sábado, 29 de fevereiro de 2020
Por que choram os brasileiros
A verdade é que o pranto dos brasileiros seria outro diferente do sonho dos bolsonaristas mais radicais que prefeririam a volta da ditadura militar ao Brasil. Tanto é assim que uma pesquisa internacional acaba de revelar que entre os brasileiros está crescendo o amor pelos valores da democracia, talvez porque os vejam ameaçados.
Os brasileiros choram sim, em relação ao Congresso e há tempos, não porque prefeririam fechá-lo como gostaria esse punhado de bolsonaristas, e sim porque os que o ocupam, que deveriam responder somente e com o exemplo dos que os elegeram, se mostram tantas vezes indignos do cargo.
Choram os brasileiros não porque gostariam de ver o Congresso fechado, mas porque gostariam que fosse o que deveria ser pela Constituição, a casa do povo, com todos os sentidos abertos para ouvir os desejos e as dores das pessoas.
Choram porque em vez de oferecer um serviço à população dando exemplo de austeridade, porque o dinheiro gasto é das pessoas, fruto de seu trabalho às vezes pesado e mal remunerado, utilizam o cargo para aumentar seus privilégios, para enriquecer e enriquecer os seus. Choram porque parecem estar lá para pensar mais nos interesses pessoais e partidários do que nos problemas reais da nação.
Choram porque o que custam ao Estado, entre salário e privilégios, a maioria desnecessária e injustificável, acaba escandalizando os que precisam trabalhar duro para quase não chegar ao final do mês. Li que somente a lavagem dos carros oficiais dos deputados custa mais caro do que o orçamento separado ao Museu Nacional do Brasil.
Choram porque se perguntam se é necessário um Congresso com gastos bilionários com mais de 500 deputados quando na realidade os que estão verdadeiramente preparados à delicada tarefa de legislar à sociedade são uma pequena minoria. O restante passa anos sem produzir uma só lei importante, como foi o caso dos quase 30 anos como deputado do hoje presidente da República, Jair Bolsonaro, que já peregrinou por nove partidos menores e que sempre fez parte desse baixo clero que desprestigia a função sagrada do Congresso com suas maracutaias.
Choram porque gostariam que algum Governo tivesse a coragem de fazer uma profunda reforma da instituição sagrada do Congresso que representa os anseios de toda a sociedade. Uma reforma política séria, discutida com a nação, que reduzisse, por exemplo, a uma dezena os partidos políticos e não essa loucura de partidos sem identidade.
É o que estão pedindo os chilenos nas ruas contra os abusos dos políticos injustos e aburguesados mais preocupados em agradar o novo capitalismo excludente do que suas vítimas.
Choram os brasileiros porque gostariam de poder elegê-los com outro sistema eleitoral para que não chegassem ao Congresso candidatos que eles nunca teriam escolhido.
Querem um Congresso que seja capaz de escutar os gritos das ruas, os anseios mais verdadeiros das pessoas, de todos, não só de uma minoria de privilegiados.
Sim, choram os brasileiros porque gostariam de um Congresso mais sintonizado com os que mais sofrem, os sem trabalho, os das filas de espera da Bolsa Família, nos corredores dos hospitais, os que voltaram a cair na pobreza e até na miséria.
Choram os brasileiros das comunidades periféricas das cidades, carne de canhão de todas as violências juntas, a da pobreza e a do Estado incapaz de tirá-los de seu inferno e do da polícia, cada vez mais com carta branca para matar impunemente.
Choram os heroicos professores com salários de fome e seu assédio para que ensinem de acordo com as ordens do Governo e não com os critérios da moderna pedagogia para formar homens livres, capazes de se defender na vida contra a tirania das ideologias totalizantes.
Choram os trabalhadores que veem impotentes como perdem direitos conseguidos com tanta dor e tantas lutas ao longo de sua vida.
Choram os aposentados que precisarão trabalhar mais anos para compensar as aposentadorias dos privilegiados que continuarão aproveitando-as.
Choram os indígenas aos que pretendem expulsar de suas terras sagradas, de suas tradições, de sua sabedoria milenar para lançá-los ao inferno da alienação das periferias modernas.
Choram os artistas, os pensadores, os que fazem cultura, a quem desejariam castrar e domesticar sua criatividade que é o coração da democracia.
Choram as mulheres e todos os diferentes que não se encaixam nos modelos pré-fabricados pelo poder. Por que costumam ser eles os mais desprezados por todos os ditadores da história? Não será pelo medo que causam ao deixar a descoberto suas frustrações e misérias ocultas e inconfessáveis?
Esse é o pranto dos brasileiros que, apesar de ser vítimas de tantas injustiças, continuam confiando nas instituições e nos valores da democracia porque, os pobres, melhor do que ninguém, sabem que têm pouco a esperar da tirania dos ditadores.
Que não se iluda essa minoria de exaltados e saudosos do autoritarismo barato com vontade de voltar aos tempos das trevas que o Brasil já sofreu e condenou.
Não, os brasileiros não querem uma bomba H contra o Congresso como ironiza com raiva o filho deputado frustrado de Bolsonaro. Querem, pelo contrário, que alguém tenha a coragem de devolver a essa casa do povo sua verdadeira sacralidade para que deixe de ser, em expressão dura do evangelho, um “covil de ladrões”.
Que não se iludam Bolsonaro e família que os brasileiros sonhem como eles com modelos políticos autoritários. Essa país já viveu a atroz ditadura da escravidão e mais tarde a ditadura dos que fizeram da política um instrumento de domínio dos poderosos contra os mais fracos. Os brasileiros aprenderam a pensar e não querem ser transformados nos novos escravos dos modernos tiranos do momento.
Lembranças e tiroteios
Recife foi uma cidade que viveu em guerra até 1935. Guerra mesmo, com bandeiras, tiroteio e sangue, entre duas nações e dois povos, que se chamavam exército e polícia. O 21º Batalhão de Caçadores, ou 21, simplesmente, não se podia encontrar com a Força Pública Estadual – a polícia – que não houvesse tiroteio. Nunca houve uma Festa do Carmo, sem metralhadora cantando no vento alto da noite. Bala de fuzil assoviando nas cumeeiras das casas. Sinetas de ambulância, rua abaixo e acima. As novenas do Carmo iam bem até a oitava noite. Moças passeando de braços dados. Vestidos novos, tranças com laços de fita nas pontas. Piscar de olhos aos rapazes parados nas calçadas. Barracas de prendas sensacionais! Uma garrafa de vinho Telefone para quem lhe acertasse uma argola em volta do pedestal. Jogos vários e numerosos. Cisplandins, rodas fichets e jaburus. No jaburu, eram sete bichos e um tostão podia pagar até sete. Além disso, quem jogasse lua ou estrela ganhava quinze vezes mais. Nada mais fascinante que as rodas fichets (sei lá por que fichets, se o certo devia ser chamá-las de fichier – ficheiro), com 25 bichos pintados no oleado e mais as dezenas. Que pagavam oitenta vezes mais. O som de todas aquelas rodas, de todos aqueles dados, de todas aquelas vozes que apregoavam fortunas e felicidades, misturado à música dos carrosséis. A banda tocava dobrados inesquecíveis. Ah, o som dos pratos das bandas de música! Depois, os cheiros. As frituras de peixe, os beijus e tapiocas, os sarapatéis e os lumes de carbureto. O perfume das mangas-rosa, que o vendedor gabava ao apregoar:
– Olha a manga-rosa! A manga é pra comer! O cheiro é pra botar no lenço! Minha memória olfativa é a que mais resta. Também as aguardentes tinham nomes evocativos, que lembravam ou comemoravam engenhos e famílias, terras e senhores, escravos e sinhazinhas. As "monjopinas" do Engenho Monjope.
Era assim, em música e aroma, a Festa do Carmo, como eram todas as festas de rua, no Recife. As do interior, mais ricas ainda, por causa dos pastoris e dos bumbas-meu-boi. Em todas elas, o exército e a polícia, procurando um pé de briga. Tinha que ser na última novena, por volta da meia-noite. Bastava que um praça embriagado roçasse o ombro em outro praça. Um palavrão. A pancada de ferro, de um sabre contra o outro e, lá na esquina, já a metralhadora começava a cantar, como se estivesse esperando a ordem de fogo. As mulheres e as crianças começavam a chorar em vozes altas. Os homens, que sempre foram mais covardes, se metiam todos, ao mesmo tempo debaixo do coreto. Os que sobravam se deitavam no calçamento, com o rosto no chão, rezando jaculatórias. Quase sempre esqueciam um menino, que ficava sozinho na praça, andando como um tonto, sem chorar, sem saber direito o que estava havendo, chamando o nome da mãe, caminhando entre as balas, até que uma mulher de coragem viesse, de não sei onde, e carregasse com ele, para um pé de escada. De repente, a voz de um estudante, que arriscava a vida em cima de um caixão de querosene, para pedir, em nome de Deus e da Pátria, que parassem a fuzilaria. Um estudante de Direito, de cabeleira basta, a viver Castro Alves e Tobias Barreto. As moças o contemplavam com os olhos moles do amor. Um herói, de cujo coração saíam tantas palavras, era amado, em praça pública, no coração e na pele de todas as donzelas.
