sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Falta Maudsley no Brasil

Tjeerd Royaards (Holanda)


É que ainda não existe Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades
Euclides da Cunha, "Os sertões"
*Henry Maudsley psiquiatra inglês pioneiro da psiquiatria, com importantes contribuições para a noção de responsabilidade penal e conceito de sociopatia

Os pobres como álibi

Existe um consenso, não unanimidade, é claro, de que o teto de gastos não pode ser rompido. Bolsonaro usou as condições dramáticas da população para estourar os limites de gastos.

A maioria das análises indica que isso pode trazer quebra de confiança dos investidores, aumento de preço dos combustíveis, inflação, enfim. Não vi ninguém condenar uma ajuda aos mais pobres. Os argumentos mais comuns são os de que, feita dessa maneira, ela dá com uma das mãos e tira com a outra, pois a economia vai estagnar, o desemprego vai crescer, e isso com repercussão negativa para todos, principalmente para os mais vulneráveis.

Essa é a discussão mais frequente. Alguns chegam a indicar as famosas emendas de relator, do também famoso orçamento secreto, como a fonte ideal para financiar a nova versão do Bolsa Família. Mas nem os deputados ligados ao governo nem o próprio governo estão dispostos a abrir mão dessas emendas, pois ela são uma das formas de pagamento de Jair Bolsonaro para evitar o impeachment.


Para além dessa discussão, alguns novos temas devem ser incorporados ao debate. O primeiro deles é a perspectiva.

Paulo Guedes comportou-se como um jogador de futebol dando entrevista no fim do primeiro tempo: levamos um gol, mas faremos tudo para empatar e virar este jogo.

Faltou, entretanto, a entrevista com o time adversário, que levou vantagem nos primeiros 45 minutos. De um modo geral, dizem isto: fizemos um gol, mas a partida não está ganha, precisamos fazer mais um ou dois para matar o jogo.

Esta é a lógica que se abre com o ano eleitoral: o teto será rompido sempre que o núcleo político que apoia Bolsonaro achar que sua eleição e a do próprio presidente estão ameaçadas. E, dentro deste contexto, Paulo Guedes será transformado num simples caixa de campanha.

Há um tema que não é propriamente novo, mas parece ignorado pelos que fazem preleções sobre o equilíbrio financeiro e a prosperidade econômica. Para políticos cujo único objetivo é o poder, equilíbrio financeiro não é algo determinante. É possível ver o País entrar num processo de decadência e não se importar tanto com essa variável, desde que a continuidade do poder não seja ameaçada.

Em outras palavras, manter o poder é fundamental, mesmo que seja para administrar a miséria. O bolivarianismo na Venezuela é um exemplo disso: as crises se acentuaram com o tempo, mas eles se agarraram ao governo. Há sempre uma forma de explicar o fracasso econômico, desde que o poder político não seja ameaçado.

Na verdade, seria injusto atribuir essa tendência perversa à grande parte dos políticos. Banqueiros e grandes financistas também se adaptam com facilidade, desde que seus lucros não sejam ameaçados.

Por isso essa discussão toda sobre as perspectivas da economia, essa angústia em torno da possibilidade ou não de o Brasil dar certo, tudo isso passa ao largo do cinismo de alguns setores dominantes.

Para eles, dar certo significa manter o poder e os lucros. O próprio Paulo Guedes passou quase uma década escrevendo artigos críticos sobre a socialdemocracia. Ao detonar o teto dos gastos, ele declarou que a ajuda aos mais pobres foi uma invenção do liberalismo.

As previsões econômicas para 2022 são ruins, as otimistas preveem um crescimento de 1,5%, algumas já falam que vamos andar para trás.

É neste contexto que se abre o ano eleitoral. Inevitavelmente, apesar de estourar o teto de gastos, Bolsonaro vai se beneficiar da ajuda oficial aos mais pobres. Certamente, já calculou, de um lado, o impacto na economia e, de outro, o impacto nas urnas.

De qualquer maneira, o fator econômico não é o único. Há algo em Bolsonaro que transcende à luta pelo poder, à ambição populista de governar mesmo que o País fracasse.

No momento em que nem todos se vacinaram contra a covid e que o Brasil contrata 300 milhões de doses de vacina para o próximo ano, Bolsonaro propaga mentira de que a vacina pode provocar aids.

Ele não se importa se isso afastará as pessoas da vacina que seu governo comprou, muito menos se haverá mais mortes a partir desta propagação de uma notícia falsa. Isso significa que ele não pode ser classificado apenas como um populista. Há algo de perverso em sua atuação, mistura de ignorância e inconsequência, indesejável em qualquer pessoa, mesmo que tenha um cargo de pouca responsabilidade.

Bolsonaro acaricia o instinto de morte e convida o País a um suicídio coletivo. Não existe nada parecido no mundo. Mesmo no passado, os grandes desastres históricos foram conduzidos por ambições territoriais, doutrinas de superioridade. Bolsonaro, ao contrário, isola alegremente o País e dificilmente vai se comover com a tragédia nacional, enquanto puder comer seu pão com leite condensado e sonhar com um caldo de cana na esquina.

É um caso especial de patologia política que levaremos anos para explicar, sua ascensão e o fascínio que exerce na parcela da população que até hoje ainda o apoia. Certamente, ao cabo dessa tarefa, poderemos dizer que entendemos um pouco mais a loucura brasileira.

Quando é crime furtar para comer

Estavam prestes a ser triturados e jogados no lixo 50 fatias de queijo, 14 linguiças calabresa, nove presuntos e cinco embalagens de bacon. Ali, numa área restrita para comida a ser descartada de um supermercado em Uruguaiana, dois homens furtaram os alimentos vencidos, no valor total de R$ 50, e fugiram. Foram presos. E absolvidos no primeiro julgamento.

Mas o promotor Luiz Antônio Barbará Dias, do Ministério Público (MP), recorreu da decisão. E pediu a condenação dos dois réus. “Apresentam condutas anteriores voltadas à prática de ilícitos, como um roubo”. O sobrenome do promotor deveria ser Carcará, eu me lembrei da letra de João do Vale, na voz de Maria Bethânia.

Carcará/ É um pássaro malvado/ Tem o bico volteado que nem gavião/ Carcará/ Num vai morrer de fome/ Carcará/ Pega, mata e come.



A humanidade e o equilíbrio deveriam ser qualidades inerentes ao cargo. Respeito o Direito. É preciso estudar muito para entrar no Ministério Público como promotor. O salário, segundo o Portal da Transparência, é acima de R$ 33 mil. As fotos favoritas de Barbará, em seu perfil do Facebook, são na Costa Amalfitana, na Itália. Há três anos, esse promotor chamou advogados de “defensores de criminosos”. Foi repudiado pela OAB. Como dorme Barbará?

Um defensor público do Rio Grande do Sul, Marco Antônio Kaufmann, acaba de contestar o promotor. “Tristes tempos em que lixo (alimento vencido) tem valor econômico. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência policial não for suficiente, nada mais importa dizer”. Tristes tempos de falta de compaixão. Kaufmann insiste agora na absolvição definitiva da dupla.

No julgamento inicial que inocentou os dois homens, o juiz André Atalla alegou “insignificância”. Furtar por fome mercadorias destinadas ao lixo não pode ser crime, é insignificante. Não pode dar prisão.

Vinte milhões de brasileiros passam fome e mais de 125 milhões sofrem de “insegurança alimentar”, medo de não ter o que comer. Se almoçarem, não jantam. “A gente reza a Deus para ver se consegue alguma coisa no outro dia”. Essa é a oração das famílias. “Vendi as panelas para comprar pão e pé de galinha”. Esse é o desespero da mãe. 

Precisamos doar alimentos em vez de punir quem furta mercadoria vencida. Miséria não pode ser apenas moeda eleitoral. O Brasil tinha saído do Mapa da Fome da ONU em 2014. Logo que assumiu, Bolsonaro acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).

