vista da paz e da segurança mundiais, incluindo de um eventual conflito nuclear, não se possam de nenhum modo comparar à invasão da Ucrânia. Além de, insisto, nenhum crime poder justificar outro crime. Se há, porém, como em geral há, dolosas ou culposas ações, circunstâncias, fatores antecedentes, a outros atribuíveis, que contribuíram para tais situações, no caso a agressão armada russa, devem ser estudados, analisados, ponderados. Mas para procedimentos e efeitos futuros, não para desculpar Putin e o seu regime autocrático.

Idealmente é assim. Realisticamente, porém, esses antecedentes têm de ser tomados em conta quando se “negoceia” o, por todos os motivos, indispensável cessar-fogo e o regresso dos invasores ao seu país, mantendo a Ucrânia a sua soberania nacional. Com, pelo menos, uma “limitação”, pois, de toda a evidência, a Ucrânia será forçada a renunciar a vir a integrar a Nato, como desejava e, como se vê, necessitava.

4. O povo ucraniano e o seu Presidente, Volodymyr Zelensky, têm demonstrado grande espírito de resistência e de coragem na defesa da sua pátria. Coragem física e moral. Mas Zelensky precisará de ainda muito mais coragem moral – de par com lucidez e visão políticas, sentido da medida e capacidade argumentativa – nas “negociações” para a paz. Porque, a haver um mínimo de justiça ou de decência, o máximo seria a Ucrânia admitir a dita renúncia à integração na Nato, e a Rússia pagar a “reconstrução” do país. Parece claro, porém, que a primeira concessão não chegará para satisfazer Putin, e a segunda pretensão seria puramente lírica.

Então, face à inevitabilidade, dado o seu imenso potencial bélico, de uma vitória militar russa, com maior destruição e sofrimento para a Ucrânia e os ucranianos, Zelensky, repito, precisa de ainda muito mais coragem moral para procurar e assumir um entendimento com outras “concessões”, preservando a dignidade nacional, do que para se bater de armas na mão e morrer…

5. Morrer, como tantos já morreram, em defesa da sua terra, numa luta desigual, depois de matarem muitos russos, na sua imensa maioria também “inocentes”, forçados a fazer uma guerra injusta e sem causa(s). Os que morrem são os heróis que Zelensky, compreensivelmente, não se tem cansado de glorificar e condecorar a título póstumo. O que me faz lembrar Brecht: “Pobre pátria que precisa de heróis…”

Pois é, ansiamos todos, e neste momento à frente de todos o povo da Ucrânia, por um tempo e um mundo em que não haja, não sejam necessários, “heróis” – mas apenas mulheres e homens… Humanos.
José Carlos Vasconcelos

Os militares e a política

A participação dos militares na política brasileira sempre foi objeto de críticas, estudos e justificativas. A verdade é que a República foi proclamada no Brasil como consequência de um golpe de estado contra o Imperador, que uniu o pessoal fardado aos produtores agrícolas muito contrariados com o fim da escravidão, ocorrida em 1888. As duas forças se uniram, derrubaram o Império e embarcaram D. Pedro II no navio em direção a Europa. O Imperador faleceu no hotel Bedford em Paris, em 1891, pobre, mas com os bolsos cheios de terra do Brasil. O símbolo da saudade de seu país.

O Brasil, depois do Império, foi entregue a dois marechais. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Além de questões objetivas, havia uma doutrina política em moda na época. Era o positivismo do francês Augusto Comte, que teve alunos brasileiros e chegou ao Brasil por intermédio de professores das escolas militares. O princípio básico apontava no sentido de criar um sistema chamado de ditadura republicana que criava um governo democrático, mas protegido contra eventuais rebeliões da massa. Era o temor de que se repetisse aqui eventos semelhantes aos da Revolução Francesa.

Os primeiros momentos da jovem República se constituíram em esforço para evitar o retorno da Monarquia, fortalecer o sistema e evitar a desagregação territorial do país. Militares tiveram forte presença neste período que vai até a posse do primeiro presidente civil, Prudente de Moraes. Mas os militares perceberam, também, que, do ponto de vista operacional, as forças armadas brasileiras eram mal equipadas, mal distribuídas no território nacional e com baixo nível de comando. No entanto, para modernizar o Exército era necessário modernizar o país. A partir desta compreensão, a política entrou nos quarteis.