No dia seguinte, as primeiras notícias vinham nos jornais da manhã. O artigo de fundo, escrito pelo redator-chefe (não precisava assinar, todos lhe reconheciam o estilo flamejante) a responsabilizar o Governo pelas "tristes ocorrências", a lamentar o "sangue, que escorreu na calçada do Pátio do Carmo, sangue fraterno, perdido à toa, sem causa e sem motivo". As fotografias tiradas no pronto-socorro e nos quartéis. A portaria assinada pelo chefe de polícia e pelo comandante do 21. E, no fim de tudo, a advertência às famílias, para que fizessem reservas de mantimentos ou saíssem da cidade, porque, "lamentavelmente, a situação ainda era grave e as forças continuariam de prontidão". Em outras palavras, esperava-se ainda qualquer coisa. O tio mais pessimista, só ele, sabia das notícias que não saíam nos jornais. Homem soturno, que acreditávamos bem informadíssimo. Entrava, sentava-se à mesa e, quando lhe fazíamos, em volta, um público razoável, dizia, então, o que mais atemorizava:
– Minas está pegando fogo!
Foi assim que esperamos a "grande revolução", até outubro de 1930. Estávamos certos de que vinha de Minas, mas, começou lá mesmo, no Recife, sob o comando dos Lima Cavalcanti, após os discursos inflamados de João Neves, Luzardo e de Oscar Brandão, orador local e autor (se não estou enganado) da letra do Hino de Pernambuco: "Salve ó terra dos altos coqueiros, de beleza soberbo estendal. Nova Roma de bravos guerreiros, Pernambuco, imortal, imortal."
Anteontem, aqui no Rio, de madrugada, disseram que os tanques marchavam a caminho da cidade. Um alvoroço, em meu coração. Uma felicidade de criancice, porque todas as revoluções iam-se repetir dentro de mim e, com elas, minha casa, meus tios, meus irmãos, o manso olhar de minha mãe e todas as mangas-rosa de comer... cujo cheiro era para botar no lenço. Não vieram os tanques, não aconteceu nada e mais uma vez me convenci de que guerreiros mesmo só houve, no Brasil, os soldados da Força Pública e do 21º BC. Fomos dormir paulificados de não ter havido nada, já que tanto esperamos "qualquer coisa".
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"
A pequenez da Presidência
Bolsonaro parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo e assim não vê alternativa a não ser rebaixar a instituição para nela caberOpinião - O Estado de SP
Democracia infectada
Só que as coisas não funcionam assim. A cada um de seus arroubos antidemocráticos, que vêm se repetindo, Bolsonaro inocula uma quantidade maior do vírus golpista no corpo do sistema político — que, infectado, tanto pode perder os movimentos e deixar de funcionar como ser tomado por uma convulsão. Há um perigoso efeito cumulativo em curso. Ainda que não se chegue a nenhum dos possíveis, embora improváveis, desfechos extremos — de um lado, o golpe; de outro, o impeachment — a saúde da democracia e o funcionamento de suas instituições vão ficando profundamente abalados.
Em meio ao agravamento da epidemia de coronavírus (que já chega ao Brasil), à estagnação da economia, ao risco de alastramento de motins como o da PM do Ceará, e de tantos outros problemas, o que o país menos precisa hoje é de uma democracia doente. Mas é isso o que terá numa situação em que o governo virou sinônimo de instabilidade, o Legislativo e o Judiciário vivem acuados por ameaças de milícias digitais bolsonaristas e as elites, perplexas, a tudo assistem caladas em nome da suposta esperança de botar de pé a agenda liberal de Paulo Guedes.
Uma vã esperança. O próximo sintoma da infecção da democracia será a paralisação de tais reformas no Congresso. Quem terá sossego para negociar uma reforma tributária nesse clima? Ou tratar das medidas da reforma administrativa? Ou votar a PEC Emergencial para botar as contas públicas em dia e atrair investidores para o país? Não virão. No mundo de hoje, ninguém investe numa democracia débil.
Não há sequer certeza se dose mínima de antibiótico para sobrevivência será ministrada. Bolsonaro recuou mesmo, ou está pronto para mais uma transmissão virótica? É bom notar que o presidente tergiversou ao afirmar não ter mandado convocação pública para a manifestação, e sim se limitado a reproduzir em lista pessoal do Whattsaap vídeos que recebeu. A turma dos panos quentes espalha que ele proibirá ministros de convocar ou participar do ato anti-Congresso do dia 15. Mas tudo indica que continuará na torcida. Desavisada, a atriz Regina Duarte já se juntou aos bolsominions no chamado pelas redes. Eduardo Bolsonaro, o filho do deputado, também injeta doses de veneno nessas veias.
Talvez a única forma de debelar a infecção, a esta altura, fosse um gesto simbólico. Quem sabe a demissão do personagem que criou a confusão mais recente, o general Augusto Heleno, que acusou os congressistas de chantagistas e sugeriu que os apoiadores do presidente fossem às ruas. Mas isso não vai acontecer, e a democracia vai continuar com febre.Helena Chagas
‘Custo Bolsonaro’ está envenenando a economia
Diante de algumas medidas econômicas acertadas e da pró-atividade do Congresso na aprovação da Previdência, fica nítido que o problema vem de cima: não passa uma semana sem que o presidente jogue água fria na confiança de empresários e consumidores.
Antes restrita à caricatura do posto Ipiranga, a falta de entendimento do presidente sobre a importância das expectativas em economia – e modo como ele atrapalha – vem ganhando contornos irreversíveis. O “custo Bolsonaro” impregnou o ambiente.
Como os seus 14 meses de governo demonstram, não resta muita esperança de uma transição mais tranquila em direção a um quadro de normalidade e confiança.
Ao contrário, a política tóxica de seu governo envenena o cenário econômico, como nos repetidos eventos em que o presidente e seus filhos, também políticos, desrespeitam o Congresso e outras instituições.
Depois de todo o trauma recente, como confiar na economia quando já se fala em crime de responsabilidade – e razões de impeachment – do presidente da República?
Ao contrário do que muitos de seus apoiadores e auxiliares acham, não se trata de acossar o presidente. Mas de respeito a uma Constituição que existe desde 1988, quando Bolsonaro nem vereador era.
Nas outras vezes em que o Brasil afundou em uma recessão, a recuperação deu-se em forma de V (queda e crescimento). Desta vez, com o corte radical na despesa pública diante do desarranjo fiscal, havia motivos para suspeitar que viveríamos uma espécie de U (queda, crescimento quase nulo por um tempo e recuperação).
Foi o que tivemos até o final de 2019. O PIB caiu forte em 2015/2016 e crescemos ao redor de 1% nos três últimos anos.
Por essa altura, o Brasil poderia estar crescendo bem mais, se não houvesse afugentado investidores, daqui e de fora, com polêmicas tão frequentes quanto inúteis – sujeitando a economia ao risco de um longo e constrangedor L, ou coisa ainda pior.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Não há dois terços do Congresso para impichar Bolsonaro, mas há o que fazer
Não agora. Inexiste o mínimo de 342 deputados para levá-lo a julgamento no Senado. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, mandaria a petição para o lixo. Nem precisaria discordar de seus termos para fazê-lo. Seria um erro político, tendente a fortalecer o fanfarrão truculento, admitir uma denúncia que morreria já na Comissão Especial.
É tempo de acumulação de forças no terreno democrático para conter a fascistização do governo e da política. Às armas, cidadãos! Comece-se por convocar o general Augusto Heleno. O seu “dofa-se” — perdão pelo decoro, ministro — para o Congresso quer dizer o quê? Incitar as ruas contra os Poderes Constituídos atende a que propósito? Um Parlamento que não o obrigue a sentar na cadeira das explicações está condenado.
Mais: as lideranças da Câmara e do Senado comprometidas com a institucionalidade têm de ficar atentas ao comportamento de figuras exóticas que hoje integram as suas fileiras. Aqueles que, em nome da liberdade e da imunidade, marcharem contra as próprias Casas que os obrigam têm de ser denunciados ao Conselho de Ética por quebra do decoro e cassados.
Já escrevi centenas de vezes, desde quando o PT no poder parecia mais eterno do que o bacalhau que pesa sobre os ombros do rapaz do rótulo da Emulsão Scott: o regime em que tudo pode é a tirania — ao menos para o tirano e seus amigos. A democracia conta com leis, normas, códigos de conduta. Os que se organizam para fraudar as regras têm de ser expulsos do jogo.
Acumulação de forças em defesa da ordem democrática! É preciso começar a desmontar desde já a delicada equação que nos trouxe até aqui. Não será fácil.
Cinquenta e quatro depois do golpe de 1964, os fardados resolveram se meter outra vez aventura cívico-militar para “salvar o Brasil”. Deu errado antes; dá errado agora. Lugar de fardado é no quartel ou no campo de batalha. Quando na ativa, só para lembrar, Bolsonaro queria explodir algumas bombas nos primeiros. Só entrou em guerra contra a lógica, o bom senso e a língua portuguesa.
Antes por meio do golpe, agora das eleições, o mau propósito dos fardados é o mesmo: colonizar o Estado na certeza de que civis são seres naturalmente degenerados, que se entregam a apetites vários que não o amor à pátria.