“Nunca vimos tanta gente com fome”, diz filho de Betinho, Daniel de Souza, da Ação da Cidadania. “A fome não resolve com uma picada da vacina. Todos seremos vacinados, mas ela vai continuar. A fome tem pressa. Daí vem nosso apelo aos empresários para que doem”. O apelo também é dirigido a mim, a você.

Desperdiçar comida, jogar fora alimentos como tantos de nós ainda fazemos, é um crime muito maior quando o povo disputa ossos. Por ano, são desperdiçados por pessoa no Brasil 60 quilos de alimentos. Você joga comida fora? Deixa estragar na geladeira?

As cenas recentes de caminhão com ossos em disputa no bairro carioca da Glória, clicadas pelo fotógrafo Domingos Peixoto, chocaram o país. Os ossos e pelancas tinham sido descartados por açougues e mercados para envio a fábricas de sabão e ração de cachorro. 

Confio em que os dois homens de Uruguaiana serão absolvidos. Não me conformo com uma Justiça que arrasta esse processo há mais de dois anos, gastando dinheiro público à toa. Isso sim é crime. Furtar lixo para comer é desespero. 

Desplataformizem Bolsonaro: 'Está na hora de considerarmos o banimento do presidente das redes sociais'

Jair Bolsonaro ultrapassou todos os limites quando disse em uma live no Facebook na última quinta-feira que “relatórios oficiais do governo do Reino Unido” sugeririam “que os totalmente vacinados estão desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida” (Aids). A afirmação, obviamente, é falsa, além de completamente absurda.

A postagem no Facebook foi removida no domingo e, na segunda-feira, o YouTube também a removeu — nos dois casos por violarem as políticas das plataformas sobre Covid-19. O Twitter optou por apenas rotular o tuíte que apontava para o vídeo com um alerta de que contém “informações enganosas”.

As medidas são completamente insuficientes dada a gravidade do caso e o histórico do presidente de violação das diretrizes das plataformas. Está na hora de considerarmos seriamente a desplataformização de Bolsonaro: seu banimento das redes sociais.


Não é a primeira vez que ele tem uma postagem removida nas plataformas. Depois que o YouTube atualizou suas políticas sobre Covid-19, Bolsonaro teve pelo menos 15 vídeos antigos removidos. No Twitter, o presidente teve uma postagem sobre o tratamento precoce rotulada em janeiro e dois vídeos contrários ao distanciamento social apagados em março de 2020.

No Facebook, Bolsonaro teve apenas uma postagem apagada (em março de 2020), mas um levantamento da agência Lupa, de fact-checking, realizado em março de 2021, mostrou que o presidente violou as diretrizes do Facebook para a Covid-19 pelo menos 29 vezes, não sendo punido por nenhuma delas.

A empresa sofre neste momento intenso escrutínio nos Estados Unidos por isentar certas personalidades da aplicação de suas políticas e por não ter agido adequadamente na crise de confiança no sistema eleitoral que levou à invasão do Congresso americano em janeiro deste ano.

O Facebook não tem uma aplicação consistente das suas regras, como o levantamento da Lupa mostrou. Além disso, a plataforma não tem uma escala de punição, proporcional à reincidência (como tem o Youtube) ou à gravidade da infração.

Bolsonaro não é apenas reincidente, mas um reincidente em série: ele violou as diretrizes do Facebook dezenas de vezes. Além disso, uma postagem de um usuário com poucos seguidores não pode ser tratada da mesma forma que a de um grande influenciador, já que o dano neste último caso é muito maior. Pelos mesmos motivos, um cidadão comum não pode ser tratado como uma autoridade, cuja manifestação muitas vezes tem o sentido de uma recomendação endossada pelo poder público.

Bolsonaro é reincidente em série, é um influenciador com 14,5 milhões de seguidores e é o presidente da República. Se uma postagem completamente absurda de uma autoridade pública instando a população a não tomar vacina em meio a uma pandemia com 600 mil mortos não é motivo para a punição mais dura, eu me pergunto em que caso então o banimento deveria ser aplicado.

O banimento não pode ser um ato discricionário tomado de maneira arbitrária, no auge de uma crise e apenas aplicado a uma autoridade quando ela está prestes a perder o poder, como aconteceu com Donald Trump.

É preciso que as plataformas apliquem as políticas existentes de maneira firme e crescente. Se as violações persistirem com gravidade e de forma reiterada, elas precisam culminar com o banimento do presidente das plataformas. Isso já deveria ter acontecido. As empresas não podem esperar o momento em que tenhamos a nossa própria invasão do Congresso para agir.

216 palavras para a imprensa definir com precisão Bolsonaro e seu governo

Todo dia, a imprensa e os jornalistas fazem um esforço hercúleo para qualificar o governo do capitão Jair Messias Bolsonaro, permanentemente assediado pelas sandices do que diz e pelos absurdos do que faz na cadeira de presidente da República.


Pelo conjunto da obra, até agora, Bolsonaro pode ser considerado o chefe de Estado mais esdrúxulo entre as 206 nações hoje existentes no planeta, segundo as Nações Unidas, que considera 190 Estados soberanos e outros dezesseis ainda em disputa. No plano brasileiro, desde a proclamação da República, em 1889, Bolsonaro é com certeza o mais controverso, polêmico e contestado ocupante da Presidência. Por tudo isso, em pouco mais de seis meses de mandato, o capitão pode ser qualificado com justiça como o pior dos 38 presidentes da história republicana.

Com seu inesgotável e diário talento vocabular para produzir absurdos, espancar a verdade histórica e aturdir a consciência do país, Bolsonaro faz jus a um, alguns ou vários dos adjetivos abaixo, que a imprensa escava para tentar definir, sob variadas circunstâncias, esse bizarro momento da história brasileira. Conferindo:

Ignorante, burro, idiota, imbecil, retardado, analfabeto, boçal, bronco, estúpido, iletrado, ignaro, ilegível, obscuro, sombrio, onagro, atrasado, inculto, obsoleto, retrógrado, beócio, rude.

Besta, animal, cavalgadura, quadrúpede, tolo, alarve, grosseiro, jalofo, lorpa, desajeitado, peco, tapado, teimoso, chucro, intratável, desalumiado, escuro, asnático, brutal, bruto, bugre.

Desaforado, descortês, duro, estólido, inepto, lambão, obtuso, palerma, sandeu, selvagem, toupeira, cavo, incapaz, insensato, incompetente, imperito, impróprio, inapto, inábil, insuficiente.

Abagualado, bárbaro, labrusco, sáfaro, insciente, inepto, insipiente, imprudente, leigo, alheio, estranho, profano, estulto, fátuo, mentecapto, pateta, toleirão, írrito, vão, oco, chocho.

Frívolo, fútil, vazio, definhado, enfezado, frustrado, abeutalhado, agreste, áspero, chambão, cavalar, desabrido, difícil, escabroso, fragoso, incivil, inclemente, indelicado, inóspito, pesado.

Roto, ríspido, rombudo, severo, silvestre, tacanho, tosco, covarde, poltrão, safado, baldo, infundado, mentido, nugativo, supervacâneo, curto, bordegão, asinário, bordalengo, calino.

Indouto, sinistro, arrogante, desinformado, alvar, atoleimado, estúpido, boçal, bronco, animal, disparatado, rude, azêmola, desajeitado, lanzudo, brutal, asselvajado, bestial, protervo.

Selvagem, truculento, violento, chulo, irracional, javardo, malcriado, desaforado, atrevido, insolente, descortês, inconveniente, indelicado, intratável, confragoso, cru, cruel, despiedado.

Difícil, implacável, penoso, tirano, triste, estólido, estouvado, néscio, abarroado, abrutalhado, achamboado achavascado, bárbaro, chaboqueiro, crasso, desabrido, grosso, labrego.

Maleducado, reles, rugoso, rústico, soez, tarimbeiro, abestalhado, aluado, babão, bobalhão, bobo, bocó, demente, descerebrado, desequilibrado, desmiolado, lerdaço, paspalhão, pastranho.