A revolta dos 18 do Forte, em Copacabana, no 5 de julho de 1922 foi o primeiro sinal de que o vento começava a mudar. O segundo 5 de julho, o de 1924, ocorreu depois da tomada da cidade de São Paulo, do enfrentamento com tropas do governo federal e o início da marcha da coluna Miguel Costa, depois chamada de Coluna Prestes. A coluna saiu de São Paulo, foi a Foz do Iguaçu e dali iniciou um impressionante roteiro que levou seus integrantes até o extremo nordeste brasileiro. Mais de 20 mil quilômetros a pé. Os militares conheceram a realidade brasileira. Na volta, fugindo dos jagunços que os perseguiram, buscaram exílio na Bolívia e no Paraguai.

Os cadetes da coluna Prestes se tornaram oficiais e participaram ativamente do movimento militar de 1964. Antes, alguns deles, além de integrar do governo Vargas, trabalharam na Força Expedicionária Brasileira (25.834 homens) que lutou na Itália contra o exército nazista de Hitler. E assistiram em Nápoles a libertação de Roma, depois da queda dos fascistas, quando Mussolini foi pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina em Milão. A participação na guerra colocou os militares brasileiros ao lado do pensamento liberal norte-americano, que prevaleceu ao final do conflito. O comunismo também venceu com o Exército Vermelho de Stalin. No Brasil, o Partido Comunista foi fundado em 1922 em Niterói (RJ). Tempos depois, Prestes, um dos comandantes da coluna, se declarou comunista e se transferiu para Moscou.

O presidente Ernesto Geisel comandou a abertura lenta e gradual do regime político no Brasil. Seguiu as diretrizes de seu braço direito, general Golbery do Couto e Silva, que tinha por objetivo restaurar o estado de direito pleno no Brasil e retirar os militares da política. E conseguiu. Ele viveu o tempo do regime de 64 em que os oficiais se integraram a blocos de opinião dentro das forças armadas. O objetivo da abertura política foi mandar os militares de volta aos quarteis, restabelecer a hierarquia e a disciplina. Antes, o presidente Castello Branco extinguiu o posto de Marechal e estabeleceu uma série de medidas administrativas para reorganizar a carreira militar.

O presidente Bolsonaro caminha no sentido inverso. Ele pretende que os militares participem mais da política nacional. Ele se protege de um eventual impeachment com o pessoal de alto coturno a seu lado. Nos países desenvolvidos os civis mandam nos militares. Nas ditaduras e regimes de exceção ocorre o contrário. O Ministério da Defesa é um cargo civil. Na atual administração se transformou em posto militar. É nesta linha que o presidente Jair Bolsonaro vai tentar a sua reeleição. Acompanhado por um vice quatro estrelas, general Braga Neto. É caminhar na contramão da história do Brasil.
André Gustavo Stumpf

Brasil, entre o risco e o apagador

 


Os Putins brasileiros

Cândido Portinari
Há 30 dias, assistimos perplexos e horrorizados as imagens das consequências das bombas jogadas por Putin na Ucrânia. Choramos e nos indignamos com esta violência que destrói prédios, força migração, mata civis, inclusive crianças e mulheres. Nem todos, porém, lembramos da nossa Ucrânia silenciosa e permanente ao nosso redor.

Há décadas, milhões de brasileiros, sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de sobrevivência em outras partes. As casas não serão destruídas por bombas e mísseis, mas já eram tão degradadas que pareciam bombardeadas por dentro, durante a própria construção precária. Nossos migrantes são chamados de pau de arara, mas de fato são nossos ucranianos.

Vinte milhões destes ucranianos brasileiros sofrem hoje a violência da fome. Dormem sem comer, com a geladeira e armários vazios. E ainda sofrem a violência de acordarem sem ter o que comer, mas assistindo pela televisão programas de conversas ao redor de mesa farta de comida. Depois, com os olhos ávidos e os estômagos vazios, assistem programas de culinária e gastronomia, que ensinam como fazer comidas com suculentos filés e apetitosas sobremesas.

