quinta-feira, 31 de maio de 2018

Brasil de hoje


Flerte com o abismo

Como assim as pessoas apoiam um movimento, o dos caminhoneiros, mesmo sabendo que sofrerão severos transtornos e prejuízos diretos na vida pessoal e financeira? Em outras palavras, agindo contra os próprios interesses – e sabendo disso.

Supõe-se que alguma coisa mais esteja em jogo, além da irracionalidade em decisões (no comportamento de consumidores, por exemplo) há tanto tempo detectada por teorias econômicas de comportamento. Como eventual contribuição a uma explicação, avanço aqui duas possibilidades inteiramente subjetivas e derivadas da minha biografia pessoal como repórter.


Será que as pessoas percebem seus “interesses objetivos e racionais” como analistas percebem ou acham que deveriam perceber? No caso brasileiro dos últimos dias, é patente que não. Em primeiro lugar, salta aos olhos que uma enorme quantidade de pessoas não entenda que dinheiro público é o dinheiro delas, recolhido por meio de impostos e contribuições. Para elas, portanto, se tem alguém gastando mais do que arrecada, esse alguém é “o governo”, essa distante e incompreensível entidade que manda nas nossas vidas sem que a gente entenda muito bem como.

Em segundo lugar, o governo é ocupado por “eles”, políticos e seus nomeados, uma espécie de casta. “Eles” são interessados apenas nos próprios negócios, na própria corrupção e, agora que “nossa” paciência se esgotou e nossa indignação explodiu, precisam ser varridos como lixo. É evidente que “nós” não nos sentimos representados por “eles” – e quando confrontada com o fato de que “eles” estão lá pois foram votados para estarem lá, imensa quantidade de pessoas não gosta do que enxerga no espelho.

Muita gente acha que a revolta que acompanhou as manifestações de caminhoneiros (acompanhadas, em alguns casos, de comportamento criminoso) é uma espécie de mal necessário para que dessa situação crítica renasça um novo País, não importam os danos imediatos causados à economia. É óbvio, na minha percepção, que essa conduta reflete muito mais uma imensa frustração do que um claro sentido de ação, mesmo os caminhoneiros tendo arrancado o que pretendiam (baixar os próprios custos, empurrando a conta para outros).

Não são poucos os que enxergaram, por outro lado, que atender às reivindicações dos caminhoneiros só seria possível tornando ainda mais complicada a solução para contas públicas quebradas. Mas – e aqui deveríamos escrever MAS, em maiúsculas –, foi irresistível para parcela expressiva da população a identificação proporcionada pelo símbolo do trabalhador sacrificado (o caminhoneiro) que levanta o dedo médio em riste contra “eles”, enquanto entrega a Deus o comando na boleia.
Acho perda de tempo decifrar neste momento qual o “recado” que essa revolta está transmitindo para a política – na verdade, a mensagem principal é o ódio e o desprezo em relação à própria política, entendida como um jogo sujo no qual só “eles” ganham, com seu sistema de benefícios próprios, desperdícios, corrupção e a inexplicável administração de preços que leva o combustível que “nós” produzimos a custar bem menos na Bolívia.

Temo ter de dizer que esse flerte com o abismo, registrado nos últimos dias, seja a expressão da desintegração (que não me parece meramente passageira) da capacidade do Estado de impor diretrizes e autoridade. Mas também desse nebuloso estado de espírito segundo o qual a fúria e a frustração que existem na população criam a necessidade de mudança por meio do fracasso social.

Um país flerta com a autodrestruição

Nenhuma situação é tão ruim que não possa ficar ainda pior, diz um antigo provérbio. No momento, a situação no Brasil é muito ruim, mas, mesmo assim, todos os lados parecem se esforçar para jogar ainda mais lenha – ou seria diesel? – na fogueira.

Aos poucos, a ficha começa a cair para mim: este país quer soluções radicais, quer se fazer em pedaços. Dada à complexidade do problema, esta parece ser a solução mais simples e, assim, a mais satisfatória. É como diz o ditado: ontem estávamos à beira do abismo, hoje já estamos um passo adiante.



Para começar há as notícias falsas, que estão por todos os cantos e que tornam a situação durante a greve dos caminhões ainda mais obscura. Elas servem para promover um clima de confusão geral. E pânico. Podia-se ler que o governo vai bloquear o aplicativo de notícias WhatsApp para estrangular a greve. Ou que vai desligar a eletricidade para acabar com a greve.

Até mesmo conhecidos bem informados me asseguraram que o presidente Michel Temer em pessoa está por trás da greve. Sua intenção seria criar o caos e, assim, justificar um golpe militar para cancelar as eleições de outubro.

Bom, notícias falsas existem em todos os lugares e, pelo jeito, elas decidem eleições e referendos em todo o mundo. Mas certamente não fazem bem para o clima já acirrado no Brasil.

Afinal, sociedades só são bem-sucedidas quando são capazes de reunir na mesma mesa as diferentes posições e chegar a um compromisso em que todos cedem um pouco. Democracia também significa, afinal, deixar que aqueles que pensam diferente tenham seu espaço para existir.

Isso a democracia brasileira ainda não aprendeu. Em vez disso, todos gritam mais alto para silenciar o outro. Chamam isso de "palavras de ordem", embora, é claro, elas apenas fomentem a desordem. Em alguns discursos há um desejo explícito de eliminar o oponente político. O Brasil ainda arrasta consigo seu legado autoritário, e nele quem pensa diferente não têm qualquer espaço. Assim, os campos se opõem com uma virulência nunca vista. Diálogo ninguém mais quer. Em vez disso, todos parecem à procura de tumulto e confronto.

Enquanto isso, o governo do presidente Michel Temer se encaminha para o colapso. Mesmo os partidos que pertenciam à base de Temer rejeitaram nesta terça-feira (29/05) uma ofensiva conjunta promovida pelo governo para acabar com a greve dos caminhoneiros. O governo é fraco e está no fim, dizem políticos antes leais a Temer.

Uma terceira acusação contra Temer, que poderia ser apresentada a qualquer momento pela Procuradoria-Geral, provavelmente não conseguiria ser bloqueada no Congresso pelo presidente. Mas talvez ele caia também pela pressão das ruas. Políticos da oposição já clamam por uma greve geral. Nunca a queda de Temer pareceu tão próxima. Mas ela teria algum sentido agora, apenas quatro meses antes das eleições?

A formação de um governo em curto prazo dificilmente seria possível. A consequência, portanto, seria ainda mais caos nos próximos meses. A economia, já abalada, entraria numa nova recessão, e a confiança dos investidores estrangeiros no Brasil, recém e lentamente reconstruída, seria mais uma vez destruída.

Realizar eleições num clima como esse não traria nada de bom. As forças mediadoras e conciliatórias não seriam ouvidas em meio à gritaria geral. Afinal, ninguém está com paciência para soluções complicadas. As forças radicais, com suas soluções simples, ganhariam. E soluções simples em tempos difíceis não prestam para nada, diz um velho ditado.

Por que o setor elétrico ainda flerta com o autoritarismo?

Em seu fabuloso e deprimente livro “Os fuzis e as flechas” (Companhia das Letras, 2017), o jornalista Rubens Valente relata como uma obra “de interesse nacional”, a rodovia Manaus-Boa Vista, quase causou o extermínio dos índios waimiri-atroari, no norte do Amazonas. A abertura da estrada que cortou o território waimiri, iniciada no fim dos anos 1960 e concluída na década seguinte, levou o Exército ao local e ao uso desproporcional da força contra os índios. Entre tiros, bombas e doenças, estima-se que mais de 2.000 waimiris tenham morrido.


Ainda em penosa recuperação, a etnia voltou ao noticiário nesta semana, quando a imprensa revelou pressões do ministro de Minas e Energia, Wellington Moreira Franco (MDB-RJ), para passar a linha de transmissão da usina de Tucuruí por dentro do território daqueles índios, sem consultá-los. O truque seria fazer o Ministério da Defesa decretar o linhão (outro projeto polêmico, que há anos não sai porque o governo tem se negado a dialogar com os waimiris) obra de “interesse da política de defesa nacional”, o que dispensaria permissão da tribo. A justificativa é conectar o Estado de Roraima, que tem sofrido com apagões, ao sistema elétrico nacional. Valor da obra: R$ 2 bilhões.

Os generais Médici e Geisel, de onde estiverem, devem estar dando risada: temos aqui, vejam só, um membro do partido que lutou contra a ditadura repetindo um velho argumento utilizado por eles para cometer uma nova arbitrariedade contra as mesmas vítimas do autoritarismo.

O linhão de Tucuruí não é um caso isolado, ao contrário. Até uma vítima da ditadura, a ex-presidente Dilma Rousseff, prestou homenagem aos militares ao empurrar goela abaixo do país, em nome do tal “interesse nacional”, a usina hidrelétrica de Cararaô, um projeto nascido no regime autoritário e rebatizado como Belo Monte.