Sendeiro, toupeira, vão, bestialógico, insociável, mal-humorado, ranzinza, soberbo, panema, embotado, escabroso, inclemente, carniceiro, safado, entupido, obducto, boto, agro, balordo.

Todo santo dia, a língua solta e a cabeça mole do capitão-presidente renovam a necessidade de escavar novos adjetivos para definir sua inqualificável obra de governo.

Só com a ajuda de nossos principais dicionários, Aurélio e Houaiss, é possível dar uma ideia aproximada do que representa, até agora, a desastrada administração federal de Bolsonaro e seus maus exemplos, como a estúpida agressão ao presidente da OAB e sua condenável impostura histórica sobre o desaparecimento de um preso político tragado pela violência da ditadura que o capitão-presidente sempre exalta e rememora com cúmplice nostalgia.

Os 216 adjetivos e vocábulos acima, para uma ou outra circunstância, qualificam (ou desqualificam) com mais precisão o governo Bolsonaro.

Para avaliar os seus três filhos Zero — Flávio, Eduardo e Carlos —, de inegável influência sobre o pensamento (?) e os atos (!) do pai presidente, é necessária outra pesquisa nos dicionários.
Luiz Cláudio Cunha

As hienas gargalham

O país de Pollyanas vê tudo cor de rosa! Que fantástica a situação brasileira! Vale a pena aumentar os Fundos Partidário e Eleitoral, para que o governo continue a atender às necessidades da população. Afinal, partidos políticos são muito mais importantes do que o resto. O resto é o povo.

Um povo muito exigente. Quer comer todos os dias. Pouco importa que praticamente um Chile inteiro – vinte milhões de corpos famélicos – passem mais de vinte e quatro horas sem ter o que comer. Além disso, quase vinte e cinco milhões não sabem como se alimentarão a cada dia. Outros quase setenta e cinco milhões têm a convicção de que estarão, em breve, em situação idêntica.


A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apurou que mais da metade dos brasileiros padeciam de insegurança alimentar em dezembro de 2020. Alguém se arriscaria a dizer que as coisas melhoraram desde então? Quem é que costuma frequentar supermercado, padaria ou qualquer outro tipo de comércio?

Este país que destrói a sua natureza, que quer construir usinas de carvão, na contramão do mundo civilizado, que multiplica os partidos políticos, que só pensa em eleição e em reeleição, tem uma Escala Brasileira de Segurança Alimentar, que é utilizada pelo IBGE para complementar a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – Pnad e Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF. Isso se fez antes do ressurgimento do fantasma da inflação, que penaliza principal e primeiramente a pobreza e a miséria.

Os brasileiros comem pouco e comem mal. Consomem o que é mais barato. Consideram pés de galinha uma iguaria e disputam ossos aos sopapos.

Entre 2014 e setembro de 2021, a inflação subiu quase cinquenta por cento. Mais exatamente, 47,5%. O valor do dólar mais do que dobrou, favorecendo os exportadores de produtos agrícolas. Isso faz com que toda a cadeia de nutrição se altere para piorar a situação dos desvalidos.

Será que o “agro é pop” tem notícias disso? O “milagre brasileiro”, a “salvação da lavoura”, não teria um projeto-piloto de emergência, para impedir que as crianças brasileiras passem fome?

Não há condições de se instituir um “bom prato” em todas as cidades, com as principais lideranças do agronegócio assumindo o compromisso de dar de comer a quem tem fome? É vergonhoso saber que nos “vales verdes e férteis”, onde jorra a produção potencializada com a informatização da lavoura, seres humanos não tenham o mínimo existencial em termos de sobrevivência.

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Brasil visto de fora

 

Maarten Wolterink (Holanda)

Os cúmplices de Bolsonaro

Heinze. Zambelli. Kicis. Barros. Terra. Jordy. Flavio. Eduardo. Carlos. Todos Bolsonaro. Esses nomes deveriam entrar para a história como cúmplices dos crimes cometidos pelo presidente na pandemia da Covid-19. Foram incluídos na lista de pedidos de indiciamento da CPI que apura irregularidades.

Jair Bolsonaro causou uma devastação no país com a sua política de morte, mas não teria capacidade de, sozinho, guiar a população para o abismo. Não fosse o apoio e o assessoramento desses parlamentares e de tantos outros, apenas Jair choraria no banheiro sozinho, não o país inteiro, refém de um governo criminoso e de políticos canalhas.

A CPI tenta emplacar o que as comissões de Ética do Congresso falham em fazer: apontar abusos, falta de decoro e possíveis crimes cometidos por parlamentares que usam a estrutura pública para espalhar desinformação, boicotar políticas eficazes de enfrentamento da pandemia, atacar adversários políticos.


O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), correu para dizer que viu excesso na inclusão de Heinze no relatório. Governistas chiaram, a CPI amarelou e ele se safou. Eu preferia ser acusada de etarismo e dizer que o senador gaúcho é só um tiozão gagá, mas é caso de mau-caratismo mesmo.

Excessos foram cometidos a rodo por ele, que usou o palanque da CPI para repetir mentiras, enaltecer medicamentos inapropriados, defender médicos inescrupulosos. Na votação do relatório da CPI, voltou a mentir, assim como outros senadores. É gente que já deveria estar presa.

Detesto ser pessimista. A sociedade passou os últimos meses grudada nos desdobramentos da comissão, que mostrou que Jair Bolsonaro, ministros, parlamentares, médicos e empresários usaram a vida de milhares de brasileiros como fiança para um projeto de poder e de lucro. Os crimes estão aí, o relatório da CPI pode ser aprovado, mas acredito que não veremos alguém punido.

Dominação tec


O celular é um instrumento de dominação. Age como um rosário
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano

O Brasil sofre de imunodeficiência

Temos um presidente da República que, depois de sabotar de todas as formas o combate à pandemia no seu momento mais crítico, agora se dedica a vilanizar ainda mais as vacinas contra a Covid. Não apenas dizendo que não vai se vacinar, como afirmando numa das suas lives que os imunizantes podem acelerar o desenvolvimento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids), uma mentira não menos do que monstruosa.

Temos também um presidente do Banco Central que pergunta a banqueiro qual deveria ser o piso da taxa de juros, como revelou um áudio vazado no domingo. Como se o banqueiro não pudesse fazer uso dessa, digamos, questão privilegiada, para mandar os seus operadores anteciparem posições no mercado de juros futuros, ações e câmbio.


Nada disso é normal: nem presidente da República que usa fake news para desestimular vacinação, nem presidente do Banco Central que faz esse tipo de consulta a banqueiro. No primeiro caso, o fato grave deveria ensejar a abertura imediata de processo de impeachment, porque o crime de responsabilidade é tão claro, tão material, que parece desenhado em impressora 3D. Sabotar medidas de saúde pública é uma ameaça à segurança interna do país. O fato grave, enfatize-se, não é isolado. Vem no rastro de uma série de outras palavras e atos criminosos que já deveriam tê-lo tirado do Palácio do Planalto no ano passado, de preferência em um camburão.

No segundo caso, o presidente do Banco Central precisaria ser imediatamente afastado do cargo e uma investigação deveria ser aberta, para averiguar o grau de envolvimento dele com o banqueiro que se jactou a investidores de ter sido ouvido pela autoridade monetária. Aliás, fôssemos um país sério, o banqueiro também deveria ser investigado. É intrigante -- ou nem tanto -- que a esmagadora maioria da imprensa, praticamente toda, tenha ignorado o episódio espantoso. A fiscalização jornalística é, por aqui, despudoradamente seletiva.

Não é fake news: o Brasil sofre de imunodeficiência histórica quando o assunto é lei, princípio de moralidade na administração pública e lisura nas regras do jogo capitalista. Contra essa doença nacional, ainda não há vacina ou cura, infelizmente.