Nossa Ucrânia é violenta ao exportar comida e deixar nosso povo como fome, e ainda tripudiar ou ignorar quem passa fome assistindo a abundância e até o desperdício de comida transmitido pela televisão. Esta realidade é violenta contra as mães que têm seus filhos com fome, e sobre as crianças que não entendem o porque de serem excluídas. As crianças da outra Ucrânia pelo menos sabem que a culpa é da guerra, da Russia, de Putin. À violência da fome, soma-se a violência do espetáculo da culinária tão perto e tão longe de suas pobres casas, sem o risco de mísseis e explosões, para explicar porque são tão despossuídos.

Os ucranianos europeus são todos migrantes e despossuidos, a violência é sobre todos, os ucranianos brasileiros sabem que as bombas e as necessidades pesam apenas sobre alguns escolhidos para não sofrerem. Protegidos contra os putins brasileiros. A violência é dupla: pela pobreza que sofrem e pela percepção da riqueza ao lado. Os abrigoa de Kiev são trágicos, mas são democráticos. E são passageiros

Nossas crianças vivem em uma Ucrânia apartada, silenciosa e permanente, não menos malvada e com menos explicação. Em alguns bairros de algumas cidades, sem uma guerra que explique, nossas crianças são vítimas de balas perdidas, como se estivessem ao redor de Kiev.

Se conseguem chegar, suas escolas estão melhores do que as ucranianas destruídas por bombas. Mas as crianças da Ucrânia têm a esperança de que a guerra vai um dia terminar e elas voltarão a suas escolas bonitas, enquanto às nossas continuarão degradadas, semi-escolas, permanentemente. Não por bombas momentâneas enviadas por um autocrata estrangeiro irresponsável e perverso, mas pela perversa omissão histórica, como nossos governantes tratam as crianças pobres do Brasil. Temos uma Ucrânia brasileira e temos Putins brasileiros.

A guerra é aqui

Queria escrever sobre a luz de outono, que banha de dourado o mar e as montanhas. Cheguei de uma temporada fora do Brasil e o cenário, como sempre que aterrisso, me deixou extasiada. Fotografo da janela do avião como se fosse turista de primeira viagem e não carioca. Que cidade linda, longe da guerra na Ucrânia, ao contrário da Europa. Que bênção. 

A realidade do asfalto logo se impôs. A conta do supermercado foi o dobro de dois meses atrás. O número de pessoas – de crianças pequenas a idosos – que me pediu dinheiro na rua, para comer e sobreviver, também dobrou. Ainda não enchi o tanque do carro. Mas o Rio de Janeiro é lindo, não? Essa sensação de leveza durou até assistir ao "Bom Dia Rio" para me atualizar. Eu me senti bombardeada. 

Dois homens presos por manter mulheres em cárcere privado em Niterói, em troca de falsa promessa de atuar em filme. Uma delas chora ao descrever a rotina de escravidão doméstica e abusos sexuais. Na Zona Norte, mulher é encontrada morta a facadas em casa. Mãe de três filhos, gerente de Recursos Humanos, 43 anos, ia ser avó. O suspeito é o namorado, foragido. Família espera justiça divina – a dos homens anda em falta. 

Vigia de posto de saúde é morto com tiro de fuzil em operação policial em Belford Roxo. Em Del Castilho, imagens de câmera mostram assassinato a tiros de inspetor da Polícia Civil em seu carro. Operação policial contra tráfico e roubo de carro em São Gonçalo revela barricadas de entulho, galões e cimento armado erguidas por bandidos nas ruas. Operação da PM começa cedo na Ilha do Governador, perto do aeroporto internacional. No bairro de Santa Teresa, dois policiais baleados no ataque à base da UPP.


Quando os crimes contra a vida acabam, passamos aos crimes contra a cidadania. Idosos sentados nos degraus dos ônibus. Estudantes atrasados na escola por falta de ônibus. Pra não dizer que não falei de flores, uma bailarina com inflamação grave no coração após Covid se recupera e estreia no Municipal. E, no fecho, um bom-dia com a deslumbrante vista do mirante do Leblon.

Passamos ao "Bom Dia Brasil". Tem a guerra lá longe na Ucrânia. E a corrupção em Brasília, no Ministério da Educação: o criminoso desvio de verba pública para pastores amigos de Bolsonaro. Oremos. Também tem a deputada negra acossada pelo racismo e ameaçada de morte após perder a escolta. 