Desde o segundo governo Lula, quando o Estado recuperou sua capacidade de investimento, todos os presidentes buscaram realizar a distopia verde-oliva de transformar a Amazônia no celeiro elétrico do país. Santo Antônio e Jirau, Teles Pires, São Manoel, Belo Monte – todas as usinas instaladas na região na última década e meia seguiram o mesmo roteiro de desrespeito a povos tradicionais, licenciamento na mão grande e transparência zero sobre custos econômicos e socioambientais. A maré barrageira foi suspensa em 2016, quando a falência do governo permitiu ao Ibama engavetar mais um elefante branco, a usina de São Luiz do Tapajós. Pelo visto, o MDB acha que dá para decretar o fim desse interregno e voltar ao modus operandi que impera no setor há mais de 40 anos.

O fetiche de sucessivos governos com grandes obras de energia na Amazônia talvez encontre sua melhor explicação na Operação Lava Jato. Após a prisão de construtores de barragens em 2014, foi revelado pela PF e pelo Ministério Público que projetos como Belo Monte engordaram os caixas de campanha dos partidos consorciados no governo federal, em especial PMDB e PT. Revelou-se também que a famosa “crise do bagre”, argumento usado pelo então presidente Lula para forçar (contra parecer do Ibama) a aprovação das usinas do Madeira, fora inventada pelo empreiteiro-mor da República, Emílio Odebrecht. Fazer mais uma obra bilionária na Amazônia depois de tudo isso, ainda mais no Estado do senador emedebista Romero Jucá – aquele que queria “estancar a sangria” da Lava Jato – pode levantar a suspeita de que nossos agentes públicos não aprenderam a lição.

O Estado de Roraima, para o qual o atual ministro de Minas e Energia defende a solução autoritária, tem um problema real. Roraima recebe energia elétrica gerada em hidrelétricas da Venezuela, através de um contrato que expira em 2021, ainda sem definição sobre renovação. Entretanto, problemas de manutenção e gestão do sistema elétrico venezuelano resultam em cortes no fornecimento, causando apagões e demandando o acionamento cada vez mais frequente de usinas térmicas a diesel.

Mas a linha de transmissão não é a única proposta do governo para resolver o problema de Roraima. Uma alternativa seria a construção da hidrelétrica do Bem Querer – a maior em licenciamento na Amazônia. Essa usina seria a mais cara e menos eficiente do século 21, construída em um local tão plano que seu lago teria 130 quilômetros de comprimento, mesmo sendo “a fio d’água”, ou seja, sem grande reservatório. Apesar disso, em fevereiro de 2018 o governo federal contratou as empresas para a elaboração do seu estudo de impacto ambiental, tentando transformar em realidade outro sonho gestado no período da ditadura.

A população de Roraima merece energia barata, abundante e limpa. E existem boas alternativas para provê-la. Técnicos do próprio MME já desenham desde 2017 um programa para levar ao Estado a fonte que mais cai de preço nos leilões de energia hoje no Brasil, a solar. Dados compilados pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente indicam uma forte tendência de queda de preços da energia do sol e da eólica frente às hidrelétricas desde 2011. Na última vez que cada uma das três fontes foi leiloada, o valor final do megawatt-hora foi de R$ 158 para hidro, R$ 145 para solar fotovoltaica e R$ 98 para eólica. Os preços das novas renováveis devem continuar caindo à medida que elas incorporam mais tecnologia.

Moreira Franco e o governo Temer fariam bem em explicar a quantas anda esse plano e por que resolveram decretar, em pleno ano eleitoral, que uma linha de transmissão que está no papel há anos de repente virou tema de “segurança nacional”. Os waimiri-atroari e os contribuintes brasileiros querem saber.

Sérgio Guimarães (Instituto Centro de Vida) e Carlos Rittl (Observatório do Clima)

Paisagem brasileira

Serra da Bocaina (RJ)

Notícias falsas

Dia desses meditava sobre as “notícias falsas” – já registradas como “fake news” na terra em que liquidação virou “sale”, centro comercial virou “shopping”, pausa para um café virou “coffee break” e por tal trilha seguimos.

Trata-se de questão que tem ganhado a atenção de todo o planeta. Já começam a surgir, aqui e ali, leis reprimindo o ato de divulgar, pela Internet, notícias falsas. Até aí, nada de novo sob o sol! Só me preocupa o fato de que será o Estado – sempre ele, e só ele – a policiar e regular a questão. E assim porque o Estado é, e sempre foi, um péssimo gestor destes assuntos!

Que o diga o povo inglês: em 1672, no Reino Unido, o Rei Carlos II editou um decreto proibindo a veiculação de notícias falsas. Três anos depois, novo decreto lançou na ilegalidade os populares “cafés”, por considerá-los lugares de propagação de fuxicos e inverdades. Somente alguns poucos estabelecimentos foram autorizados a funcionar, após seus proprietários terem comprovado serem súditos leais, e bem assim se comprometido a reportar quem, dentre seus eventuais clientes, neles se manifestasse de forma “inadequada”.

Passados mais de 340 anos, contemplo o meu planeta. Vejo seus jornais, a cada dia mais dependentes do Estado e das estruturas que o governam, publicando – ou não publicando, e já não sei o que é pior – praticamente as mesmas notícias e opiniões.

Há poucos anos lançou-se a humanidade em um ciclo de perturbações ainda sem data para terminar por conta das famosas “armas de destruição em massa do Iraque”. Cadê elas? Sequer uma foi encontrada. Eis aí, seguramente, uma das maiores notícias falsas de todos os tempos, seja por seu conteúdo, pela divulgação alcançada ou por suas consequências – não por acaso, foi patrocinada pelo Estado! E ninguém, absolutamente ninguém, foi responsabilizado por ela.

Tenho o hábito de ler jornais de lugares remotos do planeta. Escandalizado, leio reportagens sobre vacinas ocidentais testadas em crianças de países miseráveis da Ásia e África, com consequências terríveis para elas. Pois é: do “lado de cá”, sequer uma linha! Poderia, a propósito, escrever um livro sobre atrocidades surpreendentemente nunca divulgadas de forma maciça.

É diante desta realidade que pergunto: ao fim do cabo, o Estado solucionará ou aumentará o problema?

Pedro Valls Feu Rosa

No buraco, poder político recebe terra por cima

Com a paralisação dos caminhoneiros em declínio, o país começa a voltar à normalidade. E o normal no Brasil, como se sabe, é a anomalia da corrupção. A Polícia Federal voltou às ruas para estourar um balcão de venda de registros de sindicatos que funciona no Ministério do Trabalho. Coisa comandada pelo PTB do ex-presidiário do mensalão Roberto Jefferson. Que rapidamente declarou não ter nada a ver com o ocorrido.

Uma pesquisa do Datafolha revelou que 87% dos brasileiros apoiam a paralisação dos caminhoneiros. Para 56% das pessoas, os caminhões deveriam inclusive continuar parados. Esses dados são reveladores de uma sociedade de saco cheio, capaz de se autoimolar com uma crise de desabastecimento só para sinalizar sua extrema insatisfação com o governo em particular e com os políticos em geral.

Entre os encrencados da nova investida policial está o número 2 da pasta do Trabalho:Leonardo Arantes. É sobrinho do deputado Jovair Arantes, líder do PTB na Câmara. Só não foi preso porque está, veja você, em missão oficial na Inglaterra. A investigação vai longe. Só há uma certeza: Michel Temer manterá o Ministério do Trabalho o domínio do PTB. É por isso que quase 9 em cada dez brasileiros adoraram ver caminhões atravessados nas estradas. O poder político já sabia que estava no buraco. Descobre agora que o brasileiro quer jogar terra em cima.

Tempos interessantes

Tenho inveja de quem vive fora do Brasil — mas longe, bem longe mesmo. Deve ser sensacional acompanhar a história recente do país de um ponto de vista seguro, assim como nós acompanhamos, daqui, a erupção do Kilauea, no Havaí:

— Olha aquela coluna de lava!

— Nossa! Está destruindo as casas...!

— Acabou com as estradas!

— Que magnífico espetáculo da natureza!

De 2013 para cá, o Brasil vive uma sucessão de fatos espetaculares, todos de altíssima voltagem. Morando aqui, porém, fica um pouco mais difícil apreciar o privilégio de viver num momento histórico, e muito mais fácil entender o significado da velha maldição chinesa:

— Que você viva em tempos interessantes!

Deve ser muito reconfortante acompanhar o noticiário brasileiro durante uma hora por dia, e depois voltar para as notícias locais num mundo de tédio. O “Finland Today”, por exemplo, destacava nas manchetes de ontem que a bandeira nacional finlandesa fez cem anos, e que a universidade de Jyväskylä começou um programa piloto com o Kennel Club para que cachorros sirvam de companhia aos estudantes durante as aulas. Já a versão suíça do “The Local” abria com a história de um casal de aposentados que jogou a toalha após quatro anos de desentendimento com a administração do cantão: depois de gastar 27 mil francos com a pintura da casa, Willy e Marie Zysset receberam uma multa de 100 mil francos, porque as autoridades não gostaram da cor escolhida. Os dois se cansaram de discutir com burocratas e resolveram se mudar para Ngoulemakong, na República dos Camarões, onde ela tem família. No “Toronto Sun”, do Canadá, entre um mix variado de esportes, negócios e shows, fica-se sabendo que um jabuti, um lêmure e um macaco foram roubados do zoológico de Ontário.


