quinta-feira, 30 de abril de 2020

Pensamento do Dia


Governo descobriu que milhões de brasileiros são pobres

Um dos efeitos colaterais da disseminação do coronavírus é a falta de palavras e o aparecimento de novas palavras para designar e expressar as situações repentinas e inesperadas de uma sociedade enferma.

Sociólogos, antropólogos e linguistas estão munidos do aparato científico para fazer verdadeira arqueologia de cada palavra e nela identificar não só sua origem em tradições e circunstâncias remotas, mas também sua origem em carências atuais.

Quando o vazio se instala, em decorrência de rupturas sociais, como as guerras, as epidemias, os desastres naturais, a falência da ordem social e política, palavras se tornam obsoletas porque, por meio delas, já não há o que dizer.
Então, palavras são modificadas e novas são inventadas. As situações sociais se traduzem em consciência social e na linguagem pela qual essa consciência se torna comunicável porque legado da experiência humana. Por meio dela a experiência se torna memória.

As palavras carregam informações sobre a história de sua formação e nela a consciência social profunda da sociedade, na sutileza dos significados que a palavra contém. “Genro” é uma palavra simples que todos conhecem. É palavra que designa o homem que gera filhos para o sogro, um pai emprestado. Porque o pai de uma mulher está interditado para procriação com a filha pelo tabu do incesto.

A sociedade patriarcal narra sua história e expõe as regras sociais de sua persistência e de sua estrutura por meio de uma palavra como essa. A eficácia do seu sentido está no fato simples de que o incesto é socialmente abominado.

Muitos linchamentos, no Brasil, são praticados por grupos de vizinhos e parentes que compartilham a consciência de que o incesto é uma aberração.

É significativo que, em algumas das nossas línguas indígenas, a palavra “avô” seja a mesma palavra para “tio”. No Brasil, especialmente em São Paulo, em que mesmo a elite tinha claras origens indígenas, foi comum o casamento avuncular, do tio com a sobrinha, forma significativa de contornar a interdição do incesto. Palavras não são rótulos.

Diferentes das palavras herdadas das sociedades tradicionais, que eram palavras de afirmação e confirmação de um modo social de ser, as palavras que têm surgido, no Brasil pós-moderno, são palavras para designar o não ter e o não ser: sem-terra, sem-teto, excluídos. São do vocabulário das vítimas do banimento das possibilidades de integração plena no mutilado capitalismo da sociedade brasileira. Expressões de sua consciência de não pertencimento.

Alienado, e supondo não haver palavra brasileira para denominar o meio de pagamento da ajuda aos desvalidos da pandemia, o governo deu-lhe um nome estrangeiro, “voucher”. Todo brasileiro conhece a palavra “vale”, também os que carecem do dinheiro que representa, sem ter que recorrer à frescura da palavra desconhecida.

Mas a palavra que constitui uma verdadeira revelação de que, para o poder, não somos o país que somos, é a palavra “desbancarizados”. Isto é, gente que não tem conta bancária e, portanto, à margem do sistema financeiro que domina a economia e em nome do qual esse governo manda.

A palavra invadiu o noticiário recente quando o governo descobriu que dezenas de milhões de brasileiros são pobres, mas não sabia onde estavam nem como encontrá-los. Por isso, tem dificuldade para fazer chegar-lhes às mãos o dinheiro de que carecem para sobreviver na economia anormal que aflige a sociedade provisória da pandemia.

Não é palavra de agora, pois já a ouvira no ano passado. Mas é uma palavra desta crise. Para dizer o que deve ser dito e expressar uma das fragilidades da relação entre o Estado e o povo. A palavra é necessária para dar sentido às peculiaridades dessa exclusão e assegurar a precária terapêutica social da economia do momento.

“Desbancarizado” é, pois, quem está confinado na multidão residual do nosso subcapitalismo, aquele que não tem lugar no sistema econômico anômalo que nos enquadrou e domina. O que sugere que os maiores inimigos do capitalismo, aqui, são os próprios capitalistas da linhagem neoliberal, que dele expurga um número imenso de pessoas.

Estas novas palavras de uma sociedade que foi minada pelas desigualdades e pelas iniquidades de um modo irracional de acumulação da riqueza, são palavras do modo de vida provisório dos sem alternativa, que já não expressam a própria consciência da vítima. Expressam a consciência dos que representam os fatores de sua vitimação.

São palavras derivadas do vocabulário da dominação econômica excludente, de um neoliberalismo econômico que rotula as vítimas com designações que pressupõem que os pobres são pobres porque não tem um nome na lógica do que os empobreceu.
José de Souza Martins

Direito é respeitar o outro

Tudo começa pelo direito do outro e por sua obrigação infinita a este respeito. O humano está acima das forças humanas
Christiam Descamps

Está tudo sob controle, só não se sabe de quem ...

O Brasil registrou um novo recorde de mortes em 24 horas por conta do coronavírus – 474. E daí? O total de óbitos, 5.017, ultrapassou o da China que é de 4.637. E daí? Em breve, o total de casos ultrapassará o de casos na China. E daí? Daí que o Brasil está em 9º lugar no ranking de países com maior número de mortos. É possível que atinja a casa dos 10 mil antes no final de maio. E daí?

Daí o presidente Jair Bolsonaro diz que sente muito, mas que são “coisas da vida”. Todo mundo vai morrer um dia, inclusive ele. De resto, Bolsonaro tem Messias no nome, mas não faz milagres, como disse ontem à noite no cercadinho de entrada do Palácio da Alvorada, ultimamente pouco frequentado por seus devotos de estimação. Os jornalistas sempre estão lá.

A pandemia avança no Brasil conforme o previsto por Bolsonaro em fevereiro. Ele ouviu de técnicos da Saúde que o número de casos do coronavírus só começaria a cair depois que cerca de 70% da população tivesse sido infectada. Viu na televisão a primeira-ministra da Alemanha, Ângela Merkel, dizer algo parecido. Então se convenceu de que não havia o que fazer, salvo deixar rolar.

Ouviu também dos técnicos que o isolamento social deveria ser incentivado para que o sistema de saúde não entrasse em colapso rapidamente. Se entrasse, seria o caos. E ouviu ainda que seria preciso comprar milhões de kits de testes, milhões de máscaras, milhares de macacões para as equipes médicas, e milhares de respiradores. Mas essa parte ele esqueceu ou não deu muita bola.

Preferiu prestar mais atenção nas vozes que aconselhavam: “Jair, se a Economia for para o brejo, sua reeleição irá também. Por isso, salve a economia, que é o que você pode fazer”. Bolsonaro passou então a torpedear as medidas de isolamento social baixadas por governadores e prefeitos. Fez isso com afinco, sem ligar para a advertência de que assim estaria cavando sua fossa.

Não se demite ministro da Saúde às vésperas de um morticínio anunciado. E daí? Bolsonaro demitiu. Mandetta era o maior sucesso na programação de fim de tarde das emissoras de televisão. Bolsonaro queria que ele andasse na contramão de governadores e de prefeitos, e Mandetta não andou. Escolheu então um novo ministro obediente e quase mudo.

Aproveitou o momento para forçar a saída do governo de outro ministro, Sérgio Moro, que concorria com Mandetta em matéria de popularidade. A dos dois superava de longe a de Bolsonaro. Moro era o símbolo da luta que Bolsonaro prometera travar contra a corrupção. E daí? O presidente queria aparelhar a Polícia Federal para pô-la a serviço de sua família, e Moro se opunha.

Reeleição acima de tudo – só abaixo do impeachment que poderá abreviar o mandato de Bolsonaro. Portanto, quem é capaz de mandar o combate à corrupção para o lixo é capaz de mandar tudo mais que prometera. Nova Política? Sem entrega de cargos a partidos em troca de votos? E daí? Troque-se a Nova pela Velha política que Bolsonaro dizia abominar.

O dia seguinte

Sobram razões morais, políticas e possivelmente jurídicas para o impedimento de Jair Bolsonaro. As acusações do ministro Sergio Moro ao deixar o cargo são graves e verossímeis. Somam-se à repulsiva participação do presidente na manifestação em que, diante do Quartel-General do Exército, uma turba urrou pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, com a volta da ditadura.

Ainda assim, é difícil descartar as considerações não só da oportunidade, mas sobretudo dos efeitos do impeachment. Se uma proposta nesse sentido avançasse no Congresso, consumiria inevitavelmente a atenção, o tempo e os esforços que devem ser dedicados ao único propósito coletivo que agora de fato importa: conter a enorme devastação humana, social e econômica produzida pelo coronavírus.

Ela poderá ter também outras consequências nefastas que não convém ignorar. No sistema presidencialista, os titulares do Executivo têm mandato fixo; a sua abreviação é quase sempre traumática. Com ou sem reeleição, o calendário preestabelecido é a regra de ouro que organiza a disputa pelo poder.

Políticos e partidos têm nas eleições periódicas e com data conhecida o seu horizonte de ação.