Tráfico internacional de cocaína, com 17 mandados de prisão no Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Mergulhadores ocultavam a droga em compartimentos submersos de navio. Contrabando de urânio e ouro no Norte, com oito presos pela Polícia Federal. 

Jornalista há 48 anos, sei que uma de nossas funções, talvez a mais nobre e arriscada, é denunciar e cobrar – além de entreter, informar e provocar o debate. Mas até quando vai durar a guerra do Brasil? Em 2009, numa edição especial da revista Época, sobre os desafios e oportunidades na década seguinte, listei pedidos. Dois urgentes: “acabem com a impunidade e com a guerra civil”.

Deve ser bom ser jornalista no Brasil. Há sempre alguma denúncia, muitos escândalos e crimes. Esse foi o comentário irônico de um amigo que mora em Paris. Respondi: não, não é bom. Dá uma tremenda impotência perceber que escândalos e crimes caem no vazio. A overdose de violência não faz bem à saúde e me faz refletir sobre o jornalismo.

Quem sabe, escrevi há 13 anos, eu possa ser em 2020 uma colunista leve, que recomende livros, filmes e exposições. Não aconteceu. Quem sabe em 2030. 

Os sons da fome

Rolos de arame farpado encerravam os parques , as colinas de mimosas, as praias. Muros de blocos de cimento aramado impediam o acesso ao mar. Nos promontórios onde , outrora, Ethel gostava de observar a sucessão das vagas, antes de ir mergulhar entre os rochedos, avistou, um dia, soldados que cimentavam uma espécie de plataforma para um canhão que girava sobre carris. As janelas do grande seminário tinham sido entaipadas, os padres de sotaina substituídos por soldados e convalescentes. Um pouco por toda a parte tinham crescido muros, redes de camuflagem cobriam os telhados. Os olivais tinham sido minados. Um painel escrito em duas línguas ameaçava os transeuntes exibindo uma caveira. A partir das dezoito horas, começava o recolher obrigatório. numa tarde em que Ethel se atrasou, subia a pé as escadas do prédio quando um tiro cavou um orifício no olho-de-boi do quinto andar e a bala foi espetar-se na parede. A partir daí, sempre que descia as escadas, Ethel não conseguia deixar de introduzir o dedo no orifício para tocar na ponta metálica que não a matara por um triz.

Quando as sirenes ressoavam sobre todos os telhados da cidade, era preciso descer à cave com uma vela acesa, até ao fim do sinal de alerta. Nos primeiros tempos, Justine conseguira arrastar o marido, mas este, depois começou a afundar-se na poltrona, agarrando-se aos braços. « Vão, se quiserem, por mim, prefiro morrer ao ar livre a ser enterrado como um rato»


Não se morria debaixo das bombas dos Ingleses e dos Americanos. Mas morria-se aos poucos, sem comer, sem respirar, sem liberdade, sem poder sonhar. O mar resumia-se a um traço azul, ao longe, entre as palmeiras , por cima dos telhados vermelhos. Ethel passava horas a contemplá-lo da janela do quarto dos pais, como se esperasse alguma coisa. O calabre inclinado de uma grua emergia dos telhados dos hangares, imóvel, inútil. Os barcos haviam naufragado à entrada do porto, já nada podia entrar nem sair. O farol já não se acendia à noite. Nas bancas do mercado, não havia nada, quase nada. As mesmas sombras continuavam a circular em redor dos vencedores , mas agora as cascas e as raízes também se vendiam. Nos jardins, os gatos vadios devoravam-se uns aos outros. Os pombos haviam desaparecido, e as armadilhas que Justine dispunha nas goteiras só serviam para apanhar ratos.


Certa manhã, no mês de Maio, ouviu um barulho desconhecido. A terra tremia, os vidros das janelas , os copos em cima das mesas. Sem perder tempo a vestir-se , correu para a janela. Afastou a cortina. Pela estrada, ao longo do rio, avançava uma coluna , faróis acesos. Camiões, viaturas blindadas, motas, seguidas de tanques. Cobertos de poeira, ar de insectos em marcha para um novo território. Avançavam lentamente, apertados uns contra os outros. Passaram em frente da casa, subiam para norte, em direcção às montanhas. Ethel permanecia imóvel, quase sem respirar. Atrás dos camiões, os tanques abalavam a terra com o barulho das lagartas. As torres blindadas dos canhões apontavam para a frente. Pareciam brinquedos inúteis.


