quarta-feira, 30 de março de 2022

Patriotismo e governo

"Já por várias vezes tive a oportunidade de manifestar a ideia de que o patriotismo é, no nosso tempo, um sentimento antinatural, insensato, nocivo, causador de grande parte das desgraças que a humanidade sofre, e que por isso não deve ser ensinado como hoje se faz - pelo contrário , deve ser reprimido e eliminado por todos os meios ao alcance das pessoas sensatas"

A situação piora constantemente e não há qualquer possibilidade de parar esse agravamento, que leva a uma evidente perdição. A única saída em que acreditavam as pessoas crédulas foi agora fechada pelos acontecimentos dos últimos tempos; refiro-me à Conferência de Haia e à guerra entre a Inglaterra e o Transval , que se lhe seguiu imediatamente.


Se as pessoas que raciocinam pouco e superficialmente ainda se podiam consolar com a ideia de que os tribunais internacionais podem afastar as desgraças da guerra e dos armamentos sempre crescentes, a Conferência de Haia e a guerra que se lhe seguiu mostrou da maneira mais evidente a impossibilidade de solução do problema por essa via. Depois da Conferência de Haia, tornou-se evidente que, enquanto houver governos com exércitos, é impossível pôr fim aos armamentos e às guerras. Para que seja possível um acordo, é necessário que as partes concordantes confiem umas nas outras. E para que as potências possam confiar umas nas outras, devem depor as armas, como fazem os parlamentares quando se reúnem para conferenciar. Mas enquanto os governos, desconfiando uns dos outros , não só não destroem como aumentam os exércitos em correspondência com os aumentos feitos pelos vizinhos , e por meio de espiões seguem cada movimentação das tropas , sabendo que qualquer potência se lançará contra o vizinho assim que tiver uma oportunidade para isso, não é possível nenhum acordo, e qualquer conferência é uma tolice, ou uma brincadeira, ou um engano, ou uma impertinência, ou todas essas coisas juntas.

Cabia precisamente ao governo russo , mais do que aos outros, ser o enfant terrible dessa conferência. O governo russo tão mal habituado porque dentro do país ninguém levanta objecções a todos os seus manifestos e rescritos claramente mentirosos, e, sem a mínima hesitação, arruinou o seu povo com o armamento, estrangulou a Polónia, roubou o Turquestão, a China, e asfixia a Finlândia com especial aspereza - propôs aos governos o desarmamento, com plena confiança em que acreditariam nele.

Mas , coisa estranha, por inesperada e indecente que fosse essa proposta, em especial no mesmo momento em que se tomava uma disposição para o aumento do exército, as palavras proferidas publicamente eram tais que os governos não podiam perante os seus povos recusar as conferências cómicas e manifestamente falsas; e os delegados reuniram-se , sabendo de antemão que dali nada podia sair, e ao longo de vários meses, durante os quais auferiram bons ordenados, embora andassem a rir-se à socapa , todos a fingir conscienciosamente que andavam muito ocupados a estabelecer a paz entre os povos.

A Conferência de Haia, que terminou com um horrível morticínio - a guerra do Transval, que ninguém tentou parar -, foi em todo o caso útil, embora de modo nenhum por aquilo que dela se esperava; ela foi útil porque mostrou , da maneira mais patente, que o mal de que os povos sofrem não pode ser remediado pelos governos, que os governos, mesmo que o quisessem a sério, não poderiam acabar com os armamentos nem com as guerras. Para existirem, os governos têm de defender o seu povo dos ataques de outros povos, mas nenhum povo deseja atacar nem ataca outro, e por isso os governos não só não querem a paz, como exercitam zelosamente o ódio de outros povos. Ao despertarem nos outros povos o ódio para consigo e o patriotismo no seu próprio povo, os governos convencem o seu povo de que está em perigo e precisa de se defender.

E tendo o poder nas suas mãos, os governos podem irritar os outros povos, e exercitar o patriotismo no seu próprio povo , e fazem zelosamente uma e outra coisa, e não podem deixar de o fazer porque nisso se baseia a sua existência.
Se dantes os governos eram necessários para defender os seus povos dos ataques de outros, agora, pelo contrário os governos perturbam artificialmente a paz que existe entre os povos, e provocam a hostilidade entre eles.

Se era necessário lavrar para semear, a lavoura foi uma coisa sensata; mas, evidentemente , é absurdo e prejudicial lavrar quando a sementeira está feita. E é isso que os governos obrigam os seus povos a fazer - destruir a unidade que existe e que nada perturbaria se não houvesse governos. 

Lev Tolstoi, "Os Últimos Escritos"

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