quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Radicalização bolsonarista preocupa Forças Armadas

A radicalização proposta pelo entorno ideológico do presidente Jair Bolsonaro (PSL) é a principal fonte de preocupação institucional na cúpula das Forças Armadas.

Oficiais-generais da ativa, das três Forças, dizem não haver apoio generalizado a eventuais aventuras repressivas sugeridas pelo grupo.

Os dois mais recentes episódios, envolvendo a publicação do “vídeo das hienas” contra o Supremo Tribunal Federal e a reação à reportagem sobre movimentações de acusados de matar Marielle Franco no condomínio de Bolsonaro, geraram o que um oficial-general definiu como “alta ansiedade”.

O alerta vem circulando desde que o bolsonarismo encampou o discurso de que os protestos no Chile e Equador, a volta do peronismo na Argentina e até o derramamento de óleo no Nordeste fazem parte de uma trama da esquerda que precisa ser combatida.

As teorias conspiratórias chegaram não só aos usualmente falantes filhos presidenciais Carlos e Eduardo, mas também ao general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que hoje está numa frequência bastante diversa daquela registrada na ativa.


Influenciado, Bolsonaro emulou o entorno ideológico e sugeriu que convocaria as Forças Armadas caso houvesse um contágio dos protestos chilenos em ruas brasileiras.

Na sequência, publicou o infame vídeo em que hienas representando o Supremo, a OAB, órgãos de mídia e adversários amorfos como o feminismo, ameaçam o leão personificando o presidente.

Aqui ficou evidente a pressão do grupo ideológico, discípulo do escritor Olavo de Carvalho. Bolsonaro recuou e pediu desculpas ao Supremo, e só ele, pelo vídeo. Mas seu assessor internacional, Filipe Martins, redobrou a crítica em redes sociais mesmo depois da retratação.

Na noite de terça (29), foi a vez do vereador carioca Carlos (PSC) complicar a narrativa presidencial de que a postagem era problema de terceiros com acesso às suas contas. No Twitter, o filho quis defender o pai de críticas, mas sublinhou que a postagem havia sido feita por Bolsonaro —em resumo, o contradisse.

Havia um objetivo não declarado na confusão, que era o de tirar a atenção sobre as ameaças feitas por Fabrício Queiroz, o antigo faz-tudo do clã Bolsonaro que levou a investigações sobre seu último chefe, o hoje senador Flávio (PSL-RJ). Com a revelação do próprio presidente de que já sabia do caso do condomínio, feita nesta quarta, a tática ficou clara.

Antes de o Jornal Nacional veicular a reportagem sobre o caso Marielle, o deputado Eduardo foi à tribuna da Câmara para sugerir que a história se repetiria caso houvesse protestos ao estilo chileno no Brasil. Foi acusado de defender medidas ditatoriais pela oposição.

O grau máximo de tensão veio com a “live” do presidente. Demonstrando o que mesmo aliados consideraram uma apoplexia desnecessária, ele fez críticas à Rede Globo e acusou o governador Wilson Witzel pelo relato em apuração do caso da vereadora assassinada em 2018.

Na manhã desta quarta, antes de o Ministério Público derrubar o pilar central da suspeita ao dizer que o porteiro do condomínio de Bolsonaro havia mentido sobre o contato de um acusado da morte de Marielle com a casa do então deputado, houve uma modulação da crise.

Filhos, parlamentares e ministros enfocaram fragilidades do relato, o que com o aval da Promotoria deve garantir a vitória bolsonarista na guerra de versões no momento.

Destoou do processo e manteve o tom conspiratório justamente Heleno. “Tentam criar fato político que desestabilize o país e fomente violentas manifestações, como as que ocorrem em outros países da América Latina”, escreveu no Twitter, comentando a reportagem.

Há elementos nas Forças Armadas, notadamente no Exército, que compartilham de tal visão. Ela só não é majoritária hoje em instâncias como o Alto-Comando da Força terrestre e é francamente minoritária na Marinha e na Força Aérea.

Chamou a atenção o posicionamento espontâneo do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão (PRTB), que descartou a gravidade do episódio —assegurando, ao mesmo tempo, que ele prejudica “o serviço”.

Mantido à distância por Bolsonaro e seus filhos, após vários episódios em que se mostrou ostensivamente como ator político mais racional no Planalto, Mourão agora faz um jogo de observação.

Ele não é exatamente querido na ativa do Exército, mas é sempre lembrado em conversas nas quais riscos de ruptura institucionais são mencionados, como “a nossa saída constitucional” —afinal de contas, teve os mesmos votos de Bolsonaro.

A relação dos militares com Bolsonaro, um capitão com histórico de indisciplina reformado, é complexa. No poder, a ala militar no governo perdeu força e integrantes nos embates com os olavistas, com quem fez alianças pontuais, mas também não age em ordem unida.

A ativa associou-se à formação de seu governo, cuja equipe na campanha era coalhada de fardados, a começar por Heleno. Diversos quadros migraram para o serviço civil, incluindo 8 de 22 ministros. Hoje, após as diversas crises com os olavistas, a ativa afastou-se preventivamente do governo, enfatizando seu caráter de ente de Estado.

Um dos que integram o governo é o influente ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Mas seu poder é declinante: a postagem pressionando o Supremo na véspera da votação da questão da prisão em segunda instância surtiu críticas, enquanto medida semelhante em 2018 foi vista como gesto de autoridade.

Parte disso diz respeito a Luiz Inácio Lula da Silva, que poderia sair beneficiado nos dois episódios. Villas Bôas sugeriu risco à paz social, mas o fato é que tanto no governo, quanto na ativa, militares já “precificaram” eventual libertação do petista preso por corrupção e lavagem de dinheiro.

Bolsonaro e seu entorno torcem pela libertação de Lula, pois isso manteria o clima de polarização do país, teoricamente o favorecendo.

Se o ex-presidente for beneficiado por uma revogação da prisão após duas instâncias e solto nas próximas semanas, já há militares perguntando se o bolsonarismo radical não irá unir todas esses fios narrativos para instigar confrontos de rua.

Neste caso, o artigo 142 da Constituição é claro sobre a manutenção da lei e da ordem recair sobre os militares, sob ordens civis.

A insanidade no Poder

Falta sanidade a quem controla os destinos da cidade, do estado e da nação. E isso é perigoso. Porque dá à população a sensação de que é válido usar a máscara do Coringa e sair por aí xingando e vandalizando. O Coringa já aparece em manifestações na América Latina, no Oriente Médio e na Ásia.


O Brasil é hoje governado por uma família sem freios ou limites no trato social e político. Os filhos de Bolsonaro são caixa de ressonância e de dissonância. Carlos posta no perfil do pai uma ridícula paródia sobre o “rei Bolsonaro leão” e as hienas. As hienas são juízes, políticos, jornalistas, todos os que fazem parte do jogo da democracia. O presidente pede desculpas, diz que não sabia, exime o filho. E fica por isso mesmo até o próximo espanto.

O deputado Eduardo Bolsonaro fez bem pior. Como atual líder do PSL na Câmara, ameaçou o Brasil com um novo golpe militar. “Não vamos deixar isso aí vir pra cá (os protestos de rua no Chile). Se vier pra cá, vai ter que se ver com a polícia e, se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a História se repetir. Aí é que eu quero ver como é que a banda vai tocar. Muito obrigado, senhor presidente”, afirmou Eduardo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nasceu no Chile, durante o exílio de seu pai, Cesar Maia, pela ditadura brasileira.

Na manhã desta quinta-feira, Eduardo insistiu. “Se a esquerda radicalizar, a resposta pode ser via um novo AI-5”. O Ato Institucional número 5 inaugurou o período mais sombrio de nossa ditadura. Legalizava repressão, tortura, censura, estado de sítio por tempo indeterminado, cassação de mandatos.

Flávio sumiu, todos sabemos. O Queiroz e as rachadinhas obrigaram o senador a submergir. Opera só nos bastidores, para que as investigações de desvio de dinheiro público não comprometam a bandeira de anticorrupção. Opera e se dá bem com ministros do STF, o mesmo Supremo que o irmão Eduardo disse que, para fechar, “basta um soldado e um cabo”. O mesmo Supremo que, no perfil do pai presidente, controlado por Carlos, não passa de uma hiena.

O capitão Jair Bolsonaro foi expulso do Exército. Admitiu atos de indisciplina e deslealdade com seus superiores, ao publicar artigo pedindo aumento salarial para a tropa e ao afirmar que ele e outro oficial tinham elaborado um plano para explodir bombas-relógio em unidades militares no Rio de Janeiro. Depois, disse que não passavam de “espoletas”. Bolsonaro foi preso por 5 dias por “ter ferido a ética, gerando clima de inquietação na organização militar” e “por ter sido indiscreto, comprometendo a disciplina”.

As más línguas disseram que Jair foi expulso por ser “maluco”. Injustiça, não? O descontrole não é exclusivo de Bolsonaro. O governador do Rio, Wilson Witzel, sobe camuflado em helicóptero militar e diz que agora é “atirar na cabecinha” de quem portar uma arma. Se o tiro matar uma criança, abre um inquérito. O prefeito Marcelo Crivella destrói com retroescavadeiras e marretas a praça do pedágio da Linha Amarela. Cancelas e guaritas foram para o espaço. Muita gente acha que Crivella surtou.