O barulho acordou Justine. Aproximou-se da janela em camisa de noite, braços ligeiramente afastados do corpo, pés descalços encolhidos nas lajes frias. Ethel proferiu, num sopro: "Eles vão-se embora." Não estava muito certa de quem seriam «eles», mesmo depois de, atrás dos tanques , terem aparecido os camiões de caixa destapada onde se encontravam os soldados, e o barulho dos motores se ter tornado ainda mais preocupante. Justine puxava pelo braço de Ethel. "Vem!" Sussurrava como se os soldados nos camiões pudessem ouvi-la. Mas Ethel resistia. Queria vê-los todos, até ao último. Homens envergando sobretudos pesados, apertados uns contra outros, na sua maioria sem capacete, ar extenuado de fadiga. Nem um ergueu a cabeça para observar as janelas. Talvez tivessem medo. Aquela imagem de vazio penetrou no espírito de Ethel , expulsou todas as recordações anteriores. Mais tarde , virá a saber que os homens que avistou da janela da cozinha, em Roquebillière, eram os restos do exército de África do marechal Rommel, a caminho do Norte, na esperança de alcançar a Alemanha pelos Alpes. Ficará a saber que o chefe não ia na coluna, já regressara a Berlim de avião, deixando as tropas abandonadas num território hostil. Tentará imaginar que teriam sentido aqueles homens , na plataforma dos camiões, quando se dirigiam para a barreira crescente das montanhas, com a vibração das lagartas dos tanques que os ensurdecia, no maior dos silêncios, sem chefe, sem ordens, para transpor a pé as montanhas de neve do Boréon, perseguidos pelos lobos.
J.M.G. Le Clézio, "A Música da Fome"

Empregos mal pagos e produtos ruins para os brasileiros?

Na Bahia, lá onde, ainda um ano e meio atrás, uma grande fábrica funcionava a pleno vapor, a natureza vai agora recuperando seu terreno. Em Camaçari, a maior unidade da Ford no Brasil empregava 5 mil funcionários. Durante cerca de 20 anos, centenas de ônibus a ligavam com Salvador; entre ela e o porto industrial de Aratu, uma frota de caminhões circulava noite e dia com automóveis prontos e peças de abastecimento.

No começo de 2021, no entanto, tudo isso acabou: a Ford fechou a fábrica. Hoje algumas das vias de acesso às antigas dependências já estão cobertas de vegetação. Nada indica que no futuro algo volte a ser produzido ali, não há interesse pelas instalações.


Em todo o Brasil ocorre como em Camaçari: o país perde sua indústria a grande velocidade, num processo que se acelerou com a estagnação econômica em 2014, e se agravou com a pandemia de covid-19. Um indício disso é a queda de produtividade na economia.

Uma análise recém-publicada do instituto FGV Ibre mostra que entre 2014 e 2019 a produtividade brasileira minguou ainda mais rápido do que já vinha ocorrendo nas décadas anteriores. Tanto em relação à hora de trabalho quanto ao volume de mão-de-obra, o rendimento diminui de ano a ano.

Em 2021 essa tendência se acelerou ainda mais. Nas economias bem-sucedidas de todo o mundo, os lucros crescem com a aplicação de pesquisa e tecnologia na indústria: no Brasil, eles encolhem.

A perspectiva histórica demonstra essa tendência de modo especialmente crasso: a participação da agregação de valor industrial no produto interno bruto (PIB) nacional caiu um terço desde 1980, de 34% para 11%. Nessas cerca de quatro décadas, a indústria cresceu sempre em ritmo significativamente mais lento do que a economia como um todo.

O Brasil importa cada vez mais produtos industrializados para satisfazer a demanda local. O país pode se permitir isso, já que as exportações agrárias prosperam: os excedentes do agronegócio financiam os déficits da balança de bens industriais.

Muitos sequer tomam conhecimento dessa dinâmica. Somente com a pandemia ficou subitamente claro que o Brasil estava mal equipado para produzir vacinas próprias. Se, ainda 40 anos atrás, ele fabricava a metade dos fármacos utilizados pela população, hoje são apenas 5%.

