Recife foi uma cidade que viveu em guerra até 1935. Guerra mesmo, com bandeiras, tiroteio e sangue, entre duas nações e dois povos, que se chamavam exército e polícia. O 21º Batalhão de Caçadores, ou 21, simplesmente, não se podia encontrar com a Força Pública Estadual – a polícia – que não houvesse tiroteio. Nunca houve uma Festa do Carmo, sem metralhadora cantando no vento alto da noite. Bala de fuzil assoviando nas cumeeiras das casas. Sinetas de ambulância, rua abaixo e acima. As novenas do Carmo iam bem até a oitava noite. Moças passeando de braços dados. Vestidos novos, tranças com laços de fita nas pontas. Piscar de olhos aos rapazes parados nas calçadas. Barracas de prendas sensacionais! Uma garrafa de vinho Telefone para quem lhe acertasse uma argola em volta do pedestal. Jogos vários e numerosos. Cisplandins, rodas fichets e jaburus. No jaburu, eram sete bichos e um tostão podia pagar até sete. Além disso, quem jogasse lua ou estrela ganhava quinze vezes mais. Nada mais fascinante que as rodas fichets (sei lá por que fichets, se o certo devia ser chamá-las de fichier – ficheiro), com 25 bichos pintados no oleado e mais as dezenas. Que pagavam oitenta vezes mais. O som de todas aquelas rodas, de todos aqueles dados, de todas aquelas vozes que apregoavam fortunas e felicidades, misturado à música dos carrosséis. A banda tocava dobrados inesquecíveis. Ah, o som dos pratos das bandas de música! Depois, os cheiros. As frituras de peixe, os beijus e tapiocas, os sarapatéis e os lumes de carbureto. O perfume das mangas-rosa, que o vendedor gabava ao apregoar:
– Olha a manga-rosa! A manga é pra comer! O cheiro é pra botar no lenço! Minha memória olfativa é a que mais resta. Também as aguardentes tinham nomes evocativos, que lembravam ou comemoravam engenhos e famílias, terras e senhores, escravos e sinhazinhas. As "monjopinas" do Engenho Monjope.
Era assim, em música e aroma, a Festa do Carmo, como eram todas as festas de rua, no Recife. As do interior, mais ricas ainda, por causa dos pastoris e dos bumbas-meu-boi. Em todas elas, o exército e a polícia, procurando um pé de briga. Tinha que ser na última novena, por volta da meia-noite. Bastava que um praça embriagado roçasse o ombro em outro praça. Um palavrão. A pancada de ferro, de um sabre contra o outro e, lá na esquina, já a metralhadora começava a cantar, como se estivesse esperando a ordem de fogo. As mulheres e as crianças começavam a chorar em vozes altas. Os homens, que sempre foram mais covardes, se metiam todos, ao mesmo tempo debaixo do coreto. Os que sobravam se deitavam no calçamento, com o rosto no chão, rezando jaculatórias. Quase sempre esqueciam um menino, que ficava sozinho na praça, andando como um tonto, sem chorar, sem saber direito o que estava havendo, chamando o nome da mãe, caminhando entre as balas, até que uma mulher de coragem viesse, de não sei onde, e carregasse com ele, para um pé de escada. De repente, a voz de um estudante, que arriscava a vida em cima de um caixão de querosene, para pedir, em nome de Deus e da Pátria, que parassem a fuzilaria. Um estudante de Direito, de cabeleira basta, a viver Castro Alves e Tobias Barreto. As moças o contemplavam com os olhos moles do amor. Um herói, de cujo coração saíam tantas palavras, era amado, em praça pública, no coração e na pele de todas as donzelas.
No dia seguinte, as primeiras notícias vinham nos jornais da manhã. O artigo de fundo, escrito pelo redator-chefe (não precisava assinar, todos lhe reconheciam o estilo flamejante) a responsabilizar o Governo pelas "tristes ocorrências", a lamentar o "sangue, que escorreu na calçada do Pátio do Carmo, sangue fraterno, perdido à toa, sem causa e sem motivo". As fotografias tiradas no pronto-socorro e nos quartéis. A portaria assinada pelo chefe de polícia e pelo comandante do 21. E, no fim de tudo, a advertência às famílias, para que fizessem reservas de mantimentos ou saíssem da cidade, porque, "lamentavelmente, a situação ainda era grave e as forças continuariam de prontidão". Em outras palavras, esperava-se ainda qualquer coisa. O tio mais pessimista, só ele, sabia das notícias que não saíam nos jornais. Homem soturno, que acreditávamos bem informadíssimo. Entrava, sentava-se à mesa e, quando lhe fazíamos, em volta, um público razoável, dizia, então, o que mais atemorizava:
– Minas está pegando fogo!
Foi assim que esperamos a "grande revolução", até outubro de 1930. Estávamos certos de que vinha de Minas, mas, começou lá mesmo, no Recife, sob o comando dos Lima Cavalcanti, após os discursos inflamados de João Neves, Luzardo e de Oscar Brandão, orador local e autor (se não estou enganado) da letra do Hino de Pernambuco: "Salve ó terra dos altos coqueiros, de beleza soberbo estendal. Nova Roma de bravos guerreiros, Pernambuco, imortal, imortal."
Anteontem, aqui no Rio, de madrugada, disseram que os tanques marchavam a caminho da cidade. Um alvoroço, em meu coração. Uma felicidade de criancice, porque todas as revoluções iam-se repetir dentro de mim e, com elas, minha casa, meus tios, meus irmãos, o manso olhar de minha mãe e todas as mangas-rosa de comer... cujo cheiro era para botar no lenço. Não vieram os tanques, não aconteceu nada e mais uma vez me convenci de que guerreiros mesmo só houve, no Brasil, os soldados da Força Pública e do 21º BC. Fomos dormir paulificados de não ter havido nada, já que tanto esperamos "qualquer coisa".
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"
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