'Genocídio não é a palavra correta'

Esta foi, de fato, uma frase ouvida várias vezes nesses últimos dias no calor da aprovação do relatório da CPI sobre as ações do Governo na pandemia: “‘Genocídio’ não é a palavra correta”. Houve até mesmo editoriais de grandes jornais que estamparam ser um “abuso” acusar o Governo brasileiro de genocídio. Não faltaram explicações aparentemente neutras e técnicas a respeito da inadequação do uso do termo no caso brasileiro, mesmo que tenha sido por “genocídio” que o sr. Bolsonaro foi denunciado junto ao Tribunal Penal Internacional, pela Articulação dos povos indígenas do Brasil, em 9 de agosto de 2021. As opiniões contrárias alegaram que não seria o caso de “banalizar” o termo.

Há de se lembrar que tal estratégia não é nova. Em relação ao mesmo Governo, algo semelhante ocorreu quando foi questão de criticar quem usa o termo “fascista” para a ele se referir. No entanto, quando escreveu sua “Declaração à nação”, no dia 9 de setembro, depois das manifestações e falas golpistas no dia da Independência, Bolsonaro não deixou de assinar: “Deus, pátria, família”. Diria que a parte mais importante de toda declaração era exatamente essa assinatura. Pois, pela primeira vez na história, alguém ocupando a presidência do Brasil fazia uma declaração à nação assinando-a com o lema da Ação Integralista Nacional. Ou seja, “tecnicamente” o sr. Bolsonaro falou à nação como um integralista, como um fascista. Seria algo equivalente à sra. Merkel assinar sua última declaração à nação como um : “Deutschland über alles”. Não, nem por isso pareceu digno de nota perguntar-se sobre o sentido dessa associação voluntária.

Poderíamos mesmo continuar nosso espanto falando de livros de grande circulação que há até bem pouco tempo enchiam as livrarias de nossos aeroportos como títulos como “Não somos racistas”. Afinal, mais uma vez, mesmo que as práticas cotidianas e a realidade social teimassem em gritar o contrário, o que acontecia conosco era “outra coisa” que exigiria uma finesse analítica maior, uma capacidade de individualização de grande monta não acessível aos que fazem associações indevidas e movidas por interesses políticos comezinhos.


Essa singular maneira de não dizer o nome das coisas é um traço constituinte de nossa história e diz muito a respeito de como ela se perpetua. Pode parecer descuido, mas tem método. Ao não nomeá-las, as ações e políticas permanecem, sua lógica interna não é explicitada, tudo acaba por parecer uma mistura de “descaso”, “improvisação”, “desespero”. Ou seja, mobiliza-se uma série de anticonceitos que visam a dizer que não há lógica implacável alguma por trás, há apenas agentes procurando desastradamente preservar seus poderes e agir a partir de interesses individuais. Os desastres são resultado da confusão geral.

Mas e se, sim, e se levantássemos a mera hipótese de haver de fato uma lógica genocidária em marcha no interior do Estado brasileiro? Poderíamos fazer esse exercício de pensamento e se perguntar sobre o que aconteceria nesse caso. Afinal, não seria a primeira vez na história que o Estado brasileiro opera como gestor de genocídio. Dentre outros casos, a maneira com que populações indígenas foram dizimadas é um exemplo perfeito de tais práticas. Ocupação, escravização, destruição social e psíquica, extermínio populacional. As estimativas do IBGE afirmam que a população indígena antes de 1500 era em torno de 3 milhões. Há estudos que calculam algo em torno de 5 a 7 milhões. O último censo, de 2010, afirma existirem atualmente 817.923 indígenas. Em 1991, esse número era apenas de 294.131. Números dessa natureza não mentem.

Quando foi cunhado, ao final da Segunda Guerra Mundial, o termo “genocídio” procurava limitar a soberania dos estados nacionais, lembrando que há práticas de extermínio de populações que não podem ser “prerrogativas” do exercício do poder de Estado, seja de suas políticas de “segurança interna” ou de “pacificação”. Na verdade, a invenção pode ter sido ineficaz do ponto jurídico, mas ela foi extremamente eficaz do ponto de vista político. Mesmo que ela tenha se demonstrado de difícil utilização nos tribunais, ela se tornou uma importante peça política de fortalecimento das dinâmicas de autodefesa contra a violência de Estado. A mobilização da acusação de genocídio permite definir uma esfera fora da política, ou seja, situações nas quais o Estado sai de um confronto que pode ser mediado de forma política. Pois suas ações não são mais pensáveis como ações possíveis no interior de um campo de divergências políticas. Um estado que age dessa natureza não pode mais exigir nenhuma forma de obediência e deve ter a população contra ele.

Essa lógica de genocídio não diz respeito à quantidade de pessoas que morrem, mas a forma como morrem, a maneira com que o Estado funciona para setores da população não exatamente como um “Estado protetor”, mas como um “Estado predador”. O Estado sempre praticará genocídio quando operar ativamente para a criação de condições nas quais as pessoas são deixadas para morrer, nas quais ele mobiliza comportamentos que quebram noções elementares de prudência em relação às duas situações típicas nas quais se espera dele proteção, a saber, em guerras e em pandemias. E sob essa perspectiva o Estado brasileiro agiu durante a pandemia no interior de uma lógica de genocídio, sem nunca recuar, mesmo depois da consolidação de 600.000 mortos.

Mas sendo assim, poderíamos nos perguntar: por que tanta resistência em chamar de gato um gato? Seria por amor à enunciação cristalina do direito? Ou seria por medo das consequências? Pois, afinal, ninguém faz um genocídio sozinho. Essa figura paradoxal do Estado que ativamente deixa morrer tem uma razão de existência. Ele serve muito bem ao interesse da elite rentista nacional e seus negócios. Há uma engenharia social por trás. Uma sociedade cujo afeto central é a indiferença, uma sociedade que não para sob nenhuma circunstância para fazer o luto de seus mortos é o sonho de todo gestor “técnico” que agora se indigna porque o Governo (por um cálculo eleitoral, mas isso efetivamente pouco importa) resolveu furar o teto de gastos e deslocar 30 bilhões para transferência direta de renda. Porque onde reina a indiferença social não há nenhuma obrigação de solidariedade, não há indignação alguma. Sem indignação alguma, o rentismo pode viajar para Miami a fim de ser vacinado enquanto a população morre exatamente por ausência de vacina.

Esses gestores são o verdadeiro fundamento do genocídio. Seu discurso técnico esconde uma escolha política de resultados catastróficos. Na verdade, eles são a versão contemporânea de um comportamento colonial que constituiu essas terras e não mudou em nada, a não ser no corte das camisas. Ou seja, a acusação de genocídio não é apenas contra o sr. Bolsonaro, mas contra toda a política que ele representa tão bem, contra todos os interesses que ele defendeu tão bem nesses anos. Essa política econômica, que vários procuram dissociar do Governo, se realiza necessariamente no genocídio.
Vladimir Safatle

Pobreza irreversível?

Em uma década, a quantidade de favelas dobrou no Brasil. Em 2010 havia pouco mais de seis mil “aglomerados subnormais”, nos termos do IBGE; em 2019, o número pulou para mais de 13 mil. Como os dados não captam os anos da pandemia, é certo que a conta está subestimada.

A revelação é chocante, mas não surpreendeu quem lida diariamente com comunidades e acompanha de perto a explosão da pobreza. Nós, do terceiro setor, estamos alertando há tempos: nesse ritmo, a situação social atingirá o ponto de não retorno. O termo, emprestado da área ambiental, se refere ao momento em que um ecossistema sofre danos tão graves que não podem ser revertidos. O mesmo ocorre com os ecossistemas sociais. A calamidade social pode ser tão grande que nenhuma política pública seria capaz de revertê-la. Receio que estejamos perigosamente próximos desse ponto.

O crescimento das favelas é um sintoma que só aparece quando o corpo social está doente há muito tempo. Quem vai morar na favela é a família que já não consegue arcar com o aluguel de uma moradia digna ou que precisou escolher entre morar e comer. Mais da metade dos brasileiros conviveu com a insegurança alimentar no último ano. Desses, quase 20 milhões passaram pelo menos um dia sem comer nada.


