domingo, 30 de junho de 2019

Brasil da real


Seis meses decepcionantes

O balanço dos seis primeiros meses de governo de Jair Bolsonaro não pode ser considerado positivo, pelo menos na visão deste repórter. A despeito da baixa taxa de juros e da inflação sob controle, heranças do governo de Michel Temer, é bom lembrar, a economia está empacada e o desemprego de 13 milhões de pessoas na idade economicamente ativa é desesperador. Quanto ao PIB, o próprio Banco Central reduziu a previsão de crescimento de 2% em 2019 para 0,8%. E ninguém descarta a possibilidade de nova redução nos próximos meses.


Quanto à reforma da Previdência, único projeto com potencial para dar uma sacolejada boa na economia e reconquistar a confiança de investidores, este praticamente saiu das mãos do governo, passando ao controle do Congresso. Mesmo com toda a dificuldade que propostas desse teor enfrentam, em qualquer lugar do mundo, é possível que o projeto seja aprovado mais por méritos do Congresso do que por esforço do Palácio do Planalto. O governo não se preocupou em criar uma equipe de articuladores competente, mas, sim, uma fórmula incompreensível de atuação, até há pouco tempo dividida entre o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o então secretário de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, demitido no calor das discussões da reforma da Previdência. Não porque tenha falhado na articulação política, mas porque Santos Cruz não dava bola para a agenda conservadora do presidente e ainda era agredido com expressões de baixo calão pelo escritor Olavo de Carvalho, tido como guru do presidente.

Quanto ao pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro, também não se vê da parte do governo um empenho grande para que seja aprovado logo. E olha que o combate ao crime foi uma das bandeiras de campanha do então candidato do PSL.

O ideal para qualquer um que escreva sobre política, e que vivenciou erros e acertos de todos os governos do período da redemocratização para cá (1985/1988), seria dizer que agora a coisa vai, que o programa de recuperação econômica é isso e aquilo, que o País caminha para o pleno emprego e que, por isso mesmo, o presidente, no auge de sua popularidade, desistiu de acabar com a reeleição para buscar mais um mandato. O que há é o avesso disso.

Seria também interessante dizer que estão com os dias contados estatais como a Empresa de Planejamento e Logística, criada no governo de Dilma Rousseff para administrar um trem-bala que faria o trajeto entre Rio e Campinas, passando por São Paulo, a tempo de carregar torcedores para a Copa de 2014. Isso, no entanto, não é possível. Passados mais de oito anos da criação da EPL, e sem que um único dormente para o trem de alta velocidade tenha sido assentado, tal empresa continua lá na sua sede, em Brasília, com presidente, diretoria, benefícios sociais, comissão de ética, assessoria de imprensa e milhões para torrar.

Nesses seis meses de governo, o que houve, em excesso, foi muito falatório. “Um festival de besteiras”, na definição de Santos Cruz, que costuma ser cuidadoso quando fala do governo. O general passou quase seis meses lá dentro. Vivenciou grandes e pequenos acontecimentos. Deve saber o que diz.

O certo é que o presidente, que tem falado constantemente em ser candidato à reeleição, continua a agir como se estivesse em campanha. A economia vai mal, não há um projeto de desenvolvimento, por exemplo, para a Amazônia, para o Nordeste, para reduzir a pobreza, para melhorar a educação. Mas Bolsonaro acha que daqui uns dias todos vão querer votar nele.

Para não ficar só nessa lenga-lenga, registre-se que houve o anúncio do fechamento de um acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul. Acordo que começou a ser costurado no governo de Fernando Henrique Cardoso, ainda em 1999.

Montanha de estupidez

Nós passamos as nossas vidas a lutar para conseguir que pessoas ligeiramente mais estúpidas que nós aceitem as verdades que os grandes homens conheceram desde sempre. Já há milhares de anos que eles sabiam que fechar uma pessoa doente num ambiente solitário torna-a ainda pior. Já há milhares de anos que eles sabiam que um homem pobre que é assustado, pelo seu patrão, e pela polícia, é um escravo. Eles sabiam. Nós sabemos. Mas será que a grande massa iluminada dos britânicos o sabem? Não. É o nosso dever, Ella, o teu e o meu, de lhes dizer. Porque os grandes homens são demasiado grandes para serem incomodados. Estão já a descobrir como colonizar Vénus e como irrigar a Lua. Isso é que é o mais importante para o nosso tempo. Tu e eu somos os empurradores da pedra. Todas as nossas vidas, tu e eu, temos que empregar as nossas energias, e todo o nosso talento, a empurrar uma enorme pedra por uma montanha acima. A pedra é a verdade que os grandes homens sabem por instinto, e a montanha é a estupidez da humanidade
Doris Lessing

O governo atirou no que viu, acertou no que não viu

O acordo entre Mercosul e União Europeia cria a maior zona de livre comércio do mundo e tem de ser bastante comemorado. Eu comemoro, agradeço e faço um brinde. Parabéns aos envolvidos – a todos os envolvidos. As negociações não começaram em janeiro, com a posse de Bolsonaro, mas há cerca de vinte anos. Entre idas e vindas, arranques e freadas, PT atrapalhando, enfim foi concluído.

Bolsonaro e sua equipe tiveram o mérito inegável de aparar as arestas, acelerar o processo e arrematar o negócio; o impulso liberal de Paulo Guedes e o peso comercial do Brasil terão sido decisivos, tudo somado aos interesses dos outros integrantes do grupo; Argentina, em especial. Ao vencedor, as batatas. Porém, não deixa de ser irônico, quase surpreendente, o desfecho do imbróglio.

Pouco tempo atrás, bem outra era ideia. Já na corrida eleitoral, Bolsonaro acenava com uma relação obsessiva com os EUA (e Israel), alinhado à visão de que existem dois polos de poder no mundo: EUA-Israel, representantes da civilização judaico-cristã; e o resto, representantes do bicho-papão. O resto consiste num amálgama de comunistas europeus, metacapitalistas, muçulmanos, chineses e longo etc., todos numa indecorosa suruba geopolítica.

De fato, os primeiros movimentos da política externa foram nessa direção. Para sorte do governo – e dos governados – a realidade na prática é outra.


A guerra comercial entre EUA e China deixava Europa e América Latina à deriva. As negociações de mais de duas décadas entre Mercosul e União Europeia estavam prestes a ter final melancólico. Interessava aos dois blocos que o tratado fosse assinado. Pareceu oportuno resgatar algum protagonismo num mundo em que EUA e China dão as cartas do poder, enquanto a Rússia esconde as suas sob a manga da espionagem.

Diante da perspectiva auspiciosa, o governo brasileiro, até então liberal na economia e conservador nos costumes, resolve ir de vez para a zona (de livre comércio) e se assume liberal nos costumes da economia. Deixou de lado as juras de amor e o casamento monogâmico com os EUA, saiu do armário e embarcou no poliamor. Em vez de relações bilaterais EUA-Brasil, relações multilaterais Europa-Brasil-EUA. Sem com isso enfraquecer a união com os americanos. Viramos país-da-vida, qualquer um pega.

Tudo isso que ora é comemorado, no entanto, quase não aconteceu. Não apenas por causa da fidelidade canina aos EUA de Trump, mas porque distinta era a concepção do governo sobre o Mercosul (deveríamos ter saído) e sobre o comércio internacional (deveríamos ter cuidado com os metacapitalistas). Há falas da família presidencial defendendo a saída intempestiva do Mercosul. Há declarações de Paulo Guedes garantindo, em brado retumbante, que o Mercosul não seria prioridade.

Pois agora é.

Os entusiastas latinos do Brexit, as Daianes dos Santos da política tupiniquim, deram o duplo twist carpado ideológico e passaram a defender, para o Brasil, o contrário do que defenderam para a Inglaterra.

“Oh, veja bem, são duas coisas muito diferentes!” – dirão eles. Os conspiracionistas são os maiores entendidos das próprias conspirações, reconheço.

A tese arrumadinha é a seguinte: globalização é uma coisa, globalismo é outra.

Globalização é integração comercial, zona de livre comércio, liberalismo do bom e do melhor.

Globalismo é sujeição política, zona de influência, submissão da soberania nacional aos (sempre suspeitos) interesses internacionais.

Existe um grande Centrão mundial, mais endinheirado e mais diabólico que o nosso Centrãozinho, que pretende fazer não sei o que com o mundo, e para isso tem de sufocar ou neutralizar a política nacional por meio de tratados supranacionais. Representantes não eleitos mandam mais do que representantes eleitos. ONU, Unesco, União Europeia contam mais do que Legislativo, Executivo e Judiciário.

