quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Protestos nas ruas não significam mais democracia

Multidões tomam as ruas de Hong Kong, Beirute, Barcelona, Santiago ou Quito, sob múltiplos pretextos: a lei de extradição, a prisão de separatistas, o aumento da gasolina ou do metrô, a cobrança pelo WhatsApp. O movimento cresce, unido na rejeição a políticos incapazes de sintonizar os anseios populares. A manifestação descamba para o quebra-quebra. A reação vem violenta. Mau presságio para quem se habituou a associar protestos de rua à democracia. “Milhões de pessoas nas ruas, como em 1989, não significam imediatamente um futuro feliz”, escreve o documentarista britânico Peter Pomerantsev em "This is not propaganda: adventures in the war against reality" ("Isto não é propaganda: aventuras na guerra contra a realidade", em tradução direta). “A estátua de um ditador sendo derrubada não está mais instantaneamente ligada a uma história de maior liberdade.”
“Os protestos da era digital têm um fundo, quando não autoritário, ilusório como os memes”
Nascido na Ucrânia, criado em Londres e Munique, autor do melhor livro para entender a Rússia contemporânea, Pomerantsev decifra a dinâmica que liga redes sociais, desinformação e protestos. Mistura história pessoal a depoimentos e estudos. Viaja para as Filipinas, a Sérvia, o México, os Estados Unidos ou a Ucrânia para decifrar um paradoxo: mais informação deveria significar “um debate mais informado”, mas estamos longe disso. Suas conclusões:

1. Nada é espontâneo — Toda atividade nas redes pode ser manipulada para fins políticos: ataques, comentários, curtidas contra políticos ou jornalistas. “Cada vez que você posta, reposta ou retuíta, torna-se uma pequena máquina de propaganda.”

2. Barulho substitui a censura — Rebanhos digitais e milícias virtuais são usados para sufocar vozes dissidentes. “Os poderosos se adaptaram. Um regime sempre pode dizer que nada tem a ver com isso, são apenas cidadãos exercendo a liberdade de expressão.”

3. Fatos não têm valor — Nem políticos nem ninguém dá a mínima para a verdade. Cada um vive na própria realidade. “Se os fatos não provam que você terá sucesso, para que servem? Por que precisa deles, se dizem que seus filhos serão mais pobres?”

4. Tudo vira conspiração — Se a vida está uma confusão, é culpa dos outros: políticos ladrões, a direita, a esquerda ou qualquer conspiração. Você é pequeno demais. “Se vive num mundo em que forças sombrias controlam tudo, que chance tem?” Melhor confiar num líder com autoridade e força.

5. Identidade é disfarce — O argumento que mais convenceu britânicos a votar pelo divórcio da União Europeia foi o direito dos animais — as touradas cruéis na Espanha. De modo similar, toda comunidade, toda causa particular — do ambientalismo ao casamento gay, do vegetarianismo aos games, das armas à jardinagem — pode ser manipulada para aderir a slogans vagos, como o “Take back control”, do Brexit, ou o “Make America great again”, de Donald Trump.

6. Populismo é estratégia — Para unir interesses diversos em torno do líder, o truque é incluir na categoria “povo” gente com quase nada em comum. “Grupos diferentes nem precisam se conhecer. Para solidificar a identidade improvisada, só é necessário um inimigo, o não povo.” Quanto mais abstrato, mais eficaz. Daí termos genéricos, como “establishment”, “elites” ou “mídia”.

7. Esquerda inspira direita — O desprezo pela objetividade e pela racionalidade da contracultura dos anos 1960 é a raiz da lógica que move a nova direita. Pomerantsev encontra um líder neofascista cujo modelo é um ativista de esquerda sérvio.

8. Rússia é pioneira; China é líder — Campanhas políticas no Ocidente seguem os métodos da KGB e de Vladimir Putin. “A Rússia que conheci está aí: o relativismo radical, o futuro dissolvendo em nostalgia, conspiração substituindo ideologia, fatos igualados a lorotas, o sentido de que tudo está em movimento constante, instável, líquido.” O uso mais eficaz da tecnologia para influir no comportamento está na China.

9. Informação é soberania — Ela deve confundir, subverter, enfraquecer o inimigo. Diz um manual do Pentágono: “A guerra do século XXI é guiada por uma dimensão nova e vital: aquele cuja narrativa vence importa mais que aquele cujo Exército vence”.

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