Eis por que, na origem do presidencialismo, o impeachment foi criado como recurso último e excepcional para frear a ambição dos mandatários; sua mera possibilidade deveria dispensar o seu efetivo emprego. O recurso frequente ao impeachment desestrutura o jogo do presidencialismo e cria perigosa instabilidade institucional, que tende a enfraquecer a confiança na democracia.

Em três décadas, a contar de 1989, dois presidentes foram impedidos no Brasil. Nos EUA, em mais de dois séculos, foram abertos processos contra quatro presidentes.. É insensato supor que um terceiro trauma do gênero, apenas quatro anos depois do anterior, mesmo para barrar um mandatário com ostensiva vocação autoritária, contribuirá para o fortalecimento das nossas instituições democráticas.

Por fim, não custa lembrar que, afastado, Bolsonaro será substituído pelo vice, general Hamilton Mourão, com o qual compartilha convicções reacionárias, entre elas uma visão antediluviana da questão ambiental e do respeito ao modo de vida de nossas populações indígenas; sensibilidade zero para a tragédia social brasileira e, muito provavelmente, a mesma concepção estreita da importância das liberdades civis.

Assim não fosse, não lhe teria ocorrido, ao deixar o Exército para se juntar a Bolsonaro, saudar o falecido major-torturador Brilhante Ustra. A sua ascensão ao poder transformaria o dia seguinte ao impeachment na continuação do atual pesadelo.
Maria Hermínia Tavares

Bolsonaro é o culpado

É claro que governadores e prefeitos têm enorme responsabilidade no combate ao novo coronavírus, conforme foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe a eles, por exemplo, a decisão crucial de abrir ou fechar o comércio, colocar mais ou menos ônibus nas ruas, voltar ou não às aulas.

Mas isso não os torna “culpados” pelas mortes, como atacou o presidente Bolsonaro. Culpa é diferente de responsabilidade. E esta, no caso de governadores e prefeitos, tem uma limitação importante: dinheiro.

A crise apanhou a maioria dos Estados com déficits em suas contas e dívidas elevadas. A paralisação de boa parte das atividades leva a uma queda de receita, de modo que a tempestade é perfeita: menos dinheiro diante da necessidade de gastar mais.

Aqui entra uma primeira responsabilidade enorme do governo federal. Só este pode, digamos, inventar dinheiro, tomando dívida e mesmo imprimindo reais. Junto com o Congresso, cabe ao governo federal decidir quanto dinheiro vai gerar, como será distribuído e para quais finalidades.


É nesta tarefa crucial que o presidente Bolsonaro, se fosse um dirigente minimamente adequado, deveria estar empenhado. Como, aliás, fez seu ídolo Trump. Agindo em combinação com o Congresso, inclusive com a Câmara controlada pela oposição, o presidente aprovou pacotes de trilhões de dólares para socorrer pessoas, empresas e administrações públicas estaduais.

Sim, o governo brasileiro tem feito parte desse serviço. Mas aos trancos e barrancos – basta observar as filas nas agências da caixa, as queixas de empresas que não têm acesso aos recursos prometidos, as filas no pedido de auxílio desemprego, os equipamentos que não chegam.

Neste momento, em que o mundo disputa desde máscaras até respiradores, o Itamaraty deveria estar negociando mundo afora para importar esse tipo de material. Em vez disso, o chanceler Ernesto Araújo decide combater o isolamento social com a bárbara comparação com os campos de concentração de Hitler. Como pode a ignorância e a insensibilidade chegarem a nível tão desprezível?

Não é de espantar, entretanto. Se o chefe dele sai com um “E daí?” quanto lhe perguntam sobre as 5 mil mortes…

Eis o ponto. Enquanto governadores e prefeitos tentam cumprir suas responsabilidades – uns vão bem, outros, mal – o presidente se dedica a sabotar os esforços dos outros. Como não consegue nem um argumento para desclassificar o isolamento – nem o novo ministro da Saúde, perdidaço, topa isso – Bolsonaro trata de atacar os que considera seus inimigos, mesmo que isso prejudique o combate à epidemia.

Há aí uma contradição que bloqueia o processo. O isolamento faz sentido se as pessoas puderem ficar em casa. Muitas podem porque têm dinheiro, conseguem manter seus empregos, trabalham de casa. Outras não podem – e estas precisam de socorro para ficar em casa. Esse socorro é a renda mínima (os 600 reais), o aumento do seguro desemprego, o adiamento de obrigações financeiras.

O mesmo vale para empresas. Algumas aguentam paradas. Outras precisam de socorro, na forma de financiamentos ou mesmo aportes de capital.

Este socorro, para pessoas e empresas, cabe essencialmente ao governo federal. Membros desse governo sabem disso e tentam. Mas como a coisa pode fluir se o presidente não aceita o conjunto dessa política, nem se empenha para implementá-la? E, ao contrário, se empenha em desmoralizar essas ações.

Além disso, o governo federal tem o SUS, que deveria coordenar todo o programa sanitário. Coisa que o ex-ministro Mandetta estava tentando.

Ignorância e autoritarismo formam uma combinação explosiva.

Vamos falar francamente: o presidente e seus filhos já cometeram erros demais. Só não cometeram mais porque foram contidos ou pelo STF ou pelo Congresso. Mas as barbaridades que já praticaram são suficientes para que sejam apanhados nos diversos inquéritos em andamento no Supremo e, logo, logo, no Congresso.

O presidente é, pois, irresponsável. Como não se trata “apenas” de um mau administrador, torna-se também culpado. Sim, as mortes estão no “colo” dele.

Brasil de governo ligado


Os homens do presidente

Um gabinete do ódio foi instalado no governo para dar vazão ao maior de todos os sentimentos de um presidente movido pelo desejo permanente de retaliação. Ele se disse perseguido e sempre odiou todos aqueles que identificava como inimigos ou que imaginava um dia poderem se transformar em inimigos. Por isso, destilou sua ira contra políticos de oposição, aliados que não mostravam firmeza, ex-aliados, juízes, desembargadores, ministros da Suprema Corte, jornalistas ou qualquer outro tipo de gente que não pensasse como ele ou que se interpusesse entre ele e seu projeto político.

O gabinete usou todos os instrumentos que conseguiu dispor para construir constrangimentos aos inimigos do chefe. Espionou, divulgou notícias falsas, impediu acesso a documentos oficiais, criou barreiras entre o presidente e a imprensa, proibiu veículos de informação de entrar na sede do governo, mentiu para o Congresso, privilegiou amigos. Suas ligações com criminosos profissionais, milicianos que trabalhavam por dinheiro, sempre foram conhecidas. Recursos do fundo partidário eram usados para pagar por serviços prestados por esses indivíduos, de resto tão inescrupulosos quanto os membros do gabinete do ódio e o próprio presidente da República.



Acossado pelo Congresso que ameaçava instalar um processo de impeachment, o presidente demitiu sumariamente o chefe das investigações sobre crimes cometidos por pessoas do seu círculo mais próximo, inclusive os assessores que dentro do governo davam substância à ira presidencial. A demissão foi o último passo de sua corrida vertiginosa em direção ao abismo. Sabe-se que ele também cometeu crimes de responsabilidade e que não conseguiria escapar do julgamento do Congresso. O presidente deveria renunciar, ou então seria impedido pela vontade da maioria absoluta de deputados e senadores.

Embora se pareça muito com a história em curso de Jair Bolsonaro, esta conta a saga do presidente Richard Nixon no escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em 1972. Nixon, que foi um trambiqueiro mas não era bobo, resolveu renunciar ao cargo dois anos depois para não sofrer o impeachment. Foram condenadas e presas 49 pessoas, inclusive membros do gabinete do ódio, como H. R. Haldeman, secretário-geral da Casa Branca, John Mitchell, ministro da Justiça, e os assessores John Ehrlichman e John Dean III. Os cinco bandidos que arrombaram o escritório do partido adversário também foram presos. Dois eram ex-agentes da CIA e do FBI e os outros três eram anticastristas de Miami.

Os assessores do presidente foram presos por instrumentalizar o bando que invadiu o escritório no Watergate, por mentir sobre o episódio, e por sonegar informações. O dinheiro do fundo partidário para a eleição usado na operação agravou o caso. Nixon, que tentou obstruir a Justiça e também mentiu, só não foi condenado e preso porque, antes de se afastar, negociou com o vice-presidente Gerald Ford um perdão pelos crimes que cometeu. Ford cumpriu a promessa, e o trambiqueiro nunca foi chamado para prestar contas.

Em Watergate, Nixon mandou demitir Archibald Cox, promotor especial designado para investigar o escândalo. No Brasil, Bolsonaro mandou demitir Maurício Valeixo da PF. Nixon só obteve sucesso quando o terceiro da hierarquia da Procuradoria-Geral aceitou encaminhar a encomenda, depois que se demitiram o titular do cargo e seu substituto imediato. No Brasil, o presidente teve que fazer ele mesmo o serviço sujo, uma vez que o ministro Sergio Moro se negou a afastar Valeixo e se demitiu.