Deixo de lado o debate sobre o que há de real – e, sendo real, o que há de diabólico – na tese do globalismo. A discussão seria longa e tortuosa em demasia, para o momento.

Assumindo, portanto, a premissa de que existe um fenômeno – ou “projeto”, como preferem os denunciadores – dito globalista, resta saber se ele pode funcionar a despeito do outro processo em curso – o da globalização econômica. E defendo que não. São dois movimentos integrados, mutuamente influentes e, nalguns aspectos, sinto dizer, indistinguíveis.

Um ponto que deveria ser óbvio: o globalismo é financiado, sustentado ou colocado em marcha por metacapitalistas globais, não por quitandeiros de bairro. Gente como Soros e os Rockefeller (os irmãos Koch são os metacapitalistas do bem). O metacapitalista tem dinheiro, muito dinheiro, dinheiro que não pode ser contado, dimensionado, rastreado, bloqueado. Esse dinheiro todo não seria possível num comércio puramente nacional. Ele só se viabiliza com a globalização, os grandes acordos, as zonas francas do mundo, a homogeneização regulatória, a especulação financeira. Globalistas se beneficiam – e se financiam – por meio da globalização. A globalização é o caixa-eletrônico do globalismo.

Mas há outra consideração importante a ser feita: ainda que com alguma boa vontade seja possível diferenciar globalização de globalismo, zona de livre comércio de zona de influência, economia livre de burocracia comprometida, o fato é que só mesmo a ingenuidade – ou pior: a má fé deliberada – para explicar a crença numa globalização comercial isenta de qualquer globalismo burocrático.

Ora, a economia, embora tenha sua própria lógica, não se dá no vácuo institucional. Transação econômica nenhuma acontece por meio de escambo. O Brasil, com a entrada no acordo, não mandará uns carroceiros à Europa para vender cana e carne seca, na confiança da palavra de homem, do fio de barba e do aperto de mão. Tratados comerciais implicam amplos tratados políticos, institucionais e burocráticos.

Alguns pontos de contato já apareceram. Questões ambientais terão impacto e não serão marginalizadas. Os cuidados com o meio ambiente não são mais vistos, mundo afora, como desperdício ou ideologia, mas como valor, postulado ético, conditio sine qua non. Macron deu o recado, Merkel idem. O Brasil terá de rapidamente ajustar o discurso – e a prática correspondente – às regras internacionais. Ou faz isso, ou não ganha dinheiro.

Também no que diz respeito às questões sanitárias, ao uso de agrotóxicos, às normas trabalhistas, estejam certos: o país estará sujeito a interferências importantes. Não é improvável que, ao longo do tempo, os problemas migratórios sejam colocados em pauta. Já ouviram falar dos tratados internacionais sobre direitos humanos? Acordos podem ser quebrados; vide o Brexit. Ou aceita, ou pede pra sair.

Isso tudo porque, afinal de contas, economia nunca é só economia, muito menos em negociações de magnitude transcontinental. Considero ótimo que a visão realista-liberal tenha se sobreposto à alucinação conspiratória. Não existe, fora da retórica bruta e oportunista de uns e outros, a opção de ganhar dinheiro de todo mundo sem se submeter a nada e a ninguém.

Que os nacionalistas à direita e à esquerda enfiem a viola preconceituosa e protecionista no saco, e saibam reconhecer o que é bom e dá certo. Um mundo livre, um mercado cada vez mais livre, é o que há de necessário. Reparem: um mundo livre mesmo, também para as gentes que vivem nele. Quer gostem, quer não gostem de admitir os cantadores de vitória, quem assina o contrato em letras maiúsculas da globalização também está assinando as letras miúdas do globalismo. É venda casada.

Bolsonaro conheceu a verdade! Ela o libertará?

Quando confrontado com um problema, Jair Bolsonaro pode não ter a solução. Mas ele tem sempre à mão um versículo multiuso que extraiu do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Às vésperas do aniversário de seis meses do seu governo, celebrado neste domingo, Bolsonaro conheceu a verdade. Descobriu que pode ser conservador sem ser arcaico. Essa verdade tem potencial libertador. Mas para se livrar dos grilhões do arcaísmo, o presidente teria de se manter fiel à racionalidade que levou ao fechamento do histórico acordo entre Mercosul e União Europeia.

O bom senso ensina que dois espetáculos não cabem ao mesmo tempo num só palco. Ou num único governo. Dividida entre um e outro, a plateia não dá atenção a nenhum dos dois. Ou, por outra, acaba privilegiando o mais exótico. Estão aí em cartaz, faz um semestre, duas apresentações. Uma é aquela que o general e ex-ministro Santos Cruz chamou de "Show de besteiras". Outra é a coreografia encenada pelo pedaço da Esplanada que tenta provar que o governo não está sob o domínio da Lei de Murphy, segundo a qual quando algo pode dar errado, dará.

Desde que assumiu o trono, Bolsonaro tenta conciliar duas exigências conflitantes: ser Bolsonaro e exibir o bom senso que a Presidência requer. Ao desembarcar no Japão, para a reunião do G20, o capitão sentia-se cheio de tambores, metais e cornetas. Reagiu a uma cobrança da premiê alemã Angela Merkel sobre meio ambiente como se fosse o próprio Hino Nacional. Murphy o espreitava. O presidente francês Emmanuel Macron ecoou Merkel. Vão procurar a sua turma, bateu o general e ministro palaciano Augusto Heleno. Em vez de acalmar o amigo, Heleno revelou-se uma espécie de Murphy em dose dupla.

Bolsonaro e seu séquito tinham todo o direito —e até o dever— de responder a Merkel e Macron. O problema é que, considerando-se o timbre, pareciam tomar o partido não do Brasil, mas do pedaço mais atrasado do país, feito de desmatadores vorazes, trogloditas rurais e toupeiras climáticas. O interesse do moderno agronegócio brasileiro estava longe, em Bruxelas, na reunião em que se discutiam os termos do acordo entre Mercosul e União Europeia. Ali, sabia-se que a insensatez ambiental levaria à frustração do acordo comercial ambicionado há duas décadas.

Súbito, o Evangelho de João iluminou os caminhos do capitão, apaziguando-lhe a alma. Num par de reuniões bilaterais, Bolsonaro soou conservador sem fazer concessões ao atraso. Falou de uma certa "psicose ambiental" que fez Merkel arregalar os olhinhos. Mas declarou que o Brasil não cogita deixar o Acordo de Paris, dissolvendo as resistências de Macron. As palavras de Bolsonaro desanuviaram a atmosfera na sala de reuniões de Bruxelas. Por um instante, o "show de besteiras" saiu de cartaz. E a sensatez pariu um acordo.

Bolsonaro faria um enorme favor a si mesmo e ao país se aproveitasse o embalo para enganchar nas celebrações do aniversário de seis meses a estreia de um espetáculo novo. Nele, o Planalto deixaria de ser uma trincheira. O presidente trocaria o recrutamento de súditos pela busca de aliados. A ala familiar seria desligada da tomada. O guru de Virgínia perderia sua cota na Esplanada. Ministros cítricos e tóxicos seriam substituídos por gente técnica e limpinha.

O problema é que esse conjunto de modificações depende de uma mudança de chave no cérebro do próprio Bolsonaro. Algo que parece condicionado a um milagre. Não basta conhecer a verdade. É preciso querer se libertar do atraso.

Imagem do Dia

Bhaktapur (Nepal)

Bolsonaro cuida do 'circo' e deixa o 'pão' com os profissionais

Jair Bolsonaro está em campanha. Esquecendo a promessa eleitoral de acabar com a reeleição, o presidente está empenhado em falar a seu eleitorado mais fiel, hoje em torno de 30%, segundo pesquisas, e chegar à disputa de 2022 com essa base. Pode ser esse desejo que explique a assinatura de decretos em série sobre o porte e a posse de armas — sete no total — atropelando o debate na sociedade e no Congresso. Trata-se de um tema caro ao eleitor bolsonarista e uma de suas principais promessas na eleição de 2018.

O presidente sempre mostrou gosto em tratar da chamada agenda de costumes, deixando os temas mais duros aos auxiliares — como o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes. Ao assumir a vontade de seguir no poder, parece confirmar essa tendência. Cuida do “circo” e deixa o “pão”, que anda em falta, aos profissionais.


