quarta-feira, 3 de maio de 2017

Qual é a pergunta?

Será que todo mundo tem uma pergunta? Uma “questão” — como se diz hoje em dia — transformando a curiosidade num disfarçado protesto?

Minha inspiração vem de um velho texto do antropólogo E. E. Evans-Pritchard, que, numa reflexão sobre o seu estudo clássico da bruxaria entre os azande, povo do então Sudão anglo-egípcio, lembra que “tanto na ciência, quanto na vida, só se acha o que procura”.

Usei essa fulgurante admoestação como epígrafe no meu livro “Relativizando”, no qual eu introduzia a antropologia que pratico com o temor e a entrega dos que têm na sua profissão uma razão para viver.

Todos temos perguntas-procuras e respostas-achados. Esquecidos de que o pensamento jamais é livre, pois depende de tempo e lugar: da língua e da cultura com as quais foi impingido. Quase sempre julgamos que perguntas e respostas são separadas quando, na verdade, elas se inter-relacionam. Uma implica na outra. De pouco vale perguntar — num mundo mau — se Deus é bom! É óbvio que as incertezas barrocas dos juízes do Supremo conduzem à certeza mais absoluta do Juízo Final. Este sim, livre de fórum privilegiado e, sobretudo, de prescrições.

A resposta dadas às grandes perguntas são suas imagens invertidas.


Charge O Tempo 03/05/2017

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A maioria talvez nem chegue a saber que tem o direito (e, em certas circunstâncias, o dever) de indagar. Perguntar, diria um filósofo, e não um oráculo de segunda, como esse vosso cronista, é o embrião da liberdade. Escravos, altos funcionários públicos que recebem um absurdo do dinheiro da Previdência, lulopetistas corruptos, que compraram o Estado brasileiro e os modos de produção de emprego sem trabalho, jamais perguntam. Jamais duvidam. O autoquestionamento é a consciência — aquilo que nos faz humanos e, mais que isso, responsáveis. Essa palavra banida do vocabulário político brasileiro.

Todos passamos pela “idade das perguntas”. Por que os cães ladram, e nós falamos? Por que o Brasil é roubado pelos seus políticos — eleitos pelo povo? Quem se aposenta em menos tempo de trabalho entre nós?

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O que é um “pobre”?, como um dia me perguntou minha filha Maria Celeste, uma Celestinha que era um fiapo de gente e, morando desde os 3 anos de idade em Cambridge, Massachusetts, agora com 7 anos e visitando pela primeira vez a casa de seus avós maternos em Santo Antônio de Pádua, jamais tinha se confrontado com alguém pedindo comida.

— Papai — disse Celestinha chorando. — Uma mulher que se diz pobre ficou indignada porque eu perguntei a ela o que era “ser um pobre”. Ela me passou um sabão porque eu não sabia. Me xingou muito, papai...

— Os pobres são os explorados — respondi de pronto.

— Por quem? — replicou Celestinha, tirando o fôlego do sociólogo.

— Pelas classes ou camadas dominantes.

— Por gente como nós?

— Por nós, não! De jeito nenhum. Pelos capitalistas, empresários, industriais rentistas e comerciantes em geral. Nós somos professores, juízes, funcionários públicos...

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Quem é o pobre foi o que pesquisei num trabalho realizado nos anos 90 em São Paulo, no qual contei com a ajuda generosa de Cynthia Sarti e de Marcos Lanna. Nele, eu achei o que procurava. Vi que, sem definir o rico, seria impossível desenhar o pobre. As segmentações sociais são relativas, mas têm limites. A ausência de direitos e a legitimação da desigualdade extrema — com o escravismo negro como um dado do real até 1888; ao lado de uma enorme desvalorização do trabalho, compensada pelo empreguismo no governo como salvação para as camadas médias — engendraram um trabalhismo “antitrabalho”, mais controlador do que libertador. Ele levou à perda de direitos e, no limite, ao aniquilamento do país. Uma riqueza obtida clandestinamente pelo poder político e a ele associada permite que uma chamada “antiesquerda” tenha imobilizado o Brasil pela compra de partidos políticos, emendas parlamentares, estatais e bancos e dando emprego a um presidente da República!

É chocante ver o país espoliado por sua elite neoesquerdista e não, conforme esperávamos em minha geração, pelo imperialismo ianque! Esse imperialismo hoje em luta semelhante à nossa contra o obscurantismo e a boçalidade.

Finalmente, uma pergunta que não pode calar: qual é a alternativa para o rombo da Previdência e para a modernização das leis trabalhistas? Em política de verdade, não vale apenas ser do contra, ter uma bela cota de má-fé ou ser filho da CUT. É preciso apresentar alternativas. E se essa roubalheira tivesse ocorrido no governo de FHC? O que estamos vivendo seria revolução ou um mero golpe?

Roberto DaMatta

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