Entre os motivos dessa desindustrialização está o fato de os governos protegerem a indústria nacional com tarifas e imposições alfandegárias. Além disso, a burocracia e o sistema fiscal fazem as empresas estrangeiras desistirem de investir no país – tendência que os fracos prognósticos de crescimento ainda agravam. O real desvalorizado reduz as importações de maquinaria e tecnologia.

Para o Brasil, isso significa que sua indústria oferecerá postos cada vez menos especializados; pesquisa e desenvolvimento regridem; aumenta a lacuna entre os empregos bons e mais exigentes do setor, e a massa dos postos mal pagos e muitas vezes informais. Ao mesmo tempo, os produtos de manufatura nacional se tornam cada vez piores, mais velhos e caros, em comparação com os do mercado mundial.

Essa tendência de desindustrialização se manifesta por todo o mundo. Porém no Brasil só lentamente se percebe quão profundas são as mudanças que ela acarreta para a sociedade e a política.

Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump conquistou votos em especial onde a população perdera seus empregos em fábricas obsoletas. Um fenômeno parecido deverá ocorrer no Brasil: escutando-se as declarações dos prováveis candidatos a presidente para 2022, há razão para temer que o processo de desindustrialização e simultâneo isolamento do mercado mundial vá se acelerar ainda mais no país.

sexta-feira, 25 de março de 2022

O que a medalha indigenista de Bolsonaro revela

O cara pálida que ocupa a Presidência da República teve seu momento de esplendor plumário em cerimônia no Ministério da Justiça, quando lhe foi entregue (e a membros do seu governo) a Medalha do Mérito Indigenista. O governo condecorou-se.

A cerimônia, no entanto, teve aspectos antropologicamente interessantes e reveladores, não só por ser uma usurpação cultural da imagem do índio por brancos anti-indigenistas. Faziam-se de índios, que não são nem sabem o que são. Mas também os teve nos detalhes das fotos oficiais que chegaram aos jornais.

As revelações vêm do inesperado. A começar da fotografia centralizada pela figura secundária da criança indígena que o presidente, de cocar na cabeça, segurava no colo. A criança tenta tomar distância para ver melhor a cara de quem o carrega. A direção de seu olhar e sua expressão são de “O que é isto?!”.

O ponto de impacto da foto, o que captura imediatamente o olhar de quem a vê, não é um presidente de cocar, mas o olhar de espanto da criança. Aquele olhar de inocente que no afastamento espontâneo afasta-se do propósito manipulativo da foto. O sociólogo Henri Lefebvre interpreta uma ocorrência dessas como crítica na própria ação. Não é preciso dizer nada nem é preciso querer para que a ação se construa a si mesma como ação crítica.

Na literatura sobre a fotografia como modalidade de conhecimento, “punctum” é como Roland Barthes denomina o inesperado na imagem fotográfica, a que atrai o olhar de quem a vê para o ponto que é diverso do ponto de referência do fotógrafo. Fotógrafos profissionais, em fotos não posadas, escolhem o que Henri Cartier-Bresson define como instante decisivo, aquele que faz da foto uma obra autoral.

Como neste caso: o fotógrafo que a fez provavelmente quis fazer uma foto idílica do governante, a da centralidade de um pai da pátria, que governa acima das diferenças culturais e sociais. O olhar de espanto da criança, porém, “roubou-lhe” a fotografia. O ver da criança é o “punctum” da foto, o inesperado invasivo, a mediação que diz o que Bolsonaro é, e não o que o fotógrafo quis fotografar e com sua fotografia dizer.

As consequências antibolsonaristas da foto no imaginário social constituem o que Edgard Morin define como efeito bumerangue da comunicação imprópria. O espanto da criança chama a atenção de todos para o impróprio do cocar na cabeça imprópria, na cerimônia imprópria, no governo impróprio.

O impróprio, isto é, o fora do lugar da pessoa que justifica a imagem (e fora da cabeça de quem tem direito a cingir o significativo diadema plumário), está na extensa lista de manifestações de Jair Bolsonaro contra as populações indígenas e seus direitos reconhecidos desde o período colonial. Como o direito ao respectivo território e à respectiva diferença cultural, na língua e nos costumes.

A jovem líder indígena Txai Suruí apresenta, a propósito da cerimônia, em artigo na “Folha de S. Paulo”, uma lista de ações anti-indigenistas do presidente e de membros do governo também condecorados na ocasião.

