quarta-feira, 3 de maio de 2017

Há na família Corleone um senso de decência que falta aos corruptos brasileiros

Imagine-se a cena. Emílio Odebrecht, maior empreiteiro do país, dono de uma fortuna de R$ 13 bilhões, bonachão e de riso fácil, está irrequieto e agoniado. Reúne sua mulher e sua filha, engole um uísque para tomar coragem, e anuncia, com a voz trêmula, que é tudo verdade. Tudo.

Há mais de 30 anos, ele vem comprando juízes, prefeitos, governadores, deputados senadores, ministros e até presidentes da República. E que vai delatar tudo, tim-tim por tim-tim. A choradeira é geral.

Mas… e depois? O que dizem a mulher e a filha de Emílio? A mulher pede o divórcio? A filha rompe com o pai? Claro que não, ninguém esperaria isso, e nem seria razoável que o fizessem. As respostas devem ter sido parecidas com: “não fique assim querido, você não fez nada demais”.

Naturalmente, se não fosse nada demais, não haveria voz trêmula, nem choradeira, nem filho na cadeia, nem delação. Apesar disso, a frase “você não fez nada demais” é, em grande medida, sincera: depois de décadas usufruindo das benesses propiciadas pela corrupção, a pessoa cria algum mecanismo mental para justificá-la e conseguir dormir à noite. (A capacidade de negação do ser humano é poderosa, haja vista os que, até hoje, acreditam que a Lava-Jato é uma operação de direita associada ao “golpe”.)


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Ao transformar a corrupção em algo natural em suas vidas, corruptos e corruptores não se dão conta de que corrompem não somente a si próprios, mas também a seus parentes, seus amigos, seus empregados. Emílio corrompeu seu filho Marcelo de maneira direta, mas também corrompeu, indiretamente, seus outros parentes, obrigando-os a conviver com o crime e dele beneficiar-se — ou a romper com o patriarca.

Lula negociou uma mesada suja para o irmão; transformou dois filhos e um sobrinho em laranjas, e a mulher, em cúmplice numa fraude imobiliária. João Santana fez da mulher coletora de dinheiro ilegal; Jonas Lopes, do TCE do Rio, transformou o filho em mula. Junto a cada corrupto, há uma fieira de parentes e amigos envolvidos no crime. Acreditando ajudar seus entes queridos, esses criminosos roubam deles a honestidade, a decência e a dignidade.

Vito Corleone, de “O poderoso chefão”, de Mario Puzo, o criminoso mais inteligente já criado pela ficção, não é completamente cínico: ele sabe que pertence a uma casta inferior, e luta, com o apoio da família, para manter o caçula Michael fora do crime: é ele a esperança de redenção de todos. O chefão é uma tragédia, e Michael não escapa a seu destino trágico: acaba por ocupar o posto do pai como capo dei capi — mas passa a vida tentando tornar seu negócio legítimo.


Há nos Corleone um senso de decência que falta aos corruptos brasileiros, que chafurdam na lama com orgulho e prostituem as famílias com alegria. Emílio ensinou ao filho que corrupção não é nada demais, e, de aprendiz, Marcelo fez-se mestre, e tornou-se o maior corruptor de todos os tempos. Sentia-se tão poderoso que demorou quase um ano para entender o que lhe aconteceu.

O modelo Kübler-Ross postula que o processo da perda tem cinco estágios: negação, raiva, negociação, depressão e, finalmente, aceitação. Preso, Marcelo entrou em negação: encarou como breve contratempo, achou que logo seria solto. A cadeia se prolongou, veio a raiva: “quem esses procuradores e esse juiz pensam que são? vou acabar com eles!”. Não vimos a negociação — “a sentença vai ser curta, daqui a pouco saio e volto a presidir a empresa” —, mas é certo que ela ocorreu.

Com a primeira condenação, a 19 anos de prisão, a ficha enfim caiu, e, com ela, veio a depressão: há relatos de Marcelo varrendo a cela com os ombros encurvados e o olhar acabrunhado. Quando finalmente entendeu que havia perdido, que sua vida nunca mais seria a mesma, Marcelo aceitou. E decidiu falar.

O processo de Marcelo é o mais emblemático e visível, mas todos passam por ele. Em algum momento, a pessoa aceita que perdeu, e se pergunta: “vou me sacrificar? para salvar quem? por quê?” Delcídio é o recordista: não precisou de mais de 24 horas para ir da negação à aceitação, e à delação. Cada um tem um tempo diferente, mas, no fim, quase todos falam.

Nem digerimos a Odebrecht, e lá vem Leo Pinheiro, contando tudo e afirmando que Lula lhe pediu que destruísse provas. Palocci já avisou que vai falar, e deve explicar como o PT conseguiu movimentar bilhões de dólares em dinheiro frio, que banqueiro o ajudou.

Depois de Palocci, Vaccari, que, até agora, vem resistindo tão bravamente quanto Dirceu, não terá motivo para permanecer calado. Outros falarão, e, mais cedo ou mais tarde, juízes começarão a ser denunciados (o que talvez explique a ânsia de certo ministro do STF para desmoralizar os procuradores).

A Lava-Jato não tem data para acabar: Deltan até brincou que seu objetivo é superar o Candy Crush Saga, um videogame famoso por ter um número infinito de etapas, mas o que a Lava-Jato lembra mesmo é “Game of thrones”, em que o inverno é longo e a noite, escura e cheia de terrores.

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