Favela é produto e produtora de desigualdade social. O garoto que cresce nesse meio tem menos acesso à educação, ao esporte, ao lazer, à saúde, à cultura. Quem passa a infância na pobreza, sob o abraço sufocante do tráfico ou da milícia, terá menos chance, quando adulto, de romper o ciclo da pobreza.

Embora seja uma chaga aberta, a favela parece continuar invisível aos olhos da sociedade. É como se as pessoas dissessem: “O problema é seu, é do governo”. Pois eu digo que o problema é de todos nós, da sociedade, do governo, do morador do barraco. Se a deterioração social continuar no ritmo atual, não haverá bunker ou carro blindado que garanta a segurança dos que hoje podem se manter apartados da mais dura realidade.

Problemas estruturais não se resolvem apenas com um auxílio emergencial de R$ 400 ou R$ 600 por mês. Toda ajuda é bem-vinda em momentos de crise aguda, claro, mas, se quisermos realmente curar o país, será preciso um plano robusto de transformação social para mitigar a desigualdade. É comum as pessoas se sentirem culpadas diante da fome alheia. Mas devo dizer que culpa não enche barriga de ninguém, não paga o jantar da família que nem almoçou. Culpa desacompanhada de ação é um sentimento socialmente inútil, que não contribui para a construção de oportunidades.

Esse é um debate que diz respeito a grupos políticos de todos os matizes — e urgente. Se começássemos hoje um programa gigantesco de combate à pobreza, ainda assim estaríamos falando de um problema que nos assombraria por muitos governos antes de desaparecer. Nosso compromisso é com as próximas gerações. Não quero que as crianças cresçam num cenário de terra arrasada. Se você, leitor e leitora, sente o mesmo, comece a lutar hoje para que a pobreza brasileira não seja irreversível amanhã.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Nove crimes e um presidente

Bolsonaro continua afrontando a Justiça e nada acontece. Na última quinta, em sua live, associou a vacina contra a Covid à AIDS. Facebook e Instagram levaram 4 dias para captar a atrocidade do Capitão. Tiraram do ar no domingo.


Mais um crime. Mais uma delinquência, no dia seguinte à leitura do robusto relatório da CPI da Covid, em que há nove tipificações de diferentes delitos cometidos por ele. Bolsonaro não se intimida. Testa Justiça, juízes, oposição, a sociedade que não se deixa intoxicar por ele.

É preciso cassar Bolsonaro das redes sociais urgentemente. Associar a vacina que salva vidas à AIDS é duplamente cruel, especialmente com aqueles que lutam contra uma doença carregada de intolerância e preconceito.

Claro, haverá pedido a Alexandre de Moraes para que inclua mais esse delito no inquérito que apura fake news no STF. Já há Também noticia-crime contra o presidente, protocolada nessa segunda-feira pela bancada do PSOL na Câmara e o deputado Túlio Gadêlha (PDT). São ações, denúncias, inquéritos, de varias cepas e linhagens, e a Justiça lenta, tardia e falha – nenhuma punição até hoje foi imposta ao Capitão.

Às acusações e crimes tipificados pela CPI da Covid vão se somar a outros processos que correm contra Bolsonaro no Brasil e no âmbito internacional. Desde 2019, há seis denúncias contra ele à espera de decisão do Tribunal de Haia. A primeira foi do coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, acusação de incitação ao genocídio dos povos indígenas.

A Articulação dos Povos Indígenas protocolou denúncia parecida. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia denunciou Bolsonaro ao Tribunal Internacional por crime contra a humanidade pela má condução do controle da pandemia no Brasil. Denúncia idêntica à apresentada pelo PDT.

Há queixa até de quem ajudou a eleger a criatura – Movimento Brasil Livre foi a Haia para denunciá-lo por crime contra a humanidade, caso da pandemia. Com palavras duras. Renato Battista, coordenador do MBL à época, chamou Bolsonaro de “canalha”. Quem diria? Tem vergonha alheia em Haia também. Da Áustria, foi a ONG All Rise denunciar Bolsonaro por destruição da Amazônia.

Assim como no Brasil – impeachment, só se for do sexo feminino e de esquerda – não há punição a vista em Haia contra Bolsonaro. As representações estão paradas. Até hoje, a promotora de justiça penal internacional Fatou Bensouda, a quem cabe a análise das representações, não se manifestou.

O processo pode durar anos. Mas como sua conduta tem sido repetitiva, é provável que responderá pelos crimes imputados, desde que a procuradora converta em denúncia a representação. Há esperança no fim do túnel.

Por aqui, vamos colecionando aberrações, Bolsonaro é ser limitado. Mau. Vil. Obcecado pela reeleição, é capaz de qualquer perversidade para garantir os 20 e pouco por cento que ainda mantém junto ao eleitorado fiel. Não dá pra esquecer que faltam 14 meses para o final desse filme de terror.
Mirian Guaraciaba

Os miseráveis

O furto famélico cometido por Rosângela – macarrão, suco e leite – revela que a fome dos milhões de miseráveis é uma afronta à dignidade humana e uma ameaça à estabilidade social.
Enquanto isso, 400 reais de esmola populista “implode” o orçamento bilionário, a bolsa cai, o dólar sobe, mercado dá chiliques e, no mundo real, a fome aumenta.

Devo aos meus pais o saudável hábito da leitura. Minha mãe, exímia contadora de histórias infantis, adorava literatura o que nos proporcionou certa intimidade com Jules Verne, o Tesouro da Juventude, Alexandre Dumas, Monteiro Lobato, o inesquecível Tico-Tico, a paixão por Castro Alves, e se divertia com a crítica social de Machado, até porque fortalecia suas inclinações rebeldes e libertárias.

Aos treze anos, um presente – Os Miseráveis – de Victor-Marie Hugo (1802-1885) com a recomendação: – leia, releia, além dos dotes literários, o autor foi um ativista dos direitos humanos na França. Nele, você encontrará os mais belos gestos de grandeza e vileza humanas.


De fato, o personagem central, Jean Valjean, furtou um pão para alimentar a irmã e sete sobrinhos. Preso, cumpriu pena de 19 anos de trabalhos forçados. Livre, ninguém deu emprego e abrigo ao ex-condenado, à exceção do benevolente Bispo Bienvenu.

Ao amanhecer, o Bispo deu por falta da prataria e do acolhido; a polícia prendeu e o levou à presença do Prelado para comprovar a alegação do refugiado: recebera a prataria como presente. O Bispo disse: “Meu filho, você esqueceu estes dois castiçais”. Ganhou a liberdade banhada de generosidade e compaixão, revestidas da grande virtude da misericórdia: não apaga a ofensa, mas perdoa e regenera. “Use a prata para fazer o Bem”, aconselhou o sacerdote.

O personagem enriqueceu, tornou-se poderoso e misericordioso a vida inteira. Mas era um refugiado e, apesar de assumir nova identidade, não se livrou do implacável Javert, inspetor de polícia, que, ao final, entre prender a grandeza do homem que lhe salvara a vida, preferiu sacrificar-se no Sena.

No Brasil, os miseráveis (pessoas abaixo da linha de pobreza) variam de acordo com o critério de medição: 27, 14, 10 milhões, 12% da população, qualquer escala é uma tragédia humana.

Para enfrentar, não bastam políticas públicas. Trata-se de um pecado social que todos, separados por uma desigualdade brutal, carregam nas costas. A responsabilidade é imperativo ético de todos. A indiferença aos “invisíveis”, um colapso dos sentimentos humanos

Sem julgamento de mérito, o episódio em que a famélica Rosângela Melo furtou macarrão, suco e leite para os filhos, revela que estômago vazio ultrapassa o mínimo da dignidade humana e põe em risco a estabilidade social.