Já não sabemos mais o que é viver com notícias que conseguimos esquecer ao virar a página. As nossas notícias nos acompanham o dia inteiro, nos assombram, se metem nas nossas conversas ao longo do dia, vão para a cama conosco. Infestam as nossas redes sociais. Estão no escritório, na praia, no almoço com os amigos, no táxi para casa, no jantar com a família. Lemos, vemos, ouvimos, falamos, discutimos — e nem por isso chegamos mais perto de entender o que está acontecendo, ou de alcançar algum consenso.

Greve dos caminhoneiros, por exemplo.

Há uma semana não se fala em outra coisa nesse país, e embora todos os brasileiros tenham subitamente virado especialistas em transporte de carga, ninguém sabe exatamente como aconteceu o que aconteceu, quem estava por trás ou não estava, quem se infiltrou ou deixou de se infiltrar.

A única coisa que ficou clara é que nunca se viu um governo mais despreparado para lidar com uma crise.

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Comecei a temporada a favor dos caminhoneiros, uma das categorias mais sacrificadas de um país rico em categorias sacrificadas. É difícil não se solidarizar com pessoas que correm toda a espécie de riscos para que o país continue funcionando: gente que cumpre jornadas estafantes à base de rebite, que enfrenta estradas em péssimas condições, que não tem a menor segurança no trabalho.

Também é difícil concordar com aumentos diários de combustível — nem tanto pelos aumentos em si, que podem até ter uma sólida justificativa econômica, mas pela insegurança que traz uma maluquice dessas.

E é fácil, muito fácil, fechar com quem peita esse governo incompetente, e dá um berro na cara dozômi.

Aos 20 anos, eu teria corrido para a estrada mais próxima, com o peito em festa e o coração a gargalhar.

Infelizmente deixei de ter 20 anos há muito, muito tempo.

Ainda tenho um lado perverso que gostaria de um país em full stop só para ver no que ia dar; se eu estivesse naquele lugar bem distante lá do primeiro parágrafo, até torceria para isso. O diabo é que, com a minha idade, já não preciso pensar muito para entender que o resultado não seria uma simples freada de arrumação ou uma semaninha de desconforto, mas um caos de longo alcance.

Conservo a minha simpatia pelos caminhoneiros, a respeito de quem li no Facebook, horrorizada, as coisas mais preconceituosas, escritas por pessoas que se pretendem descoladas e progressistas; mas a minha simpatia pelo movimento acabou quando estradas foram fechadas, quando pessoas foram seriamente prejudicadas e animais entraram em sofrimento.

Não dá para concordar com uma greve — ou um locaute, ou o que quer que tenha sido ou ainda seja este movimento — que imponha tanto prejuízo e tormento à população; não dá para concordar com chantagem e com ameaças.

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Do lado positivo, passamos a discutir, enfim, o equívoco que foi o sucateamento da malha ferroviária, e o erro que é manter um país tão dependente de uma única categoria. Se a nossa memória coletiva não se apagar assim que o abastecimento for restabelecido, o transporte de cargas entrou definitivamente na pauta nacional — de onde, aliás, nunca deveria ter saído.

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Lula enchia a boca para falar da “herança maldita” de FHC, mas a verdadeira herança maldita quem recebeu foi Temer — que, para nosso azar, provou mais uma vez que não tem nem moral nem competência para lidar com um abacaxi desse tamanho.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Brasil desde ontem e hoje


Deus é brasileiro

Vivendo os fatos da semana — esses eventos que, no caso brasileiro, estão sempre em busca de destino ou gaveta histórica que possa agasalhá-los porque, como as meias furadas, eles denunciam a indigência do dono do sapato — não sei se o meu título deve terminar com reticências (promotores de algo mais), com um ponto de exclamação (aprovativo); ou com o de interrogação perguntador e e ambíguo.

Vejam como surge:

Deus é brasileiro...

Deus é brasileiro!

Deus é brasileiro?

Poesia ou reza...
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Fui levado pela vida a uma saudável descrença — um ateísmo brasileiro que acredita “um pouco”. O quanto basta, diz-me alguém, para se ter a imensa fé de um grão de mostarda.

Não presumo mais um além povoado de anjos, mas convivi com eles na forma dos meus filhos e netos — e na presença das pessoas que amo. Posso não crer mais em anjos de procissão ou de carnaval, mas jamais deixei de topar com um anjo da guarda, graças (entre muitas evidências) a um filme de Frank Capra (“A felicidade não se compra”), visto quando eu tinha meus 13 anos.

O anjo guardião da minha infância e adolescência atribuladas pelas mudanças de uma Maceió, uma Niterói, uma Juiz de Fora, uma São João Nepomuceno e uma Copacabana “Princesinha do Mar” (na voz de Dick Farney) parte da “Cidade Maravilhosa” que foi o Rio de Janeiro.

Essas cidades iam e vinham. O resultado tem sido uma vida vivida mais pelo presente do que pelo passado numa só rua, colégio, bairro e, eis o essencial no Brasil, turma.

Tenho uma permanente sensação de estrangeirismo por ser um canhoto de Niterói, singularidades agravadas pelo choque cultural harvardiano nos anos 60, pelas temporadas nos Estados Unidos, sem esquecer os interlúdios parisienses e na Cambridge que os ingleses dizem ser a verdadeira.

Por fim, mas não por último, há a vida motivada pelo permanente aprendizado da antropologia social dos anthtropological blues, ouvidos por meio do requerimento paradoxal de viver não apenas entre os nativos, mas com eles. Por causa da contradição em termos que é o observar-e-participar, verifico, nesse apanhado intrometido do por onde andei (pois meu objetivo apenas era falar da greve dos caminhoneiros e, como todo mundo, falar mal do governo) — devo igualmente incluir os quase dois anos nos quais fui um intrusivo hóspede dos povos tribais gavião e apinayé. Tempos de uma vida paralela, na qual eu fui uma simples e dolorosa consciência individual que tudo anotava.

Em todos esses lugares, vivi os ritos de passagem que os estrangeiros merecem: levei trote e fui apupado porque era sempre o “de fora”. Nos Estados Unidos, passei de “Matta” a “DaMatta”. Um sobrenome mais plausível, caso escolhesse ser médico porque, como me dizia um amado Tio Mário, ninguém iria querer ser socorrido por um “Doutor Mata!”.

Ganhei também, em ritual solene, nomes de prestígio entre os chamados “índios”. Se, como ainda sabem alguns antropólogos, o nome tem muito que ver com a alma e a pessoa, eu (aos 81) ainda não sei bem quem sou!
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Jamais duvidei de que Deus era brasileiro até os anos 60. Tanto, que até duas décadas depois, eu só usei a interrogação diante do autoritarismo fascistoide do regime militar quando fui depor num daqueles tribunais como testemunha de defesa. Ali, como nestes nossos tristes tempos, tenho interrogado: “Meu Deus! — Deus é mesmo brasileiro?”

Nas crises políticas e nas greves rotineiras que se repetiam nos anos 60 e 70, eu ficava entre a inocente assertiva etnocêntrica de que Deus, apesar de tudo, era mesmo brasileiro; mas oscilava um pouco para as reticências indicativas de um Deus um tanto duvidoso de sua nacionalidade.
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Outro dia, recebi do o meu ex-mentor Dick Moneygrand um longo SMS perguntando por que eu havia deixado o paraíso universitário americano. Sendo, porém, um intelectual de boa-fé, Dick, na mesma mensagem, lembrou-se de Trump e foi ao fundo do próprio poço. “Começo a suspeitar que não podemos mais ser o povo eleito moderno — aquele que afirma no seu dinheiro: ‘Confiamos em Deus’.”
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Caros leitores, eu reitero que queria escrever sobre a greve, mas meu inconsciente não deixou. Ademais, todo mundo falou com mais informação e sapiência que eu. No desalento, apelei para o infalível “Deus é brasileiro” convencido de que Deus continua brasileiro, mas foi para Portugal....

PS: Estou consternado pela morte de Alberto Dines, jornalista consciente do seu papel e autor de um livro realmente importante sobre Stefan Zweig, um grande escritor europeu que terminou sua vida no Brasil. Sobre Philip Roth, perdi um mestre da raríssima arte de estranhar sua própria sociedade e um companheiro de reclamações.

Roberto DaMatta

O que penso sobre a greve dos caminhoneiros

Engana-se quem pensa que essa greve traz à população algo que não seja caos. Ela é pelo Diesel e não reduzirá nem o frete.

Essa frase, que postei dia 26/05 nas minhas páginas do Facebook, suscitou inúmeros comentários. A maioria expressando desagrado. Era previsível porque pesquisa feita pelo Instituto Methodus informava, na véspera, que 86% da população apoiava a greve. No entanto, não tenho o hábito de auscultar a opinião pública para decidir o que devo escrever ou falar. Se fosse fazê-lo, não teria escrito ou dito coisa alguma quando poucos, muito poucos, combatíamos as ideias de esquerda e o petismo na segunda metade dos anos 80.

Estou convencido, pela simples aplicação da razão aos fatos, de que é preciso distinguir as motivações. Uma coisa é a greve dos caminhoneiros, com apoio dos transportadores e produtores rurais interessados em reduzir o preço do diesel. Atendida essa reivindicação e isentos do pagamento de pedágio quando vazios, não fica um caminhão no acostamento. Ou alguém acredita que seus condutores continuarão parados até que o país tome jeito, que o Estado encolha, que os impostos diminuam, que a segurança aumente, que as estradas melhorem?