Se o Poder acha que pode agir como maluco e black bloc, como se precisasse de um calmante tarja preta ou de uma camisa-de-força, qual é a mensagem de violência verbal e física que está passando? O Coringa pode não ser apenas uma máscara no próximo Carnaval. Pode invadir as ruas com seu riso. Sinistro.

Profeta Brasil


A paranoia como método político

Cercado por hienas e conspirações socialistas, Jair Bolsonaro quer convencer o país de que é vítima de uma ameaça contínua. A insistência do presidente em retratar críticos como vilões e atribuir seus infortúnios a complôs delirantes mostra que ele pretende governar em estado permanente de paranoia.

Esse estilo político foi descrito pelo historiador americano Richard Hofstadter num ensaio de 1964. Ele tomou emprestado o termo clínico para descrever um discurso baseado no exagero, na suspeição, no alarmismo e em fantasias conspiratórias.

A tática é apresentar o jogo democrático como um conflito entre o bem e o mal, anulando qualquer expectativa de moderação e convocando uma luta constante. "Visto que o inimigo é considerado totalmente mau e desagradável, ele deve ser totalmente eliminado", escreveu.


Governos com inclinações autoritárias costumam se apegar a esse método para destruir a legitimidade de instituições que delimitam seus poderes. Conluios são a justificativa ideal para quem quer adotar medidas excepcionais e punir rivais.

Nos últimos dias, Bolsonaro e sua equipe sugeriram repetidas vezes que os protestos no Chile e o resultado de eleições livres na Argentina não são produtos da vontade popular, mas uma intentona esquerdista que ameaça também o Brasil. O presidente até alertou os militares e pediu que eles ficassem de prontidão para reprimir manifestações.

Ao divulgar o vídeo em que retrata quase todos os seus críticos como animais agressivos e aproveitadores, o bolsonarismo amplia o recado: a fonte do perigo não são apenas opositores formais, mas qualquer personagem disposto a contrariar seus interesses ou sustentar uma desaprovação legítima ao governo.

O próprio Bolsonaro deixa claro que tudo não passa de enganação. Depois de lançar o alerta sobre o risco vermelho, ele divergiu de si mesmo. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente disse achar que a esquerda "não tem futuro no Brasil num curto espaço de tempo".

Governo não há, mas o que virá?

Por mais que o establishment econômico esteja fechado com a agenda liberal de Paulo Guedes, que o risco Brasil tenha caído e que o mercado venha melhorando suas previsões para o PIB, não há como tapar o sol com a peneira. O ritmo cada vez mais acelerado das crises políticas envolvendo o presidente da República — agora à razão de uma por dia, ou até mais de uma no mesmo dia — não permite ilusões. A tática de avestruz das elites, que enterram a cabeça no chão para não ver a realidade na esperança de que essa parte do governo fique invisível — enquanto a de Guedes trabalha e recupera a economia do país — parece fadada ao fracasso. Na verdade, não há governo.

Fica muito difícil levar o Congresso a prosseguir numa pauta de emendas constitucionais, com mudanças profundas no Orçamento, reforma administrativa, e as privatizações prometidas num ambiente de tal instabilidade, com o primeiro mandatário do país se mete em tantas confusões.


O episódio mais recente junta o inquérito que apura o assassinato da vereadora Marielle Franco pelas milícias à figura do presidente da República. Vem se somar a um conjunto da obra que, em menos de uma semana, expôs ao público as entranhas do PSL, as conversas de bastidor em que Queiroz faz pose de articulador governista e o vídeo do leão Bolsonaro cercado pelas hienas institucionais do país, incluídos aí o STF e a CNBB.

A “live” em que Jair Bolsonaro se defendeu diante da informação de que um dos acusados da execução da vereadora esteve em seu condomínio no dia do assassinato, citando sua casa como local de destino, provavelmente será um dia objeto de estudos da história. Não apenas pela declaração de guerra à Rede Globo e ao governador do Rio, mas pelo tom geral belicoso, duro, ameaçador, no estilo "matar ou morrer" — e que não prenuncia boa coisa.

Sem entrar no mérito de suas razões, e dando crédito às provas de que ele estava em Brasília na data citada e não se encontrou com o suposto executor da vereadora Marielle — o que parece claro — Bolsonaro mostrou que vai levar ao limite a tática da radicalização do discurso com o objetivo de levantar sua base social. Ainda que venha perdendo popularidade, num desgaste constante desde que assumiu, o presidente conta um um grupo minoritário, mas aguerrido e barulhento, que pode defendê-lo. Quer botar essa turma em campo, nas redes e fora delas.

É cedo para dizer no que isso dará. Haverá consequências para além dos salões da política. Mas uma constatação óbvia é que Bolsonaro não é um sujeito que sairá fácil. É do tipo que não renuncia e cai atirando. Do outro lado, seus adversários, antigos e novos, não parecem ter hoje vontade ou organização suficientes para mergulhar num sempre traumático processo de impeachment. Pelo menos ainda não.

Estamos hoje diante de uma equação de difícil solução, que junta um governo que não governa mas não cai, uma elite política e econômica que acredita ilusoriamente poder erguer um muro em torno de Bolsonaro e fazer reformas à revelia dele, e uma sociedade cada vez mais desigual e cheia de demandas, crescentemente perplexa com o que está assistindo.

Vaca prenha

Vai chegar um momento em que a situação vai ser igual a do final dos anos 60 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam-se e sequestravam-se grandes autoridades, cônsules, embaixadores, execução de policiais, de militares. Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente via precisar ter uma resposta. E a resposta, ela pode ser via um novo AI-5, via uma legislação aprovada através de um plebiscito, como aconteceu na Itália*.
*Em 1929, as eleições na Itália foram substituídas por plebiscitos, nos quais, ao invés de votar, o povo italiano poderia dizer entre sim e não a uma lista de candidatos que era escolhida pelo Grande Conselho Fascista. Essa lista, por sua vez, era selecionada a partir de nomes apresentados pelo Partido Nacional Fascista, pelos sindicatos fascistas e organizações empresariais.

O culpado é o porteiro

Meia volta volver. O porteiro do condomínio onde o presidente Jair Bolsonaro tem casa na Barra da Tijuca mentiu. Foi o que disse a promotora Simone Sibilio, do Ministério Público do Rio.

“A prova técnica juntada aos autos mostra que no dia 14/03/2018 às 17h07, quem autoriza a entrada de Élcio Queiroz no condomínio é Ronnie Lessa”, informou a promotora

Em dois depoimentos prestados à Polícia Civil, o porteiro havia dito que telefonou na tarde daquele dia para a casa de Bolsonaro. Um homem, de nome Élcio, pedia licença para entrar.

De dentro da casa de Bolsonaro, a voz de um homem, que o porteiro identificou como sendo a do “seu Jair”, respondeu que Élcio poderia entrar. Élcio e Lessa estão presos por terem matado Marielle Franco.


“As testemunhas prestam depoimento e o Ministério Público checa. Nada passa sem ser checado”, garantiu a promotora. A ser assim, há muito ainda a ser investigado sobre essa história.

Se o porteiro mentiu ou se enganou por que um grupo de procuradores, no último dia 17, foi à Brasília consultar o ministro Dias Toffoli sobre se as investigações deveriam ser federalizadas?

Uma vez que o nome de Bolsonaro fora citado, e como ele tem direito a foro privilegiado, caberia ao Supremo Tribunal Federal investigá-lo. Os procuradores se precipitaram?

Quando voaram à Brasília não sabiam que o porteiro mentira ou se enganara? Nada haviam checado? A checagem só ocorreu de ontem para hoje? Não faz sentido.

Também não faz sentido que, informado pelo governador do Rio no último dia 9 que seu nome fora citado, Bolsonaro até ontem desconhecesse que o porteiro mentira ou se enganara.

Bolsonaro, como ele mesmo admitiu, orientou seu advogado a defendê-lo em entrevista ao Jornal Nacional. Por que o advogado não o defendeu com o argumento de que o porteiro mentira?

O Ministério Público do Rio foi uma das fontes de informação do Jornal Nacional. Por que não informou à Globo que o porteiro mentira? Teria abortado a reportagem, com certeza.

Sobrou para o porteiro mais cedo do que se imaginava. Só falta acusá-lo de ser ligado ao Foro de São Paulo.

Desconecte-se


As posturas do clã Bolsonaro no caso Marielle Franco

Brasil, 14 de março de 2018. Horas após os assassinatos da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, praticamente todos os pré-candidatos à Presidência lamentaram as mortes e cobraram investigações rigorosas. "Barbárie" e "crime grotesco" deram o tom de algumas declarações.

Apenas um pré-candidato não quis comentar, seja para cobrar apuração, seja para lamentar: Jair Bolsonaro. No dia seguinte, um assessor afirmou que o então deputado não pretendia comentar o caso porque sua "opinião seria polêmica demais".

Nos primeiros meses que se seguiram, o futuro presidente e seu clã político intercalariam silêncio com declarações e ações para minimizar a gravidade do crime, manifestando ainda, em algumas ocasiões, desprezo pela comoção nacional e internacional com a morte da vereadora, que atuava na cidade que há décadas é a base eleitoral de Jair Bolsonaro.


