terça-feira, 22 de setembro de 2020

Apocalipse agora

Hoje poderia ser comemorado o Dia da Árvore, mas é o das Lamentações. Definitivamente, não temos o que festejar enquanto o fogo avança sobre o nosso futuro.

Estamos, há dias, duplamente aflitos. Somos os sobreviventes de um apocalipse. Se a pandemia já nos fez respirar os ares da desolação, agora o rastro de incêndio no pantanal transforma a Aquarela do Brasil em cinzas.

Esta é a história dos nossos dias: fogo e doença são as armas mais eficientes de destruição em massa e só nos resta o equilíbrio da corda bamba. O inimigo que nos confronta nos grandes centros tem força equivalente à das labaredas para as fauna e flora.



Alguém, no mundo, responda: sairemos ilesos? Enfrentamos momentos intensos, densos, carregados de dolorosa significação. Nós nos defendemos com máscaras e bisnagas de álcool em gel, enquanto a natureza é devastada.

Sabemos o quanto custa escapar nesses tempos sobrecarregados. Outro dia vi pela televisão uma reportagem com imagens de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e de Cuiabá, no Mato Grosso. Ambas estavam sendo invadidas por uma fumaça que vinha das áreas incendiadas.

No contraste da fumaça escura com as luzes artificiais do anoitecer, nas duas cidades, a poeira parecia irrespirável. A palavra crepúsculo jamais seria foi tão bem utilizada: ali, só faltavam os abutres à espera dos cadáveres, nos galhos secos da paisagem.

O tom alaranjado do pôr do sol ia num degradê que formatava uma espécie de noite precoce. Para além daquelas imagens, as trevas não acabavam. Estamos cada vez mais vulneráveis, nós e as árvores.

Aquele mundo incendiado me fez lembrar as cenas finais do filme Apocalipse Now, épico de guerra. O filme, de 1979, que valeu premiação a Francis Ford Coppola, foi concebido a partir de uma adaptação livre do romance “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad.

Quando assisti ao filme, o cenário de ruína me passou a ideia de uma metáfora. Parecia dizer que faltava lugar no mundo (naquela ficção) para as personagens. Voltei a sentir essa sensação quando vi as imagens das capitais do Centro-Oeste. Estão cada vez mais restritos os lugares, no mundo, para nós e para os outros animais sobreviventes.

Estamos num caos existencial; conectados, mas num mundo em chamas. Somos zumbis alucinados, com medo do fogo e do vírus. A diferença é que o filme, quando fala dessa tragédia, faz registros da insanidade de uma guerra. As queimadas da ficção eram decorrentes de bombas incendiárias despejadas sobre o Vietnã. .

O filme, pelo menos, tinha uma trilha sonora de arromba, incluindo The End, do The Doors, e Satisfaction, dos Rolling Stones. A realidade é sempre mais dolorosa. (Ainda assim, é preciso dizer que hoje é o Dia da Árvore).

A voz é tudo o que nos resta. Podemos mandar recados para o futuro? Que seja. Cantaremos a nossa desolação. Faremos apelos para conscientizar a população sobre a importância dessa grande riqueza natural que ainda dispomos, apesar dos nossos dias doentes.

Cantaremos na esperança de que, no futuro, o dia de hoje seja, realmente, a antevéspera de uma Primavera.
Cícero Belmar

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