Bolsonaro também tem um gabinete do ódio no Palácio, da mesma forma ataca parlamentares, juízes e jornalistas. Mantém laços sólidos com milicianos, chegando a empregar alguns e a homenagear outros. Na campanha, recursos do fundo eleitoral foram usados para financiar a máquina de propaganda de Bolsonaro baseada na distribuição de fake news. São muitas as semelhanças, mas, apesar delas, é claro que Nixon e Bolsonaro não são iguais em tudo. Como Bolsonaro, Nixon também desprezava a democracia, mas pelo menos fingia o contrário.

'Golden shower' presidencial

Quando o presidente diz “e daí” pra mais de 5 mil mortos, sendo 474 nas últimas 24 h, ao som de risadas de deboche de seus apoiadores, ou é um atestado por notória evidência de insanidade, ou é uma prova candente de falta de caráter e qualquer vestígio de sensibilidade
Marina Silva, ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente 

Reação dos políticos é vital para superar pandemia

A luta contra o coronavírus, a vida em meio à pandemia e a sobrevivência a essa ameaça são uma corrida de longa distância. Isso é algo que desafiará por muito tempo tanto as sociedades como os políticos – nacional e internacionalmente. E o meio político busca conselhos de especialistas. Mas até onde isso vai?

O aplauso ostensivo das varandas e das janelas já foi há muito tempo. Destinava-se às equipes sanitárias, médicos, enfermeiros, por seu trabalho, cujo perigo ninguém pode e poderá prever. Somente na Itália, mais de 150 agentes de saúde morreram. Houve aplausos e gritos pelos heróis. Mas heróis não são suficientes, pelo menos para uma sociedade midiática. Ela procura estrelas que se pode construir, mas também derrubar. Os virologistas se tornaram as estrelas desse primeiro estágio da crise do coronavírus.

A Alemanha pode se dar por satisfeita com o que tem a oferecer em termos de cientistas e também de jornalismo científico. Assim, foram divulgadas dicas que, em sua simplicidade, que todos podem implementar: lavar as mãos, evitar multidões, manter distância física mesmo na vida privada. Portanto, houve participação na pesquisa acadêmica através da ação.

Consequentemente, também houve ganho de conhecimento em tempo real, com – e isso que pertence à ciência – tentativa e erro, com hipóteses, com sua refutação, com declarações concorrentes.

Dessa forma que a questão sobre o uso de máscaras, por exemplo, foi virada ao contrário desde março. E há muitas perguntas que os especialistas ainda não sabem responder e pedem, por elas, paciência. Independentemente disso, há muito que eles são estrelas – classificados em rankings por recepção da comunidade científica e presença na mídia. E também tendencialmente pelo fator carismático. E quem for o primeiro a desenvolver uma vacina – em Berlim ou Bonn, Oxford, Paris ou Wuhan – passará de estrela a messias na mídia.

Os políticos também são responsáveis pelo fato de os pesquisadores terem entrado nesse papel. Claro: para impor o impensável e até a restrição dos direitos civis básicos em muitas áreas, o meio político, o governo federal procurou o apoio e aconselhamento de virologistas e depois também de representantes de outras áreas científicas. Mas a ação, a questão das decisões concretas, depende do setor político – e apenas dele. Os especialistas podem fornecer expertise, a mídia pode transmitir informações, ponderar e expor opiniões. Mas a classe política é que tem que agir. É para isso que os políticos são eleitos e para isso recebem um cargo temporário.

Em um mundo cada vez mais confuso, o conhecimento especializado é importante e se torna cada vez mais importante. Existe uma variedade a perder de vista de tais grêmios. Há 20 anos, o então chanceler alemão Gerhard Schröder criou o Conselho Nacional de Ética, devido às grandes questões da biomedicina, que mais tarde se tornou o Conselho Alemão de Ética. Logo após a posse, a chanceler Angela Merkel valorizou a pouco notada Academia Nacional de Ciências, a Leopoldina. Estes são apenas dois exemplos das últimas décadas.

Certamente, que as responsabilidades do setor político incluem incertezas, decisões abertas, agir a partir do que se sabe no momento, como costuma ser dito nessas semanas. Isso não está tão longe da possibilidade de erro que integra a prática científica. Faz parte de um dos muitos momentos impressionantes do ministro da Saúde da Alemanha, Jens Spahn, o modo aberto com que ele falou no Bundestag, em 22 de abril, sobre o possível erro de algumas decisões, pelas quais talvez seja preciso pedir desculpas posteriormente. Mostrou grandeza. Ele falou de si mesmo – não dos cientistas.

É por isso que as aparições e a competição entre os virologistas na luta contra a pandemia permanecem apenas um aspecto marginal. São importantes, mas não cruciais. Isso é coisa que o meio político pode e deve tranquilamente dizer mais claramente em tempos de uma sociedade fundamentalmente abalada. As ações dos políticos, do Bundestag e dos parlamentos permanecem decisivas. No início de um período legislativo, os presidentes do Bundestag costumam lembrar da alta responsabilidade de todos os legisladores. Eles agora também carregam uma responsabilidade. Agora até mais do que nunca.

‘Estas palavras podem salvar vossas vidas’

Caros amigos no Brasil,

resolvi escrever esta mensagem por verificar que aí se demora na tomada de consciência acerca do que a covid-19 está provocando no mundo, desde logo, na Europa.

Pela vossa segurança e segurança dos vossos familiares e concidadãos, não tomem por exagerados os alertas que escutam vindos de fora. Preferível que cumpram as regras de protecção achando que talvez seja demasiado, a não terem cumprido e descobrirem que contribuíram para a dor ou morte de alguém.

a covid-19 não tem a taxa de mortalidade superior a outros vírus comuns, a questão é que ela vence os outros por ser infinitamente mais contagiosa, sobrevivendo mais tempo em superfícies e necessitando de um contacto ínfimo com a boca, os olhos ou o nariz para criar infecção.

O novo coronavírus não vai impactar na saúde de cerca de 80% dos infectados, no entanto, nos restantes casos, ele pode levar à morte, com taxas elevadas de óbitos em pessoas de saúde vulnerável, como são os mais velhos e os já enfermos.


A facilidade de transmissão deste vírus é tão grande que ele pode matar muito mais do que seria natural, simplesmente porque existem mais pessoas doentes do que qualquer sistema de saúde do mundo pode atender. Muitas pessoas, nos países onde se perdeu o controle, estão morrendo porque não há mais acesso à UTI. No terreno, igual ao que acontece em tempo de guerra, os médicos precisam optar pelos pacientes aos quais administram o tratamento e aqueles a quem não têm mais oportunidade de salvar.

Estima-se que na Itália e em Espanha (sobretudo na grande Madri), os óbitos já dizem respeito também às pessoas que chegam infectadas com 80 anos e são deixadas sem ventilador porque todos os equipamentos estão tomados por pessoas mais jovens que lutam por suas vidas. Há dias, falava-se que teriam de descer este critério para os 70 anos. É como muita gente precisar de um transplante de fígado ao mesmo tempo. Não vai ser possível transplantar toda a gente. As pessoas são simplesmente deixadas a morrer.

Não morre apenas quem chamamos de velho. Já morreram pessoas muito jovens, inúmeras com bem menos de 50 anos de idade. Não julguem nunca que podem oferecer o coronavírus aos outros e passar seguramente incólumes. Isso é um jogo de sorte e de profundo azar. Qualquer um pode morrer.

As regras para defesa perante esta pandemia passam por uma higiene muito complexa que vocês poderão aprender em páginas oficiais de boa informação. No entanto, a ÚNICA MEDIDA COMPLETAMENTE EFICAZ contra a pandemia de coronavírus, neste instante em que ainda não existe qualquer vacina, é o confinamento tendencialmente absoluto. É o apelo mais desesperado que nos fazem os médicos responsáveis: FIQUE EM CASA, pare todas as suas saídas que não sejam de pura sobrevivência, e NÃO SOCIALIZE de jeito nenhum.

O exemplo de vosso presidente é um desastre grotesco que em praticamente todos os regimes jurídicos configura crime de leviano contágio de doença potencialmente fatal.

Você demorará a entender quem está infectado. As crianças, inclusive, quase nem terão sintomas, no entanto, se estiverem infectadas, elas infectarão suas famílias e poderão com isso oferecer a morte dos mais velhos ou dos enfermos da família. É muito importante que vocês atentem nesta questão: perante o desafio, se vocês precisarem de deixar seus filhos menores com alguém, os AVÓS NÃO SÃO A SOLUÇÃO. Desta vez, vocês precisam separar completamente as crianças dos vulneráveis. Elas são o perigo mais invisível de entre todo este perigo invisível que nos ronda.