"Crime comum" e "mais uma morte no Rio de Janeiro" foram algumas das declarações que partiram inicialmente do clã. Menos de um mês depois do crime, à época da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um dos filhos do presidente também afirmou que "se Marielle estivesse viva, provavelmente defenderia o ladrão Lula".

Enquanto Jair permanecia em silêncio na semana seguinte ao crime, seus filhos Carlos, Eduardo e Flávio usaram as redes sociais tanto para reforçar uma narrativa de crime comum quanto para demonstrar desconfiança com a hipótese de participação de policiais ou ex-policiais ligados à milícia.

Flávio, então deputado estadual no Rio, chegou a publicar no Twitter inicialmente uma mensagem em que lamentava a morte de Marielle. "Apesar de profundas divergências políticas, sempre tive relação respeitosa com ela." Apagou o texto pouco depois. No lugar, publicou uma mensagem prestando solidariedade à família de um PM do Rio que morreu em um assalto.

Em outubro, ele também defenderia dois candidatos do PSL que quebraram uma placa em homenagem a Marielle afixada em uma rua do centro do Rio. Segundo ele, os correligionários "nada mais fizeram do que restaurar a ordem", e a homenagem havia sido "ilegal".

Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), que havia sido colega de Marielle na Câmara Municipal do Rio, também não lamentou a morte e sugeriu que as Nações Unidas eram hipócritas por se manifestarem sobre o caso. Dois dias depois do crime, publicou no Twitter o link de uma reportagem sobre a morte de um empresário em um assalto e escreveu: "Ninguém verá a ONU se manifestar por isso."

No final de março de 2018, voltou a usar o mesmo tom ao comentar a morte de um PM catarinense. "Essa realidade a Globo, a ONU, o Psol, as feministas e toda esquerda continuarão ignorando."

No Carnaval de 2019, quase um ano após o crime, Carlos também criticou a escola de samba Mangueira, que homenageou Marielle em seu desfile. "Dizem que a Mangueira, escola de samba campeã do carnaval e que homenageou Marielle, tem o presidente preso, envolvimento com tráfico, bicheiros e milícias. Esse país está de cabeça pra baixo mesmo."

Já as primeiras manifestações do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre o caso atacaram a hipótese de que Marielle e Anderson teriam sido mortos por policiais. "Vão falar, refalar, bater, repetir tanto que a vereadora foi executada por um PM mesmo sem uma prova concreta disso. Daí quando surgir uma possibilidade qualquer de se ligar o crime a policial em particular, pronto, ele já estará condenado", escreveu em 15 de março.

No mesmo dia, ele também reproduziu uma mensagem que dizia: "O assassino da vereadora Mirielle Franco [sic] se for um PM guilhotina, se for um traficante é vítima da sociedade. Assim é a esquerda."

No início de abril de 2018, Eduardo também reclamou no Twitter da cobertura de manifestações em homenagem a Marielle. "Jornal Nacional: 'manifestantes no Brasil e no exterior homenageiam Mariele'. Só vi imagens fechadas para não mostrar os vazios e poucas pessoas acendendo velas."

Eduardo também mencionou a vereadora após um ato que precedeu a prisão de Lula, em abril. "Quase todo Psol, inclusive seu presidenciável, estavam [sic] no ato em apoio ao maior corrupto da Terra, Lula. Se Mariele [sic] estivesse viva provavelmente estaria lá a defender o ladrão Lula. Não desejo a morte de ninguém, mas querer meter goela abaixo que Psol é exemplo de algo também não dá."

Jair Bolsonaro, por sua vez, enquanto era cobrado para se manifestar nos dias seguintes ao crime, usou o Twitter para saudar a descoberta de uma proteína no "leite do ornitorrinco" que pode combater superbactérias. O futuro presidente só rompeu o silêncio no dia 20 de março, e para reclamar da cobrança da imprensa por uma manifestação. "Nos enterros dos PMs nenhum presidenciável foi, e vocês não deram porrada neles como dão em mim", disse a jornalistas.

Nos meses seguintes ao crime, em entrevistas, Bolsonaro também minimizaria o caso. "Para a democracia não significa nada. Mais uma morte no Rio de Janeiro e temos que aguardar a investigação", disse ao jornal O Globo no final de abril.

Em maio, quando as investigações apontaram que a morte de Marielle poderia estar relacionada a denúncias da vereadora contra a grilagem de terras por milícias, Bolsonaro chamou de "demagogia" a possível entrada da Polícia Federal no caso.

Disse ainda a um jornalista do portal O Tempo: "Qual é a diferença da minha vida e da sua com a da Marielle?" "Num primeiro momento, falaram absurdos: 'Crime político', que era uma mulher que 'poderia ser presidente da República'. Confesso que mal conhecia a senhora Marielle. [...] É outro crime comum como outro qualquer."

No mês seguinte, Bolsonaro afirmou que a possível participação de milicianos suspeitos de grilagem de terras nas mortes demonstrava "que não foi crime político". "É econômico. É briga de milícia", disse ao jornal Correio Braziliense.

"A grande mídia deu espaço enorme. [Chamou] de 'heroína', 'futura presidente', 'mulher lésbica'. Peraí... Morre gente da sociedade [...] e ninguém toma uma providência. Grande parte das redações são tomadas por gente de esquerda que faz um estardalhaço terrível", acrescentou.

Bolsonaro não voltaria ao tema Marielle até 12 de março de 2019, quando os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz foram presos por suspeita de executarem a vereadora e o motorista. A essa altura, uma série de elos já havia associado o clã Bolsonaro ao crime.

Em janeiro, uma operação contra milicianos revelou que Flávio havia empregado em seu gabinete a mulher e a mãe de outro ex-PM que chegou a ser apontado como suspeito pelos assassinatos em outra linha de investigação.

O ex-PM em questão já havia sido homenageado por Flávio na Assembleia Legislativa do Rio em 2005 e havia sido defendido por Jair Bolsonaro em um discurso na Câmara meses depois, quando foi condenado por homicídio. O caso levou a imprensa a revisitar antigas declarações do clã de apoio à milícia.

A prisões de Lessa e Queiroz revelaram mais elos. Lessa foi preso em sua casa, que fica no mesmo condomínio fechado em que Jair e Carlos têm suas residências. O delegado do caso também confirmou que um dos filhos do presidente namorou a filha de Lessa. No entanto, a polícia e o Ministério Público apontaram que encaram esses episódios como coincidências.

Pouco depois, a Polícia Civil revelou que encontrou 117 fuzis na casa de um comparsa de Lessa, reforçando a suspeita de que ele também era um traficante de armas. Por fim, a imprensa brasileira divulgou uma fotografia de 2011 na qual Élcio Queiroz aparece ao lado de Jair Bolsonaro.

Em março, quando questionado sobre as prisões, Bolsonaro adotou um tom mais brando, em contraste com a postura de 2018. "Espero que realmente a apuração tenha chegado de fato a esse, se é que foram eles os executores, e o mais importante, quem mandou matar", disse.

Com uma postura defensiva, também lembrou o atentado que sofreu em setembro de 2018, cuja investigação não apontou um mandante. "Também estou interessado em saber quem mandou me matar." Sobre a fotografia ao lado de um dos suspeitos, disse: "Tenho foto com milhares de policiais civis e militares, com milhares no Brasil todo."

No dia seguinte, ainda disse a jornalistas que não mantinha qualquer relação com seu vizinho suspeito pelo crime. "Não lembro desse cara. Meu condomínio tem 150 casas", afirmou. "O que tenho a ver com ele? Não tem vida social no meu condomínio", disse o presidente.

Eduardo, por sua vez, voltou a afirmar que a morte de Marielle e de Anderson não se distingue de outros homicídios e que há "um desespero" para relacionar o crime ao seu pai. "É um desespero para tentar dizer que Bolsonaro tem culpa no cartório. Pelo amor de Deus, tentar fazer essa relação é mais do que absurda, é repugnante", disse ao jornal O Globo. "Esse caso de assassinato é como vários outros casos de assassinato", concluiu.

Seu irmão Flávio também adotou a mesma postura defensiva. "Forçação total de barra. Agora virou fator importante para o crime o cara [Lessa] coincidentemente morar no condomínio dele? Essa narrativa não vai colar, não", disse o senador.

Ainda em março, em entrevista à rede americana Fox News, Jair Bolsonaro foi questionado sobre seus elos com os suspeitos e o fato de um deles ser seu vizinho. "Só soube quem era Marielle Franco depois que ela foi assassinada. Que motivo eu teria para encomendar um assassinato desses?", respondeu o presidente.

Nos meses seguintes, o clã não mencionou mais o caso Marielle. Mas, nesta terça-feira (29/10), quando o Jornal Nacional revelou que a investigação havia envolvido diretamente o presidente e que o caso agora pode ser levado para o Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro reagiu de maneira agressiva. Segundo depoimento do porteiro do condomínio do presidente no Rio, um dos suspeitos de matar Marielle pediu para ir à casa de Bolsonaro no dia do crime.

Em um vídeo publicado direto da Arábia Saudita, onde cumpria viagem oficial, Bolsonaro atacou a TV Globo, ameaçou não renovar a concessão da emissora e chamou a imprensa de "porca" e "nojenta". Ele também voltou a negar que tenha algo a ver com o crime. "Não tinha motivo nenhum para matar quem quer que seja no Rio de Janeiro!"