O projeto Bolsonaro, até aqui, caminha bem. Conseguiu do Congresso, por unanimidade, um crédito de R$ 248,9 bilhões que permitirá fechar as contas do ano sem pedaladas e chegar a 2020 com relativo conforto. A reforma da Previdência ganhou vida própria no Congresso. Não renderá o R$ 1 trilhão pedido por Paulo Guedes, mas será suficiente para abrir um horizonte de decisões de investimento privado a partir do primeiro trimestre do próximo ano. E ainda poderá contar com receitas extras de privatizações e leilões do pré-sal.

Se tudo correr dessa forma, Bolsonaro chega às eleições municipais de 2020, o primeiro passo para 2022, como cabo eleitoral importante. O problema dos planos, porém, são os imprevistos — e os planos dos outros. Correndo na mesma raia, Bolsonaro já tem como principal adversário o governador paulista João Doria. E não deve descartar a concorrência futura do ex-juiz Sérgio Moro, mesmo que hoje ele esteja acuado pelos diálogos vazados pelo site “The Intercept” e dependa do presidente para ter algum espaço de poder. Já a oposição ainda não tem plano. Apega-se ao grito de guerra “Lula livre”, sem um discurso para substituir a narrativa antipetista.

E há o cenário externo, que sempre pode atrapalhar. O risco de uma crise do petróleo devido aos conflitos entre Estados Unidos e Irã tem potencial para causar um terremoto na economia mundial. Sem falar nos efeitos econômicos das rusgas entre Donald Trump e a China. Faltam três anos e meio para as eleições presidenciais, e em política nada é linear. Mas Bolsonaro, até aqui, parece contar com um ingrediente fundamental na política — sorte.

Basta ter olhos

Há pessoas que estimulam e até justificam a antipatia que temos por elas
Raul Drewnick

Ao invés de focar na recuperação da economia, Bolsonaro só pensa em reeleição

Com seis meses, o governo ainda acha prematuro ser avaliado, mas o presidente Jair Bolsonaro não considera cedo para falar em reeleição. Já tocou no assunto várias vezes. Agora, arranjou uma justificativa. Como sabe que o Congresso não fará a reforma política, porque nenhum grupo social entrega poder voluntariamente, Bolsonaro então passou a dizer que só abrirá mão da reeleição se o Brasil passar por uma séria reforma política.

“Agora, se não tiver uma boa reforma política e o povo quiser, estamos aí para continuar mais quatro anos”, confirma.
Em tradução simultânea, Bolsonaro já está em campanha. É impressionante, e a impressão que Bolsonaro sugere é de deslumbramento com o cargo.

Se tivesse lido “Cândido ou O Otimismo”, obra-prima de Voltaire, o presidente conheceria um dos personagens principais, o professor Plangloss, conselheiro de Cândido, que era o otimismo em pessoa, arranjava sempre uma maneira de transformar um fato negativo em uma hipótese positiva, para concluir que estava “no melhor dos mundos”.

Infelizmente, o mundo não é assim. Na definição genial do escritor Ariano Suassuna: “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato, Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.

Na correria da vida moderna, o tempo voa e não há margem para esperanças delirantes, diante de uma realidade implacável, que bate à porta de cada um.

Bolsonaro é a alegria em pessoa na Presidência, parece em eterna campanha política, querendo resolver problemas transcendentais, como a tomada elétrica de três bicos os radares nas rodovias e a duração da carteira de habilitação. Mas fazem parte do Plano A, que mira a reeleição.

Bolsonaro se comporta como se sua função fosse apenas nomear os ministros, e cada um que se vire como pode, para resolver os problemas do respectivo setor, enquanto o presidente viaja pelo Brasil e pelo mundo, em lua-de-mel com a política, sem perceber que lhe falta o Plano B, para tirar o país da recessão.

Até agora, nada se fez a esse respeito. Basta lembrar essa confissão do ministro Paulo Guedes, em audiência recente na Câmara. Segundo o jornalista Alberto Bombig, do Estadão, ao rebater comentários de que a economia não responde, disse o ministro: “Responder a quê? O que nós fizemos para ela crescer?”

Realmente, até agora, há apenas a tentativa de reforma da Previdência, sem nenhuma outra providência para reativar a economia.

No primeiro governo Lula, não existia programa econômico. Empossados no BNDES como presidente e vice, Carlos Lessa e Darc Costa (que passara 13 anos na Escola Superior de Guerra estudando o país), criaram seu próprio Plano B, incentivaram setores estratégicos da economia e popularizaram o Cartão BNDES, com juros baixíssimos, para financiar a expansão de micros, pequenas e médias empresas.

Usando o BNDESPar, Lessa e Darc evitaram a desnacionalização da Vale e tomaram muitas outras medidas importantes. O país deslanchou, e quando Lula entregou o poder, oito anos depois, o PIB tinha subido 4,75% 2010.

Agora, na gestão Bolsonaro, chega-se a seis meses de governo sem qualquer medida na área econômica. Guedes é esforçado, mas nada entende de macroeconomia, não sabe o que fazer. Seu prazo de validade está quase vencido. O prazo de Bolsonaro também está correndo rápido, mas ele não percebe.

Euclides da Cunha em tempos de Lula e Bolsonaro

Homenageado deste ano na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Euclides da Cunha é um personagem singular no panteão de nossa literatura. Seu romance "Os sertões: campanha de Canudos" costuma ser citado como conquista maior na cultura nacional. O relato de Euclides serviu de inspiração tanto a escritores (do peruano Mario Vargas Llosa ao húngaro Sándor Márai) quanto a cineastas (de Glauber Rocha a Sérgio Rezende). Publicado em 1902, cinco anos depois dos eventos, quando a destruição de Canudos pelas tropas da recém-proclamada República não despertava mais tanto interesse, "Os sertões"
foi um best-seller instantâneo e inesperado. Rendeu honras a Euclides até sua morte trágica, aos 43 anos, vítima de um assassinato passional. Quem lê o livro, no entanto, fica intrigado.

Primeiro, pelo estilo empolado e rebuscado. Difícil acreditar, pelo tom professoral, pelo vocabulário ainda mais árido que as paisagens sertanejas, que Euclides tenha sido contemporâneo de mestres da ironia, como Machado de Assis ou Lima Barreto (está numa geração intermediária). Segundo, pela falta de rigor nas descrições geográficas e pelas teorias científicas fajutas usadas para relacionar o clima da região ao espírito dos rebeldes de Canudos (apesar de Euclides ter sido engenheiro, professor de lógica e de, depois de famoso, ter chefiado missões de reconhecimento na Amazônia). Terceiro, pelo racismo flagrante e abjeto (ainda que Euclides fosse abolicionista e republicano convicto, cativado pelos ideais da Revolução Francesa e pelo positivismo de sua formação militar). Qual o motivo da sobrevivência de Euclides da Cunha como autor essencial nos dias de hoje?

Uma resposta foi ensaiada pelo crítico literário Roberto Ventura, um dos maiores especialistas na obra euclidiana, no opúsculo "A terra, o homem, a luta", que acaba de ser relançado. O título de Ventura reproduz a divisão que Euclides tomou emprestada do historiador francês Hippolyte Taine para organizar, de acordo com os cânones do naturalismo, as três partes de sua narrativa. 

"Os sertões" funcionou, segundo Ventura, como uma espécie de mea-culpa de Euclides pela cobertura ingênua da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, repleta de propaganda republicana, sem nem mencionar o massacre dos rebeldes liderados por Antônio Conselheiro. Logo na nota preliminar, Euclides encerra a questão sobre a campanha: “Foi, na significação integral da palavra, um crime”. “Em 'Os sertões', acusou o Exército, a Igreja e o governo pela destruição da comunidade e fez a autocrítica do patriotismo exaltado de suas reportagens”, escreveu Ventura (também morto trágica e prematuramente, aos 45 anos, num acidente rodoviário em 2002, quando preparava uma biografia de Euclides, cujos trechos estão reunidos no volume póstumo "Euclides da Cunha: esboço biográfico").

A atualidade de Euclides não se restringe à qualidade da narrativa jornalística, essencial para preservar a memória dos fatos. Mais que isso, está na persistência, quando não da realidade, certamente das mentalidades que conduziram ao embate no sertão baiano, presentes até hoje na sociedade brasileira.