Comentei com amigos daí que sinto estar a escrever-vos do futuro, porque esta pandemia abateu-se sobre a Europa antes de ser clara no Brasil, e porque aqui tomamos as medidas que se julgam necessárias um pouco mais cedo. Vocês precisam mobilizar-se voluntariamente para esta preocupação. Infelizmente, o vosso presidente não só não é lúcido para alertar a população do Brasil, como age de modo irresponsável, não cumprindo as mais elementares regras para a segurança das outras pessoas. O exemplo de vosso presidente é um desastre grotesco que em praticamente todos os regimes jurídicos configura crime de leviano contágio de doença potencialmente fatal.

Assim, o Brasil são vocês mesmos, o povo extenso e diverso e de cultura brilhante que me apaixona. São vocês mesmos que, tomando consciência da urgência desta situação, podem escolher parar este vírus antes que os vossos hospitais não tenham nem um pouco de chão para pousar os infectados em estado grave.

Nesta quarta, 18 de março, na Itália, anunciaram que apenas em um dia morreram cerca de 500 pessoas. Num país com um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Morreram pelo coronavírus, sim, mas morreram sobretudo porque o sistema colapsou. Vocês acreditam que o sistema de saúde brasileiro é melhor que o da Itália? Vocês vão esperar para descobrir o que acontece se agirem demasiado tarde? Já imaginaram quantas pessoas morrerão no gigante brasileiro se em Itália podem morrer 500 num só dia?

Se eu estiver “escrevendo do futuro”, percebam que não falo de mais de uns dias adiante. Estamos, talvez, 15 dias à frente. São os 15 dias que têm para salvar o vosso país de uma derrocada sanitária e econômica sem comparação com nada do que viram até agora.

Desejo-vos toda a sorte e toda a lucidez. Desejo-vos melhores políticos e sempre a grande arte que vos representa no mundo com esplendor. A paz e a sorte. Só com informação e cuidado pelos outros conseguiremos superar cada crise, cada ameaça.

Valter Hugo Mãe
(A carta aos brasileiros do  escritor português não mereceu nenhum destaque na mídia como deveria apesar de mais de um mês escrita) 

Bolsonaro renunciou

O presidente Jair Bolsonaro renunciou à Presidência quando, diante de cinco mil brasileiros mortos, perguntou “e daí?” Não exerce a Presidência quem demonstra tal desprezo pelo seu próprio povo. Já não cabe mais esperança de que ele entenda como é desempenhar as “magnas funções”, para as quais foi eleito. Há suficientes palavras e atos ofensivos ao longo desta pandemia demonstrando que Bolsonaro jamais assumirá o papel que tantos líderes na história do mundo exerceram quando seus povos viveram tragédias. A nossa se desdobra em vários campos, na saúde, na economia, na vida social e pessoal. Mas Bolsonaro vive em seu mundinho como se a realidade não fosse essa fratura exposta.

Ontem foi um dia de derrota para o presidente Jair Bolsonaro, mas grande mesmo é a dor do país. No Brasil real contou-se de novo mais de 400 mortos num dia, e ainda ouvia-se o eco da voz de Bolsonaro escarnecendo —“lamento, mas e daí?” — quando se atravessou, na véspera, a marca de 5 mil mortos. No seu mundo, Bolsonaro ficou irritado porque não conseguiu nomear o amigo Alexandre Ramagem para a Polícia Federal. Na vida real, o país vive a aflição, o medo, a solidão, a falta de ar, a morte sem os rituais de despedidas, os enterros apressados, a longa espera nas filas por um direito, o risco cotidiano.

No seu mundo, Bolsonaro ficou bravo porque encontrou o limite do sistema de freios e contrapesos da democracia. O ministro Alexandre de Moraes mandou suspender a posse de Alexandre Ramagem numa peça em que deixou claro que não o fazia por qualquer idiossincrasia. Era um fato objetivo. Havia o risco de se ferir o princípio da impessoalidade e de haver desvio de função da Polícia Federal. Os indícios disso estavam na própria fala de Bolsonaro ao tentar desmentir seu ex-ministro da Justiça Sergio Moro. No final do dia, ele bateu na mesa e disse que recorrerá da decisão do ministro do STF. “Quem manda sou eu”, disse ele. E está à beira de criar um monstro jurídico. Não se pode recorrer da suspensão de um ato que ele mesmo revogou. Difícil a primeira tarefa do novo advogado-geral da União. Ele sabe que é impossível recorrer de uma causa sem objeto.

Mas pelo que se viu ontem nas posses, toda verdade pode ser distorcida para agradar o presidente. O novo ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, foi muito elogiado porque teria sido uma escolha técnica. Elogios talvez prematuros. Seu discurso foi político e com o uso de símbolos religiosos. Chamou o presidente de “profeta”. Como teólogo, deve conhecer a advertência bíblica sobre os falsos profetas. Está logo no primeiro Evangelho. O de Mateus. Os frutos desse profeta do ministro André Mendonça já são bem conhecidos.

Até que ponto é possível suportar o ultraje? Foram tantos nesses 16 meses, foram tantos antes das eleições, que o maior risco é o país aceitar uma Presidência exercida dessa forma deletéria como se fosse natural. Bolsonaro sempre ofendeu grupos sociais, fez disso a sua marca particular, um marketing da agressão. Ele gosta de ofender os sentimentos e ferir valores.

Dos povos originários do Brasil veio uma lição ontem. Os Waimiri-Atroari querem a publicação imediata do seu direito de resposta nos sites da Presidência pelas inúmeras vezes em que foram atingidos por palavras discriminatórias. Após um pedido do Ministério Público Federal, a Justiça Federal do Amazonas determinou à União e à Funai que assegurem ao povo publicação de uma carta nos sites do Planalto. Eles estão reagindo aos “constantes discursos desumanizantes” e de crítica ao seu modo de vida nas falas frequentes de Jair Bolsonaro. Certa vez, ele chegou a dizer que o “índio está evoluindo, cada vez mais é ser humano igual a nós”.

Durante a pandemia tudo tem ficado mais claro. Ele não quer exercer a Presidência. Ele quer gritar “quem manda aqui sou eu”, quando encontra os limites da lei. Ele gosta do mandonismo, não do exercício dos deveres da Presidência. Ele fala aos arrancos, porque não se dedica a entender as questões de Estado sobre as quais tem que decidir. Ele diz “e daí?” porque de fato não está nem aí. É isso que faz de Bolsonaro um presidente que renunciou às suas funções, apesar de formalmente continuar no posto.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Pensamento do Dia


Com popularidade firme, Bolsonaro acha que pode fazer o que quiser

Donald Trump nunca duvidou da lealdade de seus eleitores fiéis. Dez meses antes da eleição de 2016, o magnata subiu num palanque e exibiu a dimensão de sua autoconfiança: "Eu poderia ir para o meio da Quinta Avenida, atirar em alguém e não perderia nenhum eleitor".

Até aquele dia, o republicano só havia apresentado uma amostra grátis do repertório de atrocidades que usaria durante a campanha. Dali por diante, deu declarações absurdas, prometeu barbaridades e chegou à Casa Branca mesmo assim.


A despreocupação de Jair Bolsonaro com sua popularidade espelha a frase lançada por seu ídolo americano naquele comício. Os números da última pesquisa Datafolha mostram que a base de apoio do presidente se manteve inabalada.

Assim como no fim do ano passado, um a cada três brasileiros afirma que o governo Bolsonaro é ótimo ou bom. Nesse intervalo, o presidente empurrou o país em direção ao abismo do coronavírus, fez campanha contra alertas das autoridades de saúde e demitiu o ministro que cuidava da área. Seus apoiadores viram 5.000 mortes em menos de 40 dias, mas continuaram a seu lado.

A solidez dessa base abriu caminho para mais desatinos. Bolsonaro deu apoio explícito a uma turba que pedia um golpe militar e interferiu politicamente na Polícia Federal para proteger os filhos. Depois, nomeou um delegado próximo de sua família. "E daí?", rebateu.

O presidente provavelmente acredita que pode fazer o que quiser. Embora trincado pelo conflito com Sergio Moro, o discurso antissistema ainda prende os bolsonaristas a seu líder, assim como a promessa de uma agenda conservadora. O peso da máquina pública e os R$ 600 pagos a trabalhadores informais afetados pela crise inflam esse grupo.

Bolsonaro ainda precisará enfrentar os efeitos da disparada das mortes por coronavírus e da recessão provocada pela pandemia. Por enquanto, o país mantém no poder um presidente que fabrica disparates sem medo de perder popularidade.

A nova arte de varandear

Dia 45.

E ao 44º dia, sexto domingo de quarentena, não me apeteceu escrever. Normalmente, um cursor a piscar numa folha em branco costuma ser um desafio encarado com agrado. Gosto da sensação de desafio de ter uns milhares de carateres para debitar num ecrã. É engraçado como, por mais anos disto que se leve, quando nos sentamos para escrever, nunca sabemos bem quem vai sair vencido ou vencedor: se nós ou a folha (que ficaria melhor) em branco.