Protestos nas ruas não significam mais democracia

Multidões tomam as ruas de Hong Kong, Beirute, Barcelona, Santiago ou Quito, sob múltiplos pretextos: a lei de extradição, a prisão de separatistas, o aumento da gasolina ou do metrô, a cobrança pelo WhatsApp. O movimento cresce, unido na rejeição a políticos incapazes de sintonizar os anseios populares. A manifestação descamba para o quebra-quebra. A reação vem violenta. Mau presságio para quem se habituou a associar protestos de rua à democracia. “Milhões de pessoas nas ruas, como em 1989, não significam imediatamente um futuro feliz”, escreve o documentarista britânico Peter Pomerantsev em "This is not propaganda: adventures in the war against reality" ("Isto não é propaganda: aventuras na guerra contra a realidade", em tradução direta). “A estátua de um ditador sendo derrubada não está mais instantaneamente ligada a uma história de maior liberdade.”
“Os protestos da era digital têm um fundo, quando não autoritário, ilusório como os memes”
Nascido na Ucrânia, criado em Londres e Munique, autor do melhor livro para entender a Rússia contemporânea, Pomerantsev decifra a dinâmica que liga redes sociais, desinformação e protestos. Mistura história pessoal a depoimentos e estudos. Viaja para as Filipinas, a Sérvia, o México, os Estados Unidos ou a Ucrânia para decifrar um paradoxo: mais informação deveria significar “um debate mais informado”, mas estamos longe disso. Suas conclusões:

1. Nada é espontâneo — Toda atividade nas redes pode ser manipulada para fins políticos: ataques, comentários, curtidas contra políticos ou jornalistas. “Cada vez que você posta, reposta ou retuíta, torna-se uma pequena máquina de propaganda.”

2. Barulho substitui a censura — Rebanhos digitais e milícias virtuais são usados para sufocar vozes dissidentes. “Os poderosos se adaptaram. Um regime sempre pode dizer que nada tem a ver com isso, são apenas cidadãos exercendo a liberdade de expressão.”

3. Fatos não têm valor — Nem políticos nem ninguém dá a mínima para a verdade. Cada um vive na própria realidade. “Se os fatos não provam que você terá sucesso, para que servem? Por que precisa deles, se dizem que seus filhos serão mais pobres?”

4. Tudo vira conspiração — Se a vida está uma confusão, é culpa dos outros: políticos ladrões, a direita, a esquerda ou qualquer conspiração. Você é pequeno demais. “Se vive num mundo em que forças sombrias controlam tudo, que chance tem?” Melhor confiar num líder com autoridade e força.

5. Identidade é disfarce — O argumento que mais convenceu britânicos a votar pelo divórcio da União Europeia foi o direito dos animais — as touradas cruéis na Espanha. De modo similar, toda comunidade, toda causa particular — do ambientalismo ao casamento gay, do vegetarianismo aos games, das armas à jardinagem — pode ser manipulada para aderir a slogans vagos, como o “Take back control”, do Brexit, ou o “Make America great again”, de Donald Trump.

6. Populismo é estratégia — Para unir interesses diversos em torno do líder, o truque é incluir na categoria “povo” gente com quase nada em comum. “Grupos diferentes nem precisam se conhecer. Para solidificar a identidade improvisada, só é necessário um inimigo, o não povo.” Quanto mais abstrato, mais eficaz. Daí termos genéricos, como “establishment”, “elites” ou “mídia”.

7. Esquerda inspira direita — O desprezo pela objetividade e pela racionalidade da contracultura dos anos 1960 é a raiz da lógica que move a nova direita. Pomerantsev encontra um líder neofascista cujo modelo é um ativista de esquerda sérvio.

8. Rússia é pioneira; China é líder — Campanhas políticas no Ocidente seguem os métodos da KGB e de Vladimir Putin. “A Rússia que conheci está aí: o relativismo radical, o futuro dissolvendo em nostalgia, conspiração substituindo ideologia, fatos igualados a lorotas, o sentido de que tudo está em movimento constante, instável, líquido.” O uso mais eficaz da tecnologia para influir no comportamento está na China.

9. Informação é soberania — Ela deve confundir, subverter, enfraquecer o inimigo. Diz um manual do Pentágono: “A guerra do século XXI é guiada por uma dimensão nova e vital: aquele cuja narrativa vence importa mais que aquele cujo Exército vence”.

Bolsonaro e os demônios

Jair Bolsonaro sente-se e age como homem cercado. Em parte, os motivos para essa autopercepção são práticos e “palpáveis”. Em parte, sente-se acuado por demônios de criação própria – em geral, a combinação dos dois leva os personagens da política a cometer erros. É real o cerco que sofre no Judiciário. O filho Flávio é investigado pelo conhecido esquema das “rachadinhas”, uma série de inquéritos faz menções a ligações do clã Bolsonaro com milícias no Rio, o TSE está tratando da acusação do envio de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. Porém, tratam-se de dores de cabeça que, tomadas isoladamente, até aqui não são arrasadoras.

Como é perfeitamente normal em sistemas políticos abertos, atribulações com o Judiciário são fartamente utilizadas por adversários. Que agem segundo o habitual método (nem foi a Lava Jato que inventou isso) dos vazamentos de inquéritos ou, nos últimos dias, de divulgação de áudios de figuras como Fabrício Queiroz, essa espécie de assessor “faz-tudo” que é muito útil no dia a dia dos políticos e muito perigoso pelo o que podem dizer.

Note-se que adversários, nesses casos mais recentes, não são apenas a oposição composta por correntes políticas antagônicas, empenhadas como em qualquer outro lugar em atrapalhar o governo.


Os ex-companheiros de luta do próprio presidente são hoje seus mais ferozes críticos, e os mais raivosos ao prometer vinganças. É o resultado comum de ondas disruptivas como a das eleições de 2018: depois da vitória, os diversos componentes dela vão disputar o poder entre si, e Bolsonaro sempre favoreceu seu clã em detrimento do resto. Fatos concretos levaram o “mito” a criar fortes laços de dependência em relação a duas instâncias políticas que ele, como candidato, jurou que desprezaria ou transformaria radicalmente.

A primeira é o âmbito do STF, através sobretudo da figura de seu presidente, ministro Dias Toffoli, visivelmente empenhado em aliviar dores de cabeça políticas e pessoais de Bolsonaro. Mas, se quiser, pode aumentá-las substancialmente. A segunda é a esfera da “política tradicional”, à qual Bolsonaro se dedica agora de forma tácita, porém não declarada, pois admitiu com perigosa lentidão que não governa sem ela.

O desarranjo de suas próprias forças, ilustrado no episódio das brigas do PSL, tem como óbvia consequência a necessidade incontornável de se apoiar e depender de outros grupos, a exemplo do que já acontecia com a liderança do governo no Senado. Com um pouco de distanciamento, percebe-se que esse contexto acima nada tem de excepcional, muito menos as brigas de Bolsonaro com setores da imprensa (pode-se dizer que há décadas a história política do Brasil está recheada desse tipo de conflito entre governantes e grupos de mídia).

Ocorre que os verdadeiros donos de sabedoria política tratam de exercitar a serenidade e o cálculo frio, essenciais para se navegar em águas turbulentas – mas o que Bolsonaro está exibindo é a caricatura de um personagem consumido no caldeirão fervente de seus próprios demônios, às vezes chamados de “hienas”. Ele prefere enxergar sobretudo conspirações e inimigos ocultos (seu ídolo, Donald Trump, fala sempre de um “deep state”) mancomunados para derrotá-lo em sua missão divina e tornada possível por um milagre (sobreviver à facada), num tipo de visão de mundo que inclui mesmo o resto do mundo (conspirações ou forças do mal arquitetando-se no Chile, Argentina, óleo nas praias, Amazônia, etc.).

Lutando contra seus demônios, vai sendo engolido pelo “buraco” (a expressão é do próprio Bolsonaro) no qual está um País estagnado, recuperando-se muito lentamente da mais brutal recessão da sua história, habitado por milhões cujas expectativas não atendidas crescem tanto quanto sua impaciência – isto sim, é diabólico.

Pensamento do Dia


Aumento do nível do mar ameaçará 300 milhões de pessoas em 2050

A partir de 2050 as zonas costeiras onde atualmente vivem 300 milhões de pessoas serão inundadas todos os anos. Ou pelo menos isso acontecerá se não forem tomadas medidas de contenção de água, como diques e muros. É uma das consequências mais diretas do aumento incontrolável do nível do mar devido às mudanças climáticas. Os 300 milhões de afetados são o triplo do que havia sido estimado até agora com os modelos de previsão habituais, de acordo com um estudo publicado terça-feira pela Nature Communications.

A Ásia é, sem dúvida, a região mais afetada. Mas na Espanha, por exemplo, também haverá impactos: cerca de 200.000 pessoas residem hoje em áreas que serão expostas a essas inundações anuais a partir de 2050. Na zona vermelha do mapa de risco — elaborado pelos autores do relatório e pela organização Climate Central —, existem áreas importantes por seu valor econômico e natural, como Doñana, o Delta do Ebro, a Manga del Mar Menor e municípios de Cádiz e Huelva.