De um lado, o fanatismo religioso, o sebastianismo, a visão messiânica de um líder com forte apelo popular, a quem se atribuem poderes sobrenaturais, derrotado e visto como injustiçado. Do outro, a força de uma milícia cruel e sanguinária, que se julga garantida pela razão e pela lei, munida, nas palavras de Euclides, do “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”. Não é absurdo enxergar nas figuras que hoje polarizam o debate político brasileiro — o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro — decalques das ideias daquela época. Mais de 120 anos depois, o valor da obra de Euclides não está nas explicações geográficas, climáticas, raciais ou científicas, todas elas ultrapassadas. Está na explicação para a tragédia do Brasil.
Helio Gurovitz

sábado, 29 de junho de 2019

Brasil das malas


Radiografia do fanático 'que só sabe contar até um'

A questão do extremismo e da identidade do fanático, seja no âmbito político, cultural ou psicológico, agita todo o mundo e é de forte atualidade para a sociedade brasileira que se debate entre extremos difíceis de conciliar. Entre as definições que existem do fanático, nenhuma me parece mais aguda do que a do recentemente falecido escritor israelense Amós Oz, considerado um dos maiores e mais livres pensadores do nosso tempo. Em sua obra Mais de Uma Luz(Companhia das Letras, 2017), define o fanático como “aquele que só sabe contar até um”. Sua realidade termina nele. Sua matemática se esgotada aí. Não cabem nem dois, porque, segundo ele, “uma das realidades contundentes que identificam um fanático é sua ardente aspiração de mudar o outro para que seja como ele”.


O fanático abraça toda a realidade para que não possa haver ninguém diferente dele. Não existem em suas contas a soma nem a multiplicação. Segundo o escritor, “ele não quer cortinas no mundo, nem sombra de vida privada ou diferente da sua”. O verdadeiro fanático “se acredita enviado por Deus para purificar o mundo e torná-lo todo igual, sem diferenças”.

Nesta linha de raciocínio, para o fanático, “a justiça é mais importante do que a vida”, e o “ódio cego faz que quem se encontre do outro lado da barricada seja idêntico a ele”. Uma vez mais, o fanático só consegue contar até um. O dois não existe para ele, ou deve ser assimilado ou destruído.

Essa forte presença do fanatismo é hoje, segundo o escritor, mais perigosa depois do nazismo e do stalinismo. Naquela época, por algum tempo, os nazistas, por exemplo, se envergonhavam de sua condição e até chegavam a escondê-la. Hoje é ainda mais grave, já que a vacina parcial que tínhamos recebido está acabando e os fanáticos agem com o rosto descoberto, quase com orgulho. “Ódio, fanatismo, animosidade ao outro, ao diferente, e brutalidade política são proclamados à luz do sol”, segundo o escritor.

E assim, nesse clima do ressurgimento do fanático, “cada vez mais pessoas escolhem o ‘furioso’, o ‘chocante’ o ‘sinistro’, o ‘enlouquecedor’ e até ‘morrer e matar’”, anota o escritor israelense que morreu sem receber o Nobel de Literatura, certamente por suas posições abertas em favor do diálogo entre Israel e a Palestina, sua grande obsessão democrática e humanista. E acrescenta que hoje talvez não seja inocente nem casual “a infantilização das multidões em todo o mundo”, com o objetivo de alimentá-las com o maná da fascinação do fanatismo.

“Todos os tipos de fanáticos tendem a viver em um mundo em que tudo é preto ou branco”, escreve Amós, que confirma sua definição de alguém “que só sabe contar até um”. Não existe para ele a riqueza da soma das diferenças. O verdadeiro fanático é alheio e insensível à ideia de que possa haver algo ou alguém diferente dele. Assim, acaba privado de tudo o que enriquece e enobrece o mundo como é a diversidade. O fanático nunca entenderá valores como a amizade com alguém que possa levantar uma bandeira diferente da sua, como o diálogo, a política de gênero, a riqueza de compartilhar ideias e pensamentos que não sejam os seus.

O fanático de hoje é incapaz de desfrutar da luminosidade produzida pela mistura das cores. Para isso, teria de aprender a somar e multiplicar a luz em um grande caleidoscópio que reflita a riqueza da vida e de seus contrastes. Infelizmente, “só sabe contar até um”. Todo o resto não existe para ele, ou só lhe interessa domesticado ou morto.

Bolsonaro 'beija a cruz' por acordo Mercosul-UE

Jair Bolsonaro emitiu na cidade japonesa de Osaka a senha que eliminou o derradeiro entrave para a assinatura, em Bruxelas, na Bélgica, da histórica aliança de livre comércio entre Mercosul e União Européia. Num encontro com o presidente francês Emmanuel Macron, o capitão beijou a cruz do Acordo de Paris, comprometendo-se com o respeito às metas de redução de gases poluentes. Macron voara para o Japão disposto a travar o desfecho da negociação com o Mercosul caso Bolsonaro não afastasse de vez o risco de retirar o Brasil do acordo climático de Paris.

O gesto de Bolsonaro não foi banal. Marcou uma espécie de rendição do presidente brasileiro ao pragmatismo diplomático. Ele hesitava em reconhecer integralmente o Acordo de Paris desde a campanha presidencial de 2018. Na véspera, irritado com cobranças ambientais feitas pela premiê da Alemanha, Angela Merkel, Bolsonaro dissera que os alemães "têm a aprender muito conosco" em matéria de meio ambiente. Avisara que não desembarcara na reunião do G20 para "ser advertido por outros países". O ministro palaciano Augusto Heleno soara ainda mais corrosivo, recomendando a Macron e Merkel o seguinte: "Vão procurar a sua turma!"

Em Bruxelas, a delegação brasileira, comandada pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Tereza Cristina (Agricultura), procurava acertar-se com a turma europeia. Numa troca de telefonemas, Bolsonaro foi alertado para o fato de que os comentários feitos em Osaka ecoavam na sala de reuniões de Bruxelas. Não restava ao capitão senão abraçar as metas de Paris, pois o respeito ao acordo climático está expressamente previsto no tratado comercial do Mercosul com a União Europeia.

Consumado o desfecho positivo, Bolsonaro foi às redes sociais para faturar a novidade como uma conquista pessoal. Deu de ombros para esforços realizados ao longo de duas décadas. Não mencionou o passado senão para magnificar o presente: "Histórico!", escreveu Bolsonaro. "Nossa equipe, liderada pelo embaixador Ernesto Araújo, acaba de fechar o Acordo Mercosul-UE, que vinha sendo negociado sem sucesso desde 1999. Esse será um dos acordos comerciais mais importantes de todos os tempos e trará benefícios enormes para nossa economia."

No final de 2018, após a vitória de Bolsonaro na disputa presidencial, o então futuro ministro da Economia Paulo Guedes ofereceu uma ideia da importância que o novo governo atribuiria ao bloco regional que agora entusiasma o capitão: "O Mercosul não é prioridade", disse o Posto Ipiranga a uma repórter do jornal argentino Clarín. "Você está vendo que aqui tem um estilo que combina com o presidente, que fala a verdade. A gente não está preocupado em agradar."

A arrogância era uma decorrência da desinformação. Sob Michel Temer, estreitaram-se as negociações do Mercosul com o bloco europeu. A coisa só não avançou porque o apodrecimento ético do governo Temer afugentou os parceiros. A gestão Bolsonaro encontrou a bola na marca do pênalti. Até Paulo Guedes percebeu que seria uma tolice não empurrar um bom acordo comercial para o fundo da rede.

De resto, é imperioso registrar que o fechamento do acordo foi azeitado por ninguém menos que Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos ameaça impor barreiras tarifárias para produtos procedentes da Europa. Acossados, os países europeus passaram a enxergar o Mercosul com outros olhos. É como se dissessem para Trump: "Já temos para quem vender os nossos automóveis. E passaremos a comprar commodities agrícolas do Brasil, não dos Estados Unidos".

Suprema ironia: Ao fechar a economia dos Estados Unidos o populista preferido de Bolsonaro ajuda a abrir o mercado do Brasil. Grande avanço. Resta saber onde o chanceler Ernesto Araújo, ministro da cota de Olavo de Carvalho, vai acomodar o seu discurso anti-globalismo. É cada vez menor o espaço para a encenação daquilo que o ex-ministro Santos Cruz chamou de "show de besteiras".

Pensamento do Dia


As palavras são implacáveis

“As ações são a primeira das tragédias humanas, sendo as palavras a segunda. As palavras talvez sejam as piores. Elas são implacáveis”
Oscar Wilde
O brilhante escritor irlandês sabia bem do que falava. Perseguido e condenado acerbamente por suas ações, legou para o futuro as palavras que o deixariam figurar entre os maiores autores de seu tempo.

