domingo, 27 de março de 2022

A guerra é aqui

Queria escrever sobre a luz de outono, que banha de dourado o mar e as montanhas. Cheguei de uma temporada fora do Brasil e o cenário, como sempre que aterrisso, me deixou extasiada. Fotografo da janela do avião como se fosse turista de primeira viagem e não carioca. Que cidade linda, longe da guerra na Ucrânia, ao contrário da Europa. Que bênção. 

A realidade do asfalto logo se impôs. A conta do supermercado foi o dobro de dois meses atrás. O número de pessoas – de crianças pequenas a idosos – que me pediu dinheiro na rua, para comer e sobreviver, também dobrou. Ainda não enchi o tanque do carro. Mas o Rio de Janeiro é lindo, não? Essa sensação de leveza durou até assistir ao "Bom Dia Rio" para me atualizar. Eu me senti bombardeada. 

Dois homens presos por manter mulheres em cárcere privado em Niterói, em troca de falsa promessa de atuar em filme. Uma delas chora ao descrever a rotina de escravidão doméstica e abusos sexuais. Na Zona Norte, mulher é encontrada morta a facadas em casa. Mãe de três filhos, gerente de Recursos Humanos, 43 anos, ia ser avó. O suspeito é o namorado, foragido. Família espera justiça divina – a dos homens anda em falta. 

Vigia de posto de saúde é morto com tiro de fuzil em operação policial em Belford Roxo. Em Del Castilho, imagens de câmera mostram assassinato a tiros de inspetor da Polícia Civil em seu carro. Operação policial contra tráfico e roubo de carro em São Gonçalo revela barricadas de entulho, galões e cimento armado erguidas por bandidos nas ruas. Operação da PM começa cedo na Ilha do Governador, perto do aeroporto internacional. No bairro de Santa Teresa, dois policiais baleados no ataque à base da UPP.


Quando os crimes contra a vida acabam, passamos aos crimes contra a cidadania. Idosos sentados nos degraus dos ônibus. Estudantes atrasados na escola por falta de ônibus. Pra não dizer que não falei de flores, uma bailarina com inflamação grave no coração após Covid se recupera e estreia no Municipal. E, no fecho, um bom-dia com a deslumbrante vista do mirante do Leblon.

Passamos ao "Bom Dia Brasil". Tem a guerra lá longe na Ucrânia. E a corrupção em Brasília, no Ministério da Educação: o criminoso desvio de verba pública para pastores amigos de Bolsonaro. Oremos. Também tem a deputada negra acossada pelo racismo e ameaçada de morte após perder a escolta. 

Tráfico internacional de cocaína, com 17 mandados de prisão no Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Mergulhadores ocultavam a droga em compartimentos submersos de navio. Contrabando de urânio e ouro no Norte, com oito presos pela Polícia Federal. 

Jornalista há 48 anos, sei que uma de nossas funções, talvez a mais nobre e arriscada, é denunciar e cobrar – além de entreter, informar e provocar o debate. Mas até quando vai durar a guerra do Brasil? Em 2009, numa edição especial da revista Época, sobre os desafios e oportunidades na década seguinte, listei pedidos. Dois urgentes: “acabem com a impunidade e com a guerra civil”.

Deve ser bom ser jornalista no Brasil. Há sempre alguma denúncia, muitos escândalos e crimes. Esse foi o comentário irônico de um amigo que mora em Paris. Respondi: não, não é bom. Dá uma tremenda impotência perceber que escândalos e crimes caem no vazio. A overdose de violência não faz bem à saúde e me faz refletir sobre o jornalismo.

Quem sabe, escrevi há 13 anos, eu possa ser em 2020 uma colunista leve, que recomende livros, filmes e exposições. Não aconteceu. Quem sabe em 2030. 

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