Kivalina, no Alasca
O aumento do nível do mar já é um dos impactos irreversíveis da mudança climática que o ser humano provocou com as emissões de gases de efeito estufa que superaquecem o planeta, segundo a maioria dos cientistas. O nível do mar continuará subindo principalmente devido ao degelo nos polos, como alertou um relatório recente do IPCC, o painel de especialistas internacionais que assessora a ONU.

“Embora atenuemos, mesmo se cumprirmos o Acordo de Paris, o nível médio do mar continuará subindo durante séculos”, explica Íñigo Losada, diretor do Instituto de Hidráulica da Cantábria e um dos autores do relatório do IPCC. Portanto, Losada destaca a importância de medidas de adaptação à mudança climática por meio, por exemplo, de infraestruturas de contenção de água. O especialista também enfatiza que são necessárias mais pesquisas em áreas de risco.

É a isso que aspira o modelo criado pela Climate Central. Benjamin Strauss, presidente desta organização e coautor do estudo, argumenta que as projeções até agora subestimaram o número de pessoas que podem ser afetadas. “As comunidades humanas se concentram de forma desproporcional nas áreas mais baixas do litoral”, alerta. De fato, o estudo indica que 250 milhões de pessoas residem atualmente em áreas de risco de inundação; as projeções atuais limitavam esse número a 65 milhões, segundo o relatório.
Reduzir emissões

O modelo desenvolvido por essa organização trabalha com vários cenários partindo da evolução das emissões de gases de efeito estufa e da velocidade do degelo. Dependendo desses parâmetros, o nível do mar aumenta mais ou menos e, portanto, varia o número de pessoas que vivem nas áreas afetadas.

Nos diferentes cenários, as projeções para 2050 não oferecem grandes diferenças em relação aos afetados. A grande variação ocorreria no final deste século. Em 2100, no cenário mais otimista (uma rápida redução de gases de efeito estufa e um degelo menos acentuado) na zona vermelha de inundação haveria 340 milhões de pessoas. No pior cenário (com um aumento das emissões e um alto nível de degelo), esse valor aumentaria para 480 milhões em 2100.

O mesmo acontece com as projeções para a Espanha. Em 2050, o intervalo varia pouco — entre 190.000 e 210.000 pessoas — em função das emissões e do nível de degelo. Mas em 2100, o cenário mais otimista fixa a população afetada em 260.000 pessoas, em comparação com as 690.000 do pior cenário. Portanto, como ressaltam os autores, se se deseja limitar os impactos do nível do mar é necessário que as emissões de gases de efeito estufa sejam reduzidas imediatamente. Ou seja, que se cumpra o Acordo de Paris, que estabelece o objetivo de que o aumento da temperatura média do planeta fique abaixo de dois graus em relação aos níveis pré-industriais e, se possível, abaixo de 1,5ºC.
Novo modelo

“Sem estar livre de limitações, contribui claramente para reduzir cada vez mais as incertezas que temos na determinação do que pode acontecer no futuro”, diz Losada sobre o novo modelo, que inclui um mapa interativo para explorar as áreas afetadas. “Os autores tocam numa questão essencial: devemos ter modelos digitais de terreno que nos sirvam para conhecer os elementos expostos do futuro”, explica Losada. Entre as limitações desse modelo está o fato de que a população afetada pelas projeções ao longo do tempo é a atual. Ou seja, não é levado em consideração o aumento da população mundial que todos os relatórios apontam para este século.

Para Losada, o modelo melhora os dados sobre a elevação do terreno em relação àqueles que estavam sendo utilizados. O problema, segundo os autores do relatório, é que o sistema de cálculo mais difundido até o momento (que como este se baseia em dados de satélites) subestimava a superfície afetada, uma vez que não identificava bem elementos como copas de árvores ou telhados. O novo sistema, segundo os autores, corrige essa distorção, o que faz com que a população potencialmente afetada se multiplique.

A Ásia é sem dúvida a área mais afetada em todo o planeta devido ao risco de inundações relacionadas à mudança climática. “É uma área dominada por áreas muito baixas e superpovoadas”, diz Íñigo Losada, diretor do Instituto de Hidráulica da Cantábria. O relatório publicado na terça-feira indica que a maioria das pessoas expostas reside em seis países asiáticos: China, Bangladesh, Índia, Vietnã, Indonésia e Tailândia. Dos 300 milhões que vivem em áreas de risco de inundação até 2050, aproximadamente 237 milhões residem nesses seis países. A China, com 93 milhões de pessoas agora vivendo em áreas de risco de inundação, é o país mais afetado, segundo o relatório. É seguida por Bangladesh, com 42 milhões, e Índia, com outros 36 milhões de pessoas em risco. Depois deles, Vietnã (31 milhões), Indonésia (23) e Tailândia (12).

Óbvio

Os chilenos se manifestam nas ruas contra o aumento de tarifas e do custo da sua vida em geral. Nada que não tenha mobilizado multidões em outras partes do mundo. Mas um milhão de manifestantes nas ruas do Chile não significa o mesmo que um milhão de manifestantes em outro lugar. Uma nova e inesperada causa entrou no elenco de reclamações dos chilenos. Uma causa não inédita — no fundo é a causa básica, o genérico, de todas as outras — mas que não costuma frequentar manifestações de rua. Os chilenos protestam contra a desigualdade.

Dirá o leitor que a desigualdade, a má distribuição de renda, a injustiça social ou que nome tenha a bandida está implícita em todo o discurso de esquerda e é tão óbvia que está à beira de ser uma abstração. É-se contra a injustiça social como se é contra a morte, a explosão de vulcões, a seborreia e a techno music. O leitor tem razão, mas a obviedade nunca foi dita com a clareza em que está sendo ouvida nas ruas do Chile. Os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres ficam cada vez mais miseráveis, e isto não é uma fatalidade como o rompimento de uma barragem da Vale. O cataclismo tem autores, tem defensores, tem teóricos, tem até filósofos.

O Chile também é diferente porque até hoje é cantado e decantado como o grande exemplo do neoliberalismo triunfante no continente. Paulo Guedes, que Bolsonaro & Filhos convocaram para imitar o Chile no Brasil, é da chamada Escola de Chicago, de discípulos de Milton Friedman. O neoliberalismo que Friedman receitava e Guedes tenta impor tem o dom mágico de sobreviver a seus grandes fracassos e supervalorizar suas pequenas vitórias, como na votação da Nova Previdência. A economia sob Guedes ainda não começou a andar, mas está fazendo um bom trabalho de remontar o proletariado brasileiro ao gosto do empresariado.

Não foi o neoliberalismo que levou a maioria de manifestantes às ruas no Chile, mas sim a consciência, finalmente explícita, de que desigualdade e neoliberalismo se completam. Óbvio.
Luis Fernando Verissimo

Quem colocou o porteiro na tuba?, eis a questão

Está entendido que a voz do "seu Jair" não pode ter soado no interfone da casa 58 do condomínio Vivendas da Barra, no Rio, no dia 14 de março de 2018. Proprietário do imóvel, o então deputado Jair Bolsonaro dava expediente na Câmara, em Brasília. Não teria como autorizar a entrada de Élcio Queiroz, hoje preso sob a acusação de matar Marielle Franco. A voz que soa no sistema de áudio da portaria, atesta a perícia, é a do morador da casa 65, Ronnie Lessa, outro suspeito preso pelo mesmo crime. Falta esclarecer o seguinte: Quem colocou na tuba do inquérito um porteiro capaz de inventar em dois depoimentos à polícia que falou com "seu Jair"?


Afora os depoimentos, o áudio da portaria e os rastros de Bolsonaro em Brasília há sobre a mesa a planilha com os lançamentos feitos pelo porteiro naquele fatídico 14 de março do ano passado, dia da execução de Marielle Franco. Nesse documento, está anotado o nome de Élcio Queiroz e o número da casa 58 de Bolsonaro, não do imóvel 65 de Ronnie Lessa. Supondo-se que o porteiro não fosse um vidente capaz de antecipar a futura conversão de Bolsonaro de deputado em presidente da República, cabe perguntar: por que meteu o capitão na encrenca?

Há outro mistério no lance da irritação do presidente da República com a reportagem em que o Jornal Nacional levou os depoimentos do porteiro ao ventilador, sem sonegar à plateia a informação de que seu relato não ornava com os registros de presença do "seu Jair" na Câmara. Numa live improvisada na madrugada da Arábia Saudita, o capitão perdeu a linha: "Patifaria", "porra", "canalhas", "imprensa porca", "jornalismo podre"...

Entende-se que uma resposta era necessária. Mas isso poderia ter sido feito organizadamente, sem a teatralização bizarra que apequenou o ofendido. O próprio Bolsonaro declarou que o governador fluminense Wilson Witzel lhe informara 20 dias antes sobre as menções que o porteiro fizera ao seu nome. O caso subiu para o Supremo, disse o governador ao presidente. Por que Bolsonaro esperou a encrenca chegar à vitrine do Jornal Nacional para tomar providências?