São demonstrações de que Bolsonaro ignora completamente o que é o Brasil oposto ao do nós bolsonarista, um país marcado por elenco extenso de diferenças linguísticas. São 274 as línguas faladas por mais de 800 mil brasileiros das diferentes nações indígenas que têm direito histórico e constitucional à sua diferença e ao seu território ancestral.

Na fala presidencial, no Ministério da Justiça, Bolsonaro declarou querer que os povos indígenas se sintam “como nós” e façam em suas terras “exatamente o que fazemos com as nossas”. A verdade é a de que os indígenas brasileiros autênticos, em sua maioria, não querem ser como nós. Querem ser como eles são e ainda podem ser.

Em grande número de grupos indígenas, tem havido movimentos, nos últimos 50 anos ou mais, pela tomada de elementos da cultura branca para ampliar e fortalecer as culturas indígenas. Jovens estão sendo mandados às universidades brasileiras nesse sentido. Portanto, cabe perguntar a Bolsonaro e coadjuvantes: “Nós, quem, cara pálida?”. Nossos povos indígenas são o nosso nós. É uma questão antropológica que não se resolve na lógica redutiva da cultura de quartel.

A expressão jocosa teria surgido no começo dos anos 60, baseada nas histórias americanas sobre o Zorro, dos anos 1930, que aqui chegaram como histórias em quadrinhos e filmes. Zorro era o Lone Ranger, o cavaleiro solitário, um justiceiro, sempre acompanhado de um índio servil conhecido como Tonto. Em certa ocasião, ambos foram cercados por índios hostis. Não havia saída para os dois. Zorro disse a Tonto: “Nós estamos perdidos, Tonto”. O índio fez que não o conhecia e respondeu: “Nós, quem, cara pálida?”.

A Rússia é um gigante com pés de barro

O exército russo admitiu ter perdido 1.351 soldados na guerra da Ucrânia. Perdeu bem mais: há uma semana, fontes do Pentágono disseram ao New York Times que as baixas chegavam a 7 mil. Ainda que o número de Moscou fosse o correto, isso daria uma média de 45 militares mortos por dia. É um desastre completo. Para se ter uma ideia, em 10 anos de guerra no Afeganistão — guerra perdida –, os russos perderam 15.000 soldados, uma média de 4 soldados por dia.

Vladimir Putin é um açougueiro de carne humana que está usando a juventude russa como bucha de canhão, numa guerra sem justificativa nenhuma, que não os delírios de grandeza de um homem que tem na estatura física o exato espelho da sua estatura moral. É uma guerra perdida, como mostram o recuo das tropas invasoras no cerco a Kiev e a resistência que se mantém forte em todas as áreas castigadas por bombardeios que aterrorizam e matam civis, em total desrespeito às convenções que regem as guerras. Em Mariupol, cidade mártir que teve 90% da sua área devastada por mísseis russos (foto) e hoje parece Dresden, destruída na Segunda Guerra Mundial, 100 mil ucranianos são reféns dos russos. Estima-se que 300 pessoas tenham morrido no bombardeio a um teatro da cidade. Moscou diz que o governo da Ucrânia está usando civis como escudos humanos, mas é mentira deslavada.

O carniceiro do Kremlin está destruindo uma geração inteira, nos dois lados da fronteira, com uma guerra insana, criminosa e desonrosa em todos os sentidos. Com um mês de guerra, o número de baixas do exército russo é insustentável. A Ucrânia será o atoleiro da megalomania de Vladimir Putin, que está mostrando ao mundo que a Rússia é um gigante com pés de barro na guerra convencional. Mas o seu arsenal atômico permanece ameaçador. Os russos precisam urgentemente impedir Vladimir Putin de apertar o botão nuclear, a pretexto de defender a própria existência do seu país, como disse o seu porta-voz, Dimitri Peskov, outro oligarca vigarista que dá expediente no Kremlin, em entrevista a Christiane Amanpour. Seria a mentira mais letal de todos os tempos. Talvez a última.