Mas ontem, confesso, padeci da humana preguiça. Atire a primeira pedra quem nunca. Sucumbi a ela e dediquei a tarde a varandear, embalada por uma playlist de jazz a tocar na coluna e o cão sempre deitado ao meu lado no chão. Ofereci-me umas horas sem nada para fazer. Como assim nada?, cheguei a perguntar, meio pasmada com a própria ideia, de mim para os meus botões. Nada, Mafalda, nada é nada, respondi-me. Nem livro, nem revistas, nem jornais para ler, nem notas no telemóvel para tirar. Nada, nadinha, será possível? É lamentável como hoje parece tão difícil desligarmos o cérebro e não fazermos nada. Não sei como deixámos que isto nos acontecesse.

Estendi-me numa cama de paletes improvisada e fechei os olhos. Tentei resistir ao apelo de estar, o tempo todo, a fazer listas ou a tentar resolver problemas na minha cabeça. Deixei-me estar. Quase que consegui ouvir Fernando Pessoa a dizer-me ao ouvido: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!”. Que coisa rara e nunca vista… Tenho uma varanda desde que me mudei para esta casa, há 12 anos. E foram, na verdade, tão poucas as vezes que realmente desfrutei dela com tranquilidade. Cuido das plantas com dedicação, rego-as e limpo-lhes as folhas secas, apanho a alpista que os pássaros que nos visitam espalham no chão, mas nunca me detive realmente por ali. Até agora, a varada era só mais um afazer na minha vida. Até a cama de rede que comprei foi, durante anos, vetada ao abandono e a desbotar ao sol.

Mas por estes dias, tudo mudou. A varanda tornou-se o segundo centro da casa, a seguir à cozinha. O lugar onde ouvimos os pássaros, olhamos o céu, fotografamos a chuva e os bichos, adivinhamos as formas das nuvens, vislumbramos ao longe um pedacinho de mar e fazemos apostas às ondas. Almoçamos e lanchamos na varanda, cantamos na varanda, pintamos e fazemos cerâmica na varanda, fazemos ginástica e ioga na varanda. A cama de rede já precisava de um sistema de senhas.

Desconfio que é algo que sucedeu a muitos portugueses. Nas nossas varandas, cabe agora o mundo todo. Acho comovente como redescobrimos este espaço, que muitos tinham a sorte de ter mas que para pouco mais servia do que estender a roupa, e lhe passámos a dar toda uma nova vida. Bastam, na verdade, pouco mais do que dois metros quadrados para dar um concerto, projetar cinema para os vizinhos ou recitar poesia, como as histórias que fui ouvindo por estes dias. Quem diria que podemos ser tão felizes nas nossas varandas…

Elas podem mesmo ser centros de convívio social. Na semana passada, a passear o cão, passei por um bairro de prédios altos aqui ao lado. Às 21h da noite, toda a vizinhança estava na varanda, para um novo ritual repetido diariamente. Fiquei a ver – eram dezenas de famílias, a falar umas com as outras. Uns lançavam palavras de ordem, outros acendiam luzes multicolores, outros punham música. No fim da catarse coletiva, a despedida: boa noite vizinhos, força, até amanhã! Encontramo-nos na varanda, à mesma hora. Será que depois de tudo isto passar vão esquecer-se das varandas e deixar de se falar nos elevadores?

Mafalda Anjos

Cidadania em país sério


Depois de mais de um mês de quarentena pela pandemia do novo coronavírus, as religiosas resolveram usar suas habilidades musicais para se divertir e também entreter a vizinhança. Juntas, elas animam os vizinhos com suas vozes e performances feitas da varanda da residência, de onde recebem aplausos e agradecimentos dos vizinhos. São as mesmas jovens monjas que fizeram viralizar um vídeo em que as vemos fazendo uma charmosa coreografia da chamada canção da quarentena, a Resistiré, da banda Dúo Dinámico.

Por que o bolsonarismo-raiz engendrado nos gabinetes do ódio não terá futuro no Brasil?

É difícil ser profeta nesses tempos conturbados, mas pelo que conheço de Brasil o bolsonarismo-raiz, o que se nutre nas cloacas do gabinete do ódio do clã familiar Bolsonaro, não terá futuro nesse país. Logo ficará reduzido a uma excentricidade política que ainda poderá fazer barulho, mas que não será um movimento de peso. Acabará sendo marginal quando aparecer uma proposta democrática alternativa capaz de tirar o país do pesadelo autoritário e grotesco no qual está chafurdando.

Em que me baseio? No fato de que o chamado bolsonarismo nasce do radicalismo da política vista como guerra, como confronto permanente, como morte mais do que vida.

É bom lembrar que o pai da psicanálise, Sigmund Freud, descobriu, inspirado na filosofia grega, que o mundo se move entre duas grandes pulsões: a do eros, que seria o amor pela vida, à procriação, à sexualidade, ao prazer e ao amor, e de tanatos, que lembra o deus da morte. É o impulso da destruição, da violência e do sadismo.

Segundo Freud, o mundo continua de pé porque o impulso da vida é superior ao da morte. Do contrário, já não existiria. Nós teríamos nos autodestruído.

Acontece o mesmo na política. Há momentos em que o impulso de morte e destruição, o totalitarismo, parece triunfar, mas por fim vencem os valores da vida e da liberdade como aconteceu na Europa após a tragédia da Segunda Guerra Mundial.

Há países que sempre foram mais inclinados a viver sob o tanatos destrutivo e outros preferem crescer sob a força da vida e da liberdade que são as chaves da felicidade.

E o Brasil? Esse é um país que, apesar de um passado de bárbara escravidão que deixou marcas na pobreza e no abandono milhões de pessoas largadas a sua própria sorte, não pertence aos propensos a fomentar fantasmas de morte. Se o Brasil tem pecados, em certos momentos de sua história, é mais por passividade e servilismo ao poder do que pela guerra.

É um país com vocação, em suas diferentes e ricas culturas, ao desfrute da vida. Um país que não é geneticamente guerreiro.

De modo que o bolsonarismo, tal como se apresenta hoje sob a bandeira da violência e da morte, da política vista como um ringue de bairro, não pode criar raízes profundas nesse país.

Eu me atreveria a dizer que o bolsonarismo extremo, o da gritaria, que às vezes pode assustar, não é mais do que uma dessas seitas fanáticas que nascem e morrem sem deixar rastro. Essa política se nutre somente de negatividade. Cria inimigos imaginários e por fim se mostra de uma infantilidade espantosa.

Essas seitas são destrutivas, procuram brigas e se alimentam de símbolos de morte. Basta ver o caixão que levam nas manifestações como símbolo de sua morte anunciada.

Querem sempre guerra e luta porque a paz os assusta. E quando não existem inimigos os criam. Destroem tudo o que evoca o gosto pela vida, a alegria e a liberdade. Por isso não suportaram e assassinaram a jovem negra e favelada, a ativista Marielle Franco.

Essas seitas religiosas e políticas precisam de um mito para suprir sua nulidade como manada. Sofrem de complexo de castração. Professam uma sexualidade doentia adornada com símbolos que beiram a pornografia.

Cultivam os símbolos da morte e da destruição porque viver lhes dá medo. Sua vocação é a satânica de dividir. Agem nos meandros da obscuridade que é o reino da mentira.

Quando não encontram inimigos os inventam. Precisam manter vivo o diapasão do ódio. Por isso nadam com maestria nas águas escuras das fake news.

Negam a compaixão. A bile e o amargor são os primeiros ingredientes de suas cozinhas.

Essas seitas da morte acabam por fim como canibais devorando uns aos outros. A maior curiosidade mórbida, os melhores orgasmos políticos do bolsonarismo-raiz, vêm da paixão pelas armas e por todo o ritual gestual e simbólico da guerra.

O Deus da seita é o dos trovões e dos medos, o vingador, o deus que se compraz com a destruição dos inimigos. Eles que se dizem seguidores da Bíblia nunca entenderão a emoção de Jesus de Nazaré ressuscitando seu amigo Lázaro e ao ver um leproso curado.

Ao final, toda essa agressividade e fome de guerra e conflitos do bolsonarismo-raiz revelam sua incapacidade à felicidade. Eles se afogam em seus próprios instintos de destruição.

Os diferentes sexualmente lhes dão pânico porque ameaçam sua falsa virilidade. A ternura lhes dá medo porque condena sua índole machista.

Eles se sentem melhor às portas de um cemitério do que diante do berço de um recém-nascido. Seus impulsos de morte sempre superam os de vida.

Esses seguidores de morte e luta se assustam diante dos mansos porque definitivamente os desarmados lhes dão medo. Mostram coragem somente diante dos frágeis porque os verdadeiros fortes, que são os que não temem a morte, desnudam sua falsa hombridade.