O desengano, talvez má-fé, pode ser assim sintetizado: ainda na transição para a democracia, Bolsonaro foi posto para fora do Exército porque revelara tentações terroristas. Na democracia, os quatro-estrelas resolveram submeter-se ao comando político do ex-filoterrorista que, como se vê, não aprendeu nada nem esqueceu algumas porcarias que julgava saber.
Pós-ditadura, os militares haviam recuperado a sua reputação e competência específica, inclusive com o dinheiro vasto que lhes garantiu o hoje demonizado Luiz Inácio Lula da Silva. Têm de começar desde já a organizar a saída, antes que afundem junto com os delírios de um lunático.
Mais uma tarefa para os articuladores do Congresso: além convocar os boquirrotos do Executivo e cassar os sabotadores “enratizados” em suas próprias fileiras, é preciso dialogar com a cúpula das Forças Armadas para dar início à descolonização do Estado.
Encerro a coluna comentando a performance de Sergio Moro, o verdadeiro líder da extrema-direita brasileira, a desfilar sobre um tanque em Brasília. O Mussolini de Maringá o fazia um dia depois de seu chefe (por enquanto...) endossar a convocação para um ato que prega que militares emparedem o Congresso e o Supremo.
Como observador da cena, fico satisfeito por jamais ter caído na lábia do tabaréu assoberbado em demiurgo. Como indivíduo, lamento. Até na imprensa há quem sinta, vendo aquela cena, certo desconforto nos joelhos. São calos decorrentes do vício da genuflexão.
Às armas, cidadãos! As da inteligência.
No Brasil, somos objeto de preconceito de nós mesmos
O Brasil é plurissocial porque é o país de desigualdades sociais profundas e de injustiças dolorosas. Até os pobres se concebem diferençados entre graus de pobreza que geram repulsas e exclusões mal disfarçadas entre eles mesmos. A classe média, que, como em todas as partes, é realização insuficiente do que são os ricos, acaba sendo caricatura da riqueza. O tom de voz denuncia todo o tempo a incultura que lhe tolhe a competência para ser o que finge ser, mas não consegue.
Ela tem o dinheiro dos de cima, mas padece a incompetência de classe dos de baixo. No Brasil, as classes sociais não têm a pureza histórica que se supõe na teoria. São um permanente e sofrido fingimento, na penosa necessidade de teatralizar o modo de ser dos outros, daquilo que não se é.
Já no fim dos governos lulistas, a metamorfose da mentalidade dos assalariados ia na direção da negação da classe operária para a afirmação da classe média fingida e prometida até mesmo pela esquerda.
Diversamente do que muitos militantes de esquerda supõem e pretendem, o operário não tem a ambição de ser operário a vida inteira. Ele quer subir na vida, quer negar e superar o confinamento social da condição operária.
A ascensão social da classe trabalhadora foi promessa e engenharia social da elite cafeeira. Está lá, com todas as letras, num discurso notável de Antonio da Silva Prado no Senado do Império. Nele, definiu os termos do imaginário social da nova classe trabalhadora, que nascia com o fim da escravidão. Eram os termos da cumplicidade entre empregados e patrões, na preservação da ordem social.
O Brasil é, também, multirracial porque não é nem branco nem negro. É um país mestiço, além de ser etnicamente diversificado. Multirracial que não quer sê-lo. Muitos querem ser o branco que não são. Ultimamente, muitos querem ser o negro que nunca foram.
É multicultural porque a diversidade das populações que lhe deram a cara que todos temos agregou num todo uma significativa diversidade de visões de mundo, de valores de referência na conduta individual e social.
O Brasil cristão da ideologia geopolítica do atual regime bolsonarista tampouco o é. Nem os cristãos são tão cristãos assim. Dividem-se e conflitam em nome de diferenças de um cristianismo de senso comum e lotérico. O de um Deus que distribui prebendas e riquezas. Que salva distribuindo aquilo que a tradição da religiosidade popular brasileira, de fundo milenarista, considera como símbolo do poder de satanás, o ouro, o dinheiro e o poder. O novo cristianismo de feira livre, que se difunde entre nós e em outros países do terceiro mundo, é o cristianismo da moeda contra o cristianismo do Espírito.
O Brasil é multionírico. As poucas pesquisas sobre sonhos, sobre o mundo onírico do brasileiro, mostram a diversidade de matrizes de referência do imaginário profundo do povo. Sonhos de branco são sonhos de medo. Pretos verdadeiros não são necessariamente os de pele negra. São os que ainda se orientam pelo imaginário onírico referido aos orixás, os que no sonho consultam os ancestrais e são por eles aconselhados, constatou o sociólogo Roger Bastide.
Brancos verdadeiros são os que sofreram ao longo do tempo a faxina ideológica e religiosa que esterilizou suas referências mágicas e marcou as estruturas sociais profundas de suas referências de conduta com a brancura da repressão de enquadramento. Os que sofrem desconforto com a brancura opressora querem sonhar como negros para ter acesso aos mistérios do mundo de uma negritude desalienadora.
Oficialmente, falamos a língua portuguesa de Portugal, que os portugueses não entendem quando com eles falamos. Nem nós os entendemos, quando nos falam. O português de nossos livros não é o português de nossa fala, de nossos sotaques regionais. Falamos com sotaque nheengatu. Descendentes de alemães de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul falam português, mas durante a fala respiram “em alemão”, que é o ritmo da respiração de quem foi educado para falar alemão. O ritmo das falas, no Brasil, está descolado do ritmo da vida e da nossa diversificada identidade social profunda. Falamos uma coisa e pensamos outra.José de Souza Martins
Bolsonaro mostra desprezo pelas instituições democráticas
O 15 de março não é qualquer data, especialmente quando se trata de manifestações. Em 15 de março de 2015, milhões de brasileiros foram às ruas para pedir o fim da corrupção e a defesa da Petrobras. Houve, também, os primeiros gritos pedindo o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Portanto, é uma data significativa.
No dia seguinte às manifestações, Dilma estendeu a mão aos manifestantes. Mesmo hostilizada por eles, ela disse: "Meu compromisso é governar para os 203 milhões de brasileiros, sejam os que me elegeram, sejam os que não votaram em mim."
Dilma foi até além naquele dia. "Muitos da minha geração deram a vida para que o povo pudesse, enfim, ir às ruas se expressar. Eu particularmente participei e tenho a honra de ter participado do processo da ditadura. Nunca mais no Brasil vamos ver pessoas, ao manifestarem sua opinião, sofrer consequências. Nunca mais isso vai acontecer."
Dilma respeitou as manifestações, que, ao longe dos 12 meses seguintes, levaram ao seu impeachment, ação que ela mesma viria a chamar de golpe.
Pode-se discutir se a palavra golpe é apropriada, levando em consideração que a presidente havia sido eleita, em 2014, pelo voto popular, mas o Congresso também foi. Portanto, ele também representa a vontade popular, e o instrumento do impeachment é previsto na Constituição. Como o orgão julgador não é um tribunal, mas de caráter político, a decisão de tirar Dilma da Presidência foi uma decisão política e não judicial.
Sem entrar na discussão se o impeachment foi um jogo sujo ou não, vale destacar que Dilma acatou a decisão das instituições do Estado democrático de Direito. Assim como antes, também, aceitara a legitimidade das manifestações contra o seu governo e a própria pessoa. Com essa decisão dolorosa, ela prestou um serviço às instituições democráticas, mesmo estando sob ataque destas.
Cinco anos depois, a situação é outra. E não só porque estamos hoje longe daquele dia de 2015, quando o dólar estava a R$ 3,22 e a taxa de desemprego era de 6,2%.
Hoje, diferentemente de 2015, há membros do governo endossando os protestos, na figura do general Augusto Heleno, que foi gravado, no dia 18, com a seguinte fala: "Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se", disse aos ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos.
Com esse "foda-se" iniciou-se o movimento pelas manifestações do dia 15. Agora há também o próprio presidente da República chamando seus seguidores para protestar, nesse mesmo dia, contra as instituições – o Congresso e o STF – e a favor de si. "Resgatar o Brasil" é o slogan do vídeo que, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, foi divulgado por Bolsonaro.
Entre os Bolsonaro, o desprezo pelas instituições democráticas parece ser coisa de família. "Se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?", perguntou um dos filhos do presidente, Eduardo, recentemente em seu Twitter. O mesmo Eduardo Bolsonaro já tinha declarado, em 2018, que "se quiser fechar o STF [...] manda um soldado e um cabo."
Vale lembrar: faz parte do repertório dos populistas acusar as instituições democráticas de não os deixarem governar plenamente. Todos fazem isso para enfraquecer o sistema democrático que os fez ser governo. Geralmente é um pretexto para acabar com o sistema democrático de "pesos e contrapesos", criado para equilibrar os poderes e essencial para o pleno funcionamento das instituições democráticas. Coisas que os populistas não querem.
A atuação do presidente tem resultado em críticas, principalmente do próprio STF, alvo das manifestações dos bolsonaristas. Celso de Mello, decano do tribunal, afirmou: "O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República."
Ele está se referindo ao artigo 85 da Constituição, que diz que "são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.
