A insegurança alcança a todos, em cidades grandes e pequenas, e cria uma sociedade que corre o risco de pisotear direitos humanos inalienáveis com episódios como o linchamento em praça pública de quem tenta roubar um celular. Nesse clima de fazer justiça com as próprias mãos, a polícia executa sem piedade à luz do dia e as balas perdidas matam crianças dentro das escolas ou nos braços de suas mães. Nem se trata mais de distinguir entre vítimas e carrascos. Acabamos nos transformando todos em carrascos quando aplaudimos a polícia que dispara contra pessoas desarmadas ou quando deixamos um policial ferido morrer na rua.
Na Espanha, durante a ditadura franquista, quando meus irmãos e eu encontrávamos uma patrulha policial na estrada, ficávamos com as pernas tremendo. Infundiam medo em vez de segurança. Ao contrário, na primeira vez que visitei Londres, vi que as pessoas se sentiam protegidas com a presença policial. Aterrissei no Brasil e voltei a recordar os duros tempos franquistas. Também nos brasileiros a presença da polícia infunde temor. Consideram-na corrupta e vendida ao tráfico de drogas. Para muitos, policial é sinônimo de bandido. Nas favelas, a polícia às vezes é mais temida que os traficantes.
A polícia, por sua vez, também se sente vítima e não carrasco. Para que prender vivos os bandidos se a justiça os coloca na rua no dia seguinte? É um mantra que se ouve com frequência. A reforma da polícia é talvez a tarefa mais difícil e sempre adiada por todos os Governos. O Brasil é um país perigoso e a carreira policial é amarga e sem prestígio. Em casa precisam lavar as fardas sem as expor para que nem os vizinhos saibam qual é sua profissão. Nos dias de folga, em que poderiam levar uma vida normal, é quando correm maior risco e quando mais morrem. A polícia tem fama de se corromper, de que é melhor não chamá-la quando se é agredido. “Não adianta nada”, dizem. Daí que às vezes a polícia caia na tentação de não andar com tantos escrúpulos e não se esforçar para prender os delinquentes preservando sua vida. Para quê?
A polícia brasileira, além de matar mais que qualquer outra do mundo, é também a menos preparada e a mais mal remunerada. Lembro-me de uma reportagem do jornal O Globo em que entrevistaram vários policiais que atuavam nas ruas do Rio. Queixavam-se de serem jogados na boca do lobo sem experiência e com armas que nem sabiam manejar, ou que eram obsoletas comparadas aos armamentos modernos usados pelos traficantes. “É difícil um policial brasileiro não se corromper quando ganha pouco mais que um pedreiro, não foi preparado para um trabalho de risco e tem sua vida e a de sua família sempre em perigo”, conta-me um militar aposentado.
Juntem todos esses ingredientes, acrescentem a raiva de uma sociedade que se sente abandonada em seu direito de ser defendida pelo Estado. Misturem com a impotência ou a incúria dos Governos federais e locais e terão a receita perfeita para o coquetel explosivo da falta de segurança. Vítimas ou carrascos? Ambas as coisas em partes iguais. Responsáveis? Quem teria o dever e os meios de pôr um ponto final nesse escândalo e nessa sangria que produz 60.000 homicídios a cada ano, mais mortes que em todas as guerras em curso. Mortes, na maioria, de jovens, negros e pobres. E os que conseguem viver, ao abandonar a escola são candidatos a perpetuar esse horror que envergonha uma sociedade e alguns governantes que vivem e viajam blindados e parecem resignados e anestesiados diante de todo esse horror que atinge as pessoas comuns.
Essa insatisfação com a falta de segurança, que corrói a confiança dos cidadãos no Estado, é o melhor caldo de cultivo para que um dia o país acorde com a democracia em coma, ou presidido por um apaixonado pela ideia de que todos vivamos armados como única solução contra a violência. Uma sociedade armada e blindada, abandonada à sua sorte pelo Estado que deveria protegê-la, é realmente democrática?
Nenhum comentário:
Postar um comentário