segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A escolha do Brasil


A política está para a economia como o ovo para a galinha. E vice-versa. O “mercado” comemora o repúdio ao nada absoluto a que nos reduziu o delírio dilmista e a reabilitação dos postulados básicos da aritimética e da gestão economica, mas o problema brasileiro continua sendo essencialmente político.

Isso tem um lado bom e um lado ruim.

O lado ruim é que não ha muito que possa ser feito para evitar todo o sofrimento ainda por ser sofrido apenas com as ferramentas de gestão da economia. Temos, agora, profissionais cuidando do assunto e estamos livres da firme opção pelo suicidio do passado recente mas o “trem bala” para o crescimento em que nos recusamos a embarcar nestes 13 anos de opção preferencial pela burrice não está mais voando nos trilhos. A computação devora empregos; os monopólios universais arreganham dentes que os nacionais nunca tiveram; a insegurança geral embala a “disrrupção” universal do bom senso e já nem os Estados Unidos ou a Inglaterra escusam de surfar a onda protecionista que vem vindo.

O mundo politicamente evoluído, pequenininho, dissolve-se incontrolavelmente, em dores, na imensidão do outro.

O lado bom é que, tendo este Brasil onde todos os lados ainda “defendem instituições” usando a primeira pessoa do singular permanecido inteiramente fora da evolução da política nos séculos 19 e 20, temos muito espaço para avançar mesmo com um mundo em crise.

Democracia e o seu corolário mais cobiçado, o resgate de sociedades inteiras da miséria, são processos ecológicos. A versão “ponto3” (depois de Atenas e de Roma) dessa bela invenção que o Brasil ainda haverá de experimentar um dia é construida em etapas sucessivas de desenvolvimento. É engendrada no momento em que a Magna Carta de 1215 faz saber ao rei de Inglaterra que toda a riqueza que o reino produz não é mais só de sua majestade restando ao povo suplicar-lhe por migalhas mas, daquela data em diante, exatamente o contrário. Vê a luz 450 anos depois quando o rei empobrecido, depois de ceder quase todo o poder ao Parlamento, distribui a propriedade da terra da “sua” América em pleno feudalismo para conseguir financiar sua colonização e abre, com a democratização do acesso à propriedade, a possibilidade prática do império de uma só lei igual para todos. Consolida-se, no seu apogeu, com as reformas da “Progressive Era” (1890-1920) de uns Estados Unidos ainda jovens quando, diante da corrupção galopante decorrente da associação do Estado com o “big business” nascente, os americanos reconhecem oficialmente que o homem exerce a sua liberdade sobretudo na sua dimensão econômica e que, portanto, é imperativo assegurar as condições mínimas para que ela continue sendo possível. O trabalho e não os relacionamentos políticos devem ser o fator decisivo de sucesso nos negócios. A inovação deve ser o unico fator legitimo de obtenção de vantagens competitivas. Garantir a sobrevivência de um bom numero de patrões e fornecedores disputando consumidores e trabalhadores deve ser o único fator de limitação da livre concorrência e o único objeto admitido das interferências do Estado na economia.

A tudo isso chegou-se não por qualquer tipo de deliberação romântica mas pela razão muito prática de que a História já tinha provado suficientemente que qualquer outro expediente que não tratasse de suprimir radicalmente de cena o “presunto” que o Estado serve e “moscas” como nós somos evolutivamente especializadas em farejar conduz direta e inevitavelmente à corrupção. Sob a luz desse mesmo pragmatismo, a “legislação antitruste” de prevenção à concentração da propriedade deu forma ao novo padrão de democracia e os direitos de “iniciativa” e “referendo” legislativo garantidos pela prerrogativa do “recall” a qualquer momento dos mandatos condicionalmente atribuidos pelos eleitores aos seus representantes puseram o povo efetivamente no poder e em condições de impor o respeito à nova ordem. E a prosperidade, de mãos dadas com a ciência, pode finalmente triunfar.

É desse ultimo patamar do “capitalismo democrático” com seu formidavel poder de exorcizar a ignorância e a miséria que os poucos países que chegaram a usufruir dele estão sendo constrangidos a recuar pela diluição das fronteiras nacionais e o esvaziamento do poder também da versão benigna do Estado de fazer valer legislações específicas. Mas mesmo que seja somente até à etapa anterior – a da estrita igualdade perante a lei, inclusive e principalmente para os agentes do Estado – este Brasil dos privilégios automaticamente legalizados desde que simplesmente “adquiridos” um dia tem muito que andar.