Agora soam os alarmes. Mas me parece que o STF, como também o Congresso, perderam uma ótima oportunidade para mostrar que há linhas vermelhas que ninguém pode cruzar no sistema democrático. Foi no dia 17 de abril de 2016, na votação pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff, que o então deputado Jair Bolsonaro declarou: "Em memória do coronel Brilhante Ustra, o meu voto é sim."
Ninguém quis punir Bolsonaro, naquela época, por ter atravessado a linha vermelha que separa a barbárie da civilização. Não punir tal ato foi o sinal claro de que tudo é permitido. Assim, abriu-se o precedente para denegrir a democracia brasileira e suas instituições. Ao mesmo tempo, a transgressão do dia 17 de abril de 2016 deu início à candidatura presidencial de Bolsonaro.
Ao não defenderem a honra da presidente Dilma Rousseff e, ao mesmo tempo, da democracia brasileira, o Congresso e o STF plantaram a semente. Desde então, estão colhendo o que plantaram. E no próximo dia 15, a colheita deverá ser grande.
Thomas Milz
Carnaval em Guarujá
Este comentário de Henrique Brandão, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Sambódromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas histórias. Outras, falaram de personalidades com forte identificação com as localidades de onde surgiram as escolas, como Joãozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palhaço negro do Brasil. Os indígenas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapuã, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro. A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto nível. Enfim, mesmo lutando contra a má vontade do poder público — principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval — as escolas saíram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas raízes a chave para renovarem seus desfiles. Há muito não via um carnaval tão bom na Sapucaí”.
Segundo Da Matta, o lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem três dimensões: uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde “cada um sabe o seu lugar”; uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas, ao mesmo tempo, são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.
Nesses sistemas, se estabelece uma tensão permanente entre a vida doméstica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que é, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobrevivência é anônima, dura e impiedosa. Os privilégios da elite do tipo “você sabe com quem está falando” impõem à maioria as relações de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidadão comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. É aí que o carnaval subverte tudo, pois é uma manifestação essencialmente igualitária, na qual a transgressão e a liberdade traduzem para as ruas as relações espontâneas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hierárquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos assumem o lugar que quase sempre lhes é negado nos demais dias do ano.
Paradas militares, procissões e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira; a irreverência dos blocos de rua e os heróis populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus quatro dias, dramatiza e transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.
Na antropologia, a “cultura” é um conceito-chave para a interpretação da vida social, não é uma forma de hierarquizar a sociedade. Não marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. É justamente porque compartilham de parcelas importantes desse código (a cultura) que indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade. Segundo Da Matta, desenvolvem relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situações. A cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós.
O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guarujá, não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandatário da nação, porém, deveria prestar mais atenção ao recado dos foliões, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspirações mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convocação de uma manifestação para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’état”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobilização, numa afronta à Constituição de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Luís Napoleão.Luiz Carlos Azedo
Organizações alertam ONU sobre o crescente risco para os índios isolados do Brasil
O Instituto Socioambiental, a Comissão Arns e a Conectas Direitos Humanos prepararam um relatório que “detalha o processo de desmantelamento das políticas ambientais e indigenistas por parte deste Governo” que, liderado por Jair Bolsonaro, tomou posse há quase 14 meses. Desde a campanha eleitoral, o militar reformado anunciou sua intenção de permitir a exploração econômica das terras indígenas —o projeto de lei está no Congresso—e enfraquecer a política ambiental. O líder indígena David Kopenawa Yanomami ficará encarregado de apresentar o estudo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em 3 de março, em Genebra (Suíça). O Brasil é o país com mais povos indígenas isolados. Está confirmada a presença de 28 comunidades e a existência de outras 86 está em estudo, segundo o relatório do ISA, da Comissão Arns e da Conectas, que mencionam cifras oficiais.
Uma das medidas que melhor representa a guinada radical impulsionada por Bolsonaro é a nomeação de um ex-missionário evangélico para comandar o órgão dedicado à proteção de índios isolados e de recente contato. As doenças dos não índios e os evangelizadores são duas das grandes ameaças a esses grupos desde o desembarque dos jesuítas com a conquista portuguesa em 1500. Ricardo Lopes Dias, o indicado pelo presidente para a área, trabalhou por muitos anos com uma organização norte-americana chamada Missão Novas Tribos do Brasil, um culto focado em povos indígenas e com táticas agressivas de assimilação. Segundo a ONG Survival, eles proclamam que pretendem chegar até a última etnia, porque só então Cristo voltará.
Essa espécie de SOS que querem lançar à ONU tem por base os alarmantes balanços do ano passado. “Mais de 21.000 hectares foram destruídos somente em 2019 em terras com índios isolados, o que representa um aumento de 113%. É um incremento muito superior aos valores médios na Amazônia e nas áreas protegidas (por lei) em geral, o que indica o aumento de ilegalidades e invasões e a gravidade do problema.” As ONGs apontam quatro casos de perigo iminente: a presença constante de missionários no Vale do Javari, a terra indígena com mais povos isolados, bem como o assassinato de um ex-funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o ataque a tiros contra uma de suas bases. Nas terras Yanomami a ameaça são os 20.000 garimpeiros que degradaram 300.000 hectares e que, com seu mercúrio, poluem os rios; os 60 indígenas isolados Awá, filmados recentemente e que vivem em uma reserva onde madeireiros ilegais já construíram mais de 1.000 quilômetros de estradas para extrair seu minério e onde um indígena de uma patrulha de vigilância da flora foi assassinado; o quarto grupo em grave perigo foi avistado pela última vez quando fugia dos incêndios na ilha do Bananal.
Na mesma linha das conclusões de uma cúpula de líderes indígenas realizada na Amazônia brasileira em janeiro, o trio de ONGs alerta para o crescente risco de etnocídio e de genocídio, embora nenhum dos dois termos apareça no documento que será apresentado à ONU. As ONGs pedem que a ONU exija que o Governo brasileiro fortaleça os órgãos oficiais de proteção dos povos indígenas (a Funai), do meio ambiente (o Ibama), da biodiversidade (o Instituto Chico Mendes) e os encarregados da fiscalização, notavelmente enfraquecidos nos últimos meses por uma série de medidas que levaram todos os ex-ministros do Meio Ambiente vivos do Brasil a expressar juntos sua preocupação. Eles também pedem um maior investimento para localizar povos indígenas isolados e que os processos de demarcação de terras indígenas (que lhes dão proteção legal) sejam retomados.
Infâmia pública: Bolsonaro passa dos limites todos os dias
Existe ato mais grave do que o chefe do Poder Executivo divulgar vídeo convocando seus seguidores para ato de protesto contra o Poder Legislativo? Existe, e atende pelo nome de ruptura democrática.
O presidente Jair Bolsonaro passa todos os dias do limite. Não importa qual o limite, ele rompe todos. No começo do seu mandato, ele ultrapassava apenas as fronteiras do bom gosto e do senso comum. Há um ano, no seu primeiro carnaval, o presidente perdeu a linha ao reproduzir em rede social o famoso “golden shower”, uma brincadeira idiota em que um homem urina sobre outro no meio da folia. Também fez gracinha com um homem de traços orientais, sugerindo que ele tinha um pênis pequeno.
Logo o capitão começou a quebrar as barreiras que separam o estado de direito do estado de força. Sentido-se cada vez mais à vontade, aplaudido por puxa-sacos palacianos, ouvindo claques de apoiadores plantadas onde quer que vá, sempre cercado por seguranças, ele fala, ouve urras e risadas e acha que está mandando bem. E assim vai construindo um círculo vicioso onde diz uma bobagem, sua turma repercute com vivas nas redes, e a repercussão volta a ele, que aumenta o tom.
Nesta terça, o tom foi alto demais. Bolsonaro distribuiu um vídeo chamando para um ato no dia 15 de março em apoio a ele e contra o Congresso Nacional. Embora não faça menção ao Legislativo, a convocação é para o mesmo dia em que apoiadores do presidente marcaram manifestações em todo o país em favor do governo e dos militares (como se eles estivessem ameaçados) e contra o Congresso. Os posts convocatórios para o dia 15 dizem coisas como “Os militares aguardam as ordens do povo”, “Fora Maia e Alcolumbre”, ou “”Foda-se” inscrito sobre uma imagem do general Heleno fardado.
O presidente, que jamais poderia aliar-se a uma manifestação contra um poder da República, foi muito além ao incentivar a sua organização e ao entrar agora na corrente de convocação, mesmo que no WhatsApp entre amigos.
O vídeo é ridículo. Diz que Bolsonaro “enfrentou os poderosos (...) e quase morreu por nós”. Usando sempre o “nós”, como se falasse em nome do povo brasileiro, afirma que o presidente combateu a “esquerda corrupta e sanguinária” e que “sofre calúnias e mentiras”. De acordo com o vídeo, de clara inspiração totalitária que trata seu líder como único e infalível, Bolsonaro é “trabalhador, incansável, patriota, cristão, capaz, justo e incorruptível”. Um Kim Jong-un tropical de direita.
O vídeo é ridículo. Diz que Bolsonaro “enfrentou os poderosos (...) e quase morreu por nós”. Usando sempre o “nós”, como se falasse em nome do povo brasileiro, afirma que o presidente combateu a “esquerda corrupta e sanguinária” e que “sofre calúnias e mentiras”. De acordo com o vídeo, de clara inspiração totalitária que trata seu líder como único e infalível, Bolsonaro é “trabalhador, incansável, patriota, cristão, capaz, justo e incorruptível”. Um Kim Jong-un tropical de direita.