Uma sociedade em que laços de solidariedade estão esgarçados; afeto e compaixão cedem lugar ao ódio; desfalece a força redentora da fraternidade.

Manchetes: a bolsa cai, o dólar sobe. Faltou: a fome aumenta.

Brasil cristão

 


Avanço do mar saliniza rio Amazonas e deixa comunidades em estado de emergência

Há algumas semanas, comunidades que ficam à beira do maior rio do mundo estão sem água para beber.

O avanço do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da água doce do planeta, salinizou as águas que banham as comunidades do arquipélago do Bailique, no Amapá.

O fenômeno sempre ocorreu nesta época do ano, mas vem se intensificando nos últimos anos e passou a atingir comunidades que antes não eram impactadas, segundo os moradores.

Como consequência, a prefeitura de Macapá, que responde pelo arquipélago, decretou estado de emergência na última quinta-feira (14/10) e passou a entregar água potável e cestas básicas às comunidades.

Para um pesquisador que estuda o tema, o avanço da salinização pode estar ligado ao aumento global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas.

Ele diz que a região da foz do Amazonas tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Um exemplo foi a drástica mudança no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.

Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atlântico e virou um afluente do Amazonas, alteração que pode ter ampliado a salinização no arquipélago do Bailique e é associada à criação de búfalos e à construção de hidrelétricas.

O arquipélago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quilômetros da sede de Macapá. Só é possível acessar a região por barco.

As principais atividades econômicas do arquipélago são a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de açaí.

Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de açaí, diz à BBC News Brasil que sempre houve salinização na região entre os meses de setembro e novembro. Nessa época, em que chove menos, as águas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avanço da maré.

Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce.


Alves diz que, no passado, essa salinização sazonal costumava afetar só cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquipélago. De alguns anos para cá, porém, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.

A principal consequência, diz o morador, é a falta de água potável para beber e cozinhar, já que o rio é a principal fonte hídrica das famílias. “São comunidades carentes, que não conseguem comprar água mineral”, afirma. Segundo Alves, um galão de 20 litros de água hoje custa até R$ 25 no arquipélago. As comunidades não têm acesso a água encanada.

Outro efeito da salinização tem sido sentido por pescadores. “Percebemos uma presença grande de peixes de água salgada, e o afastamento de peixes de água doce e camarão”, afirma Alves.

Essa mudança, porém, não tem causado prejuízos aos pescadores, já que peixes de água salgada são valorizados e têm sido capturados em abundância. “Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)”, afirma.

Já no cultivo do açaí ainda não foram notadas mudanças, diz ele, pois os frutos são colhidos no período chuvoso, quando a água já voltou a ser doce.

“Mas ainda não sabemos se o solo vai ter algum prejuízo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produção”, afirma.

Ele diz que muitos moradores do arquipélago atribuem a crescente salinização no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controvérsia na região e uma das maiores transformações na paisagem do Brasil nas últimas décadas.

Com cerca de 500 quilômetros de extensão, o Araguari é o maior rio a correr exclusivamente no Amapá. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, até 2013, desaguava no Atlântico ao norte do arquipélago do Bailique, a poucos quilômetros da foz do Amazonas, ao sul.

Desde 2011, porém, formou-se – espontaneamente, mas provavelmente em consequência da ação humana – um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando até que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.

Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e não mais no Atlântico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegetação desde então.

Por causa dessa mudança, o fenômeno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré, gerando uma onda que avança continente adentro.

Como não há mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.

Outra consequência da mudança no curso do Araguari foi a acelerada erosão nas áreas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fenômeno é conhecido localmente como “terras caídas” e já provocou a destruição de centenas de casas no Bailique.

Geová Alves diz que a salinização no arquipélago se tornou mais intensa a partir da mudança no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari “ajudava o Amazonas a empurrar a água salgada para longe” da costa.

“Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da força, e o mar invadiu onde não havia resistência”, ele afirma.

Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a tese faz sentido.

Pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas terrestres e aquáticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da região desde 2004.

Em artigo em 2018 para o periódico científico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudança no curso do Araguari.

Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba – que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas – pode estar relacionado a três fatores:

1 – Dinâmicas naturais no estuário do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das águas tanto em direção ao oceano quanto no sentido contrário, alterando o curso do rios;

2 – A implantação de usinas hidrelétricas no alto curso do Araguari.

A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a dinâmica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;

3 – A criação de búfalos nas margens do rio.

Introduzidos na região no século 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba – que, com a força das águas, foi se expandindo até alcançar o Amazonas.

Estima-se que haja 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que a população humana local.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a água salgada longe da costa.

Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente salinização no Bailique, ambas associadas às mudanças climáticas.

A primeira é o aumento global no nível do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (agência espacial americana), o nível médio do mar subiu cerca de 20 centímetros entre 1901 e 2018.

Cunha explica que, em todos os estuários (pontos onde o rio se encontra com o mar), há um jogo de forças entre o fluxo dos rios e as marés. Quando a maré sobe e o fluxo do rio diminui, a água salgada consegue avançar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a maré baixa e o fluxo do rio aumenta.

Por isso, diz Cunha, o aumento do nível dos oceanos tende a alterar esse equilíbrio em favor do mar, fazendo com que a água salgada avance mais facilmente pelos rios.

É o que já pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.

Outra possível explicação para o aumento da salinização no arquipélago do Bailique, segundo ele, é a elevação das temperaturas na região, outro efeito das mudanças climáticas.

O calor mais forte amplia a evaporação, o que por sua vez acelera a circulação de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.

Cunha afirma que as mudanças em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avanço no nível do mar. Segundo ele, a região é extremamente sensível a alterações – e como seus rios e lagos estão conectados, uma mudança num ponto qualquer pode provocar consequências a vários quilômetros dali.

Até o fim deste século, prevê-se que o nível médio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em relação aos padrões pré-industriais a depender do ritmo das emissões de gases causadores do efeito estufa.

As transformações no arquipélago do Bailique jogam luz sobre uma das possíveis consequências das mudanças climáticas para populações costeiras. Sabe-se que a elevação do nível do mar tende a inundar muitas regiões litorâneas, forçando suas populações a migrar.

Para muitas comunidades em estuários, porém, escapar das inundações talvez não seja suficiente, pois pode faltar água doce para abastecê-las.

O mundo que o homem criou

Os sinais estão aí, por todo o lado,
insinuam que o mundo apodrece,
que está todo despedaçado,
que, sem redenção, sobreaquece.
Os rios e os mares infectados,
os vírus desvairados, assassinos,
as terras desertadas, devastadas,
dilúvios afogando peregrinos,
o mundo em completo desconcerto
a vida cada vez mais degradada,
a luta pela vida num aperto,
a esperança de viver desbaratada,
os hospitais cheios e exauridos,
os cemitérios todos esgotados,
os gritos das crianças assustadas,
apagando-se em sítios já esquecidos!
A lama, o sangue, o pus, a merda toda
medalhas que sobraram da vida que houve,
no meio de tudo isto, a estuporada foda,
resto de vida, que durar não soube!
Da música sublime que se criara,
sobra, para acompanhar a derrocada,
marcha fúnebre para a ardida seara,
montanha de ruínas assombrada.
Radiações que matam devagar
e o frio que aos poucos nos devora,
tudo eficaz arte de matar,
dando-nos um final que não demora.
A história do homem nesta Terra,
feita de conflitos e descobertas,
deu pra inventar ciência e guerra
e, ao terror, ofertar portas abertas.
O nosso mundo vai chegar ao fim
e, desta nossa construída glória,
finar-se-á, a um toque de clarim,
história de que não ficará memória.

Eugénio Lisboa

Os pobres são só desculpa

Furar o teto que já estava repleto de goteiras para gastar mais no ano eleitoral, usando como desculpa a miséria dos brasileiros – mais de 27 milhões abaixo da linha da pobreza, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas , não é o que mais espanta. O pior é a desfaçatez ao fazê-lo. Parece até que os pobres brotaram de repente, exatamente a um ano da eleição, e que vão sumir em dezembro de 2022, quando a cota extra do Auxílio Brasil expira.