Outra coisa, então, são as pautas nacionais, sobre as quais muito tenho escrito e das quais poucos se têm ocupado. Quanto mais terrível for a situação no dia 7 de outubro, quanto maior o caos, mais receptiva estará a massa de eleitores a quem lhe oferecer, em 7 de outubro, o conhecido prato feito de mentira, populismo, corporativismo, estatismo e, claro, subsídios públicos. Não vislumbro a menor chance de que em tal situação a maioria do eleitorado decida optar por uma política econômica liberal. Ao contrário, ela se inclinará para o lado de quem lhe oferecer doses mais robustas do mesmo veneno através da mão falsamente dadivosa do Estado. Sou contra o plantio do caos.

Comece a falar em privatização e fim do monopólio e veja o que acontece. Quais as demandas da greve da Federação Única dos Petroleiros (FUP) programada para quarta feira? Demissão do presidente da Petrobras, retirada das Forças Armadas das refinarias onde garantem o abastecimento dos caminhões, manutenção dos empregos, “não às privatizações” e ao “desmonte da Petrobras”. Ah! Enquanto a empresa era vampirizada pelo governo petista que a transformou em objeto de escândalo e escárnio mundial, a turma da FUP, agora grevista, posava para fotos ao lado de Lula e Dilma. Agora, faz greve e se une aos caminhoneiros... “para o bem do Brasil”. Deve haver apoiador do caos aplaudindo a greve desses hipócritas porque, afinal, ela ajuda o caos, certo?

A pluralidade de expectativas em relação aos caminhoneiros é uma evidência de que ela está sendo vista como uma espécie de Bombril com usos contraditórios. Ora é uma porta aberta para a “intervenção militar constitucional”, ora uma oportunidade para o "Fora Temer", ora uma chance de criar clima para a volta da esquerda ao poder, ora uma oportunidade de acabar com os males do estatismo e ora uma oportunidade de buscar soluções junto ao Estado, ora servirá para acabar com o monopólio do petróleo e ora servirá para preservar definitivamente o monopólio. Entendam-se, porque eu não entendo.

Ponderação final: se você está convencido que a greve é boa para o país, que o “Fora Temer” petista que vi em caminhões, vindo ontem de Santa Maria, é uma boa pauta, que o agravamento do caos institucional fará o que até agora não foi feito, responda para você mesmo, a quatro meses de eleições gerais, qual o grupo político que colherá maior vantagem dele com vista aos próximos quatro anos de poder no país?

Percival Puggina

Imagem do Dia

Los Cuernos, (Chile)

Temer desligou-se perigosamente da realidade

Michel Temer trabalha com uma verdade paralela. Diz o que lhe convém, mesmo que os fatos o desmintam. Nesta terça-feira, porém, exagerou. Discursando para investidores estrangeiros, o presidente disse: “Atingimos esse que era o nosso objetivo número um: recolocar o Brasil nos trilhos.” A metáfora ferroviária, utilizada num instante em que os caminhoneiros empurraram o governo para o acostamento, desrespeita a inteligência alheia. Temer ainda não notou. Mas foi arrastado para uma situação dramática. Trafega a poucos milímetros do desfiladeiro.

Para Temer, seu governo enfrenta “dificuldades naturais em um processo de desenvolvimento sustentado.” Mas tudo continua bem porque “temos um projeto” reformista. Nenhuma palavra franca e direta sobre o caminhonaço que transtorna o país há nove dias. O orador não pronunciou palavras como “caminhão” ou “pararalisação”. Sobre a encrenca que monopoliza o noticiário, fez apenas referências indiretas e autoelogios. Temer é o negociador mais habilidoso que Temer já conheceu

“Aqueles que rejeitam o diálogo e tentam parar o Brasil, nós exercemos autoridade para preservar a ordem e os direitos da população”, disse Temer, para espanto de um país que, semi-paralisado, enxerga o vácuo na cadeira presidencial. “Antes disso, o diálogo é fundamental para o exercício do que a constituição determina. Ou seja, a democracia plena no nosso país.”

Temer teve a oportunidade de dialogar com os caminhoneiros e o baronato do setor de transporte de cargas. Desde outubro de 2017, negligenciou três avisos que chegaram ao Planalto por escrito. Deu-se, então, o bloqueio sem precedentes de estradas, num movimento que sequestrou a paz dos brasileiros. Zonzo, Temer pagou o resgate com um pacote 100% feito de déficit público.

Embora esteja imprensado contra a parede, o presidente acha que é protagonista de um processo de negociação. Com a credibilidade rente ao piso, ele se considera um portento. Para Temer, o único problema existente no país é a cegueira alheia: “Alguns confundem —quero dizer isso em letras garrafais— a vocação para o diálogo com eventual leniência política ou fraqueza política. Na verdade, é o contrário. O diálogo é a essência da boa política e da democracia, é, aliás, a sua fortaleza.”

O problema de políticos habituados a operar com a meia-verdade é que, nos momentos mais críticos, eles privilegiam sempre a metade que é mentirosa. Quando não sabe o que dizer, Temer recorre à empulhação. O truque perdeu a serventia. O inquilino do Planalto deveria firmar consigo mesmo um pacto básico: o de não dizer asneiras. O silêncio não resolve o problema. Mas evita que a plateia fique chocada com a constatação de que o presidente da República desligou-se perigosamente da realidade.

Realidade x Perspectiva

Infelizmente, parece que o Brasil se transformou no país onde a perspectiva é pior do que a realidade. Por incrível que pareça.

Nossa triste realidade todos conhecemos bem, agora agravada pelo inaceitável caos provocado pela greve dos caminhoneiros, impasse pessimamente administrado pelo governo: corrupção generalizada, 14 milhões de desempregados, boa parte deles desistindo de buscar trabalho, mercadoria cada vez mais escassa, continuo empobrecimento da população já atingindo em cheio a classe media, que não consegue mais custear os estudos de seus filhos nas escolas privadas nem pagar o condomínio, infraestrutura sucateada, saúde em frangalhos, insegurança total, violência campeando, educação de baixo nível, economia rateando, dólar batendo recorde, bolsa caindo, etc., etc.

E dizem que nossa democracia está forte porque as instituições estão funcionando bem…


Cada vez menos brasileiros acreditam nisso. Basta ver as pesquisas de opinião, que revelam claramente que o povo está farto de tanta roubalheira, desmando, descaso com a coisa pública, falta de vergonha e respeito e que quer mudança, venha ela de onde vier.

Vejamos o lastimável estado atual das nossas instituições:

O executivo em estado terminal, fraco, sem apoio das “bases” para promover reformas, envergonhado e paralisado, vítima de denúncias, umas atrás das outras, envolvendo o Chefe da Nação, sua família, amigos e ministros mais próximos.

O legislativo seguindo fielmente a sua cartilha de legislar em causa própria, como fizeram agora demagogicamente seus integrantes aprovando de afogadilho projetos para aplacar a fúria dos donos das estradas, além de outras barbaridades como a criação do execrável fundo eleitoral. Nossos parlamentares não demonstram a menor intenção de olhar para os lados e ver que mais de 200 milhões de brasileiros esperavam que os representantes do povo cuidassem do povo, e não só deles. Agora, então, com Copa do Mundo e eleições, nem pensar.

O judiciário, cuja representação máxima é o Supremo Tribunal Federal, perdendo vertiginosamente seu prestígio e se transformando na maior fonte de insegurança jurídica.

Falando em STF, nunca entendi porque os personagens que o compõem se transformaram em imperadores, em ditadores (além de “celebridades e “pop stars”), fazendo o que bem entendem monocraticamente sem nenhum controle da sociedade. O ministro soltador geral da República acaba de consumar mais algumas de suas peripécias liberando mais um bando de criminosos, inclusive o Paulo Preto, o coitadinho que não merecia ficar preso mesmo tendo contas bancárias na Suíça de mais de mais de 34 milhões de dólares e de ser acusado de desviar milhões de reais das obras do Roboanel para beneficiar seus patrões tucanos entre eles o “ínclito” senador Jose Serra. Esta solerte manobra do prelado em causa aliviou a barra do tucanato, que estava morrendo de medo que o operador mor do seu propinoduto abrisse a boca a atirasse muita “sujeira” no ventilador.

E a perspectiva?

Olhando o quadro pré-eleitoral atual, dá para ter alguma esperança de que venhamos a eleger um verdadeiro estadista para o comando do Executivo? Como nos ensinou Benjamin Disraeli, primeiro ministro britânico do século 19, “estadista é o que pensa nas próximas gerações, político é o que pensa nas próximas eleições”. Entre os candidatos melhor posicionados, incluindo Lula, que ainda pode ser beneficiado por mais uma escandalosa manobra do STF que o torne elegível (convém não esquecer que dos 11 ministros do Supremo 7 foram nomeados pelo PT), é possível identificar o estadista que tanta falta está nos fazendo?