É crime atentar contra o Poder Legislativo. Fazer pressão contra ou a favor de projetos em tramitação no Congresso é legítimo e democrático. Esse tipo de ação política é feita de maneira sistemática e continuada. O que não se pode é contrapor o Poder Legislativo a outro poder. Associar as forças armadas ao protesto, como mostram os panfletos digitais da convocação, á ainda mais grave. Sugere que o poder das armas estaria posicionado em favor de um dos lados, o lado de Bolsonaro.
O que está em disputa é o poder constitucional do legislativo de realocar recursos do orçamento. Foi por isso que o general Heleno produziu aquela barbaridade, chamando os parlamentares de chantagistas e mandando um “foda-se” ao Congresso. E a ele associaram-se a direita nacional, a tradicional e os seus novos rebanhos, e agora o presidente da República. O que se verá nas ruas do país do dia 15 de março serão pessoas pregando contra um dos alicerces da democracia. Será uma infâmia pública.
Apenas um dos três poderes da República pode ser suprimido sem que faça falta ou se interrompa o processo democrático. É o poder Executivo, que pode ser assumido pelo legislativo no regime parlamentarista. Mesmo assim, a mudança de regime só pode ocorrer como resultado de um consenso político. Já os poderes Legislativo e Judiciário não podem ser suspensos jamais. O Congresso e o Supremo eventualmente decidem contra a vontade da maioria e mesmo assim são imprescindíveis. Eles podem até mesmo errar, mas suas virtudes serão sempre muito maiores do que seus erros.
Ascânio Seleme
Apenas um dos três poderes da República pode ser suprimido sem que faça falta ou se interrompa o processo democrático. É o poder Executivo, que pode ser assumido pelo legislativo no regime parlamentarista. Mesmo assim, a mudança de regime só pode ocorrer como resultado de um consenso político. Já os poderes Legislativo e Judiciário não podem ser suspensos jamais. O Congresso e o Supremo eventualmente decidem contra a vontade da maioria e mesmo assim são imprescindíveis. Eles podem até mesmo errar, mas suas virtudes serão sempre muito maiores do que seus erros.
Ascânio Seleme
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020
Se não nomear as atitudes do presidente, a imprensa vai desinformar o público
No meio dos turbilhões vernaculares para batizar isso e aquilo, o repórter é apenas um a mais – mas esse um a mais não pode faltar. Não se espera dele que saia por aí inventando os substantivos da língua corrente, mas o repórter – como, de resto, toda a imprensa – tem o dever de chamar cada coisa e cada personagem pelo nome devido. Se não fizer isso, vai desinformar a sociedade. Se quiser mesmo noticiar os acontecimentos com clareza e com objetividade, o jornalismo precisa saber nomeá-los.
Um exemplo? Está na mão. O que aconteceria se, em lugar da palavra “motim”, os jornais, as rádios, as emissoras de TV e os sites noticiosos na internet resolvessem usar a palavra “greve” para se referir ao assalto contra a ordem pública que vem sendo perpetrado por policiais cearenses? Aquilo não é uma “greve”. É um motim. Se os jornais começassem a chamar aquele levante armado de “greve” – palavra que aparece na legislação democrática como um direito do trabalhador – desorientariam os leitores, ouvintes e telespectadores. Estes não entenderiam nada de nada e poderiam até achar que os criminosos amotinados, com o rosto coberto por balaclavas, atirando em pessoas desarmadas, não passam de assalariados explorados exercendo seu direito de não trabalhar. Em resumo, se chamasse de “greve” o motim do Ceará, a imprensa prestaria um desserviço à sociedade e faria propaganda, ainda que involuntária, a favor dos amotinados.
Simples, não? Na verdade, não é tão simples assim. Quando se trata de cobrir os atos do atual presidente da República, a tarefa de dar nome às coisas se complica um pouco. Nesse ponto, temos tido dificuldades. Há dois dias o chefe de governo distribuiu pessoalmente, por meio de seu telefone celular, convocações para um ato público que pretende ameaçar os representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário.
A intimidação virulenta já começou. Está na rua. Num vídeo divulgado pelos organizadores do ato, uma música dos Titãs, O Pulso, serve de plataforma para a agressão das autoridades. Aproveitando-se da letra, que arrola um inventário copioso de doenças, o vídeo exibe uma sucessão de fotografias de deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, associando cada rosto a uma enfermidade. Em termos rudimentares e imorais, a peça “xinga” as autoridades de “doentes”. Em seguida, enuncia a mensagem de que para resolver os problemas do Brasil é preciso extirpar do País todos os focos de “moléstias”. Não há dúvida: o ato convocado pelo presidente da República é, sob todos os ângulos, uma investida odiosa e golpista contra as instituições democráticas e as pessoas que legitimamente as representam. A intenção dos organizadores é desacreditar o Estado e pavimentar o caminho espúrio para que o presidente avance na direção de uma ditadura.
O uso da canção dos Titãs foi indevido. Dois dos três autores da música, Arnaldo Antunes e Tony Bellotto, repudiaram publicamente o uso que a extrema direita fez dela (o terceiro autor, Marcelo Fromer, está morto). O uso de símbolos militares também é indevido. Há oficiais protestando contra a pregação de que as Forças Armadas devem tomar o poder dos políticos. Tudo aí é indevido.
A convocação – indevida – desse ato público escancarou o prenúncio de uma crise institucional. É claro que todo mundo tem o direito de ir às ruas para gritar o que quiser. As pessoas têm o direito até de pedir por uma ditadura militar. Birutice faz parte. Agora, quanto ao presidente da República, que jurou solenemente respeitar, manter e cumprir a Constituição, esse aí não tem o direito de se engajar a plenos pulmões no fanatismo golpista. A lei obriga-o a defender a ordem constitucional. Se não observar a obrigação que lhe cabe, o mandatário ficará exposto a um processo que lhe pode custar o cargo.
O curioso é que o presidente, pronunciando seus impropérios inconstitucionais, vai se fingindo de “normal”. Força os limites, dia após dia. Quebra o decoro, faz apologia de torturadores, chama o povo para atacar o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e age como um chefe de motim. Ele se situa fora do campo democrático, atenta contra os símbolos mais caros da democracia – isso é um fato – e setores da imprensa ainda parecem acreditar que tudo está “normal”.
As redações precisam refletir. Dar o nome justo a cada coisa – e a cada agente público – vai se tornando urgente e indispensável.Eugênio Bucci
Carnaval e algumas lembranças de uma época triste
As coisas mudaram e, segundo os que entendem dessa festa popular, para melhor. Há até os que afirmam que já é o terceiro do país: Rio, São Paulo e Belo Horizonte. O de Salvador ficou para trás. Ou é só otimismo?
Que a Quarta-Feira de Cinzas tenha servido de reflexão para todos: presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. E que cada brasileiro de responsabilidade, seja empresário ou simples cidadão, renove o seu compromisso com a defesa da democracia. Que se afaste de vez qualquer risco de um regime autoritário, independentemente da cor ideológica.
Conscientizemo-nos de que ele não nos levará a lugar algum, só ao desastre humano. Trabalhemos juntos, enfim, para que nosso país conquiste o relevo que merece entre as grandes nações.
Muito do que tem acontecido atualmente no país, envolvendo posições político-ideológicas do presidente Jair Bolsonaro, me leva a pensar num tempo triste. Digo logo que não é nada prazeroso me lembrar desse tempo e do que vivi como jornalista no velho e saudoso “Jornal do Brasil”, durante quase toda a ditadura militar.
Após o fatídico 1968, o sofrimento era quase diário. Apenas um exemplo: recebia, com certa frequência, telefonemas anônimos ameaçadores, cuja origem jamais me foi possível identificar, dirigidos a mim e aos jornalistas que trabalhavam na regional, sobretudo os que cobriam política.
Alguns telefonemas eram verdadeiros. Convocavam-nos – os responsáveis pelos jornais nacionais – para reuniões no antigo CPOR, situado à rua Juiz de Fora. Ameaçavam-nos com a censura (há algo mais odiento numa democracia?) como se fôssemos responsáveis diretos pelo envio das matérias produzidas aqui, mas muitas vezes solicitadas pela sede.
Olhando o dia de hoje, vejo que nos falta grande frente de afirmação democrática, de respeito à liberdade e, claro, ao Congresso Nacional, sem o qual não há democracia.
Li ontem, leitor, realmente perplexo, que o presidente Bolsonaro compartilhou mensagem em vídeo, por WhatsApp, convocando o povo para atos contra o Congresso no dia 15 de março. Essa informação, segundo se noticiou, foi confirmada a “O Globo” pelo ex-deputado federal Alberto Fraga, amigo do presidente.
Que imprudência, presidente! Não é esse o caminho!
Olhos fechados à matança
Bolsonaro atenta contra a Constituição
À medida que o ex-capitão foi revelando toda a face de extremista, e não apenas na política, boa parte destes eleitores se afastou. Bolsonaro tornou-se, então, um presidente de baixa popularidade, sustentado por milícias digitais e claques de porta de Palácio. E passou cada vez mais a dirigir-se a estes bolsões, o que o foi afastando da maior parcela da sociedade.