O presidente Jair Bolsonaro, o mesmo que há dois anos jurava aos correspondentes estrangeiros que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, garante que não fará “qualquer aventura” na economia minutos depois de desarranjar ainda mais as contas públicas. Paulo Guedes, ministro da Economia, é ainda mais patético. Diz que detesta furar o teto, mas precisa ajudar os mais pobres, uma categoria que ele sempre desprezou.

Guedes, detentor de US$ 9,5 milhões em paraíso fiscal, é aquele que dizia que o dólar mais alto era bom, porque na baixa “todo mundo” estava indo para a Disney, “inclusive empregada doméstica”. Mas, justiça seja feita, o ministro tem ideias criativas para aplacar a fome. Como a de aproveitar as sobras de comida dos restaurantes, “que estraga diariamente na mesa das classes mais altas brasileiras” para “alimentar pessoas fragilizadas, mendigos e desamparados”.

Agora, esses desvalidos se tornaram úteis.

Na Câmara dos Deputados, o Centrão tratou logo de, em nome dos miseráveis, aprovar a PEC das irresponsabilidades fiscais na comissão especial, incluindo o abusivo parcelamento de precatórios e as mudanças no cálculo do teto de gastos, de forma retroativa. Com isso, gera-se um saldo de R$ 89 bilhões para 2022, cerca de R$ 30 bilhões para os pobres e o restante como “folga orçamentária”, turbinando a campanha bolsonarista e as emendas parlamentares, boa parte delas secretas, destinadas a aliados. Uma festa.

Improvisada e com consequências gravíssimas – especialmente para os mais pobres, que sofrem mais os efeitos paralelos de inflação e baixo crescimento econômico -, a PEC deve ser confirmada no plenário das duas Casas legislativas. Afinal, do jeito falacioso em que a matéria foi apresentada, quem se negar a aprová-la será acusado de votar contra os pobres.

Por certo, nenhuma proposta de corte de gastos apareceu no debate. As mais óbvias, como tesourar as emendas do relator, cuja previsão é de R$ 20 bilhões, e os fundos partidário e eleitoral, que no ano que vem consumirão no mínimo R$ 3 bilhões, nem chegaram a ser cogitadas.

Mas há muitas outras gorduras, a começar pelos incontáveis subsídios concedidos pela União, que somaram R$ 346,6 bilhões em 2020, quando Guedes alardeou que os cortaria pela metade em 5 anos. Daria para montar um programa robusto, mas nada foi feito. Só a renúncia fiscal para zerar o imposto sobre armas custa ao país R$ 230 milhões ao ano. Sem contar outros absurdos para agradar a alguns: nada menos do que R$ 9,3 bilhões foram direcionados a adicionais de disponibilidade, ajuda de custo e aumento de soldo de militares.

Em um orçamento de cerca de R$ 1,5 trilhão não seria difícil achar R$ 30 ou R$ 40 bilhões para os pobres. Além das reformas administrativa e tributária, que renderiam alguns bilhões só com o corte de privilégios, poderiam ter sido feitas economias que parecem pequenas, mas que, somadas, seriam de extrema valia. Não só pelo valor de face, mas como indicativo (que nunca houve) do esforço do governo no sentido de se manter na linha.

Mais de R$ 146 milhões foram gastos só para dar o pontapé inicial nas notas de R$ 200 – a mais cara já confeccionada no país e que se conta nos dedos quem já viu uma. Junta-se aqui o desperdício de R$ 340 milhões para a compra e distribuição de cloroquina, azitromicina e tamiflu para montar o famigerado e ineficaz Kit-Covid, e os R$ 23 milhões pagos em publicidade para difundi-lo.

O pouco caso com o dinheiro do pagador de impostos fica escancarado ainda nas motociatas de R$ 3 milhões do presidente em campanha antecipada, nas viagens que ele faz para inaugurar obras já inauguradas, algumas mais caras do que a própria obra. Ou, exemplarmente, no tour de mil e uma noites de seu governo em Dubai – uma comitiva com 69 integrantes ao custo de R$ 3,6 milhões, com direito a foto do filhote zero três como sheik.

É indiscutível que o país necessita de fortalecer sua rede de proteção social, ampliando benefícios diretos como o Bolsa Família, e melhorando o acesso da população à educação e saúde, moradia, água e esgoto tratados, segurança alimentar. Mas fazê-lo dessa forma é não fazer. É usar a fome de milhões como escudo e trampolim eleitoral.

Mary Zaidan

A visão distorcida de Mourão como defensor da Amazônia

A poucos dias da 26ª Conferência do Clima (COP26), a primeira a ser realizada após o início da pandemia e que reunirá líderes globais em Glasgow, na Escócia, o governo brasileiro tenta convencer a imprensa internacional de que o país está comprometido com uma agenda ambiental.

Embora os dados de monitoramento da Floresta Amazônica medidos pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (Inpe) mostrem que os dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro foram marcados por taxas recordes de desmatamento dos últimos 12 anos, o vice-presidente Hamilton Mourão afirma o contrário.

"Nós tivemos uma redução pequena do desmatamento ao longo dos últimos dois anos. O pior foi em 2019. De lá para cá, tivemos uma redução que, dentro dos meus objetivos poderia ser melhor", declarou Mourão, que preside o Conselho Nacional da Amazônia Legal, numa coletiva de imprensa com correspondentes internacionais nesta segunda-feira.


Em 2019, a Amazônia sofreu 10,1 mil km2 de devastação; em 2020 foram 10,9 mil km2. E a estratégia de combate adotada, com empenho das Forças Armadas, não tem inibido a ilegalidade. A falta de expertise dos militares, os custos elevados das operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) executadas por esses agentes e o quadro insuficiente de servidores qualificados nos órgãos ambientais são apontados como causas para o insucesso. A conclusão é de uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU), como foi debatida recentemente numa sessão da Comissão de Meio Ambiente do Senado.

Ainda assim, Mourão alega que a fama internacional de antiambiental e negacionista que a atual gestão adquiriu "não condiz com a realidade". Ele diz creditar a oposição política ao governo Bolsonaro à "uma visão majoritária de esquerda em muitos países".

Outros motivos seriam uma contestação à "pujança" do agronegócio brasileiro e a pressão dos "bolsões sinceros porém radicais" formados por ambientalistas, movimentos sociais e indígenas, que levariam uma mensagem errada para fora das fronteiras.

Em jurisdição internacional, Bolsonaro foi acusado de crimes ambientais graves nos últimos anos relacionados. Existem pelo menos três denúncias contra o mandante brasileiro no Tribunal Penal Internacional em Haia, Holanda, por sua política de destruição da floresta. Numa delas, a Articulação dos Indígenas do Brasil (Apib) alega que o presidente cometeu crimes contra a humanidade e genocídio ao incentivar invasão de terras indígenas por garimpeiros e propagar covid-19

Na coletiva online, que apresentou alguns problemas técnicos, levando os jornalistas estrangeiros a reclamarem da qualidade do áudio durante as respostas de Mourão, o desrespeito aos direitos indígenas também foi um tema recorrente.

Questionado sobre o aumento das invasões desses territórios por garimpeiros, o vice-presidente disse se tratar de uma "questão antiga" e que os números divulgados pelas lideranças seriam exagerados.

Segundo o monitoramento feito pela Hutukara Associação Yanomami, atualmente pelo menos 20 mil garimpeiros estariam em busca de ouro no território, que sofre uma nova onda de invasões desde 2019. Outros indicativos do aumento da atividade ilegal estariam na abertura de estradas e no desmatamento no local, que os indígenas acompanham por imagens de satélites.

"São números inflados", tentou minimizar Mourão. "Nossa avaliação é menor, de 3 mil a 4 mil garimpeiros", completou sobre a situação na TI Yanomami que, onde, há poucos dias, duas crianças morreram depois de serem dragadas por uma balsa de garimpo ilegal.