Não, uma seita com essa força destrutiva e niilista nunca será a vocação de um Brasil que, apesar de todos os seus defeitos, não renuncia à alegria de viver em paz. Só poderão impô-la com a força dos tanques de guerra.

Os dois populares ministros, o da Saúde, Mandetta, e o da Justiça, Moro, ambos recentemente expulsos do Governo, representam juntos, de acordo com as últimas pesquisas, 75% do consenso popular. O que evidencia que o gabinete do ódio está se esgotando. Quem lhes resta? O Brasil não está mais com eles.

Muito otimista? Talvez, mas o pessimismo já deixou nossas gargantas secas demais.

Da nossa conta

Minha empregada está em casa no subúrbio, com marido, filhos e netos. Amigos meus fecharam seus escritórios, ateliês ou pequenos negócios, e também estão em casa. Atores e músicos que conheço estão igualmente parados, e em severa quarentena. Muitas dessas pessoas vivem em apartamentos modestos, que lhes bastavam quando podiam sair à vontade. Confinadas, as paredes começam a pesar-lhes. Elas gostariam de dar um pulo lá fora. Mas, conscientes que são, sabem que, enquanto as mortes pelo vírus não chegarem ao pico e só então declinarem, não é hora de abrir a guarda.


Em contrapartida, de minha janela, vejo jovens e velhos caminhando no calçadão da praia, pedalando ou correndo na ciclovia e até indo mergulhar. Sei pelo noticiário que em São Paulo também é assim. Uma coisa são os prestadores de certos serviços, que não podem parar de trabalhar. Outra são os que decidiram não abrir mão do lazer --nem querem privar disso seus garotos, a julgar pelos festivos playgrounds que também vejo daqui.

Não conheço a cor política dessas pessoas, mas quem continua a flanar, contra as recomendações dos agentes da saúde, está repetindo, até sem saber, o gesto de Jair Bolsonaro, para quem ninguém cerceará o seu direito de ir e vir. Por mim, Bolsonaro pode ir até para o diabo que o carregue, nem é da minha conta a saúde de quem sai em carreatas ou com ele partilha celulares, abraços e perdigotos.

Mas é da conta de todos nós, que estamos em casa, a saúde dos que continuam nas ruas como se tivessem passaportes de imunidade. O passeio de um deles, hoje, pode render uma internação só daqui a 15 dias. O problema é o que, por uma cadeia perversa, esses 15 dias custarão a quem ficou em casa.

Um amigo paulista, pioneiro da quarentena, está muito mal. Pode ter sido infectado pelo netinho assintomático. Não haverá tragédia maior para uma família.
Ruy Castro

Pra cova, Brasil!


Futebol para calar genocídio

A federação francesa de futebol cancelou o campeonato, liderado pelo Paris Saint Germain, dos brasileiros Neymar e Thiago Silva. Também estão suspensos, ainda sem definição, os torneiros nacionais da Alemanha, Itália, Portugal e Inglaterra. E La Liga, o milionário campeonato espanhol, foi suspenso. Todos movimentam milhões de euros e gastam outros milhões com suas equipes e estádios maravilhosos, praticamente lotados a cada jogo. Em tempo de pandemia, os europeus, e todos os países responsáveis por seus cidadãos, investem, como seus próprios jogadores fazem, em salvar vidas e garantir a quarentena. A volta aos campos mesmo sugerida em alguns deles, que já praticamente "controlaram" o coronavírus, gera severas críticas aos manipuladores de multidões.


No Brasil, este conhecido país fora do planeta Terra, que sofre apenas uma "gripezinha", Jair Bolsonaro, sob a chancela da CBF, está "estudando" a viabilização de um parecer do Ministério da Saúde, leia-se Nelson Teich, um perito da rede privada, para liberar a volta gradual de torneios de futebol com jogos sem público. A retomada, na contramão do mundo, do qual o país está cada vez mais isolado, e concorrendo a liderar o ranking de mortos, seria motivado pelo prejuízo dos clubes: "Não tem receita, bilheteria, não tem televisão”.

A preocupação governamental com o futebol faz-nos retornar no tempo, quando na ditadura Médici, o tricolor, adorava frequentar o Maracanã. Se extasiava diante daquela multidão, como se fosse o próprio ídolo em campo. E quando se gritava gol no estádio, se berrava de dor ou morte nas celas das prisões da ditadura. O futebol e a morte estavam juntos na foto do ditador no camarote presidencial.

A motivação de um presidente para a retomada dos jogos, em plena ascensão da pandemia no Brasil, é a fotocópia daquele passado. Messias, um ex-militar expulso da corporação, repete um dos seus ídolos ditatoriais e quer o povo, mesmo apenas pela televisão, em casa, se divertindo com o futebol, enquanto agora nos hospitais doentes com coronavírus e equipes de saúde lutam pela vida sob o cutelo da morte. Em segurança no Alvorada, infestado de ratos, vibrará com as jogadas em campo como o o ex-presidente militar no Maracanã, sob o mesmo signo de morte.

Médici e Messias são a mesma face da ditadura militar ou militarizada, que pode ser de golpe ou de eleição. Ambas só tem o compromisso com a defesa armada intransigente de seus propósitos contra os "adversários", os cidadãos que lhes pagam os salários, lhes sustentam a família - e no caso de Messias há 30 anos lhes dão emprego - e não têm direito à vida mas o dever patriótico de se calar. E bater continência, claro.
Luiz Gadelha

A República do 'E daí?'

Num só dia, o Brasil recebeu três más notícias sobre a pandemia do coronavírus. O país registrou um novo recorde de mortes: 474 em apenas 24 horas. Isso fez o total de vítimas superar a marca dos cinco mil. Para completar, o Brasil ultrapassou a China no ranking de países com mais mortos pela Covid-19.

Diante desses fatos, qualquer presidente razoável se sentiria obrigado a reconhecer a gravidade da situação. Mas os brasileiros elegeram Jair Bolsonaro, que preferiu fazer piada com a tragédia. “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, disse, ontem à noite.

A mistura de indiferença e deboche virou marca das declarações do presidente. No domingo, ele foi questionado por uma eleitora sobre a decisão de entregar o comando da Polícia Federal a um amigo dos filhos.

“E daí? Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem”, ele respondeu, numa rede social. Em seu idioma particular, o capitão queria dizer que conheceu o delegado antes dos herdeiros. Mesmo assim, ele não se julgou obrigado a esclarecer o conflito de interesses.

Hoje o presidente fez questão de reforçar que Alexandre Ramagem foi presenteado com o cargo porque “passou a ser um amigo”. “Tomava café junto, leite condensado no pão, tá? E daí? Eu devo escolher uma pessoa que eu nunca vi na vida?”, questionou.

Bolsonaro quer transformar o Brasil na República do “E daí?”. Seu desejo é viver num país em que o governante pode ignorar as leis e não precisa prestar contas do que faz. Por isso, ele detesta a imprensa e incentiva ataques ao Congresso e ao Judiciário.

Nesta segunda, a Justiça Federal atendeu a um pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” e determinou que o presidente apresente o resultado de seus exames para a Covid-19. A informação é de interesse público, mas o presidente se julga no direito de sonegá-la.

Questionado sobre a ordem judicial, ele voltou a fazer graça. “Daqui a pouco querem saber se eu sou virgem ou não. Vou ter que apresentar o exame de virgindade. Dá positivo ou negativo, o que vocês acham?”, perguntou, na porta do Alvorada.

Bernardo Mello Franco

Economia necrófila

Nós não queremos virar Argentina, nós não queremos virar a Venezuela. Estamos em outro caminho, estamos no caminho da prosperidade, e não no caminho do desespero
Paulo Guedes, ministro da Economia

'Vamos ter um luto pela falta de consciência'

“Como você está lidando?”, pergunta a médica Ana Cláudia Quintana Arantes, geriatra e especialista em cuidados paliativos. Em tempos de pandemia de coronavírus, a pergunta “tudo bem?”, costumeira em um cumprimento, nunca foi tão retórica. Neste momento em que o mundo contabiliza, dia a dia, o crescente número de infectados e mortos em decorrência da doença, um terço da população mundial está em casa em quarentena e muito se fala em perdas econômicas adiante, a médica contabiliza as perdas emocionais.

Especialista em cuidar de quem está muito próximo ao final da vida, ela já prevê que a humanidade passará por três tipos de luto. Além do luto real, das perdas objetivas, ela acrescenta o luto antecipatório —a percepção de que a morte está chegando. “Além disso, vamos ter um luto pela falta de consciência. Muitas pessoas vão se arrepender de não ter tido cuidado antes e vão pensar 'eu poderia ter ficado em casa, poderia ter convencido as pessoas a ficarem em casa”, afirma. “Haverá arrependimento coletivo também”, aposta.