Se não era um político desconhecido, Bolsonaro vem demonstrando uma faceta temerária menos previsível: de esticar a corda em seu comportamento de extremista, sem qualquer preocupação com a importância e o decoro do cargo de presidente da República, agindo como chefe de facção radical, de bando, ultrapassando todos os limites do convívio democrático. Desconsidera a divisão de poderes feita pela Constituição, ameaça o Congresso, o Judiciário e, logo, sua Corte Suprema.
A adesão pelo presidente, por meio de vídeo, na terça-feira, a uma convocação bolsonarista para atos de rua em 15 de março, contra o Congresso e o STF, representou mais uma elevação de tom de Bolsonaro na sua escalada de mau comportamento e de desrespeito.
Ainda no último dia de carnaval, começaram as devidas repercussões negativas. Destaca-se a nota enviada à “Folha de S.Paulo” pelo decano do Supremo, ministro Celso de Mello, que mais uma vez se manifesta diante de um desvario bolsonariano: a atitude de Bolsonaro, se confirmada, revela a “face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de Poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático!!!!”.
O ministro conclui a nota com o alerta de que o presidente da República “embora possa muito, não pode tudo”, e se “transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República” pode ser denunciado por crime de responsabilidade. Punido, portanto, com impeachment, como já aprendeu o país.
Bolsonaro, quarta pela manhã, ensaiou suavizar sua inconcebível aprovação de manifestações contra a República, alegando ter compartilhado entre “amigos” o seu apoio e que quaisquer outras interpretações do que fizera são “tentativas rasteiras de tumultuar a República”.
Mas essas supostas “tentativas rasteiras” tinham razão de ser. Afinal, o presidente compartilhou o vídeo por meio de sua conta particular do WhatsApp, em que aparece o brasão da República. De mais a mais, trata-se de uma tentativa frágil de afastar responsabilidades. O presidente da República sempre falará nesta condição.
Mesmo que a atenuação feita por Bolsonaro possa reduzir tensões — é melhor que assim seja —, elas não devem se dissipar completamente. O fato de a convocação das manifestações, compartilhada pelo presidente, citar Bolsonaro e também o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, general da reserva, indica alguma articulação no Planalto em favor dos atos.
Há, ainda, uma óbvia relação entre as agressões verbais feitas por Heleno ao Congresso, gravadas acidentalmente, e a convocação das manifestações. O próprio Heleno, em reunião privada no Planalto, pediu a Bolsonaro que convocasse o povo às ruas, para mostrar ao Congresso quem manda — ficou implícito. É o oposto do que estabelece a democracia representativa que Bolsonaro jurou respeitar. A persistir nesta rota, o presidente trairá o juramento de posse.
Os arroubos de Augusto Heleno, tudo indica que compartilhados com Bolsonaro, ocorrem em meio a uma negociação com o Congresso sobre vetos do presidente à Lei de Diretrizes Orçamentárias, envolvendo emendas parlamentares. Os vetos poderão ser derrubados ou não a depender dos entendimentos. Nada que não possa ser negociado politicamente.
Jair Bolsonaro, com as frações radicais que o cercam, parece ter decidido entrar em rota de colisão com as instituições, cujo resultado pode ser uma crise institucional que não interessa a ninguém, inclusive a ele, chefe do Executivo, um dos que dependem da estabilidade. Bolsonaro deveria desejar que a economia e o país de fato se recuperem e o permitam tentar com êxito a reeleição em 2022. A não ser que faça uma aposta arriscada, irresponsável e criminosa no caos.
Neste surto de radicalização, Bolsonaro e família sinalizaram solidariedade a policiais militares amotinados no Ceará, outro atentado ao estado de direito. O presidente tem citado a Venezuela chavista como o mau exemplo no continente. Pois a está seguindo, ao aplicar o manual do caudilho Hugo Chávez, que destroçou a democracia no país criando crises institucionais, para avançar com seu modelo nacional-populista autoritário. Destruiu a própria Venezuela. A não ser que Bolsonaro e grupo delirem ao vislumbrar um atalho para atropelar o Congresso e o Judiciário, por acharem que este é o melhor caminho para a execução do seu projeto. Não é, e para nenhum projeto.
Trata-se da fórmula de mais uma tragédia nacional, em um país que já padeceu duas longas ditaduras na República e aprovou o impeachment de três presidentes — sabe como fazer e conhece o alto custo da empreitada decorrente da paralisação do país.
O atrevimento do presidente e de seu grupo começou na quarta-feira a ter mais uma vez uma resposta à altura no Congresso, no Judiciário, na sociedade. Algum tempo atrás, o mesmo Celso de Mello já advertira o presidente por haver postado um vídeo inconcebível em que uma hiena simboliza o Supremo.
O direito à livre manifestação é garantido pela Constituição. Se apoiadores de Bolsonaro querem transmitir alguma mensagem política, a Carta está do seu lado. Mas ninguém pode, de dentro ou de fora do Planalto, querer impor a vontade própria na marra.
Em eterna campanha, Bolsonaro se esquece de que também precisa governar
Não há a menor dúvida – no momento, o Brasil esta divisão beneficia Bolsonaro por alguns motivos muito especiais, como ter se cercado de militares e até agora não haver denúncias de corrupção administrativa. É o que basta para muitos eleitores que não aguentavam mais os mensalões e petrolões que caracterizaram a era do PT.
Propositadamente ou não, Bolsonaro se aproveita desse sentimento antiPT, que é uma verdadeira comoção social, e segue em frente, sempre em campanha.
Antes da eleição de 2018, fiz questão de abrir meu voto para Bolsonaro, mas não deixei de registrar que o considerava “um idiota completo”. O futuro veio mostrar que eu tinha razão em fechar a porta à Era do PT, que caminhava para transformar esse país numa ditadura sindicalista, embora muitos não percebessem essa realidade, e na atual gestão haveria duas vagas a preencher no Supremo.
Bem, com mais dois Toffolis na cúpula do Judiciário, a fatura ditatorial estava garantida. Não importaria mais o que o Congresso aprovasse, porque o Supremo consideraria a lei inconstitucional, caso não atendesse aos interesses dos ditadores petistas, no estilo Venezuela de Chávez y Maduro.
A partir do governo de Michel Temer, o sonho da ditadura sindicalista acabou e não há mais recursos públicos para custear as manifestações “populares”. O Brasil está livre para exercer a democracia, mas o problema é que Bolsonaro não tem postura de estadista, deixou que os filhos e o guru virginiano atrapalhassem seu governo.
Até agora, com mais de um ano de gestão, é um drama shakespeariano, pois não se sabe se o presidente vai ouvir os ministros ou os filhos. Além disso, nesta campanha para a reeleição, Bolsonaro cria um problema atrás do outro, é um nunca-acabar.
Assim, o país vive dividido de diversas formas – entre os que amam ou odeiam Lula e o PT, entre os que adoram ou abominam Bolsonaro e o terraplanismo, e entre os que sonham com uma nova ditadura militar e os que não aceitam esse retrocesso.
Reina o radicalismo na pátria amada, infelizmente. É a nossa realidade atual, com um quadro político inteiramente atípico e que merece reflexões de quem se interessa pelo país.
O pior é perceber que Bolsonaro é um falso herói. Digam o que quiserem, o presidente tem demonstrado que não sabe unir, tem uma vocação irresistível para fazer inimigos, porque cultiva a mania de perseguição – uma paranoia que merece tratamento específico.
Carlos Newton
O presidente e os golpistas
Ao distribuir a seus contatos no WhatsApp uma das virulentas peças de propaganda da manifestação convocada para o próximo dia 15 de março, o presidente ajudou a disseminar a mensagem, o que equivale a chancelá-la. Bolsonaro disse que apenas distribuiu a mensagem a “algumas dezenas de amigos, de forma reservada”, como se o caso pudesse ser resumido a uma comunicação de caráter pessoal. Mas tudo o que diz um presidente da República, em razão de sua proeminência política, tem enorme poder de influenciar os rumos do País, razão pela qual seu apoio tácito a um protesto contra o Congresso, mesmo que manifestado apenas a um punhado de simpatizantes, configura óbvio abuso de poder, pois incita ilegítima pressão popular sobre o Legislativo.
Não se pode dizer que surpreende a nova estocada do bolsonarismo contra o Congresso, com a anuência do presidente da República. “Eu respeito as instituições, mas eu devo lealdade apenas a vocês, povo brasileiro”, discursou Bolsonaro em agosto do ano passado. “Povo brasileiro”, parece claro, é o nome que Bolsonaro dá a seus seguidores – que, segundo o próprio presidente, são “35 milhões em minhas mídias sociais”. É a estes que Bolsonaro jura lealdade, embora tenha sido eleito para governar a Nação dentro das normas democráticas.
O menosprezo de Bolsonaro pelo Congresso – onde esteve por quase três décadas como deputado – foi reafirmado diversas vezes na campanha eleitoral e depois de sua posse como presidente. Em maio de 2019, distribuiu pelo WhatsApp um texto de teor golpista, segundo o qual o País é “ingovernável” sem os “conchavos” políticos, em alusão à necessidade de negociação com o Congresso, e que, sendo assim, “o presidente não serve para nada”. Na ocasião, Bolsonaro disse que contava “com a sociedade” para “juntos revertermos essa situação” – um óbvio apelo direto ao “povo” contra as instituições.