E o Congresso? As velhas raposas, inclusive as dezenas de postulantes que estão sendo investigados pela Lava Jato, alguns já transformados em réus, podem muito bem se reeleger e manter o foro privilegiado, já que da nossa grana que surripiaram (cerca de 3 bilhões de reais, entre fundo partidário e eleitoral) a maior parte vai ficar com elas mesmas, graças às manobras dos donos dos partidos políticos aos quais pertencem. Tenho a impressão de que a sonhada renovação que almejávamos irá pro brejo. Aqueles que pensavam que o parlamento seria purificado e que ficaria livre dos Renan Calheiros e Romeros Jucás desta vida já estão tirando o cavalinho da chuva e assumindo que este não passa de mais um sonho de uma noite de verão. Afinal, com um eleitorado de mais de 140 milhões que é obrigado a votar, grande parte dele pobre ou beirando a pobreza e analfabeta funcional, dá para esperar grandes revoluções cívicas? Não é querer demais que assim seja? Lembremo-nos de Ulisses Guimarães: “se vocês estão descontentes com o atual Congresso, esperem para ver o próximo”. Sua ameaça está em vias de se consumar mais uma vez.

E o poder judiciário? Quando haverá a renovação do “pretório excelso”, cujos integrantes, graças à Lei da Bengala, só se aposentam compulsoriamente aos 75 anos de idade? A idade média atual deles é 60 anos, os mais jovens sendo Alexandre de Moraes, nascido em 1968 e Dias Tofolli, que tem 50 anos e, que, portanto, poderá ficar por lá mais 25. Como a sociedade não consegue emplacar nenhum impeachment de ministros do STF, apesar de várias tentativas frustradas (ler artigo de Modesto Carvalhosa na Veja de 2 de maio), renovação da Suprema Corte fica para as calendas gregas…

Por essas e muitas outras, tudo indica que para o Brasil pior do que a realidade só a perspectiva.

Lamentavelmente.

OCDE: Brasil paga benefícios a família 'que não são pobres'

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) reduziu para 2% sua previsão de crescimento do PIB brasileiro neste ano, segundo relatório divulgado nesta quarta-feira. Mas além da estimativa sobre a economia do país, a entidade também destacou um problema crescente detectado no pagamento de benefícios sociais, como as aposentadorias.

"Uma grande e crescente parte dos benefícios sociais no Brasil é paga a famílias que não são pobres", afirma o estudo, para o qual o sistema previdenciário atual é favorável a pessoas com renda mais alta. Segundo a entidade, o país deveria investir mais em programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e limitar aumentos daqueles que "na maioria da vezes" beneficiam a classe média.

Em suas projeções anteriores para a economia brasileira, divulgadas em fevereiro em um relatório específico sobre o país, a organização previa que o PIB cresceria 2,2% em 2018.

A estimativa da OCDE para o Brasil neste ano é menor do que a projeção do mercado: na última pesquisa Focus do Banco Central, divulgada após o início da greve dos caminhoneiros, a expectativa de expansão do PIB brasileiro, também reduzida, passou a ser de 2,37%.

Já o presidente Michel Temer disse que o Brasil deve fechar o ano com crescimento de 2% a 2,5%, "se Deus quiser".

A OCDE, no entanto, melhorou seus números em relação à economia brasileira no próximo ano.

O PIB do país deverá crescer 2,8% em 2019, segundo o estudo "Perspectivas Econômicas da OCDE". O documento, com previsões para a economia mundial, é publicado semestralmente.

Em fevereiro, no relatório específico sobre o Brasil, que não é membro da OCDE, a organização havia projetado expansão de 2,4% da economia em 2019. A estimativa era levemente superior à do estudo semestral anterior, de novembro, que previa avanço do PIB de 2,3% no próximo ano.

"A recuperação está se reforçando e o crescimento irá atingir 2,8% em 2019. Um sólido aumento do investimento reflete a melhoria na confiança graças às recentes reformas", diz a organização.

O estudo também afirma que "calibrar" os gastos públicos assegura forte potencial para tornar o crescimento econômico mais inclusivo e reduzir a corrupção.


De acordo com a OCDE, uma parte crescente do 15% do PIB gasto com benefícios sociais no Brasil é paga a famílias que não são de baixa renda.

No sistema de aposentadoria, a diferença entre benefícios e contribuições é desequilibrada e vantajosa para pessoas com renda mais alta, afirma a organização.

"Limitar aumentos futuros de benefícios sociais que na maioria das vezes beneficiam a classe média poderia financiar mais transferências de renda para os pobres, crianças e jovens, com um impacto mais forte na redução das desigualdades."

A OCDE afirma que o Bolsa Família "é um exemplo de sucesso" de programas de transferência de renda e ressalta que ele representa apenas 0,5% do PIB.

"Gastar mais com esse programa, aumentando os limites para ter direito e os níveis do benefício reduziria a pobreza e a desigualdade", diz o estudo.

O "crescimento inclusivo", com melhor acesso à educação, emprego, saúde e moradia, é um dos temas da reunião ministerial da OCDE que começa nesta quarta-feira e coincide com o lançamento do estudo da organização.

"Reforçar o foco nos gastos sociais para aqueles que mais precisam e redimensionar ineficazes isenções de impostos e subsídios para setores específicos da economia pode tornar os gastos públicos mais eficientes e mais inclusivos e frear oportunidades de corrupção", diz a OCDE sobre o Brasil.

No estudo, a organização se refere a gastos fiscais e subsídios para empresas do setor privado que criaram um terreno fértil para a corrupção, "sem nenhum benefício aparente para o bem-estar ou a produtividade".

Gente fora do mapa


O Maquiavel do iê-iê-iê

Num show em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, a orquestra executou os primeiros acordes de uma canção de muito sucesso desde os anos 1980, e o autor, Roberto Carlos, o rei do iê-iê- iê, permitiu-se uma introdução engajada. “Às vezes”, disse ele, “os fins justificam os meios. Meu carinho e meu respeito por todos os caminhoneiros que estão fazendo todo esse movimento. As causas que eles estão reivindicando com certeza não são causas só deles. São nossas causas. Meu abraço e meu carinho para esses nossos heróis caminhoneiros de todas as estradas. Para a gente realizar este show, por exemplo, temos o trabalho de caminhoneiros valentes. Caras que enfrentam coisas incríveis”. Em seguida, entoou os primeiros versos de uma canção de amor romântico descabelado, que tem tanto que ver com a saga “heroica” de seus personagens quanto a Marselhesa com a máquina de degolar do dr. Joseph-Ignace Guillotin.

O apoio de Roberto Carlos Braga, que era o alvo favorito dos engajados contra a ditadura militar por ser considerado o papa do estrelato “alienado” no Brasil, é algo a ser comemorado pelos “grevistas” das estradas como um feito realmente extraordinário. Até recentemente ele foi tão alheio a temas políticos que muitos atribuíam sua neutralidade suíça ao fato de se considerar realmente “rei” e, portanto, acima de meras querelas republicanas. Na verdade, imune a guerras que não dão lucro, como, por exemplo, pelos direitos humanos, ele sempre foi muito atento a causas que afetam seu patrimônio particular. Foi ao Senado com um grupo de estrelas defender a interferência estatal na atuação do Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad), na certa por sentir ameaçado seu naco no bolo autoral. Aderiu também à cruzada de famosos das artes para censurar biógrafos no mesmo Congresso Nacional, convencido de que incertos historiadores abelhudos não deviam ganhar rios de dinheiro à sua custa.

No ano passado, o prenome composto pelo qual ele zela muito, a ponto de processar para impedir o corretor imobiliário Roberto Cavalli de vender terrenos na praia do Conde, no litoral sul da Paraíba, usando as próprias iniciais, RC, foi citado falsamente em sites petistas. Segundo estes, ele teria dito no programa de Jô Soares que seria inaceitável o que está acontecendo com Lula e que o lugar do ex-dirigente sindical seria a Presidência da República. O portal boato.org desmascarou a fake news. Afinal, Jô não tinha mais um programa para chamar de seu e, ao contrário do que os apoiadores do petista disseminaram, o que se encontrou dele sobre a Lava Jato, cujas investigações já levaram Lula à cadeia após condenação em duas instâncias, foi chamar o juiz federal Sergio Moro de “maravilhoso”.

Agora o PT e a direita pitbull, que quer dois em um – Bolsonaro eleito presidente e intervenção militar – encontraram, enfim, uma declaração indiscutível em que novamente o criador da Jovem Guarda apoiou uma luta na qual a esquerda larápia e a direita truculenta se empenham com fervor. De verdade, o autor de Se Você Pensa meteu os pés pelas mãos. Sua homenagem aos heróis das redes sociais e novos veículos do “fora Temer” começa com o famoso lema comuno-fascista, que o georgiano Stalin viveu para confirmar no poder: “Os fins justificam os meios” – falsamente atribuído a Nicoló Maquiavel, conselheiro político, cujas pérolas da Realpolitik são populares há seis séculos.