O que ha de importante na sequência de eventos históricos acima descritos é a ordem dos fatores. Os asiáticos, que têm conseguido “viradas” nada menos que miraculosas da selvageria política e da miséria para o império da lei e a abundância em menos de uma geração, estão aí para provar que, desde que nos disponhamos finalmente a percorrer esta que é hoje uma velha estrada batida, podemos produzir o mesmo milagre em bem menos tempo que os 800 anos tomados aos desbravadores ingleses.

Ultrapassados os limites que ultrapassamos não ha mais “meias-solas” possíveis. Não haverá remissão sem a eliminação do privilégio legalizado que impede o país de respirar. E quanto mais demorar para essa questão ser encarada de frente menos fôlego restará para repor em pé uma economia exaurida. O necessário tratamento aos agentes coadjuvantes da miséria do Brasil – os “empresários” a que os donos das chaves dos cofres públicos recorrem para desviar dinheiro para fora do sistema – está em curso. Mas não basta. É preciso atacar o desvio sistemático e legalizado da riqueza nacional impondo aos agentes do Estado a mesma lei – penal, salarial, tributária, de direitos, de deveres, de segurança e de insegurança no trabalho, de aposentadorias e de pensões – que já vale para todos os outros brasileiros e demais habitantes do mundo real.

O cidadão raivoso

O jornalista alemão Dirk Kurbjuweit, da Der Spiegel, inventou alguns anos atrás a expressão Wutbürger, que significa “cidadão raivoso”, e no The New York Times de 25 de outubro Jochen Bittner publica um interessante artigo em que afirma que a raiva que em certas circunstâncias mobiliza amplos setores de uma sociedade é um fenômeno com duas faces, uma positiva e uma negativa. Segundo ele, sem esses cidadãos raivosos não teria havido progresso, nem seguridade social, nem trabalho remunerado de forma justa, e ainda estaríamos no tempo das satrapias medievais e da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, foi uma epidemia de raiva social que espalhou corpos decapitados pela França do Terror e que, nos nossos dias, acabou levando ao brutal retrocesso que o Brexit significa para o Reino Unido ou que fez com que exista na Alemanha um partido xenófobo, ultranacionalista e antieuropeu –o Alternativa pela Alemanha – que, segundo as pesquisas, conta com o apoio de nada menos do que 18% do eleitorado. Acrescenta, ainda, que o melhor representante do Wutbürger nos Estados Unidos é o inapresentável Donald Trump, além do surpreendente apoio com que ele conta.

Distorsion
Zdzislaw Beksínski
Eu gostaria de acrescentar alguns outros exemplos recentes de uma “raiva positiva”, a começar pelo caso do Brasil, a respeito do qual, a meu ver, houve uma interpretação enviesada e falsa da defenestração de Dilma Rousseff da Presidência. Esse fato foi apresentado como uma conspiração da extrema direita para acabar com um Governo progressista e, sobretudo, impedir o retorno de Lula ao poder. Não é nada disso. O que mobilizou vários milhões de brasileiros e os levou a sair para as ruas em manifestações maciças foi a corrupção, um fenômeno que havia contaminado toda a classe política e do qual se beneficiavam igualmente líderes da esquerda e da direita. Ao longo dos últimos meses, foi possível observar como a foice do combate à corrupção se ocupou de colocar na cadeia, igualmente, parlamentares, empresários, dirigentes sindicais e associativos de todos os setores políticos, um fato a partir do qual tudo o que se pode esperar é uma regeneração profunda de uma democracia que a desonestidade e o espírito de lucro haviam infectado até chegar ao ponto de provocar uma bancarrota nacional.

Talvez ainda seja um pouco cedo para comemorar o ocorrido, mas minha impressão é de que, entre ganhos e perdas, a grande mobilização popular no Brasil foi um movimento mais ético do que político e extremamente positivo para o futuro da democracia no gigante latino-americano. É a primeira vez que isso acontece; até agora, as mobilizações populares tinham objetivos políticos –protestar contra os abusos de um Governo e a favor de um partido ou um líder– ou ideológicos –substituir o sistema capitalista pelo socialismo–, mas, neste caso, a mobilização tinha como objetivo não a destruição do sistema legal existente, mas a sua purificação, a erradicação da infecção que o envenenava e que podia acabar com ele. Embora tenha conhecido uma trajetória diferente, não é algo muito distinto daquilo que aconteceu na Espanha: um movimento de jovens atiçados pelos escândalos de uma classe dirigente que causou em muitos a decepção com a democracia e os levou a optar por um remédio pior do que a doença, ou seja, ressuscitar as velhas e fracassadas receitas do estatismo e do coletivismo.