Assim, o presidente parece procurar construir um regime populista de inspiração militar, bem ao gosto dos saudosos da ditadura e que faz lembrar o governo do general Velasco Alvarado no Peru (1968-75), que hostilizava os partidos por considerá-los parte do sistema oligárquico que dizia combater em nome do “povo”. Anos depois do fracasso da experiência peruana, o coronel Hugo Chávez implantou na Venezuela uma versão do “populismo militar” cujos resultados estão à mostra. Esse não é um modelo a ser imitado.
Ante a escalada bolsonarista, autoridades dos demais Poderes reagiram. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, retratado como um porco em uma das mensagens a respeito da manifestação do dia 15, disse que cabe às autoridades “dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou que “a harmonia e o respeito mútuo entre os Poderes são pilares do Estado de Direito, independentemente dos governantes de hoje ou de amanhã”.
Fazem bem o Congresso e o Supremo em se manifestar de modo sereno, mas firme, sobre o comportamento do presidente e de seus seguidores. Também fez bem o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, que criticou o uso de fotografias de militares na convocação dos protestos contra o Congresso, que ele qualificou de tentativa “grotesca” de confundir o Exército com o golpismo bolsonarista. A despeito disso, é muito provável que os bolsonaristas continuem a testar os limites da democracia – e portanto cabe às instituições impedir que eles consigam ir além das bravatas.
Discórdia com autógrafo
Brasília meteu-se numa guerra de egos que atrasa a agenda do desenvolvimento. Jair Bolsonaro, em vez e produzir vacinas, instalou no Planalto um laboratório que propaga o vírus da discórdia em velocidade estonteanteJosias de Souza
Jair Maduro
Um presidente da República convocar e apoiar protestos contra instituições constituídas e a favor de seu governo é exatamente o que faz Maduro desde que assumiu o poder. Assim, enfraqueceu os demais Poderes em seu país, deslegitimou o Legislativo e o Judiciário e aprofundou uma ditadura que persegue adversários políticos e o jornalismo profissional.
É claro que o país está longe de ser uma Venezuela, mas hoje está mais próximo disso do que quando Bolsonaro foi eleito, o que, além de assustador, é absolutamente incoerente com o sentimento de muitos dos que o elegeram.
O triste é que há, entre os que o apoiam, quem defenda esse tipo de pauta por considerar que o Congresso é nocivo ao país. Esquecem, porém, que não é a instituição que é contra o funcionamento da ordem democrática, mas alguns daqueles que estão lá, eleitos assim como Bolsonaro. A solução para a insatisfação com seus representantes é eleição e não golpe de Estado.
Há nas convocações para os protestos do próximo dia 15 pautas absolutamente antidemocráticas. O presidente, ao incentivar o ato, sem qualquer dúvida técnica, comete crime de responsabilidade, passível de impeachment.
Mas não vamos ver a cúpula do Congresso falar em impeachment, disparar de forma mais dura contra o presidente ou vai detonar as pautas governistas em um primeiro momento. A explicação é simples: ninguém quer colocar lenha na fogueira dos protestos. Vão esperar passar o dia 15. Mas podem ter certeza de que o troco virá.
Por que interessa a Bolsonaro e a sua família que o Brasil continue dividido e crispado?
Bolsonaro tinha chegado ao poder graças a uma polarização que recordava o infeliz slogan de Lula do “nós contra eles”. O presidente de extrema direita com tintas de nazifascismo tinha encontrado na disputa eleitoral um terreno fértil de crispação nacional que facilitou seu programa de guerra.
Criou assim uma confrontação, não de ideias e programas, e sim de violência, simbolizado em seu gesto clássico de imitar com as mãos o disparo de uma arma e estimular o ódio, açulado por seu guru extremista, o astrólogo e escritor Olavo de Carvalho, que dos Estados Unidos estimula tudo o que levar a uma radicalização da extrema direita, com o programa de “desconstruir o país” e limpá-lo de tudo que possa cheirar a esquerda ou simplesmente a progressismo.
Bolsonaro formou um exército preparado para seus ataques contínuos contra o fantasma dos meios de comunicação e de tudo o que não se submeta a suas fúrias destrutivas. E o Brasil dividido e crispado da luta eleitoral continuou igualmente confrontado, sem a possibilidade de diálogo e sem um presidente que, depois da dura disputa eleitoral, fizesse um apelo à reconciliação. Pelo contrário, manteve viva até agora a mesma polarização das eleições, crispando ainda mais a opinião pública.
Por causa disso perdeu em seguida boa parte daqueles que lhe deram seu voto não por sua causa, e sim para destronar o PT. Ao invés de tentar recuperar sua força inicial com uma aproximação com aqueles a quem havia estigmatizado, foi radicalizando ainda mais suas posições de confrontação, que ainda não sabemos até onde tenta levar, e se a força militar, com a qual se cercou e se blindou, irá ou não segui-lo em suas posições extremistas.
Tudo faz pensar, entretanto, que nem nada nem ninguém fará o presidente abrir mão da tática política de violência verbal e de enfrentamento da sociedade, que corre o perigo de se cristalizar sem esperanças de uma reconciliação nacional, algo que não lhe interessa. Bolsonaro, desde jovem militar, foi sempre um homem de briga, e não de paz. E continua sendo.
Se esses prognósticos forem válidos, e se Bolsonaro estiver convencido que só com uma nação dividida e polarizada poderia manter sua força eleitoral, caberia ao resto das forças políticas criarem um frente comum com todos os que acreditam que o melhor país não é o dividido e enfrentado, e sim o unido sob um projeto de reconstrução democrática onde haja espaço e liberdade para todas as ideias e para todos os credos, sem que nenhum deles seja hegemônico nem inimigo dos outros.
Um país e uma sociedade que não respeitem as diferenças que enriquecem e nutrem a convivência pacífica estará condenado a anos de guerra política, sem saber onde isso poderá desembocar.
Para sua reunificação, o Brasil necessita não de outro caudilho, messias ou pai da pátria que mantenha a polarização, mesmo que seja de sinal contrário ao fascista deste momento, e sim de alguém que o faça colocar todas as suas melhores forças na tarefa de recuperar a difícil unidade de todos os brasileiros, deixando reduzida a uma minoria a força destrutiva que reina hoje no governo do país.
Se Bolsonaro e os seus têm interesse em manter viva a chama da guerra entre irmãos, que é o caldo de cultivo em que se movem, são justamente as outras forças democráticas que continuam apostando na união e na reconciliação que terão de se unir, esquecendo suas diferenças. Essas forças deverão lançar uma mensagem clara à sociedade hoje cindida e com medo de que possam voltar os lúgubres fantasmas do passado: que só é possível viver unidos e em paz respeitando as diferenças, que esse é o único modo de recuperar o entusiasmo e a imagem positiva que este país sempre propagou até agora no exterior e que está perdendo.
Se as forças realmente democráticas, sem perderem suas diferenças, mas unidas em um único projeto que possa entusiasmar a grande maioria dos brasileiros, forem incapazes de devolver as esperanças perdidas e de fazer pensar que não é possível um país unificado, sem medos e sem rancores, o futuro poderia ser ainda mais sombrio do que hoje imaginamos.
Será realmente isso o que deseja de coração a grande maioria deste povo, rico material e humanamente, tão golpeado pela violência e a corrupção, e que além disso está sendo envenenado com a triste política do extermínio e com um estéril niilismo?
A política bolsonarista, que já não é só do presidente, mas também de uma dinastia criada com toda a família, está desfigurando o rosto e o aspecto luminoso e festivo do Brasil, um povo que já nem recorda quando sofreu sua última guerra. Um Brasil que, apesar de ser um continente, com realidades regionais tão marcadas, não abriga hoje tentações separatistas. Um Brasil onde, nos 20 anos em que vivo aqui, nunca ouvi um só brasileiro dizer que gostaria de deixar de sê-lo. Já escutei, por outro lado, muitos estrangeiros enraizados no país há gerações que já se sentem brasileiros de alma e de coração. E dizem isso com orgulho.
Até quando?
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
É 'isso' um presidente?
Uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce. Traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático.(Bolsonaro) desconhece o valor da ordem constitucional e ignora o sentido fundamental da separação de poderesCelso de Mello (Supremo Tribunal Federal)
O golpe de Bolsonaro está em curso
É verdade que as instituições estão tentando reagir. Também é verdade que há dúvidas robustas se as instituições, que já mostraram várias e abissais fragilidades, ainda são capazes de reagir às forças que já perdem os últimos resquícios de pudor de se mostrarem. E perdem o pudor justamente porque todos os abusos cometidos por Bolsonaro, sua família e sua corte ficaram impunes. De nada adianta autoridades encherem a boca para “lamentar os excessos”. Neste momento, apenas lamentar é sinal de fraqueza, é conversinha de sala de jantar ilustrada enquanto o barulho da preparação das armas já atravessa a porta. Bolsonaro nunca foi barrado: nem pela Justiça Militar nem pela Justiça Civil. É também por isso que estamos neste ponto da história.