Logo em seguida, Sua Majestade da guitarra elétrica decretou édito imperial conforme o qual as causas dos caminhoneiros são “as nossas”. De quem mesmo, cara-pálida? O decreto real merece um reparo que deve ser estendido aos noticiários nos meios de comunicação. A obstrução de pontos nas estradas de todo o País tem sido chamado de “greve”, definida no Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa como “cessação voluntária e coletiva do trabalho, decidida por assalariados para obtenção de benefícios materiais e/ou sociais, direitos trabalhistas, etc., ou ainda para se garantirem as conquistas adquiridas que, porventura, estejam ameaçadas de supressão”. Nos pontos de obstrução nas estradas (quebra da liberdade de ir e vir), reúnem-se, segundo os próprios participantes dos bloqueios, motoristas autônomos. Ou seja, que não trabalham para ninguém e, portanto, não fazem greves. A duração do movimento e sua pauta de reivindicações autorizam quem acredita que eles contem com apoio e infra-estrutura de transportadoras de cargas. Se for verdade, já é o caso de apontar a segunda ilegalidade, ou seja o locaute, aportuguesamento da expressão inglesa lock out, paralisação de patrões, proibida por lei..

O desgoverno federal tornou-se o principal responsável pelo caos gerado pelo desabastecimento de derivados de petróleo, que paralisou fábricas, aeroportos e transportes que não consomem diesel e centrais e mercados de frutas, verduras, carnes e hortaliças, por se ter mostrado incapaz de entender e reprimir à altura o terceiro crime cometido pelos soit-disants manifestantes: a chantagem. Na prática, uma espécie de sequestro em que os produtores, comerciantes e consumidores de outros derivados de petróleo e alimentos, incluindo o sr. Braga, somos vítimas, e não beneficiários eventuais das exigências de suas pautas.

Estes são os caminhoneiros autônomos, as transportadoras, as grandes empresas proprietárias de frotas que consomem preferencialmente diesel, cujo preço passou a ser subsidiado com a subtração de 46 centavos por litro. Os sacrifícios a que Temer se referiu em sua fala do trono no domingo serão não do governo, como disse, mas do contribuinte, que arcará com o pagamento do resgate no valor de R$ 13,5 bilhões, divididos em prestações nos sete meses que ainda restam ao desgoverno Temer.

A benemerência do constitucionalista de Tietê com o chapéu dos outros brasileiros, entre os quais 24 milhões de desempregados e desiludidos, atenderá às transportadoras, como ele fez questão de acentuar, retirando-as das listas das empresas que não terão desoneradas suas folhas de pagamento. Criará uma figura estranha à pretensa ideologia liberal da atual gestão, qual seja, a reserva de mercado dos fretes da Companhia de Abastecimento (Conab). E revolucionará a relação entre capital e trabalho com o estabelecimento de um tabelamento mínimo do frete, uma jabuticaba inacreditável em que o doutor Michel superará seus dois mestres nesse gênero de malabarismos: o colega José Sarney e a ex-titular do cargo Dilma Vana Rousseff, ambos já batidos pelo discípulo no quesito impopularidade extrema.

Em favor de RC, o Único, pode-se dizer que suas vantagens pecuniárias, com o aumento da circulação da canção O Caminhoneiro, não podem ser comparadas nem com esses benefícios citados nem com os outros, de natureza política. O ex-presidente Lula, que está preso em Curitiba e consegue fazer-se ouvir do lado de fora da cadeia sempre que é visitado por algum companheiro, criticou a maneira como o desgoverno Temer tem conduzido a “greve” dos caminhoneiros contra o aumento no preço dos combustíveis e que paralisou o país ao longo da semana. Segundo o líder da oposição na Câmara, José Guimarães (PT-CE), Lula lhe disse: “A que ponto chegamos, o preço da gasolina, uma greve deste porte, cadê o governo, o governo não faz nada?”. Não é mesmo emocionante?

De Lula, contudo, não se podia esperar nada diferente. O mesmo não se pode dizer de Eunício Oliveira, presidente do Senado e correligionário do presidente, que se manifestou contra a política de preços da Petrobrás, à qual atribuiu a crise. Também pudera: o cidadão é candidato à reeleição e seu MDB é um dos 24 partidos que, sob a liderança do presidenciável Ciro Gomes, do PDT, quer reeleger o governador petista do Ceará.

O oportunismo populista deve ser considerado estranho na voz de Roberto. O mesmo se pode dizer do vice-presidente do Senado, Cássio Cunha Lima, que rasgou os discursos liberais de seu partido, o PSDB, ao pedir a cabeça de Pedro Parente pelo crime de estar trabalhando corretamente para evitar a falência da Petrobrás, empreendida pela dupla Lula-Dilma. Ou da governadora do Paraná, Cida Borghetti, mulher do ex-ministro da Saúde de Temer, Ricardo Barros, ao declarar que no seu Estado não permitirá que tropas desmanchem os piquetes dos recalcitrantes praticantes dos crimes continuados de obstrução à mobilidade, garantida pela Constituição, locaute, sequestro e chantagem.

De Tancredo@pol para Todo Mundo

Meus patrícios,

Quem viveu o meu tempo deve lembrar. Em 1981, o último dos generais presidentes perdeu a credibilidade com o atentado do Riocentro e a saúde com um enfarte. Um ano depois, ele perdeu o controle da economia, com a quebra do país. Em 1984, o general João Baptista Figueiredo perdeu o controle da rua com a campanha das Diretas. Seu sistema nervoso explodiu, e ele tentou criar crises institucionais, disse coisas que não faziam nexo e acabou indo embora do palácio por uma porta lateral, pedindo para ser esquecido. Teve tanto êxito nisso, que essas reminiscências parecem conversa de defunto.

Eu governava Minas, percebi que a campanha das Diretas naufragaria, e disso resultaria minha eleição, pelo sistema indireto criado para perpetuar o poder dos interesses que apoiavam a ditadura. Passei todo o tempo da campanha com o pé no freio. Nunca usei informações nem dei passos que agravariam a crise. Tirei as bandeiras vermelhas dos comícios. Acabei com o regime sem gritar “abaixo a ditadura”.


Digo isso porque a situação de Michel Temer ficou parecida com a de Figueiredo. Seus gestos e sua calma beduína não se assemelham aos do general cavalariano, mas seu palácio lembra o dele em 1984, o de Vargas em 1954, o de João Goulart em 1964 e o de Costa e Silva em 1968. Tudo o que podia dar errado, errado dava. E se nada de errado podia acontecer, o presidente e seus conselheiros criaram novas encrencas.

Temer teve aquela conversa desastrosa com Joesley Batista. Quando começou o movimento dos caminhoneiros e das transportadoras, foi para uma cerimônia banal no Rio. Lá atrás, Gregório Fortunato, chefe dos capangas de Getúlio, mandou matar Carlos Lacerda. Dezenove dias depois, matou-se Vargas. Em março de 1964, contra minha opinião, Jango foi à reunião com os sargentos no Automóvel Club, e seis dias depois estava asilado no Uruguai. Em julho de 1968, Costa e Silva repeliu o estado de sítio, que duraria, no máximo, quatro meses. Em dezembro, baixou o AI-5, que durou dez anos. Como não falo mal de senhoras, passo longe de Dilma Rousseff.

Nessa estranha crise dos caminhoneiros, os colaboradores de Temer deram entrevistas desconexas e inúteis. Nem ceder ele soube. Como diria o divertido jornalista Nertan Macedo, com quem almocei outro dia, o governo foi para a televisão com a imponência de senadores romanos e a inteligência de Mike Tyson.

Quem não gosta de Temer tem todos os motivos para se regozijar, mas não deve se esquecer de que o futuro está no próximo passo, e só nele. Em outubro será escolhido um novo presidente. Muita gente dirá que as escolhas disponíveis são pobres. Nada posso fazer, mas novamente peço-lhes que olhem para trás. Em janeiro de 1964 o Brasil tinha dois candidatos: Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek. No clima polarizado daqueles dias, uma parte da militância e da elite política não aceitava a ideia de empossar o algoz de Vargas ou o mineiro que chamava de corrupto. Três meses depois começou uma noite que durou 21 anos.

Durante a treva, o mais entusiasmado dos lacerdistas admitia que teria sido preferível uma vitória de JK. O mesmo se deu com o outro lado. Aliás, em 1967 os dois juntaram-se, mas já era tarde.

Saúdo meus compatriotas e despeço-me.

Tancredo Neves.

Elio Gaspari

A seleção que despreza sua gente

Neste atípico domingo, a seleção brasileira encerrou a primeira etapa de preparação para a Copa do Mundo e embarcou rumo a Londres, onde prosseguirá com os treinamentos antes de chegar à Rússia. Enquanto o país vive um colapso de serviços em consequência da greve dos caminhoneiros, jogadores, comissão técnica e dirigentes circulavam de helicóptero entre Teresópolis e Rio de Janeiro. Seguiram para o Galeão sob forte escolta policial e tiveram cada passo no aeroporto transmitido como um estrondoso acontecimento em rede nacional. Despedida digna de uma seleção que despreza sua gente. O processo de elitização dos estádios e a frieza dos cartolas ampliaram o abismo que separa os craques dos meros mortais.