Sabia pensar e sabia escrever. E sabia quais palavras usar e quando. Exatamente o contrário do que acontece em nosso país nos dias de hoje.

No quintal dos Bolsonaros Cia Ltda, as palavras são usadas sem nenhuma correspondência com seu significado.

Vejam o que tuitou o ministro da Educação a respeito da prisão do sargento da FAB que transportava 39 kg de cocaína no avião presidencial: "Tranquilizo os "guerreiros" do PT e de seus acepipes o responsável pelos 39 kg de cocaína: NADA tem a ver com o Governo Bolsonaro. Ele irá para a cadeia e ninguém de nosso lado defenderá o criminoso. Vocês continuam com a exclusividade de serem amigos de traficantes como as FARC".

O crime cometido pelo sargento entrará para as calendas da História muito antes da aceitação, pela sociedade brasileira, da nomeação bolsonarista de um ministro para a pasta da Educação que não sabe o que quer dizer ‘acepipes’ e que usa seu cargo para julgar e condenar a seu bel prazer quem lhe dá na telha (fraquinha).

Ele ignora o peso das palavras.

Assim como o general Augusto Heleno que etiqueta como “falta de sorte” a maleta do sargento ter sido examinada no aeroporto em Sevilha. Falta de sorte? Ou falta de fiscalização eficiente no aeroporto militar de Brasília?

Da mesma forma que o capitão Bolsonaro assegura que o sargento e seus 39 kg de cocaína só foram apreendidos porque viajavam com ele, autoridade máxima do país! E não parou por aí. Disse que o militar se deu mal porque com ele vai ser assim: “creu, sifu, se deu mal”. Se não fosse o azar do rapaz a aduana sevilhana não o pegaria? Foi isso que ele quis dizer?


Jair Bolsonaro é o típico dono de quintal que arma a churrasqueira e senta com os companheiros para o papinho dominical sem compromisso com a realidade. Ali o objetivo é relaxar e se divertir. Ao saber que Angela Merkel se disse preocupada com as ações de seu governo, declarando que via “com grande preocupação, a questão da atuação do novo presidente brasileiro", disse: “Os alemães têm a aprender muito conosco. O presidente do Brasil que está aqui não é como alguns anteriores que vieram para serem advertidos por outros países. Não, a situação aqui é de respeito para com o Brasil. Não aceitaremos tratamento como no passado de alguns casos de chefes de estado que estiveram aqui”.

Tantas seriam as boas respostas que o capitão poderia dar se conhecesse a história da Alemanha, se lesse pelo menos um livro por ano, se estudasse um pouco mais. Mas não. Ficou nessa resposta que não dignifica o Brasil, só nos desmerece.

Se ao menos isso ficasse só entre nós... Quem dera...

Mas a Internet está aí para isso mesmo e o mundo inteiro conheceu o que disse Angela Merkel e o que respondeu o capitão. Assim como conheceu a ‘falta de sorte’ do militar que viajava no avião presidencial.

Viver na era digital, como disse Fernando Gabeira, é muito perigoso.

Tempo do dia, clima da era

Atravessamos época muito esquisita. Os movimentos ultraconservadores e nacionalistas de direita trouxeram questionamentos sobre o que é verdade e o que é mentira, o que é fato e o que é invenção, o que é ciência e o que é crendice, o que é avanço e o que é retrocesso. Em muitos casos — talvez em todos — os questionamentos estão embalados por premissas erradas em um mundo onde o conhecimento, aquele que não se alcança por completo nem mesmo após uma vida inteira de estudos e leituras, está sendo rapidamente trocado pelo arranhão intelectual. Arranhão intelectual é aquela assistida rápida ao vídeo do YouTube, leitura do grupo da família ou aquele passar de olhos por um punhado de caracteres no Twitter. Arranhão intelectual é aquela frase em latim para marcar pose, não posição, é aquele monte de asneiras sobre o cabeçote de meio milímetro do parafuso que não faz a menor falta no argumento estruturado. Arranhão intelectual às vezes é apenas o tempo do dia. O problema é quando ele é confundido com o clima da era.

Para quem teve a oportunidade de se sentir cidadão do mundo nos últimos 20 e poucos anos ao estudar e morar em outros países, convivendo com culturas diversas, era fácil acreditar que o clima daquela era seria insuplantável. Assim como para quem cresceu rodeado de mentores excepcionais era fácil não enxergar discriminação de gênero. Tive professores, mentores, parentes e marido — o último no presente e no singular — realmente fora de série. Foi apenas ao retornar ao Brasil com um filho pequeno, depois de alguns anos no FMI, que senti o peso de ser mulher numa profissão dominada por homens. Mas minha história não interessa. Interessam os fatos que hoje tornam inevitável a constatação de que mais do que o tempo do dia, o clima da era é de enfrentamento de uma realidade ainda brutal e ameaçada pelas inclinações ultraconservadoras que passaram a ocupar grande espaço no Brasil e no mundo.

E qual é essa realidade? No Brasil, os números não deixam dúvidas, como mostram o IBGE e o Banco Mundial. Nos últimos anos, apesar do desemprego elevado, as mulheres vêm aumentando sua participação no mercado de trabalho. Contudo, o índice de subemprego entre elas ainda é pouco mais de uma vez e meia maior do que entre os homens. Em cargos de diretoria e gerência, elas representam 42% do total de empregados, mas recebem apenas o equivalente a 71% do salário deles. Entre profissionais das diversas áreas do conhecimento — ou seja, falamos de pessoas com ph.D. ou doutorado — elas são maioria: 63%. Contudo, recebem o equivalente a 65% dos rendimentos deles, cuja qualificação é a mesma. Pasmem — esse é o pior diferencial entre as dez ocupações pesquisadas pelo IBGE. Em média, tomando-se todas as ocupações, elas recebem 79% do rendimento deles. O que salva esse número são os empregos como cargos de apoio administrativo — em que elas ganham 86% do salário deles — e o que o IBGE chama de “ocupações elementares”, em que elas ganham cerca de 90% do salário deles. Ou seja, o que fica bastante claro é que, no Brasil, quanto mais qualificada a mulher, maior a disparidade salarial em relação aos homens de mesma qualificação. Não há qualquer explicação para diferença tão gritante. Ou melhor, há uma diferença não surpreendente: mulheres que têm filhos recebem cerca de 35% menos do que mulheres que não têm filhos. Para as mulheres de renda mais elevada, essa diferença diminui, pois são capazes de superar as dificuldades contratando babás ou pagando creches. Para as mulheres de renda baixa, a falta de estrutura para atender a suas necessidades impõe enorme custo de ter filhos. Custo que poderia ser aliviado com políticas públicas como a provisão de creches ou a escola em tempo integral.

Em todo o mundo se vê grande movimentação das mulheres para garantir condições que lhes permitam a equiparação com os homens. Há países que estão mais avançados nessa empreitada, como a Espanha — as últimas eleições deram vitória ao PSOE, partido tradicional de centro-esquerda, por ter sido o que melhor levantou a bandeira da igualdade de gênero e do repúdio aos retrocessos representados pelos conservadores. Há países que estão engajados nas questões dos direitos das mulheres devido à superexposição a líderes cujo discurso tende a desprezar metade da população, como Trump aqui nos Estados Unidos. No Brasil, há uma mobilização crescente, embora ainda prevaleça um grau de apatia ou de repúdio perturbador. O tempo do dia não está fácil para quem defende a igualdade de gêneros como um valor a ser abraçado por todos. Mas, no fim das contas, o que importa é o clima da era, o Zeitgeist. Chova ou faça sol, esse já está francamente entranhado nas gerações mais jovens e nas nem mais tão jovens assim. Saravá.
Monica de Bolle

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Seis meses à direita

Neste primeiro período de governo, Jair Bolsonaro afirmou que a cadeira do presidente era sua kryptonita, o metal que enfraquece o super-homem nas histórias em quadrinho. Mais tarde, ele disse que estavam querendo transformá-lo na rainha da Inglaterra. Ambas as afirmações convergem para sua ansiedade sobre o poder escapando entre os dedos. E remetem às primeiras discussões após sua vitória eleitoral.

Naquele momento, a esperança era de que os contrapesos democráticos contivessem Bolsonaro. Da mesma forma que se esperava, guardadas as proporções, que isso acontecesse com Trump nos Estados Unidos.