Essas forças perdem os últimos resquícios de pudor também porque parte do empresariado nacional não se importa com a democracia e a proteção dos direitos básicos desde que seus negócios, que chamam de “economia”, sigam dando lucro. Esta mesma parcela do empresariado nacional é diretamente responsável pela eleição de um homem como Bolsonaro, cujas declarações brutais no Congresso já expunham os sinais de perversão patológica. Estes empresários são os herdeiros morais daqueles empresários que apoiaram e se beneficiaram da ditadura militar (1964-1985), quando não os mesmos.
Uma das tragédias do Brasil é a falta de um mínimo de espírito público por parte de suas elites financeiras. Elas não estão nem aí com os cartazes de papelão onde está escrita a palavra “Fome”, que se multiplicam pelas ruas de cidades como São Paulo. Como jamais se importaram com o genocídio dos jovens negros nas periferias urbanas do Brasil, parte deles mortos pelas PMs e suas “tropas de elite”. Adriano da Nóbrega – aquele que, caso não tivesse sido morto, poderia dizer qual era a profundidade da relação da família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro e também quem mandou assassinar Marielle Franco – pertencia ao BOPE, um destes grupos de elite.
Não há nada comparável à situação vivida hoje pelo Brasil sob o Governo de Bolsonaro. Mas ela só é possível porque, desde o início, se tolerou o envolvimento de parte das PMs com esquadrões da morte, na ditadura e além dela. Desde a redemocratização do país, na segunda metade dos anos 1980, nenhum dos governos combateu diretamente a banda podre das forças de segurança. Parte das PMs se converteu em milícias, aterrorizando as comunidades pobres, especialmente no Rio de Janeiro, e isso foi tolerado em nome da “governabilidade” e de projetos eleitorais com interesses comuns. Nos últimos anos as milícias deixaram de ser um Estado paralelo para se confundir com o próprio Estado.
A política perversa da “guerra às drogas”, um massacre em que só morrem pobres enquanto os negócios dos ricos aumentam e se diversificam, foi mantida mesmo por governos de esquerda e contra todas as conclusões dos pesquisadores e pesquisas sérias que não faltam no Brasil. E seguiu sustentando a violência de uma polícia que chega nos morros atirando para matar, inclusive em crianças, com a habitual desculpa de “confronto” com traficantes. Se atingem um estudante na escola ou uma criança brincando, é “efeito colateral”.
Desde os massivos protestos de 2013, governadores de diferentes estados acharam bastante conveniente que as PMs batessem em manifestantes. E como ela bateu. Era totalmente inconstitucional, mas em todas as esferas, poucos se importaram com esse comportamento: uma força pública agindo contra o cidadão. Os números de mortes cometidas por policiais, a maior parte delas vitimando pretos e pobres, segue aumentando e isso também segue sendo tolerado por uns e estimulado por outros. É quase patológica, para não dizer estúpida, a forma como parte das elites acredita que vai controlar descontrolados. Parecem nem desconfiar de que, em algum momento, eles vão trabalhar apenas para si mesmos e fazer os ex-chefes também de reféns.
Bolsonaro compreende essa lógica muito bem. Ele é um deles. Foi eleito defendendo explicitamente a violência policial durante os 30 anos como político profissional. Ele nunca escondeu o que defendia e sempre soube a quem agradecer pelos votos. Sergio Moro, o ministro que interditou a possibilidade de justiça, fez um projeto que permitia que os policiais fossem absolvidos em caso de assassinarem “sob violenta emoção”. Na prática é o que acontece, mas seria oficializado, e oficializar faz diferença. Essa parte do projeto foi vetada pelo Congresso, mas os policiais seguem pressionando com cada vez mais força. Neste momento, Bolsonaro acena com uma antiga reivindicação dos policiais: a unificação nacional da PM. Isso também interessa – e muito – a Bolsonaro.
Se uma parcela das polícias já não obedece aos governadores, a quem ela obedecerá? Se já não obedece a Constituição, a qual lei seguirá obedecendo? Bolsonaro é o seu líder moral. O que as polícias militares têm feito nos últimos anos, ao se amotinarem e tocarem o terror na população é o que Bolsonaro tentou fazer quando capitão do Exército e foi descoberto antes: tocar o terror, colocando bombas nos quartéis, para pressionar por melhores salários. É ele o precursor, o homem da vanguarda.
O que aconteceu com Bolsonaro então? Virou um pária? Uma pessoa em que ninguém poderia confiar porque totalmente fora de controle? Um homem visto como perigoso porque é capaz de qualquer loucura em nome de interesses corporativos? Não. Ao contrário. Foi eleito e reeleito deputado por quase três décadas. E, em 2018, virou presidente da República. Este é o exemplo. E aqui estamos nós. Vale a pergunta: se os policiais amotinados são apoiados pelo presidente da República e por seus filhos no Congresso, continua sendo motim?
Não se vira refém de uma hora para outra. É um processo. Não dá para enfrentar o horror do presente sem enfrentar o horror do passado porque o que o Brasil vive hoje não aconteceu de repente e não aconteceu sem silenciamentos de diferentes parcelas da sociedade e dos partidos políticos que ocuparam o poder. Para seguir em frente é preciso carregar os pecados junto e ser capaz de fazer melhor. Quando a classe média se calou diante do cotidiano de horror nas favelas e periferias é porque pensou que estaria a salvo. Quando políticos de esquerda tergiversaram, recuaram e não enfrentaram as milícias é porque pensaram que seria possível contornar. E aqui estamos nós. Ninguém está a salvo quando se aposta na violência e no caos. Ninguém controla os violentos.
Há ainda o capítulo especial da degradação moral das cúpulas fardadas. Os estrelados das Forças Armadas absolveram Bolsonaro lá atrás e hoje fazem ainda pior: compõem sua entourage no Governo. Até o general Ernesto Geisel, um dos presidentes militares da ditadura, dizia que não dava para confiar em Bolsonaro. Mas aí está ele, cercado por peitos medalhados. Os generais descobriram uma forma de voltar ao Planalto e parecem não se importar com o custo. Exatamente porque quem vai pagar são os outros.
As polícias são a base eleitoral mais fiel de Bolsonaro. Quando essas polícias se tornam autônomas, o que acontece? Convém jamais esquecer que Eduardo Bolsonaro disse antes da eleição que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal”. Um senador é atingido por balas disparadas a partir de um grupo de policiais amotinados e o mesmo filho zerotrês, um deputado federal, um homem público, vai às redes sociais defender os policiais. Não adianta gritar que é um absurdo, é totalmente lógico. Os Bolsonaros têm projeto de poder e sabem o que estão fazendo. Para quem vive da insegurança e do medo promovidos pelo caos, o que pode gerar mais caos e medo do que policiais amotinados?
É possível fazer muitas críticas justas a Cid Gomes. É possível enxergar a dose de cálculo em qualquer ação num ano eleitoral. Mas é preciso reconhecer que ele compreendeu o que está em curso e foi para a rua enfrentar com o peito aberto um grupo de funcionários públicos que usavam a estrutura do Estado para aterrorizar a população, multiplicando o número de mortes diárias no Ceará.
A ação que envergonha, ao contrário, é a do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), que, num estado em dificuldades, se submete à chantagem dos policiais e dá um aumento de quase 42% à categoria, enquanto outras estão em situação pior. É inaceitável que um homem público, responsável por tantos milhões de vidas de cidadãos, acredite que a chantagem vai parar depois que se aceita a primeira. Quem já foi ameaçado por policiais sabe que não há maior terror do que este, porque além de terem o Estado na mão, não há para quem pedir socorro.
Quando Bolsonaro tenta responsabilizar o governador Rui Costa (PT), da Bahia, pela morte do miliciano Adriano da Nóbrega, ele sabe muito bem a quem a polícia baiana obedece. Possivelmente não ao governador. A pergunta a se fazer é sempre quem são os maiores beneficiados pelo silenciamento do chefe do Escritório do Crime, um grupo de matadores profissionais a quem o filho do presidente, senador Flavio Bolsonaro, homenageou duas vezes e teria ido visitar na cadeia outras duas. Além, claro, de ter empregado parte da sua família no gabinete parlamentar.
Não sei se pegar uma retroescavadeira como fez o senador Cid Gomes é o melhor método, mas era necessário que alguém acordasse as pessoas lúcidas deste país para enfrentar o que está acontecendo antes que seja demasiado tarde. Longe de mim ser uma fã de Ciro Gomes, mas ele falou bem ao dizer: “Se você não tem a coragem de lutar, ao menos tenha a decência de respeitar quem luta”.
A hora de lutar está passando. O homem que planejava colocar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários é hoje o presidente do Brasil, está cercado de generais, alguns deles da ativa, e é o ídolo dos policiais que se amotinam para impor seus interesses pela força. Estes policiais estão acostumados a matar em nome do Estado, mesmo na democracia, e a raramente responder pelos seus crimes. Eles estão por toda a parte, são armados e há muito já não obedecem ninguém.
Bolsonaro têm sua imagem estampada nos vídeos que conclamam a população a protestar contra o Congresso em 15 de março e que ele mesmo passou a divulgar por WhatsApp. Se você não acha que pegar uma retroescavadeira é a solução, melhor pensar logo em outra estratégia, porque já está acontecendo. E, não se iluda, nem você estará a salvo.
Eliane Brum
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