Desde que a pandemia se instalou, o número de mortos já passaram de 210.000 ao redor do mundo e mais de 3 milhões de pessoas ficaram doentes. No Brasil, o mortos passam de 4.500 nesta segunda-feira. Há países, no entanto, que estão se mostrando mais eficazes em suas políticas de combate à doença, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, que realizam testagem em massa na população. Mas em outros lugares, os símbolos de luto e dor são os mais fortes desde a Segunda Guerra Mundial. Na Itália, que começa a ver a diminuição de casos, mas ainda contabiliza duas centenas de mortos por dia, as imagens de caminhões transportando corpos para serem enterrados em outras regiões por causa do colapso dos cemitérios da Lombardia se tornaram a prova da agressividade da pandemia. Na Espanha, uma pista de patinação no gelo dentro de um shopping se transformou em um imenso morgue para receber os corpos. Necrotérios temporários, hospitais de campanha em campos de futebol, despedidas dos parentes feitas por meio de uma tela de celular, já que ninguém pode se aproximar de uma pessoa infectada. A pandemia do novo coronavírus que se alastrou por quase o mundo inteiro aponta para uma imensa cicatriz que será formada por cenas surreais e a sensação de um luto coletivo.

Para a médica, que é autora de dos livros A morte é um dia que vale a pena viver (Sextante, 2019) e Histórias lindas de morrer (Sextante, 2020), o momento de uma pandemia é peculiar também sob o ponto de vista da morte. “Num cenário de pandemia, não há condição de dar sentido ao processo [da morte]. As pessoas vão morrer sozinhas, ninguém vai poder pegar na mão, pois as visitas são proibidas”.

A despedida também já está sendo solitária. No Brasil, os casos confirmados de óbitos pela covid-19 devem obedecer a um protocolo que prevê a não realização de velórios, os corpos devem ser enterrados com os caixões lacrados e a uma distância dos familiares, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. Por isso, além das mais de 4.500 pessoas que já morreram com a doença confirmada, até mesmo os casos suspeitos da doença, ou cuja morte se deu por para respiratória ou por razões não definidas, estão passando pelo mesmo processo. A despedida está sendo privada até mesmo àqueles que não confirmaram ter o vírus no corpo. Quem perde um parente que mora longe também encontra dificuldades de transporte para chegar a enterros e despedidas. Há ainda quem está preso longe de casa, num contexto de queda drástica no número de viagens aéreas internas e externas. “A experiência da dignidade no meio disso tudo [da pandemia] está difícil de ser encontrada”, afirma Ana Claudia Quintana.

No meio de previsões ainda tão nebulosas, a médica, enfim, responde à pergunta feita no início desta entrevista. “Como estou lidando? Ajudando a fortalecer as campanhas de solidariedade”, diz. “É o único jeito.”

O pessoal contra o impessoal

Somos editados por nossas culturas e sociedades. Por nossas épocas, moralidade e — eis um óbvio ululante sempre olvidado — por nossos idiomas, que inventam a nossa realidade. Ter consciência do mundo, como ensina Shakespeare, é saber que se entra num drama que existia antes de nós; que nele atuamos e que um dia vamos deixá-lo.

Para variar, eis mais uma crise: o presidente usou mais uma vez contra si mesmo o seu bacamarte. Eu já sugeri nesta coluna como o suicídio político faz parte do inconsciente brasileiro. Sua data oficial é o 1808, quando a Corte portuguesa fugiu de Napoleão e aqui consolidou um estilo de vida aristocrático e escravista, mas a isso seguiram-se outras “renúncias” e impedimentos.

A divergência entre Bolsonaro e Moro é uma reedição de nossas dificuldades de aceitar o poder discreto e autônomo dos regimes republicanos. Nas monarquias absolutistas, como a de Dom João VI e na do modelar Luiz XIV, o Rei Sol, Estado e sociedade estão integrados. O governo é uma família: ser rei não é um cargo disputado, é um papel predestinado. Na realeza, o legal e o circunstancial se fundiam no “sangue azul” e num indiscutível “direito divino”. Reis e nobres eram "donos" do reino. Não se governava por consentimento eleitoral, mas através de um elo com o sagrado.



O republicanismo mudou tudo. Como revela Tocqueville na sua etnografia da América, a democracia criou uma sociedade movediça e consciente de si mesma. As motivações pessoais entram em óbvia colisão com as demandas dos cargos públicos. Nos Estados Unidos, cargos públicos não podem ser acumulados e são vistos como "serviços" — quem os aceita deve abrir mão de sua vida privada.

Nas repúblicas, cada papel público tem sua área de decisão protegida de interferências. Foi essa igualdade livre de pessoalismos que tanto assombrou o lado nobre de Tocqueville quanto o meu lado relacional e familístico de brasileiro branco, machista e de classe média quando vivi a experiência americana. Chocou-me saber que era bom ficar sozinho e que o ideal era ter sua própria opinião, e não ser um papagaio de sabedorias alheias. Assustou-me, igualmente, a vivência rotineira do limite e, sobretudo, do concordar em discordar. Algo inédito, mas que — espero — esteja nascendo no Brasil.

Não sei quantas vezes um presidente interferiu com superintendentes da PF. Noto, porém, que foi esse diálogo espúrio entre Estado e empresas que inventou a Operação Lava-jato, conduzida impecavelmente por Sergio Moro. As interferências corroem a igualdade e o anonimato relativo, mas crítico, das democracias. Quando ele é obscurecido ou ideologizado, como foi o caso dos governos petistas, viu-se que constituíam o tumor de protagonismos escusos e o berço da corrupção.

Eu fiz um estudo pioneiro do “você sabe com quem está falando?”. Lívia Barbosa analisou o seu contraponto: o “jeitinho” que tudo resolve. Tais brasileirismos rejeitam o impessoal e o anonimato imprescindíveis numa república.-

O conflito do magistrado com o presidente tem a ver não com a intenção de mudar. Não há como esconder que o projeto intenta “blindar” as investigações dos filhos de um presidente eleito para liquidar privilégios, mas que insiste em governar de modo absolutista.

Numa república, nada é mais delicado do que os cargos ligados aos limites da liberdade. Se as polícias sofrem interferências e têm elos extraoficiais com os poderosos, cria-se uma democracia selvagem, muito pior que o capitalismo que nasceu sem pai e, principalmente, sem mãe. Mas cujos abusos são corrigidos pela fidelidade à igualdade contra a sua brutal e constitutiva impessoalidade. A crise reitera esse combate do pessoal e de um aberto familismo, contra a impessoalidade estruturante das democracias.

Assistir em pleno século XXI a um enredo já equacionado no século XIX — um filme protagonizado por um presidente referendado com a promessa de liquidar esse personalista pilar da “velha política”, contra o ministro sem o qual ele jamais teria sido eleito, já que ambos queriam o controle do familismo aristocrático e ilegal — não é apenas ofensivo e deprimente. É uma merda!
Roberto DaMatta 

terça-feira, 28 de abril de 2020

Pensamento do Dia


Vem aí a calamidade

De uma coisa os portugueses não se podem queixar, porque é o que querem: normalizar o país, a economia, e o regresso gradual e protegido ao trabalho. Isso tem um preço muito elevado, difícil de pré-avaliar, que não obedece a nenhum algoritmo, ou a projeções inconstantes. E o preço, pesado, muito pesado, é a disseminação e o contágio com o SARS-CoV-2 . Na população em geral. E aí sim, infelizmente, atingiremos o pico que nunca existiu. Em contagiados e mortes. É o estado de calamidade.

Vamos ver se nos entendemos, de uma vez por todas: se só temos pouco mais do que 1% da população infetada, existem, teoricamente, 85 a 90% de pessoas em grande risco de infeção. Os melhores especialistas em infeciologia e epidemia do mundo admitem que, por cada caso confirmado, há mais 10 com o vírus. Aplicando a regra ao nosso país haverá já 240 mil pessoas contagiadas, ainda que assintomáticas, ou numa das várias fases, pouco conhecidas, do caminho que este vírus faz até à Covid-19.


Não estando o país em quarentena, a única medida cientificamente provada como redutora da pandemia, vamos atirar para cima do SNS um risco catastrófico. Apesar de tudo ter começado (só) a 16 de Março, data da primeira morte, e com todo o esforço que foi e está a ser feito, Portugal está muito longe de ter um Serviço Nacional de Saúde plenamente capacitado e pronto para responder a um aumento exponencial de doentes em fase crítica. E também já sabemos que 50% dos internados em Cuidados Intensivos não resistem.

Somam-se mais duas interrogações: não está provada a imunidade de quem já foi contagiado, o que multiplica o risco de transmissão, e a famosa e tenebrosa ideia de imunidade de grupo implicaria que no mínimo 70% dos portugueses teria de se infetar e, obviamente, muitos milhares morreriam.