Como parte da resolução do conflito, o vice-presidente considera a liberação da exploração de minérios nos territórios indígenas, citando como bom exemplo a ser seguido na região as atividades da Vale, em Carajás, no Pará. A mesma empresa está envolvida em dois grandes desastres ambientais e mortes ocorridos após o colapso de barragens de rejeitos, em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, ambas em Minas Gerais.

Um relatório recente que investigou barragens em operação na Amazônia expôs o perigo que essas estruturas representam para comunidades próximas. O estudo, feito pela ONG Christian Aid, se concentrou em 26 barragens da Mineração Rio Norte (MRN), que detém a maior rede dessas construções na floresta. A conclusão é que comunidades ribeirinhas e quilombolas que vivem no entorno seriam drasticamente afetadas em caso de falhas.

Após o rompimento das barragens da Samarco e Vale, a MRN revisou o nível de risco de suas estruturas e, até o início de 2021, 11 delas foram reclassificadas de baixo para médio e alto riscos – sendo sete de alto risco, aponta o relatório.

"A falta de transparência com que o processo de reclassificação foi realizado aumentou muito a ansiedade e o medo das comunidades de um possível rompimento das barragens, que poderia ser fatal para suas famílias e danificar irreversivelmente o meio ambiente, habitat e meios de subsistência", diz o texto, alertando para os perigos de novos empreendimentos de mineração na Amazônia.

Para a imprensa internacional, Mourão comemorou a queda das queimadas na Amazônia. Depois da alta registrada em 2020, os focos de calor registrados pelo Inpe tiveram uma queda de 40% neste ano.

Em sua visão sobre desenvolvimento sustentável da Amazônia, o vice-presidente inclui o asfaltamento da BR 319, que liga Porto Velho a Manaus. No caminho da rodovia, há diversas áreas protegidas e terras indígenas como a dos povos Mura, Mundukuru, Apurinã, Paumari e Parintintin.

"A estrada permitiria a melhora da logística e permite que as forças de segurança atinjam com rapidez áreas que estejam sendo atingidas pela ilegalidade", alegou, como justificativa para a obra.

Entre pesquisadores há um consenso baseado no acúmulo de evidências: estradas são propulsoras do desmatamento. Segundo estudos feitos pelo Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), a BR-319 dá aos criminosos acesso a vastas áreas intocadas. "Até agora, o desmatamento da Amazônia brasileira esteve quase inteiramente confinado à faixa nas bordas sul e leste da floresta, conhecida como o 'arco do desmatamento'. O imenso bloco de floresta na parte ocidental do estado do Amazonas tem sido poupado devido à falta de acesso", comenta o Idesam, e alerta para o provável boom.

Em setembro último, uma série de sobrevoos feitos pela Aliança Amazônia em Chamas, parceria entre as organizações Amazon Watch, Greenpeace Brasil e Observatório do Clima, mostrou que essa região já está se tornando a nova fronteira do desmatamento. Segundo participantes da expedição, a floresta tem sido consumida nessa região pelo fogo, substituída por pistas de pouso clandestinas e por grandes áreas para o cultivo de grãos, como soja.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Vísceras expostas

O simples fato de a CPI da Covid ter existido e resistido, apesar da tropa de choque bolsonarista e da contrariedade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, já foi notável. Duplamente admirável foi o empenho da maioria de seus integrantes em trabalhar como gente grande, com decência e benefício claro para a sociedade. Conseguiram dar algum compasso moral a um Brasil que, de resto, está à deriva e expuseram as vísceras de Jair Bolsonaro, cujo método de governo se assenta num amplo leque de tipificações penais.

Nada a festejar, porém. Não pode haver conforto para povo algum que tem na chefia da nação um presidente indiciado por crime contra a humanidade — no caso, contra sua própria gente. É igualmente trevoso para a história de qualquer nação ver seu presidente indiciado por mais outros oito crimes. É tudo de um horror abissal, por ser factual. E por quase ter ficado enterrado nos porões do governo, não fosse o dever cumprido pela maioria na CPI.


Cabe agora ao Ministério Público e à Justiça responder aos pedidos de indiciamento. E dar uma resposta adulta para a gargalhada com que o filho Zero Um do presidente, senador Flávio Bolsonaro, pretendeu desdenhar o documento histórico. O aspecto mais chulé da vida nacional anda esquisito — num curto espaço de tempo somos informados de que o presidente chora escondido no banheiro e de que o Marcola do PCC, líder da maior facção criminosa do país, está deprimido na prisão.

Mas são problemas reais que deixam em torvelinho 213 milhões de brasileiros. A fome de comer pelanca, o caos social, a extrema direita sem freios, os solavancos na economia, a emergência ambiental, a incerteza quanto a liberdades, a degradação geral da vida em sociedade — tudo isso entrou em marcha acelerada sob o comando errático de um só homem, Jair Bolsonaro. Que ninguém se engane — armados de fé e, se preciso, munidos de armas, seus seguidores mais extremados nunca lhe faltarão no pacto de morte contra o Estado Democrático de Direito.

Talvez o presidente e o relator da CPI da Covid, senadores Omar Aziz e Renan Calheiros, já tenham se arrependido de ter votado pela recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Nos Estados Unidos, o então presidente Donald Trump sobreviveu a dois processos de impeachment porque os senadores do Partido Republicano cerraram fileiras. Acreditaram estar fazendo política. Na realidade, fizeram história trevosa ao deixar o caminho aberto para Trump e sua vertente nacionalista voltarem ao poder — seja na reconquista da maioria na Câmara e no Senado em 2022, seja com Trump de volta à Casa Branca em 2024.

Não se trata de alarmismo. Nesta semana, Steve Bannon, o já notório cérebro de uma internacional fascistoide que inclui o Brasil, desafiou abertamente o Poder Legislativo dos EUA. Simplesmente recusou-se a depor perante a comissão de inquérito que investiga sua atuação na invasão do Capitólio de 6 de janeiro último, quando milicianos trumpistas pretendiam impedir a certificação da vitória eleitoral de Joe Biden em 2020. Parece pouco? Para padrões da bicentenária democracia americana, não é. Ao deboche público das instituições, arrostado por Bannon, vem somar-se uma acelerada limitação do direito ao voto em vários estados decisivos do país. E esse desmonte é obra de governadores mais leais a Trump que àquilo que os Estados Unidos de melhor deram ao mundo: o voto universal e livre.

Por toda parte, pipocam candidatos a clones de Trump, que Steve Bannon vai arrebanhando e formatando em rede. Alguns ainda são meros aspirantes a um poder menor, como a figura midiática do argentino Javier Milei, candidato a uma vaga no Congresso nas eleições do próximo mês. Admirador declarado de Trump e Bolsonaro, tem fala carismática e propostas de soluções simples para problemas complexos, como manda o manual populista. Outros visam mais alto logo de cara. Na França está em curso a ascensão meteórica e inesperada do polemista Éric Zemmour, apresentador do canal conservador CNews , que parece querer disputar a corrida presidencial. Situado à extrema direita de Marine Le Pen, Zemmour também é admirador declarado de Trump, alerta contra o “declínio da França”, ataca a imigração, o islamismo e o resto da cartilha democrática.

Sem falar no governo a cada dia mais fechado da Polônia, primeiro a desdenhar de peito aberto as convenções democráticas da União Europeia. Na sexta-feira, a ainda chanceler da Alemanha, Angela Merkel, recebeu uma ovação sincera dessa mesma União Europeia. Foi recebida pelo rei Philippe da Bélgica (a sede da EU é em Bruxelas), homenageada com peças de Mozart e Beethoven em concerto de gala e saudada com frases como “a senhora foi um compasso”, “as próximas cúpulas sem Angela Merkel serão como Paris sem a Torre Eiffel”. No caso, não eram exagero — por 16 anos ela foi âncora. Sem ela, a Europa e o mundo com Trumps e Bolsonaros se tornarão ainda mais sombrios.