Na verdade, Bolsonaro foi contido pelo menos sete vezes pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). É verdade que muitas de suas propostas foram lançadas para mostrar ao eleitorado que cumpria as promessas de campanha. Mas foram propostas que desprezaram as necessárias negociações. Parece que Bolsonaro não se importa em perder ou conseguir pelo menos alguma eficácia. Ele quer mostrar que suas ideias morrem no Congresso ou são rejeitadas pelo Supremo.


São coisas tão elementares que qualquer assessoria jurídica desaconselharia. Por exemplo: tentar com uma nova medida provisória passar a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Isso havia sido negado e ele reeditou a medida, algo que não pode ser feito na mesma legislatura.

Na verdade, não o estão tornando uma rainha da Inglaterra. Uma combinação de incompetência e arrogância o conduz a sucessivas derrotas.

Ultimamente, tenho observado uma linha-mestra no comportamento político de Bolsonaro. Ele flerta com a morte, como faziam, à sua maneira, os governos de extrema direita do passado. Seus projetos caminham nesta direção: liberação das armas, flexibilização das regras do trânsito, legalização de potentes agrotóxicos que devem dizimar nossos insetos e abelhas, sem falar nas consequências disso para a saúde humana.

Já escrevi sobre isso tudo, de forma isolada. Mas o conjunto da obra revela uma tendência mórbida, ainda que mascarada de um desejo de crescimento econômico rápido e sem barreiras.

O simples fato de usar a imagem da kryptonita o coloca dentro da mitologia do super-homem, algo que era muito comum na direita no limiar da Segunda Guerra.

Vi com certa apreensão que os próprios manifestantes pró Sergio Moro escolheram a imagem do super-homem para defini-lo, isso precisamente no momento em que sua condição humana estava em jogo com as revelações do The Intercept.

Pode ser que essas conexões sejam de alguém que assimilou mal a história do século 20 e está vendo fantasmas em cada esquina. No entanto, o desdobramento do projeto de Bolsonaro é preocupante, exceto pelo fato de que as salvaguardas estão em pleno funcionamento. Até o momento, nenhuma medida ilegal foi engolida pelo Congresso e pelo STF.

Tudo indica que Bolsonaro não se preocupa tanto com as derrotas porque mira a reeleição, continua em campanha, revelando aos seus eleitores como suas ideias são trituradas pelo aparato constitucional.

Atropelar o Congresso e o Supremo não parece ser a saída. Soaria como um retorno a 64, algo que os militares rejeitam: estamos num mundo diferente, a guerra fria não é o quadro geral em que nos movemos.

Bolsonaro, entretanto, não é tão saudosista como parece ser em alguns momentos. Ele sabe que surgiu uma nova extrema direita no mundo, principalmente no rastro do problema migratório. Ele conhece, por exemplo, como seu colega húngaro tenta reduzir as limitações que a democracia lhe obriga.

Em certos momentos, chegou a revelar sua admiração por Hugo Chávez, embora saibamos que é uma admiração pelo método, não pelos objetivos.

Bolsonaro, penso eu, está fadado a ter muitas dificuldades com o Congresso. Atender a todos os pedidos é fatal; rejeitá-los significa o isolamento.

Seu propósito inicial de superar o toma lá dá cá, de contornar os vícios do presidencialismo de coalizão, é interessante. Todos os candidatos que se pretendem inovadores batem nessa tecla. No meu entender, é uma visão limitada de quem também sonhava em acabar com isso, mas há um caminho estreito cujo êxito não é assegurado. Este caminho está apoiado em duas variáveis: um projeto de governo claro e conhecimento das regiões do Brasil e de suas bancadas.

Ao tornar o Congresso um parceiro na realização do programa, é possível reduzir o medo do parlamentar de perder a eleição.

Conhecer o Brasil não é difícil para um militar, apesar de Bolsonaro ter deixado a farda e o rodízio pelo País há muito tempo. O mais importante é conhecer os problemas regionais, sobretudo aqueles dos quais os parlamentares não podem fugir.

É muito difícil para os candidatos que se dizem inovadores obter a cooperação do Parlamento apenas com ideias novas e a esperança de apoio popular. É preciso mais. Era evidente que a reforma da Previdência seria alterada nos pontos em que o foi.

Era evidente que o decreto das armas demandava negociação. Se eleitores de Bolsonaro apoiavam a tese, parte da opinião pública era contrária.

Apesar da qualidade da nossa imprensa, ainda não houve um estudo em profundidade sobre a bancada do PSL, a base parlamentar de Bolsonaro. Dizer que são inexperientes é pouco. Todo mundo o é ao começar. Tenho dúvida se são vocacionados. Se não forem, não vão aprender nunca.

Ao longo destes meses, vi desfilar a mitologia da direita, o flerte com a morte, a ilusão do super-homem. Ainda agora, sempre os vejo juntos movendo os dedos como se apontassem uma arma. Para onde, José?

Uma frente pela democracia é sempre falada em momentos históricos complicados como este. Mas cada vez mais me convenço de que o objetivo é mais amplo: a extrema direita nos coloca diante da necessidade de uma frente pela vida, em toda a sua diversidade.

Muy amigo


O presidente brasileiro é um homem especial, que está indo bem, é muito amado pelo povo do Brasil
Donald Trump

Desastre ronda estreia de Bolsonaro no G20

Começou mal, muito mal, pessimamente a primeira viagem de Jair Bolsonaro ao G20, grupo que reúne os líderes das maiores economias do planeta. A chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron manifestaram preocupação com o descompromisso do governo brasileiro em relação à preservação do meio ambiente. Bolsonaro e sua comitiva deram respostas atravessadas.

Os alemães "têm a aprender muito conosco" em matéria de meio ambiente, disse o capitão, antes de avisar: "O presidente do Brasil que está aqui não é como alguns anteriores, que vieram para ser advertidos por outros países". O general Augusto Heleno, ministro palaciano e principal conselheiro do presidente, respondeu no atacado. Disse aos chefes de Estado que criticam a política ambiental do Brasil: "Vão procurar a sua turma!"


A frase do general é multiuso. Mas nenhuma de suas utilidades serve aos interesses comerciais do Brasil. Vão procurar a sua turma pode ser lido como "não encham o saco", "desapareçam da minha frente". Se derem ouvidos ao conselho, Merkel, Macron e outros líderes podem interromper as negociações para a celebração de um acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Seria um desastre para o Brasil.

O desastre seria ainda maior se Bolsonaro cedesse à tentação de tomar o partido dos Estados Unidos na guerra comercial que o governo de Donald Trump trava com a China. Corre-se o risco de a China, maior parceira comercial do Brasil, mandar Bolsonaro procurar a sua turma. O capitão e o general precisam conter os seus humores. Quando ficam fora de si, exibem o que têm por dentro. E isso não é bom para os negócios.

Em campanha para Rainha da Inglaterra

O Brasil está cheio de gente que, como eu, tinha enormes dificuldades para diferenciar uma espingarda de um fuzil ou para formar opinião sobre questões como o limite de 50 ou 100 cartuchos por arma ao ano para civis. A centralidade imposta ao tema pelo presidente da República no debate político, porém, está nos transformando a todos em especialistas em armamentos, munições e CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) apesar de a maior parte da população brasileira não ter recursos e nem, provavelmente, vontade de comprar uma arma.

Longe de desconhecer a importância que o assunto possa ter para uma parcela das pessoas. O que não quer dizer que a conversa sobre armas justifique tanto tempo e energia gastos por parte do Planalto, do Congresso e do Judiciário. Sete decretos, um projeto de lei, um decreto legislativo suspendendo o primeiro decreto e uma quase declaração de inconstitucionalidade depois, nada mudou na vida de ninguém. Temos um assunto para lá de secundário mobilizando as atenções de um país em situação para lá de complicada.

Basta andar pelo Congresso para perceber isso. No mesmo dia em que o ex-articulador político do Planalto, Onyx Lorenzoni (destituído por Jair Bolsonaro mas sabe-se lá por que em plena atividade) foi negociar com os comandantes das duas Casas o vaivém dos decretos, a Comissão Especial da Câmara debatia a decisiva reforma da Previdência. Mas a pauta palaciana não era a inclusão dos estados na reforma, nem as mudanças na aposentadoria.

Também não era o Fundeb, o fundo de financiamento da educação nos estados e municípios, que precisa ser urgentemente renovado. O ministro Abraham Weintraub estava na Comissão de Educação, mas ficou poucos minutos lá, mostrou um power point de duas lâminas e saiu de fininho.

Saúde, emprego, direitos e programas sociais também vêm passando ao largo da narrativa do governo.