Para que todo o mistério seja esclarecido, é essencial que os investigadores e a lógica comecem a caminhar na mesma direção.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O 'leão' rugiu

Eu tenho o compromisso de tirar o Brasil do buraco apesar da imprensa porca, nojenta, canalha, imoral como é o sistema Globo de rádio e de televisão
Jair Bolsonaro, em reação à citação do seu nome no caso da morte da vereadora Marielle Franco

O conto do vigário dos dois governos Bolsonaro

Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo, caso alguém lá tivesse ficado ofendido com o fato de a corte ter sido comparada a uma hiena, em vídeo publicado pelo presidente na segunda-feira, e apagado duas horas depois.

Ainda assim, a falange revolucionária do bolsonarismo, sua autodenominada “ala antiestablishment,” reafirmou com outras palavras a mensagem do vídeo apagado, que não era apenas de injúria contra parte importante da sociedade civil e política organizada, mas uma convocação militante. O filmete do leão acossado (Bolsonaro) terminava com um chamado para que “conservadores patriotas” defendessem o presidente da oposição, das hienas e também dos isentões: “quem não é por nós, está contra nós".


As peripécias da história do vídeo, similares às de outros episódios de morde e assopra, indica que o bolsonarismo revolucionário está forte e sacudido, ainda que por ora contido no bunker do Planalto ou em catacumbas digitais. Continua, assim, o conto dos dois governos.

Um governo, de reformas econômicas, é motivo de conversa das elites e da maior parte da opinião pública como se normal fosse, goste-se ou não de seu programa. Outro, prega a “quebra do sistema”, uma revolução moral, o esmagamento da esquerda e da participação social no governo, faz ameaças aos Poderes e, na boca do próprio Bolsonaro, elogia a tortura e a ditadura.

O governo “do bem” é em parte importante tocado pela regência provisória do parlamentarismo branco, por lideranças do Congresso, que também limita as iniciativas prática do governo “revolucionário”. A ala anti-establishment, no entanto, age com liberdade nas relações exteriores, nos direitos humanos e ambientais e continua a atuar desimpedida no departamento de imprensa e propaganda, mantendo a exaltação militante, quem sabe o desejo de subversão.

Os adeptos e propagandistas do programa econômico frequentemente observam que os desvairados do governo podem atrapalhar as “reformas”, daí o seu caráter mais daninho. Um velho comunista ou um bolsonarista de primeira hora poderiam dizer, porém, que a “ala anti-establishment” apenas espera a mudança da “correlação de forças”, como diz o clichê.

Gustavo Bebianno, um dia da cúpula bolsonarista, disse nesta-terça ao site “Congresso em Foco” que “tudo indica” que Bolsonaro vai tentar uma “ruptura institucional”. Não é preciso ir tão longe para se preocupar com o bolsonarismo revolucionário, mas notem o tipo de conversa que estamos tendo neste país.

De onde veio o manifesto reescrito do vídeo das hienas? Ainda na noite desta terça-feira, Filipe Martins, ideólogo do bolsonarismo e assessor de assuntos internacionais do presidente, mantinha no ar o seguinte tuíte:

“O establishment não gosta de se ver retratado, mas ele é o que ele é: um punhado de hienas que ataca qualquer um que ameace o esquema de poder que lhe garante benefícios e privilégios às custas do povo brasileiro. Isso só mudará quando o Brasil se tornar uma nação de leões”.

Diante de tal conhecimento, qual perdão para o presidente? Na hipótese mais benigna, ainda muito grave, Bolsonaro não tem controle sobre mensagens difamatórias e destrutivas da harmonia entre os Poderes. Ou, então, Bolsonaro apenas administra os avanços e mordidas dos seus “conservadores patriotas”, fingindo escusas para inglês ver, esperando o momento certo para abrir as porteiras.

Fora de ordem

A velha canção de Caetano Veloso me vem à lembrança por causa do refrão: “Alguma coisa/ Está fora da ordem/ Fora da nova ordem/ Mundial…(Várias vezes)”. Ela fala do pequeno traficante nas ruínas de uma escola em construção, de meninos e meninas ganindo para a lua, de crianças que mordem os canos de pistolas, dos ianomâmis na floresta… Mas não perde o otimismo: “Eu não espero pelo dia/ Em que todos/ Os homens concordem/ Apenas sei de diversas/ Harmonias bonitas (…)”

“Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína”, porém, adverte o poeta. A crise do governo Sebastián Piñera, no Chile, e a vitória eleitoral do peronista Alberto Fernández, na Argentina, embaralharam o jogo político na América do Sul e, como a música, provocam reflexões sobre o que pode acontecer no Brasil. Estamos diante de uma espécie de El Niño político. O fenômeno climático é provocado por um aquecimento anormal das águas de superfície do oceano Pacífico Equatorial, na altura do Peru, que influencia o clima no Brasil e todo o Cone Sul.

Com a aprovação da reforma da Previdência e a expectativa de que um pacote de medidas administrativas e fiscais do governo está para ser anunciado, havia muito otimismo no mercado em relação ao início de um novo ciclo de expansão da economia, moderado, mas consistente. A crise do Chile, cujos indicadores econômicos são melhores do que os nossos, mostrou que a economia moderna e competitiva do vizinho escondia um país sem rede de proteção social e com desigualdades gritantes, sobretudo na distribuição de renda.

A derrota de Maurício Macri era pedra cantada, mas, nem por isso, merece ser desconsiderada. A volta dos peronistas ao poder sinaliza que os argentinos colocaram em segundo plano as denúncias de corrupção contra a ex-presidente Cristina Kirchner, agora vice mandatária do país, mais uma vez. O fracasso de Macri pode ser visto por vários ângulos, mas o fato é que seu governo frustrou as expectativas de crescimento e bem-estar social da população. A nova ressurreição peronista anima os petistas a sonharem com a volta por cima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.


A reação do presidente Jair Bolsonaro às mudanças nos dois países era a previsível. No caso do Chile, viu nos protestos uma conspiração da Venezuela e de Cuba; no da Argentina, a retomada do projeto bolivariano pelo novo presidente eleito, que gritou “Lula livre!” no comício de comemoração da vitória eleitoral. A rigor, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer nos dois países. O melhor mesmo é tentar entender o que se passa por aqui. Na verdade, somos muito diferentes.

Há esgarçamento social também no Brasil, os indicadores de violência mostram sua face mais brutal. Apesar da queda do desemprego e da criação de vagas formais, temos um exército de 28 milhões de pessoas “subutilizadas”, sendo 12,5 milhões no desemprego total, principalmente nas faixas de 18 a 29 anos de idade e acima de 55 anos. Ou o governo Bolsonaro enfrenta esse problema ou os cenários chileno e argentino entrarão no radar dos investidores: ninguém quererá investir em um país em risco de convulsão política e social.

As declarações de Bolsonaro contra a guinada à esquerda nos países vizinhos, e de que as nossas Forças Armadas estarão preparadas para reprimir eventuais protestos da oposição, ao contrário de dar segurança aos investidores, sinalizam mais problemas, ou seja, riscos à nossa democracia. A renúncia de oito ministros e o recuo de Piñera em relação aos protestos, que foram duramente reprimidos, são um alerta de que, nos dias de hoje, essa estratégia não é a melhor opção. Por outro lado, a comparação com a Argentina é boa para a oposição, mas é burra para o governo: estamos a mais de três anos das eleições presidenciais. É nessas horas que o sangue frio faz a diferença.

Voltando à canção do Caetano Veloso, a verdade é que alguma coisa está fora da ordem. Os sinais vêm de toda parte. Citando Alexis de Tocqueville (1805-1859), em análise da Revolução Francesa (“à medida que a situação econômica melhorava, os franceses achavam sua posição cada vez mais insuportável”), o cientista político Marcus André Melo, ontem, na Folha de São Paulo, destacava: “Revoltas e protestos resultam do descompasso entre aspirações e capacidade para materializá-las (“privação relativa”), que aumenta se as expectativas são constantes, mas a capacidade diminui (um choque econômico); se as expectativas elevam-se, mas a capacidade permanece constante (modernização acelerada); ou quando ambos aumentam, mas a capacidade não acompanha as expectativas na mesma proporção (fim de um boom de commodities)”.

Bolsonaro gerou muitas expectativas na população, em algum momento, a conta terá que ser paga. Deveria levar mais em conta esses cenários.

Por trás desse sorriso

Compreender a dimensão da desigualdade na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real

“Coringa”, blockbuster que deve arrecadar US$ 1 bilhão nas bilheterias do mundo todo, tem como um de seus grandes méritos captar o espírito do tempo.

Em uma das muitas cenas incômodas do filme, uma mulher, terapeuta e negra, comunica ao protagonista, um homem branco e usuário do serviço, que os interesses de ambos estão unidos graças a uma aliança das elites, que decidiu cortar as verbas para a continuidade do trabalho.

Esse diálogo, na visão do escritor Micah Uetricht, revela que, apesar das fronteiras de gênero e de raça, os dois têm um inimigo de classe comum.


O homem branco é Arthur Fleck. Com uma risada medonha e incontrolável, ele é um comediante fracassado, que faz bicos como palhaço e apanha nas ruas de uma metrópole nojenta, corrupta e desigual. Nessa micropolítica de humilhação, a opressão se pereniza.

Sua história muda quando, vestido de palhaço, Arthur mata três jovens arrogantes e bem-sucedidos do mercado financeiro que o agrediram no metrô. O crime divide a sociedade, e Arthur, que até então vivia o abandono pela indiferença do outro, psicotiza, vira herói e assume-se como Coringa. Na sequência, uma convulsão social explode em Gotham City.