O Estado de Emergência vai acabar, e o Governo vai decidir pela calamidade (que grande ironia!), esta semana, e fasear a abertura do país. Estará na posse, acreditamos, das mais ponderadas e sensatas recomendações dos especialistas. Nenhuma dúvida. Mas também não haverá nenhuma hesitação, de que cairá sobre ele – Governo, a ministra da Saúde, a DGS, e outras entidades – a culpa máxima por uma decisão mal tomada, apressada, infundada. A existir uma calamidade nacional, o Governo será o responsável único, direto, e sem perdão.

Governo acima de tudo

Este é o momento de a sociedade brasileira, e as instituições republicanas em especial, observarem atentamente os próximos passos, sem admitir retrocessos para além daqueles já promovidos até aqui. Já fomos longe demais
Ilona Szabó de Carvalho, cofundadora e diretora-executiva do Instituto Igarapé

Um gentil ladrão

Batem à porta. Bater é uma maneira de dizer. Moro longe de tudo, só a fome e a guerra me vêm visitar. E agora, na eternidade de mais uma tarde, alguém fuzila com os pés a porta da minha casa. Vou a correr. Correr é uma maneira de dizer. Arrasto os pés, os chinelos rangendo no soalho. Com a minha idade, é tudo o que posso. A gente começa a ficar velho quando olha o chão e vê um abismo.

Abro a porta. É um homem mascarado. Ao notar a minha presença, ele grita – Três metros, fique a três metros!

Se é um assaltante, está com medo. Esse temor inquieta-me. Ladrões medrosos são os mais perigosos. Retira da bolsa uma pistola. Aponta-a na minha direção. É estranha aquela arma: de plástico branco, emitindo um raio de luz verde. Aponta a pistola para o meu rosto e eu fecho os olhos, obediente. É quase uma carícia aquele raio de luz sobre o meu rosto. Morrer assim é um sinal que Deus respondeu às minhas preces.

Susa Monteiro

O mascarado tem uma voz doce, um olhar delicado. Não me deixo enganar: os mais cruéis soldados surgiram-me com modos de anjo. Há tanto, porém, que ninguém me faz companhia, que acabo entrando no jogo.

Peço ao visitante que baixe a pistola e tome lugar na única cadeira que me resta. Só então reparo que traz uns sacos de plástico envolvendo os sapatos. É óbvia a intenção: não quer deixar pegadas. Peço-lhe para baixar a máscara, asseguro-lhe que pode ter toda a confiança em mim. O homem sorri com tristeza e murmura – Nestes dias não se pode confiar, as pessoas não sabem o que trazem dentro delas. – Entendo a enigmática mensagem, o homem pensa que, sob a minha aparência desvalida, se esconde um valioso tesouro.

Olha em redor e, como não encontra nada para roubar, o homem acaba por se explicar. Diz que vem dos serviços de saúde. E eu sorrio. É um jovem ladrão, não sabe mentir. Diz que os seus chefes estão preocupados com uma doença grave que se espalha rapidamente. Faço de conta que acredito.

Há sessenta anos atrás quase morri de varíola. Alguém me veio visitar? A minha esposa morreu de tuberculose, alguém nos veio ver? A malária roubou-me o meu único filho, fui eu que o enterrei sozinho. Os meus vizinhos morreram de sida, nunca ninguém quis saber. A minha falecida mulher dizia que a culpa era nossa porque escolhemos viver longe dos lugares onde há hospitais. Ela, coitada, não sabia que era o inverso: os hospitais é que se instalam longe dos pobres. É uma mania deles, dos hospitais. Não os culpo. Sou parecido com eles, os hospitais, sou eu que albergo e trato as minhas enfermidades.

O mentiroso assaltante não desiste. Apura os métodos, sempre de modo tosco. Quer justificar-se: a pistola que me apontou era para medir a febre. Diz que estou bem, anuncia com um sorriso tonto. E eu finjo respirar de alívio. Quer saber se tenho tosse. Sorrio, condescendente. Tosse foi coisa que me quase levou à cova, depois de ter vindo das minas há vinte anos. Desde então, as minhas costelas quase não se movem, o meu peito é feito apenas de poeira e pedra. No dia que voltar a tossir, será para pedir licença nas portas de São Pedro.

– Não me parece estar doente – declara o impostor. – Contudo, o senhor pode ser um portador assintomático.

– Portador? – pergunto. – Portador de quê? Por amor de Deus, pode-me revistar a casa, sou um homem sério, quase nunca saio de casa.

O visitante sorri e pergunta se sei ler. Encolho os ombros. E ele coloca sobre a mesa um documento com instruções de higiene e uma caixa com barras de sabão, um frasco com aquilo a que ele chama de “uma solução alcoólica”. Coitado, deve imaginar que, como todos os velhos solitários, ando metido na bebida. À despedida, o intruso diz – Daqui a uma semana passo por aqui a visitá-lo.

Então, me vem à cabeça o nome da doença de que fala o visitante. Conheço bem essa doença. Chama-se indiferença. Era preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia.

Contrariando as suas instruções, avanço sobre ele e abraço-o. O homem resiste com vigor e escapa-me dos braços. No carro, despe-se apressadamente. Livra-se da roupa como se despisse as vestes da própria peste. Dessa peste chamada miséria.

Aceno-lhe sorridente. Depois de anos de tormento, reconcilio-me com a humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um homem bom. Para a semana, quando ele voltar, vou deixar que roube a velha televisão que tenho no quarto.

Mia Couto

Por quê? Por quê? Por quê?

Não são mais apenas os próprios militares e a Polícia Federal que estranham a canetada do presidente Jair Bolsonaro derrubando três portarias do Exército sobre controle de armas de civis, como destacado na coluna “Fazendo água”, de sexta-feira. Agora, o MP quer explicações e a oposição inclui mais essa decisão do presidente nos pedidos de impeachment que se multiplicam. Bolsonaro vai empilhando, assim, a mesma pergunta: Por quê?

Por que a demissão do diretor-geral da PF agora, em meio ao caos na saúde, na economia, na política? Por que empurrar porta afora o ministro mais popular do governo? Por que bater de frente com o ministro da Saúde até demiti-lo na hora decisiva da pandemia? Por que confrontar a OMS, epidemiologistas e o mundo inteiro com as cenas patéticas e infantis contra o isolamento social? E por que, afinal, o presidente da República foi prestigiar manifestações pedindo golpe militar? Justamente diante do Quartel-General do Exército?

Assim como no pronunciamento de sexta-feira ele não respondeu objetivamente a nenhuma das acusações que o ex-juiz e agora também ex-ministro Sérgio Moro acabara de lhe fazer, Bolsonaro não responde, não explica e não dá o sentido de suas ações mais absurdas. Por isso, ele, seu governo e o País estão envoltos numa nuvem de incertezas.

É aí que entra a decisão voluntariosa e mal (ou não) explicada de suspender – aliás, pelo Twitter – as três portarias do Exército. Além de, cinco dias depois, também como registrado na coluna de sexta-feira, mais do que dobrar as munições de cada arma de civis por mês. Por que derrubar as portarias? E por que aumentar de 200 para 550 as munições?


Bolsonaro e o governo não respondem, mas militares do Exército, policiais federais e assessores do Ministério da Justiça não gostaram, juristas e especialistas em Defesa acharam estranho. E todos eles dizem exatamente, claramente, o “porquê”: porque, na opinião deles, quem saiu no lucro, lépidos e fagueiros, foram o crime organizado e as milícias. Mais armas sem controle de entrada, sem rastreamento, sem fiscalização e com muito, mais muito mais munição legalmente permitida... A quem interessa?

É claro que Bolsonaro nunca escondeu, e até fez disso discurso prioritário de campanha, seu amor e o amor dos filhos pelas armas e que muitos neste país praticam tiro desportivo ou são colecionadores. Mas – e aí vem novamente o por quê? – derrubar as três portarias do Exército foi só para agradá-los? E mais do que dobrar a munição mensal por arma também?

A procuradora Raquel Branquinho alega que o presidente “viola a Constituição” e faz uma referência particular à base da família Bolsonaro. “A cidade do Rio de Janeiro é a face mais visível dessa ausência de efetivo controle no ingresso de armamento no País”, diz ela em ofício ao qual o repórter Patrik Camporez teve acesso e que foi manchete do Estado na segunda-feira, 27.

Pois é... Rio, armas, controle, munição... Isso tudo vai se embolando com a demissão de Valeixo da PF, a queda de Moro e as acusações que o ministro fez ao sair, de que o presidente queria ter acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. E ele, o ministro, também citou especificamente o Rio, neste caso, o Estado do Rio.

Moro, Mandetta e Valeixo saem por uma porta do governo e o Centrão entra pela outra, trazendo, entre outros, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto. Isolado no Supremo e na cúpula do Congresso, perdendo apoios no empresariado e nas finanças e enfrentando uma guerra inglória na internet com Moro, Bolsonaro corre o risco de se apoiar só em dois pilares: os militares e os líderes do Centrão, que não têm nada a ver. Quem diria? Aliás, por quê?