Outra distração do presidente da República é reclamar do Congresso por querer transformá-lo em ”rainha da Inglaterra“, usurpando seus poderes. Usurpando ou não, deputados e senadores têm tratado de temas fora da pauta das “abobrinhas “ até porque alguém tem que fazer isso, governar.

Se olharmos bem, o chefe de governo e de Estado brasileiro vem mostrando irresistível vocação para rainha Elizabeth. Afinal, a soberana tem funções de representação de chefe de Estado, e ainda lhe sobra tempo para viagens, casas de campo, animais e caçadas.

Em estado de campanha eleitoral permanente, Jair Bolsonaro parece mais preocupado em manter felizes aqueles 20% de seu núcleo duro de apoio do que em governar. Acha que, com sua fidelidade, chega a 2022 em condições de disputar a reeleição e repete o feito de 2018 reagregando em torno de si as forças do antipetismo e as franjas da centro-direita. Pode estar redondamente enganado. Ninguém tem ideia do país que irá às urnas depois de mais três anos de desemprego e estagnação econômica se ele não governar. Melhor se candidatar a rainha.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Brasil sob controle!?


O general e a cartomante

E se tivesse sido uma bomba ao invés de 39 quilos de cocaína o conteúdo da mala de mão carregada pelo militar da Aeronáutica Manoel Silva Rodrigues que embarcou em um avião da comitiva do presidente Jair Bolsonaro sem passar pelo aparelho de Raios-X da Base Aérea de Brasília?


O ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, disse que não havia como prever uma coisa dessas, a não ser que tivesse “uma bola de cristal”. A bola seria dispensável. Bastaria que o GSI, responsável pela segurança do presidente da República, cumprisse com seu dever de garanti-la.

Bolsonaro embarcou para o Japão furioso com o que aconteceu e constrangido com a repercussão internacional da descoberta de que na sua comitiva havia um militar traficante de drogas. Pouco importa que o militar tenha acompanhado outros presidentes em viagens internacionais. Como provar que antes levou drogas?

A esperança de Bolsonaro de que nada parecido se repita está nos ombros do novo diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem Rodrigues, que em breve assumirá o cargo. Rodrigues foi escolhido pelo próprio Bolsonaro para substituir um afilhado de Heleno.

Depois da facada de Juiz Fora, Rodrigues passou a cuidar da segurança do então candidato a presidente. Bolsonaro e os filhos gostaram do seu trabalho e aprenderam a confiar nele. Sua promoção a diretor da Abin significa que Bolsonaro terá acesso direto às informações da maior agência de espionagem do país.

Heleno está em baixa. Como foi o instrutor de Bolsonaro quando ele era cadete na Academia Militar de Agulhas Negras, continuará onde está, mas desgastado. Foi-se o tempo em que seus ex-colegas de farda imaginaram que ele poderia tutelar um presidente que no passado foi um capitão insubordinável.

Fala presidencial

Nós temos exemplo a dar à Alemanha sobre meio-ambiente. A indústria deles continua sendo fóssil, vem parte do carvão. E a nossa não. Eles têm muito a aprender conosco
Jair Bolsonaro.

De Viktor Orban a rainha da Inglaterra?

Dias atrás, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado em uma rainha da Inglaterra. Quando li aquilo, achei exagerado. Geralmente acho tudo meio exagerado, em política. Mas depois fiquei pensando e comecei a achar que o presidente tem alguma razão.

Desde a posse, pautas de interesse direto do governo vêm sistematicamente caindo. Assistimos agora ao fim melancólico do decreto das armas e o envio resignado de um projeto de lei ao Congresso (como deveria ter sido feito desde o início). Vimos atentativa frustrada de transferir a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Mesmo coisas esquisitas, como a ida da embaixada para Jerusalém, com toda a corte feita por Netanyahu, deu com os burros n’água.


Ainda nesta semana, o presidente vetou o item que prevê a lista tríplice para as agencias reguladoras. Aposto que o veto seja derrubado. Não apenas porque o governo não tem base, mas porque a lista tríplice é uma boa ideia. Despolitiza as agências. Restringe um poder do qual o presidente não precisa e que é bom que não tenha. E não estou falando de Bolsonaro, mas de qualquer presidente que venha pela frente.

Como tapa de luva, o presidente teve que assistir à inclusão, na Constituição, da execução obrigatória das emendas de bancada, retirando mais um naco de poder do Executivo. E precisa escutar todo dia que a reforma da Previdência anda sozinha no Congresso, à moda de um parlamentarismo branco (a expressão, muito boa, é do Fábio Giambiagi).

Enquanto isso, Rodrigo Maia conduz a aprovação da reforma com os partidos e governadores, encomenda uma agenda econômica própria e diz já ter definido instalar a comissão especial da reforma tributária (também nascida dentro do Congresso) ainda antes do recesso parlamentar.

Rodrigo Maia não é, mas parece agir como o primeiro-ministro em nosso parlamentarismo de coalizão. Ou, se quiserem, nosso presidencialismo de consensos provisórios. Tudo muito democrático, com freios e contrapesos funcionando à exaustão, em uma lógica estranha, aqui nos trópicos, que chamei de modelo de corresponsabilidade.

Tudo, aliás, inteiramente diferente do que o cenário desenhado, não faz muito, pela nossa crônica política, que insistia em apresentar Bolsonaro como uma espécie de Viktor Orbán dos trópicos ou, para os mais delirantes, como o novo Hugo Chávez.

A maldita realidade vem mostrando outra coisa. O país parece estar efetivamente fazendo uma experiência de parlamentarismo branco. Com o incômodo detalhe de que esse sistema não existe. Decorre daí nosso maior problema. Ele não vem da ameaça autoritária ou plebiscitária. Quem ainda estiver pensando nisso não está entendendo nada do que se passa por aqui.

O problema é a falta de direção. Nos tornamos um sistema presidencialista funcionando à moda parlamentar. Um sistema a meio caminho: presidencialista na forma, parlamentar no jeito. É possível enxergar alguma virtude aí. A ideia de um país funcionando à base de consensos progressivos e repartição do poder. Já escrevi tentando enxergar o lado positivo disso tudo.

Mas é possível perceber as sombras. A maior delas é a paralisia, a incerteza, a desconfiança crescente da sociedade e do mercado sobre a capacidade do sistema tocar adiante, de fato, alguma agenda relevante, para além da reforma da Previdência.

O país tem diante de si um amplo programa de micro e macro reformas estruturais, bem como um plano audacioso de desestatização. A percepção de que não há um arranjo político e pulso para fazer isso andar é hoje o principal inibidor do investimento a longo prazo no país.

Arriscamos cair na síndrome da democracia que não governa. Algo próximo à vetocracia, de Francis Fukuyama. A situação em que muitos compartilham do poder, mas o sistema como um todo caminha para não sei onde. Na expressão de Andrew Rawnsley, a democracia que se tornou “mais venenosa, ainda que mais desdentada”.

Confesso não ter ideia de como sair dessa zona de sombra. Não se trata de uma tragédia, mas de uma sistema que anda devagar, à base de consensos frágeis, quando deveria envolver a sociedade em um grande projeto de mudança. Se dependesse de mim, apostaria todas as fichas em uma reforma estrutural do sistema político, mas ninguém parece dar bola para essas coisas.

Terra arrasada

A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros – ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.

O material publicado até aqui sugere que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.


Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário – a classe política em geral e o PT em particular – comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.

Não se trata aqui do famoso postulado dos fins (liquidar corrupção) que justificam os meios (ignorar a norma legal). Se Moro e Dallagnol de alguma maneira se aconselharam com Maquiavel, então foram influenciados pelo que se considera na ciência política como a originalidade do pensador florentino do século 16 (que acabou dizendo o que todo mundo sabe, mas ninguém gosta de admitir). É a noção de que ideais nunca conseguem ser alcançados. Em outras palavras: não há um confronto entre política e moralidade. Só existe política.

Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.

Os diálogos sugerem a interpretação de que Moro e Dallagnol, apoiados pelos fatos concretos das avassaladoras corrupção e manipulação políticas, sempre estiveram convencidos de que “idealismo”, legal ou moral, eram só pretextos esgrimidos pelos adversários (inclusive STF). De qualquer maneira (e isso é Maquiavel) não haveria nesse contexto histórico como equilibrar idealismo e realismo. O que existe é a competição entre realismos – de um lado a Lava Jato e, do outro, o “sistema” político e seus tentáculos.

O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal", como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.

O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.