Mauro Pimentel (AFP)
Na Granja Comary, a equipe de Tite fez apenas um treino aberto ao público. A confusão logo se estabeleceu, já que o centro de treinamentos em Teresópolis não possui estrutura para abrigar tantos torcedores. Muitos, incluindo crianças com camisas amarelas, foram barrados do lado de fora mesmo depois de passar horas na fila à espera de uma senha de acesso ao local. Sim, é preciso pegar senha para acompanhar um treino protocolar da seleção. Um treino. Quem conseguiu entrar, se acotovelava por uma selfie ou um autógrafo durante os minutos em que jogadores se dispuseram a atender os fãs. Amontoadas em uma grade que controlava a entrada para as arquibancadas improvisadas, algumas pessoas demonstraram a revolta contra o tratamento de gado dispensado pela CBF com gritos de “uh, uh é 7 a 1”, em alusão ao maior vexame da história do futebol brasileiro.

Resumo da ópera: teve tentativa de invasão, frustração e muita desorganização. Na Copa de 2014, a Granja Comary já havia reproduzido um retrato fiel da desigualdade social no Brasil. Boa parte dos treinos era aberta a torcedores, porém, somente àqueles que moram no condomínio fechado vizinho ao complexo e a seus convidados VIPs. Condôminos resolveram lucrar em cima do privilégio e passaram a cobrar por convites. Ter o nome na lista custava entre 50 e 100 reais. Os treinos “abertos” serviram só para reforçar benesses dos ricos e tornar a seleção ainda mais inacessível aos pobres.

A Copa “padrão FIFA” tinha ingressos proibitivos para quem depende de salário mínimo padrão Brasil. Houve casos de abastados que torraram até 5.000 reais pelo direito de assistir à humilhante eliminação diante da Alemanha na semifinal. O encarecimento virou regra pós-Copa. Estádios se converteram em espaços elitizados e os clubes, na esteira das novas arenas, inflacionaram a arquibancada, chancelados pela política de preços da CBF. Os jogos do Brasil em casa pelas Eliminatórias foram um acinte ao bom senso num cenário de crise econômica. Em Porto Alegre, contra o Equador, as entradas custaram, em média, 214 reais. Mais de 20.000 lugares na Arena do Grêmio ficaram vazios. Contra o Paraguai, na Arena Corinthians, que confirmou a classificação antecipada para o Mundial, o preço dos ingressos variou entre 100 e 1.000 reais. Também em São Paulo, a partida contra o Chile, realizada do Allianz Parque, alcançou renda superior a 15 milhões de reais, um recorde nacional. O bilhete mais barato, desconsiderando a meia-entrada, saía por 250 reais.

Quantos brasileiros podem se dar ao luxo de pagar 250 reais para ver um jogo de futebol? Talvez seja pouco para aquele 1% da população que concentra uma enorme fatia das riquezas, mas representa quase 1/3 do rendimento mensal de mais da metade dos trabalhadores do país. A CBF, que fatura caminhões de dólares por ano, não teve sensibilidade para compreender que um treino aberto em Teresópolis é muito pouco para um time que diz representar mais de 200 milhões de torcedores. Depois do fracasso na última Copa, a confederação sequer moveu esforços para reaproximar a seleção de seu povo. Preferiu seguir caminho inverso ao afastá-la de quem não tem dinheiro sobrando.

Um quadro ainda mais grave se levarmos em conta que, dos 23 jogadores convocados para a Copa, apenas três (Cássio, Fágner e Geromel) atuam no Brasil. Nos acostumamos a ver a seleção e nossos talentos pela TV. Interesses de patrocinadores e acordos comerciais sempre falam mais alto. Os dois únicos amistosos antes da Copa, contra Áustria e Croácia, serão promovidos no exterior por intermédio da Pitch International, empresa investigada pela Justiça americana no escândalo de corrupção da FIFA. Ao contrário dos torcedores comuns, representantes e convidados de patrocinadores da CBF tiveram livre acesso às atividades da seleção na Granja Comary.

A comissão técnica chegou a cogitar um jogo de despedida no Brasil, mas a cúpula da confederação não encontrou brecha na agenda para viabilizar o desejo de Tite. Aquele clima de oba-oba inflado em 2014, de fato, é totalmente dispensável. Mas o torcedor brasileiro, carente de ídolos e violentado pela elitização de sua própria seleção, merecia, no mínimo, uma despedida com ingressos a preços populares e estádio cheio – de preferência, o Maracanã, pelo simbolismo. Ou, pelo menos, um treino de verdade, portões abertos, como fez a Argentina ao receber 30.000 torcedores no estádio do Huracán antes de enfrentar o Haiti na mítica Bombonera. Dirigentes que mandam em nosso futebol parecem habitar outro planeta, incapazes de reconhecer o valor de quem se dispõe a enfrentar fila e pegar senha sonhando resgatar, em frações de um minuto, o vínculo perdido com estrelas tão distantes.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Podem parar as provocações, porque os militares não aceitam fazer intervenção

Como reflexo da decepção com os políticos em geral, vem crescendo o apoio a uma intervenção militar, não há a menor dúvida. Nos botecos da vida, não se fala em outra coisa. E a grave crise provocada pelos caminhoneiros aumentou a pressão. Agora, já na chamada undécima hora, quando os postos começaram a ser reabastecidos e se esperava o final do protesto, aparece em cena um ilustre desconhecido chamado José da Fonseca Lopes, da Associação Brasileira dos Caminhoneiros, para revelar que a greve não acabou e há mobilização para os motoristas defenderem a intervenção militar.

Pessoalmente, não acredito nessa história mal contada, sem pé nem cabeça, pois o tal líder dos caminhoneiros disse que ia revelar ao governo os “intervencionistas”, porém nada fez.

Em política as aparências geralmente enganam. Nesta quarta-feira o mais provável é que os grevistas esvaziem o movimento e voltem às estradas. Posso estar errado, mas é o que eu penso.

O fato concreto é que muitos defensores da intervenção militar esqueceram o conselho de Garrincha e não consultaram os russos. Ou seja, não perguntaram aos oficiais generais o que eles acham dessa possibilidade. Se tivessem feito essa consulta, saberiam que os militares não pretendem intervir na política.

Acompanham tudo de perto, podem fazer algumas operações pontuais, se forem especificamente convocados pelo governo, mas não pretendem tomar o poder.

Em 3 de abril, véspera do julgamento do habeas corpus de Lula da Silva no Supremo, quando os ministros poderiam soltá-lo e até garantir sua candidatura, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, fez uma clara advertência. Divulgou uma mensagem dizendo que a instituição “julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”, acrescentando que o Exército também defende o “respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”, e se mantém atento às suas missões institucionais.

O general destacou , ainda que “nessa situação que vive o Brasil”, é preciso questionar às instituições e ao povo quem “está pensando no bem do país” e “quem está preocupado apenas com interesses pessoais”.

Felizmente, o Supremo soube captar a mensagem do chefe militar e manteve Lula na cadeia, deixando-o impossibilitado de se registrar como candidato, devido à Lei da Filha Limpa.

A possibilidade de intervenção militar era concreta, palpável, definida. No entanto, como o Supremo recuou, os chefes militares também fizeram uma retirada estratégica. Estão atentos, podem ser convocados para resolver problemas que ameacem a ordem democrática, mas não ultrapassarão a fronteira institucional.

Sabem que foram os civis que criaram a situação em que o país se encontra e não pretendem assumir a responsabilidade de recuperar a nação. Basta constatar o que aconteceu nesta greve dos caminhoneiros. O Exército nem entrou em ação, fez apenas uma presença discreta e deixou que o problema fosse se resolvendo sozinho.

Depois de oito dias de greve, o ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna disse ontem que ainda não é possível afirmar quando o protesto terminará. Sinceramente, esperava-se que ele dissesse algo assim: “Todas as reivindicações foram atendidas, a greve tem de acabar agora!”. Mas acontece que ele não sabe jogar no ataque, está conformado em ficar apenas na defesa.

'Vaselina' pra bilhar

Nenhum dos pré-candidatos demonstrou ter noção da gravidade do problema. Não sei o que esperar das eleições diante de respostas tão esvaziadas. Foi um show de “vaselina” e contradições
Sérgio Abranches, sociólogo e cientista político

O momento é mais delicado que o impeachment

O Brasil é um país com extraordinária capacidade de piorar o que estava mal. Na política, acontece aos saltos, num ritmo frenético. Desde o Joesley Day— o dia em que Joesley Batista jogou estrume nos ventiladores —, sabe-se que o governo pode emborcar. Ainda resguarda-se a consciência de que navegar é preciso, na esperança de chegar ao próximo ano, com renovado ânimo e novo governo, após a eleição.

Mas, na última semana, o país resvalou a dúvida a respeito disto. Até mais que o impeachment de Dilma Rousseff, a greve de caminhoneiros – ou o lockout das empresas de transporte — foi o acontecimento mais delicado, em riscos e eventuais consequências, para a democracia do país. Os desacertos revelam uma torrente de erros históricos e também explicitam a incapacidade de diálogo e a dificuldade de encontrar saídas.

Sem explorar o potencial hidroviário e tendo abandonado as ferrovias, o país optou pelo modelo de transporte rodoviário, péssima escolha para quem depende de petróleo. Mais recentemente, o BNDES dos governos do PT deu enorme incentivo à ampliação da frota, sem se importar com os riscos do excesso. O mercado foi inundado por um acréscimo de 83% no número de caminhões. Ao mesmo tempo, o crescimento econômico secou e os fretes escassearam. O desastre foi inevitável.