Visto como maniqueísta por uns e como uma ode à vitimização por outros, “Coringa” também foi exaltado como melhor filme no Festival de Veneza, já desponta como um dos favoritos ao Oscar e transformou-se em tema de debates nas áreas de cultura, psicanálise, sociologia, política, economia e saúde mental.

Por que, afinal, um filme perturbador como “Coringa” desperta tanto interesse? Com uma performance arrebatadora de Joaquin Phoenix, o longa tem várias chaves de leitura. Uma delas é a de que os protestos violentos em apoio a Coringa, na tela, expressam uma insatisfação difusa, nascida do ressentimento e da revolta com a desigualdade.

Não por acaso, máscaras de Coringa estavam nas ruas do Chile, em chamas, em protestos pela redução do fosso social. Dezoito pessoas morreram.

Em 2015, revela levantamento da ONU, o 0,1% mais rico dos chilenos concentrava 19,5% da renda do país, 1% detinha 33% e os 5% mais ricos ficavam com 51,5%. Dados do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile mostram que a renda dos 10% mais ricos da população, em 2017, foi 39,1 vezes mais alta do que a dos 10% mais pobres, em comparação às 30,8 vezes de 2006.

É nesse clima de tensão do filme e das ruas do Chile que Thomas Piketty volta às livrarias. Autor de “O Capital no Século XXI”, que vendeu 2,5 milhões de exemplares, ele lança agora “Capital e Ideologia”. Seu best-seller de 2013 ecoava o movimento Occupy Wall Street, de 2011, que criticava a desigualdade na distribuição de renda da riqueza nos Estados Unidos entre o 1% mais rico e o resto da população.

No novo livro, o economista francês retoma a questão, defendendo que o fundo do problema está na ideologia. “Dar um sentido às desigualdades, e justificar a posição dos vencedores, é uma questão de vital importância. A desigualdade é acima de tudo ideológica”, escreve Piketty no livro, que sairá no Brasil em 2020 pela Intrínseca.

Para o autor, o período que se estende do pós-Segunda Guerra aos anos 80 foram bem-sucedidos no que ele chama de “coalizão igualitária”. Nesse intervalo, os Estados Unidos e a Europa adotaram fiscalidade progressiva, com impostos impositivos, sistemas de proteção social avançados e acesso à educação. Mas, a partir do “hipercapitalismo” de Ronald Reagan, vitaminado pela queda da União Soviética, o cenário mudou, diz, e dá o tom hoje.

Na onda de argumentos como os de Piketty surfa também a ascendente pré-candidatura de Elizabeth Warren para a Casa Branca. A senadora democrata cresce entre vários segmentos eleitorais como opção real para ganhar as primárias e tornar-se a adversária de Trump em 2020.

Boa parte de sua retórica remete ao tom social de “Coringa” e é construída com base nas ideias de dois conselheiros, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, autores do também recém-lançado livro “The Triumph of Justice”. Ambos atacam a desigualdade e criaram a proposta de um imposto de 2% sobre a riqueza de quem ganha mais de US$ 50 milhões e 1% adicional para as fortunas acima de US$ 1 bilhão. Esse tópico tornou-se central na campanha presidencial da democrata.

Para os dois, franceses e amigos de Piketty, a questão tributária é o debate mais importante nas sociedades democráticas, já que ela define toda as outras ações.

O nó górdio da proposta de Saez e Zucman é que ela poderia provocar o efeito Gérard Depardieu. Em 2012, cansado da alta tributação em seu país, o astro francês mudou seu domicílio fiscal para a Rússia. “Para dar certo, esse imposto sobre riqueza teria de ser global, evitando o deslocamento para países com menos tributos, o que é muito difícil”, diz o economista Paulo Tafner.

O melhor seria a tributação sobre a circulação de renda, propõe ele. “É mais razoável o imposto sobre os ganhos de capital oriundos da operação financeira.” Um ponto para quem é contrário a esse imposto, porém, é que, quando se perde dinheiro em capital mobiliário, a pessoa também é tributada.

Tafner reconhece ser preciso haver mais justiça tributária, melhorando o sistema, incluindo taxação sobre ganhos superlativos e novas alíquotas de Imposto de Renda. “Mas não acho que tributar o estoque de riqueza causará impacto na redução de desigualdade.”

O economista alerta para dois fenômenos que ocorrem ao mesmo tempo: a desigualdade aumenta, mas há uma tremenda redução na pobreza. Pesquisador da Fipe-USP, Tafner avalia que o ponto fulcral para o problema é melhorar o acesso à educação e garantir a igualdade de oportunidades, favorecendo também a mobilidade social.

Assim como no Brasil, a desigualdade no Chile continua alta e há no ar uma sensação difusa de injustiça social e frustração, escreveu o economista Arminio Fraga em artigo na “Folha de S.Paulo” anteontem.

“O caso reforça a tese de que crescimento e equidade precisam caminhar juntos, sob pena de inviabilizar politicamente qualquer estratégia de desenvolvimento”, continua ele.

Como se vê, a desigualdade mobiliza multidões às ruas, aos cinemas e às livrarias, tornou-se protagonista de debates econômicos e seu combate pode ser o mote para eleger o político mais importante do mundo. Compreender sua dimensão na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real.

Pensamento do Dia


Rei dos animais

Quando se julgavam esgotados os epítetos, afrontas e apodos dirigidos a Jair Bolsonaro —nunca um presidente da República se prestou tanto a ser desqualificado—, eis que ele próprio acrescentou à sua galeria o título que lhe faltava. O vídeo produzido por sua equipe e protagonizado por um leão identificado com o seu nome, acossado por hienas marcadas com os logotipos de seus supostos inimigos, não deixa dúvida. Ele é o rei dos animais.

Essa repentina majestade, no entanto, não o livrará de continuar a ser tratado com casca e tudo, inclusive pela turma com quem andava antes de chegar ao Planalto. Outro dia, seu próprio colega de partido, um certo Delegado Waldir, chamou-o de “vagabundo” e “essa porra” —quase fazendo o colunista sair em defesa da porra, injustamente rebaixada a Bolsonaro.


Turma aquela que, de tão íntima, parece na iminência de lhe custar caro. Fabrício Queiroz, seu ex-boy, ex-motorista, ex-oficial de gabinete, ex-coordenador de contratações escusas e ex-amigo, ressuscitou em áudio esta semana, dando dicas a “Jair” sobre como melhor conduzir o poder e se queixando de que, alvo de um processo perigoso, está sendo abandonado pelos cúmplices, digo colegas. O vocabulário de Queiroz não é dos mais ricos. Consta de dez ou doze palavras, metade das quais, palavrões. Mas é injusto tirar as crianças da sala quando se sabe que ele vai falar na TV. Todo o governo Bolsonaro justifica que se tirem as crianças da sala.

Ao escalar o time de hienas que hostilizam o leão, Bolsonaro arrolou uma nova instituição ao seu rol de inimigos imaginários: o STF. O fato de o vídeo ter sido “apagado” e, como sempre, Bolsonaro ter se “desculpado” —desta vez, 24 horas depois—, não impede o vídeo de continuar no ar, atingindo milhões de pessoas. E, em todas as exibições, lá está o insulto: o STF é uma hiena.

Resta ver se o STF fará jus à descrição.
Ruy Castro

Dá-lhe, Queiroz

A dedicação dos Bolsonaro às redes sociais é repugnante. Sua estupidez nem surpreende mais. Nessa segunda, enquanto cumpria agenda internacional, o presidente perdeu tempo precioso para se colocar na fantasia de um leão ameaçado por "comunistas". Bolsonaro os vê escondidos pelos cantos, atrás das portas dos palácios.

O vídeo grosseiro postado pelo capitão põe Supremo, OAB, CUT, imprensa, PSL, ONU, MBL, Greenpeace, no mesmo balaio. Representados por hienas, provocam um leão corajoso, Bolsonaro, claro, socorrido por outro leão, o “conservador patriota”. O tuíte foi apagado no fim do dia.


Com suas postagens, Bolsonaro e filhos empenham-se em fazer marola, mascarar fatos, camuflar, ofender. Nesses dias em que tenta se abichar pela Ásia e Oriente, Bolsonaro quis abafar a voz de Fabricio Queiroz, ex-assessor do seu filho Flavio na Assembléia Legislativa do Rio.

Não conseguiu. Hienas e leões foram ofensivas, Queiroz foi além. Em gravações reveladas pela Folha de S. Paulo, aparece até o capitão, depois de sua eleição, negociando a demissão de uma funcionária do gabinete do filho Carlos.


Nas gravações, o ex-assessor de Flavio e amigo pessoal do presidente xinga promotores do Rio (que o estão investigando), diz que a investigação até demorou, sugere que ainda atua nas rachadinhas, e diz que Bolsonaro está perdido em seu governo.

De onde vieram essas, poderão vir outras gravações. A família está de orelha em pé. Nada que impeça Bolsonaro de fazer ou falar uma bobagem atrás da outra. Anunciou que não cumprimentaria Alberto Fernandez, presidente eleito da Argentina, e foi ainda mais grosseiro com os eleitores do país vizinho. “Lamento, escolheram mal”.