Pensamento do Dia


E se Lula recorrer a Toffoli nas férias do Supremo?

Uma urucubaca ronda o Supremo Tribunal Federal. Em férias, a Corte foi condenada a conviver durante o mês de julho com o risco de aparecer no guichê da sessão de protocolo um habeas corpus da defesa de Lula. De plantão, caberia ao presidente Dias Toffoli deliberar sobre um novo pedido de liminar para libertar Lula. A eventual concessão de liminar teria de ser submetida aos outros dez ministros. Mas só depois do recesso.

Lula está preso há um ano e quase três meses. Nesse período, recorreu um sem-número de vezes contra a sentença que o tornou um presidiário. Com o Judiciário aberto, perdeu em julgamentos coletivos —ora por unanimidade, ora por maioria de votos. Se recorrer nas férias, o julgamento de um plenário será substituído pela decisão de um plantonista. E Dias Toffoli não é um plantonista qualquer.



Antes de vestir toga, Toffoli foi assessor da liderança do PT na Câmara, advogado eleitoral de Lula, auxiliar jurídico de José Dirceu na Casa Civil e advogado-geral da União no governo do agora presidiário petista. A despeito desse histórico, Toffoli não hesitou há um ano em liderar na Segunda Turma a votação que abriu a cela de um José Dirceu já condenado em segunda instância a mais de 30 anos de cadeia.

Melhor seria que os advogados de Lula não recorresse nas férias. Se recorrerem, Toffoli talvez devesse indeferir rapidamente o pedido. Deferindo, seria aconselhável que trocasse o terno por uma armadura. Se dissesse que concedeu uma liminar a Lula guiando-se apenas por sua consciência de juiz, Toffoli cutucaria a opinião pública com o pé. E passaria o resto da vida fugindo das mordidas. O bom senso recomenda evitar.

Realismo socialista

O filme “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, disponível na Netflix, é uma peça digna do realismo socialista dos tempos de Josef Stalin e seu principal teórico, Andrej Zdanov. Dos anos 30 aos 50, a cultura soviética converteu-se em arte oficial, a serviço de uma ideologia e de um Estado totalitário. Entre suas características estavam o utilitarismo – a arte deveria embutir nas massas a confiança no socialismo – e o maniqueísmo. Os heróis, normalmente proletários, soldados ou camponeses, eram idealizados como puros e saudáveis. Já os burgueses como parasitas, decrépitos e decadentes.



Petra se coloca a serviço da ideologia petista ao apropriar-se da história, dando ar de verdade à versão, segundo a qual o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula foram uma trama das elites, da mídia e (não podia faltar) dos interesses estrangeiros.

Como Narciso, que acha feio o que não é espelho, Petra considera como golpistas e oligárquicos tudo o que não se encaixa na narrativa do Partido dos Trabalhadores. A começar pelas manifestações multitudinárias das jornadas de junho de 2013, onde, pasmem, já estaria o germe do “golpe”, como se elas fossem o ovo da serpente do qual saiu Bolsonaro.

Na sua versão a serpente toma corpo por meio da decisão da elite de sacrificar um de seus braços (a turma do colarinho branco, que pela primeira vez na nossa História foi para a cadeia) para extirpar a esquerda do poder. A ideia de uma elite raivosa cujos interesses teriam sido contrariados por Lula não guarda a menor coerência com a realidade. Afinal, segundo o próprio ex-presidente, nunca os banqueiros ganharam tanto como em seu governo.

E nunca empresários escolhidos pelo rei se aproveitaram tanto do Estado quanto nos anos do lulopetismo.

O Bolsa-Família representou algumas migalhas para o andar de baixo, enquanto os escolhidos do andar de cima se lambuzavam no jantar farto da chamada nova matriz econômica. Essa é a verdade que “Democracia em vertigem” joga para debaixo do tapete, da mesma maneira que trata Antonio Palocci e José Dirceu com relevância menor do que a de uma nota de pé de página. Stalin apagava das fotos seus desafetos. Petra Costa esconde do espectador os petistas que chafurdaram na lama.

Tudo se passa como se petistas não tivessem enriquecido pessoalmente e como se o próprio Lula não tivesse obtido vantagens indevidas.

Para a cineasta, o PT apenas cometeu crime de Caixa 2, e ameniza supondo como algo que todo mundo fez. Para provar a tese do “roubei sim, mas quem não roubou”, se vale do depoimento de Nestor Cerveró assegurando que sempre existiu corrupção na Petrobras. Propositadamente, escoimou da tela a informação de diversos ex-funcionários da estatal envolvidos no Petrolão, segundo os quais a corrupção pontual ganhou escala sistêmica e se institucionalizou quando o lulopetismo chegou ao poder.

Tal como o Pravda só divulgava as “verdades” da nomenclatura soviética, o filme chancela as “verdades” do PT. Assim, Lula se viu forçado a se aliar com o PMDB e os partidos da “direita” porque no Brasil se “Jesus Cristo tivesse de governar, teria de se aliar com Judas”. Para a cineasta o único pecadilho dos governos Lula e Dilma teria sido se render a essa realidade, em vez de fazer a reforma política – essa panaceia sobre a qual o PT se agarra para justificar seus crimes.

Nessa versão romanceada, a quebra da Petrobras não se deu pela combinação de má gestão com a corrupção. Nada teria a ver com investimentos desastrosos como Abreu e Lima, Pasadena, Comperj e outros. Muito menos com a intervenção e represamento de preços operados por Dilma. Seria consequência da conspiração de potências estrangeiras interessadas em quebrar a Petrobras para se apossar das riquezas do Pré-Sal.

Já a culpa pela maior crise econômica da história do país, responsável por doze milhões de desempregados, é atribuída ao fim do boom das commodities, nada tendo a ver com o desastre da política econômica do herói Lula ou da super honesta e mártir Dilma Roussef.

“Democracia em vertigem” é pura arte oficial de um partido e seu projeto de poder. Pretende empolgar a militância e dar argumentos mentirosos para o embate político. Está a serviço de uma ideologia assim como estiveram alguns intelectuais brasileiros que emprestaram sua criatividade a uma causa totalitária.

Um deles, Jorge Amado, escreveu uma obra hagiográfica, “O mundo da paz”, na qual define Stalin como “mestre, guia, e pai, o maior cientista do mundo de hoje, o maior general, aquilo que de melhor a sociedade produziu”.

Anos depois, o escritor baiano tomou conhecimento dos crimes de Stalin e teve a honestidade intelectual de renegar sua obra, desautorizando uma nova reedição. Quem sabe um dia a ficha caia. Terá Petra Costa a coragem de Jorge Amado?
Hubert Alquéres

quarta-feira, 26 de junho de 2019

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Lobbies à solta

Qual a sua Constituição favorita, leitor? Eu me divido entre a de 1891, a única verdadeiramente laica, e a de 1934. Meu flerte com a Carta varguista, confesso, não tem a mais nobre das motivações. É que ela trazia, entre os direitos e garantias individuais (art. 113), um dispositivo que concedia imunidade tributária para jornalistas.

Sim, é isso mesmo que você leu. O lobby dos jornalistas conseguiu inscrever na Constituição que representantes da classe não precisariam pagar impostos diretos. O mecanismo desaparece na Carta de 1937, mas volta na de 1946. A festa só acabou de verdade em 1964, quando o governo militar fez aprovar uma emenda constitucional que reintroduziu o IR para escribas.


Tudo isso foi para dizer que um bom lobby é essencial para quem pretende andar de carona (“free ride”) à custa da sociedade. Categorias poderosas, como os advogados, insuperáveis nessa matéria, conseguem meter na legislação dispositivos que obrigam o cidadão a utilizar seus serviços mesmo que não desejem. Quem acaba pagando o preço são os grupos mais pobres, menos organizados e que não conseguem inspirar compaixão pública.

Faço essas reflexões porque vivemos um momento em que os lobbies estão a toda, tentando cavar uma regaliazinha na reforma da Previdência, que entra em fase final na Câmara. Não digo que todos os pleitos são injustos. Muitos deles parecem razoáveis, se considerarmos as dificuldades enfrentadas por diversos segmentos sociais.

O problema é que não podemos raciocinar aqui pela lógica das partes. Precisamos pensar antes no todo. A reforma da Previdência extrai sua justificativa moral do fato de propor regras universais, que idealmente igualariam todos os cidadãos, do mais humilde celetista ao mais abonado servidor público. Cada diferenciação que os parlamentares introduzirem, mesmo que isoladamente justa, torna a reforma menos defensável.