Já no governo Temer, a nova mentalidade da Petrobrás (by PSDB) considerou estar acima dos problemas da economia real. Bastava-lhe o interesse de acionistas minoritários. O choque de credibilidade e a busca da confiança do mercado eram pedra-de-toque do próprio governo. Esqueceu-se, porém, o papel fundamental do acionista majoritário, o Estado: zelar pelo mínimo indispensável de equilíbrio social.

No acumulado de erros históricos, ninguém considerou que poderia dar M… Nenhuma força política está isenta de crítica.


Ainda assim, o que se poderia chamar de “governo” Temer comeu mosca ao não se antecipar aos problemas, no momento em que o mercado internacional e a política de preços de sua estatal colidiriam com uma massa incomum de trabalhadores. Não é conversa mole o slogan corporativista que diz que “sem o caminhoneiro, o Brasil para”.

No sábado o Jornal Nacional, da TV Globo, mostrou que em ofício de outubro passado a Associação Brasileira de Caminhoneiros (Abcam) alertou a Casa Civil para as dificuldades do setor. Em caráter de urgência, reiterou recentemente o apelo ao presidente da República. Nem Eliseu Padilha, nem Michel Temer se tocaram. Mais vitais eram as articulações para o salvamento da própria pele. Quando se deram conta, o Brasil parou de fato.

O governo também parece ter errado no diagnóstico da crise. Demorou a atinar para a influência de empresas do setor sobre o movimento de trabalhadores. Nos últimos dias percebeu-se indícios de lockout, com transportadoras fornecendo apoio aos grevistas, um crime que exigem rápida punição, com multas e prisões.

Além disso, a turma de Michel Temer inverteu o mais rudimentar princípio de negociação: primeiro endurecer, para só depois ceder. Começando pelo fim, despertou-se o sentimento de que os motoristas poderiam retirar mais da contenda. Talvez pela consciência da fraqueza, talvez pela íntima percepção da pouca credibilidade que carrega, já nos primeiros dias o governo mostrou estar nas cordas.

Na sexta-feira, o governo dava sinais de pânico. E se errou ao ceder, resolveu exceder no endurecimento. Na incapacidade de articulação com governadores e na incerteza de contar com o suporte das polícias dos estados, mais uma vez, recorreu às Forças Armadas. Viciado vai ficando no uso de um recurso mais que excepcional.

Deu-se então o paradoxo: quem deveria sentir-se acuado pela força acabou por pedir a intervenção da caserna, não contra si, mas em desfavor do próprio governo e dos políticos em geral. A antipolítica ganhou os ares, apelos pelo uso da força foram explícitos. Boatos expandiram-se. Namorou-se o retrocesso institucional. E o mais assustador, a insensatez recebeu franco apoio.

Sentindo a faca no pescoço, na noite de domingo, Michel Temer foi a TV para capitular. Mais uma vez, cedeu amplamente. Ao fundo, ouviu-se um ressuscitado rumor de panelas… Agiu no limite de suas debilitadas forças para evitar mau maior: a crise de desabastecimento, a paralisia das cidades, o caos no país. O problema é ter exposto o nervo que será fustigado: recorrer aos militares foi bravata. Riscos e ameaças não cessam com armistícios desse tipo.

Como não poderia deixar de ser, no paralelo disparam os cálculos eleitorais: por ter agido com maior desenvoltura que a trôpega tropa de Temer, o governador de São Paulo ganhou luzes. Márcio França não mais será um desconhecido. Mesmo ao final esvaziado pelo ciúme de adversários, despertou a atenção que precisava. E de forma positiva.

Já a imperícia do governo federal o afunda ainda um pouco mais. Sobram respingos para os candidatos de algum modo identificados com Michel Temer. Por sua vez, a radicalização favorece nomes e discursos mais agressivos e voluntaristas — à esquerda e, sobretudo, à direita. Brilham os olhos dos postulantes a salvador da pátria.

No deserto de liderança política, questões estruturais são abandonadas diante da aflição das crises agudas. Cego fica o olhar para o futuro. O paliativo torna-se a norma e nada é mais brasileiro que a gambiarra. Não há mal que não possa ser piorado. Mais que do momento, o drama é do lugar: não há sociedade, há briga de torcidas; não há Congresso, há cartório; não há economia, há uma feira ruidosa. Não há governo, há um vazio. Se não é um país, será um abismo?

Presidente eleito terá de governar já na transição

Além dos reflexos econômicos, a crise dos caminhões deixará marcas políticas. O governo já havia entrado em colapso ético em maio de 2017, quando explodiu o grampo do Jaburu. Na crise atual, o que se convencionou chamar de gestão Temer viveu um apagão administrativo. No momento, Temer dispõe de uma equipe inepta, uma base congressual estilhaçada e uma autoridade que cabe numa caixa de fósforos. Tudo isso leva o mercado, a sociedade e os atores políticos a desligarem o presidente da tomada.

Entre o colapso moral de maio de 2017 e o apagão de maio de 2018, o desgoverno de Temer operou em duas velocidades que podem ser consideradas insultuosas. Moralmente, foi ligeiro como um punguista. Gerencialmente, foi lento como uma lesma. A autoridade de Temer ruiu porque a sociedade tem a exata percepção de que honestidade e eficiência são como virgindade. Quem perdeu não recupera.

A crise dos caminhões fez de Temer um presidente terminal. Ele não deixará a Presidência, terá alta. Sairia em 1º de janeiro de 2019. Mas, na prática, seu mandato será encurtado para 28 de outubro. Nesse dia, o brasileiro escolherá, em segundo turno, o próximo presidente da República. A realidade forçará o presidente eleito a iniciar o novo governo já na fase de transição. Temer, que se queixava de ser tratado por Dilma como um vice “decorativo”, permanecerá no Planalto até 1º janeiro como um vaso quebrado à espera de ser removido para o entulho da história.

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O custo da embromação

É farta a documentação demonstrando que Dilma, Temer, governadores estaduais e o Congresso passaram os últimos 42 meses, literalmente, enrolando na discussão de alternativas para o setor de transporte de cargas. O custo da letargia será um bilionário subsídio, socializado pelo aumento de tributos no curto prazo.

No domingo, 26 de outubro de 2014, quando Dilma foi reeleita, o problema já dormitava em sua mesa no Planalto. Nem prestou atenção, até porque vivia um paradoxal “luto” da vitória, segundo a descrição feita pelo aliado Lula, no livro “A verdade vencerá”: “A sensação que tive foi de que ela não tinha gostado de ganhar.” Ambos governaram segurando os preços da Petrobras.


Ela demorou a reagir. Em fevereiro de 2015 houve bloqueio de rodovias, sob a alegação de que mais de 90% do frete entre São Paulo e Nordeste estavam sendo consumidos no custo de óleo diesel, pedágio e manutenção dos veículos. Dilma autorizou Miguel Rossetto (PT-RS), chefe da Secretaria de Governo, a receber representantes do setor. Depois do carnaval.

Duas semanas depois, sancionou em ato fechado a Lei dos Caminhoneiros, aprovada pelo Congresso. Rossetto tratou-a como dádiva pela “liberação das rodovias”. A lei previa coisas não efetivadas, como isenção de pedágio para caminhão vazio — anunciada de novo no último domingo, agora ao custo de R$ 50 milhões mensais.

Nada aconteceu nos oito meses seguintes de 2015, além de três reuniões, a última num certo “Departamento de Diálogos Sociais” do Planalto. Até que na terça-feira 9 de novembro, caminhões pararam em 14 estados. José Eduardo Cardozo (PT-SP), ministro da Justiça, anunciou aumento de multa por bloqueio.

Os protestos voltaram em janeiro de 2016. Dilma acenou com uso da força: “Meu governo não ficará quieto”. Cardozo enxergou “vários crimes”, e o ministro dos Transportes, César Borges (DEM-BA), viu conspiração. As conversas só foram retomadas em abril, cinco semanas antes do afastamento de Dilma da Presidência.

Em agosto, sob Temer, caminhoneiros se queixaram no Senado dos compromissos não cumpridos. Repetiram advertências sobre “parar o país”. Promessas legislativas adormeciam.

Quando Temer completou o primeiro ano no Planalto, transportadoras paulistas divulgaram um video sobre como fazer “a sociedade entrar em colapso”. O governo atravessou os 19 meses seguintes fingindo que o problema não existia. Na quinta-feira 5 de outubro de 2017, chegou outra advertência à Casa Civil. Temer foi visitar a base espacial, no Maranhão. E o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS), foi para casa, em Porto Alegre, em voo da FAB por “motivo de segurança”.

Passaram-se sete meses. No último 14 de maio, novo documento chegou ao Planalto. Nele, pedia-se que “o governo leve mais a sério!!!” Ameaçava-se: “Imagine o Brasil ficar sem transporte por uma semana, ou mais???” Temer e Padilha estavam dedicados à campanha “O Brasil voltou, 20 anos em 2”. E o chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun (PMDB-MS), curtia Nova York.

Novo aviso aterrissou no palácio 48 horas depois: “É altamente inflamável, como palha seca”. Indicava até a data (21/5) dos protestos. Nesse enredo de 42 meses ninguém se mexeu na máquina de 53 mil órgãos, com mais de 49.500 chefes, espalhados por 1.400 cidades. Deu nisso aí.