Abro a porta. É um homem mascarado. Ao notar a minha presença, ele grita – Três metros, fique a três metros!
Se é um assaltante, está com medo. Esse temor inquieta-me. Ladrões medrosos são os mais perigosos. Retira da bolsa uma pistola. Aponta-a na minha direção. É estranha aquela arma: de plástico branco, emitindo um raio de luz verde. Aponta a pistola para o meu rosto e eu fecho os olhos, obediente. É quase uma carícia aquele raio de luz sobre o meu rosto. Morrer assim é um sinal que Deus respondeu às minhas preces.
Susa Monteiro |
O mascarado tem uma voz doce, um olhar delicado. Não me deixo enganar: os mais cruéis soldados surgiram-me com modos de anjo. Há tanto, porém, que ninguém me faz companhia, que acabo entrando no jogo.
Peço ao visitante que baixe a pistola e tome lugar na única cadeira que me resta. Só então reparo que traz uns sacos de plástico envolvendo os sapatos. É óbvia a intenção: não quer deixar pegadas. Peço-lhe para baixar a máscara, asseguro-lhe que pode ter toda a confiança em mim. O homem sorri com tristeza e murmura – Nestes dias não se pode confiar, as pessoas não sabem o que trazem dentro delas. – Entendo a enigmática mensagem, o homem pensa que, sob a minha aparência desvalida, se esconde um valioso tesouro.
Olha em redor e, como não encontra nada para roubar, o homem acaba por se explicar. Diz que vem dos serviços de saúde. E eu sorrio. É um jovem ladrão, não sabe mentir. Diz que os seus chefes estão preocupados com uma doença grave que se espalha rapidamente. Faço de conta que acredito.
Há sessenta anos atrás quase morri de varíola. Alguém me veio visitar? A minha esposa morreu de tuberculose, alguém nos veio ver? A malária roubou-me o meu único filho, fui eu que o enterrei sozinho. Os meus vizinhos morreram de sida, nunca ninguém quis saber. A minha falecida mulher dizia que a culpa era nossa porque escolhemos viver longe dos lugares onde há hospitais. Ela, coitada, não sabia que era o inverso: os hospitais é que se instalam longe dos pobres. É uma mania deles, dos hospitais. Não os culpo. Sou parecido com eles, os hospitais, sou eu que albergo e trato as minhas enfermidades.
O mentiroso assaltante não desiste. Apura os métodos, sempre de modo tosco. Quer justificar-se: a pistola que me apontou era para medir a febre. Diz que estou bem, anuncia com um sorriso tonto. E eu finjo respirar de alívio. Quer saber se tenho tosse. Sorrio, condescendente. Tosse foi coisa que me quase levou à cova, depois de ter vindo das minas há vinte anos. Desde então, as minhas costelas quase não se movem, o meu peito é feito apenas de poeira e pedra. No dia que voltar a tossir, será para pedir licença nas portas de São Pedro.
– Não me parece estar doente – declara o impostor. – Contudo, o senhor pode ser um portador assintomático.
– Portador? – pergunto. – Portador de quê? Por amor de Deus, pode-me revistar a casa, sou um homem sério, quase nunca saio de casa.
O visitante sorri e pergunta se sei ler. Encolho os ombros. E ele coloca sobre a mesa um documento com instruções de higiene e uma caixa com barras de sabão, um frasco com aquilo a que ele chama de “uma solução alcoólica”. Coitado, deve imaginar que, como todos os velhos solitários, ando metido na bebida. À despedida, o intruso diz – Daqui a uma semana passo por aqui a visitá-lo.
Então, me vem à cabeça o nome da doença de que fala o visitante. Conheço bem essa doença. Chama-se indiferença. Era preciso um hospital do tamanho do mundo para tratar essa epidemia.
Contrariando as suas instruções, avanço sobre ele e abraço-o. O homem resiste com vigor e escapa-me dos braços. No carro, despe-se apressadamente. Livra-se da roupa como se despisse as vestes da própria peste. Dessa peste chamada miséria.
Aceno-lhe sorridente. Depois de anos de tormento, reconcilio-me com a humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um homem bom. Para a semana, quando ele voltar, vou deixar que roube a velha televisão que tenho no quarto.
Mia Couto
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