Bolsonaro não tem vergonha de mostrar sua falta de educação. Somada à mania de perseguição, usa as redes sociais como se não tivesse qualquer compromisso na vida, menos ainda com o Brasil. Certamente, falta serviço para esse cidadão. Mente vazia é oficina do diabo.
Mirian Guaraciaba

Sobre realezas e togas

O Japão tem um novo imperador. O mundo globalizado e digitalizado continua realizando arcaicos “ritos de passagem”. Naruhito, o novo imperador, foi investido dentro da ritualística antropológica na qual o sagrado é removido do corriqueiro na esquecida fórmula de Durkheim.

Que contraste com as nossas malsinadas tradições políticas sul-americanas. Afinal, o que é um “golpe de Estado” senão uma sacanagem — o retorno violento de uma república à ordem aristocrática feita por uma corporação, partido e/ou família?

No Japão, o poder tem um lado sacrossanto avesso à malandragem política como um meio de boa vida. Tal simbolismo, certamente, inibe a proliferação do chamado “baixo clero”; esse resultado objetivo de uma tosca confusão quando se pensa que democracia é quantidade, e não qualidade, a qual depende de mérito, ética e impessoalidade.

No Japão, há uma aristocracia fixa e um regime eleitoral móvel. Mas não foram apagados os elementos tradicionais de controle do cargo público na figura do suicídio de honra — o seppuku (“cortar o ventre” em tradução literal) — quando uma figura pública malandramente abusa do seu cargo, que é "do público", e não "um cargo público" tal é concebido no Brasil.

Houvesse seppuku entre nós, perderíamos a conta dos suicidas, mas, como o Brasil é governado "também" por uma ética de malandragem, os sacanas acumulam prestígio como “sabidos”, apoiados na jurisprudência de Pedro Malasartes. Um legalismo desenhado para inocentá-los.

Estive no Japão em 1981. Em Tóquio e Toyama, tomei parte de discussões sobre teatro e ritual. O professor Victor Witter Turner, um escocês radicado na Universidade de Chicago com quem tive uma grata afinidade intelectual, levou-me ao Oriente. Suas teorias conduziram-me também ao estudo do carnaval brasileiro, que investiguei como um “rito de passagem coletivo”, tentando tirá-lo do sonambulismo da brincadeira festiva inocente, para vê-lo como como um cerimonial com uma mensagem igualitária e paradoxal na qual a malandragem, a fantasia, a ostentação, a máscara, a inversão dos sexos e classes sociais e a música de duplo sentido relativizavam o comportamento reacionário, bem como a profunda e inconsciente hierarquia que governa a nossa vida diária.

Victor Turner renovou os estudos simbólicos. Tinha um coração tão grande que, não cabendo neste mundo, explodiu em Charlottesville, Virgínia, Estados Unidos, no dia 18 de dezembro de 1983. Por uma coincidência recorrente da minha vida, recebi a notícia depois assistir a um “Rei Lear”, de Sérgio Britto, um de seus dramas prediletos. Com sua morte, foi-se um renovador dos “teoremas de Arnold Van Gennep”, que, como resume Meyer Fortes, estabelecem: (a) os estágios críticos do ciclo de vida que começam no nascimento e seguem para a puberdade, o casamento e, finalmente, para a morte, são marcados por rituais de reconhecimento; (b) a entrada e saída desses estágios são sinalizadas em todas as sociedades, sejam “primitivas” ou “avançadas”; (c) esses ritos têm sempre três fases: separação, transição ou margem, e incorporação.

Os togados do Supremo Tribunal Federal presididos por Dias Toffoli, com sua nobre barba de vampiro e sua certeza de que não existe conflito de interesse, estão, mais uma vez, considerando atalhar a prisão em segunda instância. Nas aristocracias, mais do que donos do poder, os nobres eram donos de tudo! A óbvia insegurança do STF diante da prisão em segunda instância mostra a tara aristocrática da matriz cultural do Brasil e, com ela, o nosso mais profundo horror à igualdade. Brancos nobilitados por nomeação ou eleição podem ser criminosos, mas (tendo bons advogados) estão isentos de condenação, exceto até o Dia do Juízo Final... Aqui, o rito legal é uma racionalização de cunho político-ideológico para adiar e inocentar anulando montanhas de fatos. Não sei, confesso, como conseguimos abolir a escravidão!

Também não tenho dúvida de que esse ordálio do Supremo é mais um rito de passagem a confirmar que o crime efetivamente compensa para os que estão drasticamente separados de nós outros, os cidadãos-plebeus. Pensando bem, há mais pompa e circunstância na realeza populista brasileira do que na assumida nobreza do Japão.

Consolo-me com Montaigne quando dizia que “no mais alto trono do mundo o homem senta-se com o traseiro”.
Roberto DaMatta

Gente fora do mapa


A hipocrisia como política externa

A coerência de um líder é, provavelmente, uma de suas maiores virtudes para conquistar credibilidade internacional e respeito. Questionar uma ideologia, sempre que dentro da lei, é legítimo. Preferir um certo caminho econômico, desde que não retire direito fundamentais de seus cidadão, é sempre uma opção.

O que não é uma opção é a hipocrisia. Desde que assumiu o Governo, Jair Bolsonaro colocou Nicolas Maduro e Havana como seus maiores inimigos no hemisfério. Para questionar e tirar qualquer tipo de legitimidade do Governo de Caracas, ele e seu chanceler, Ernesto Araújo, fizeram questão de denunciar o caráter autoritário do regime venezuelano.

Cuba é também uma obsessão do atual Coverno. Com pouca relevância hoje no mundo, a ilha caribenha mereceu espaço nobre no discurso do presidente na Assembleia Geral da ONU. Poucos dias depois, de próprio punho, Araújo mandou instruções a seus diplomatas para que usassem uma reunião das Nações Unidas para atacar Havana. Uma embaixadora chegou a alertar que aquele ataque era desnecessário. Mas ordens são ordens.

Brasília está errada em denunciar as violações em Cuba e Venezuela? Não necessariamente. A própria ONU, desprezada por Bolsonaro, acusa o governo de Maduro de ter montado uma verdadeira máquina de repressão. Antes mesmo da intensificação da crise, a cúpula das Nações Unidas já alertava para o fato de que a democracia estava ameaçada em Caracas.

Mas o problema é quando se opta por chamar Maduro de ditador e os cubanos de ameaça, enquanto fecha-se os olhos para afirmar, com orgulho, que temos “afinidades” com um príncipe saudita acusado das piores atrocidades.


Ao desembarcar num dos regimes mais repressores do mundo, a Arábia Saudita, o chanceler publicou comentários nas redes sociais contra o novo governo argentino. Um dos argumentos de seu ataque era de que Alberto Fernandez estaria apoiando ditaduras.

Riad e sua opressão contra a liberdade de imprensa pareciam não constranger os membros do Governo brasileiro. Tampouco parecia ser um problema o papel secundário que se dá à mulher. Ápice da falta de coerência foi ainda o comentário do presidente de que as mulheres desejariam passar uma tarde como o príncipe saudita, como ele fez.

Em junho, estive com Hatice Cengiz, a noiva de Jamal Khashoggi, jornalista saudita morto dentro de um consulado saudita. Ela apelava para que Bolsonaro cobrasse o príncipe Mohamed Bin Salmam pela morte do crítico ao regime. Os elogios do brasileiro ao herdeiro do trono soaram com um solene ato de chancela e um recado: esse assunto não nos incomoda.

Tudo tinha um preço. Ao final do encontro, o Governo anunciou investimentos de 10 bilhões de dólares por parte dos sauditas no Brasil. O silêncio cúmplice sobre mortes, abusos e golpes sobre a dignidade compensavam. Se a oposição simplesmente não tem o direito de existir, talvez essa conversa fique para uma outra ocasião.

Essa não foi a única vez em que o Governo Bolsonaro traçou uma linha para diferenciar entre ditaduras. Há poucas semanas, num comunicado, Brasília criticou o fato de o governo Maduro ter sido eleito para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas mandou parabenizar regimes como o da Mauritânia, Sudão e outros, também eleitos.

Agora, a turnê de Bolsonaro pelo Oriente Médio reforça necessidade de esclarecimentos urgentes. Para além de suas afinidades com um príncipe acusado de repressão, Bolsonaro precisa explicar o que entende exatamente por “democracia” ou “ditadura”.

Sem uma explicação, temos duas hipóteses.

Na melhor delas, sabemos que somos governados por hipócritas. Um aliado de Donald Trump que seja uma ditadura é um amigo. Uma ditadura que seja adversária da Casa Branca é um governo ilegítimo e que merece nosso desprezo. Numa política externa dogmática, uma ditadura de esquerda é uma ditadura de esquerda. Já uma ditadura de direita é um aliado e um parceiro comercial.

Na pior das hipóteses, porém, o temor é de que tenhamos um chefe-de-estado que considere que, em algumas situações, abolir o estado de direito, os direitos humanos e a democracia sejam atos legítimos.

Numa política externa que supostamente defende valores democráticos e de liberdades individuais, o comportamento do Governo na Arábia Saudita é a comprovação de que a diplomacia nacional é guiada pela hipocrisia típica das ideologias. Hipocrisia essa, porém, incapaz de abafar o insuportável grito das vítimas e de uma dor que não conhece ideologia.
Jamil Chade