Governo Bolsonaro extermina futuro das crianças

A pandemia da Covid-19 aprofundou a crise na educação, mas não a forjou. Escancarou a tragédia de uma área negligenciada por um governo incompetente e mal-intencionado. Não é por boa-fé que um presidente da República, em três anos de mandato, conta quatro ministros da Educação; quatro presidentes do FNDE, o fundo que banca as políticas públicas do setor; e cinco presidentes do Inep, o órgão responsável por monitoramento e avaliação do sistema educacional, além da aplicação do Enem, porta de entrada dos jovens no ensino superior. À luz do atual escândalo, está claro que exterminador do futuro de crianças e adolescentes brasileiros é o veneno que mistura desmonte institucional, violação à laicidade do Estado, tráfico de influência, corrupção e propina em barra de ouro.

Jair Bolsonaro nunca escondeu ser motor de destruição da educação, da cultura, do meio ambiente. Elegeu-se para, em aliança com líderes evangélicos, militares, grileiros, lobistas das armas, levar a nocaute direitos humanos, instituições democráticas, reputação diplomática, pactos civilizatórios consagrados. Na educação, indicou, segundo declaração do próprio titular da pasta, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, um par de religiosos sem cargo no governo para intermediar o acesso de prefeituras aos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, sob a gestão de aliados do Centrão.

A parceria público-privada de pilhagem do Estado já tinha sido identificada pela CPI da Covid, tanto no gabinete paralelo de formulação da política pública de saúde quanto nos intermediários ilegítimos da compra de vacinas. A comissão parlamentar apresentou ao país o reverendo Amilton Gomes de Paula, da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários, uma entidade social batizada como órgão público. O religioso conseguiu uma reunião no Ministério da Saúde para a empresa Davati oferecer ao governo 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca, imunizante que já era alvo de acordo do laboratório estrangeiro com a Fiocruz. O reverendo Amilton logrou em quatro horas o que a Pfizer levou meses para conseguir.

Há uma Secretaria de Comunicação e um gabinete do ódio, que opera com participação do filho vereador do presidente, presente em reuniões oficiais, mesmo sem cargo. No mês passado, Carlos Bolsonaro foi à Rússia e sentou-se ao lado do pai em agenda da área de Defesa, em que ministros militares foram coadjuvantes. Há ministros da Saúde e uma equipe extraoficial de consultores presidenciais pautados pelo negacionismo. Há o ministro da Educação e os pastores sem cargo, Gilmar Santos e Arilton Moura, prometendo recursos em troca de propina, conforme denúncias da imprensa só agora na mira dos órgãos de investigação e controle, como PGR, MPF, CGU e TCU. No modelo dual de gestão pública sobre o qual o governo Bolsonaro está assentado, para dissimular imoralidade ou ilegalidade, quem aparece não manda, quem manda não aparece.


Enquanto isso, a ONG Todos Pela Educação apurou que, entre 2019 e 2021, houve salto de 66% no número de brasileiros de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler nem escrever. Num par de anos, o total passou de 1,4 milhão para 2,4 milhões de crianças. “A não alfabetização em idade adequada traz prejuízos para aprendizagens futuras e aumenta os riscos de reprovação, abandono e/ou evasão escolar”, alertou a instituição. O primeiro ano da pandemia, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, deixou 92,7% dos estudantes de 6 a 17 anos da rede pública sem ensino presencial; 12,4% não tiveram nem aula nem atividades remotas. Escolas públicas ficaram 287 dias sem aulas em 2020; só 35% promoveram aulas ao vivo pela internet.

O Unicef informou que, em estados brasileiros, três de cada quatro crianças do segundo ano do ensino fundamental estão fora dos padrões de leitura; era uma em duas antes da pandemia. No país, 10% dos estudantes de 10 a 15 anos não planejavam voltar às aulas quando as escolas reabrissem. No documento apresentado no Dia Internacional da Educação, 24 de janeiro, a agência da ONU para a infância denunciou a perda de habilidades básicas de aritmética e alfabetização: “Além da perda de aprendizado, o fechamento das escolas afetou a saúde mental das crianças, reduziu seu acesso a uma fonte regular de nutrição e aumentou o risco de abuso”.

Atraso escolar, fome e violência foram o que brasileirinhas e brasileirinhos colheram, enquanto presidente, ministro e pastores pavimentavam o caminho da pilhagem. Tudo aponta para o maior escândalo do governo Bolsonaro — o que parecia impossível, após os 658 mil mortos pela Covid-19 — se as instituições, até aqui adormecidas, funcionarem.