Outro caso fascinante de “cidadãos raivosos” é o que vive a Venezuela hoje. Em cinco ocasiões, o povo venezuelano teve a possibilidade de se livrar, por meio de eleições livres, do comandante Chávez, um demagogo pitoresco que oferecia “o socialismo do século XXI” como a cura para todos os males do país. A maioria dos venezuelanos, aos quais a ineficiência e a corrupção dos Governos democráticos levaram a se desencantar com a legalidade e a liberdade, acreditou nele. E pagou caro por esse erro. Por sorte, os venezuelanos perceberam isso, retificaram sua visão, e hoje há uma esmagadora maioria de cidadãos –como mostraram as últimas eleições para o Congresso– que pretende consertar aquele equívoco. Infelizmente, já não é tão fácil. A camarilha governante, aliada à nomenclatura militar bastante comprometida com o narcotráfico e à assessoria cubana em questões de segurança, enquistou-se no poder e está disposta a defendê-lo contra ventos e marés. Enquanto o país se afunda na ruína, na fome e na violência, todos os esforços pacíficos da oposição, valendo-se da própria Constituição instaurada pelo regime, para se livrar de Maduro e companhia se veem frustrados por um Governo que ignora as leis e comete os piores abusos –incluindo crimes– para impedi-lo. Ao final, essa maioria de venezuelanos acabará se impondo, é claro, como aconteceu com todas as ditaduras, mas o caminho ficará semeado de vítimas e será muito longo.

Seria o caso de comemorar o fato de que não existem apenas cidadãos raivosos negativos, mas também os positivos, como afirma Jochen Bittner? Minha impressão é de que é preferível erradicar a raiva da vida dos países e procurar fazer com que esta se dê dentro da normalidade e da paz, e que as decisões sejam tomadas por consenso, por meio do convencimento ou do voto. Porque a raiva muda de direção muito rapidamente; de bem-intencionada e criativa, pode passar a ser maligna e destrutiva, caso a direção do movimento popular seja assumida por demagogos, sectários e irresponsáveis. A história latino-americana está impregnada de muita raiva, e, embora esta se justificasse em muitos casos, quase sempre ela se desviou de seus objetivos iniciais e acabou gerando males piores do que os que pretendia remediar. É um tipo de situação que teve uma demonstração explícita com a ditadura militar do general Velasco, no Peru dos anos sessenta e setenta. Diferentemente de outras, ela não foi de direita e sim de esquerda, e implantou soluções socialistas para os grandes problemas nacionais, como o feudalismo rural, a exploração social e a pobreza. A nacionalização das terras não beneficiou em nada os camponeses, mas sim às gangues de burocratas que se dedicaram a saquear as fazendas coletivizadas, e quase todas as fábricas que o regime nacionalizou e confiscou foram à falência, aumentando a pobreza e o desemprego. No fim, foram os próprios camponeses que começaram a privatizar as terras, e os operários das indústrias de farinha de peixe foram os primeiros a pedir que as empresas arruinadas pelo socialismo velasquista voltassem para as mãos da iniciativa privada. Todo esse fracasso teve um efeito positivo: desde então, nenhum partido político no Peru se atreve a propor a estatização e a coletivização como uma panaceia social.

Jochen Bittner afirma que a globalização favoreceu, acima de tudo, os grandes banqueiros e empresários, e que isso explica, embora não justifique, o ressurgimento de um nacionalismo exaltado como aquele que transformou a Frente Nacional em um partido com chances de vencer as eleições na França. É muito injusto. A globalização trouxe enormes benefícios para os países mais pobres, que agora, se souberem aproveitá-la, poderão enfrentar o subdesenvolvimento com mais rapidez e melhor do que no passado, como mostram os países asiáticos e os países latino-americanos –caso do Chile, por exemplo– que, ao abrirem suas economias para o mundo, cresceram de forma espetacular nas últimas décadas. Parece-me um erro muito grave acreditar que progresso significa combate à riqueza. Não, o inimigo a ser eliminado é a pobreza, e também, é claro, a riqueza ilícita. A interconexão do mundo graças à lenta dissolução das fronteiras é uma coisa boa para todos, em especial para os pobres. Se ela prosseguir e não se afastar do caminho certo, talvez cheguemos a um mundo em que já não será preciso haver cidadãos raivosos para que as coisas melhorem.

Socorro. É guerra?

Não tem mais nem o tradicional mãos ao alto, isso é um assalto, aquele pedido de licença tradicional dos ladrões. Levante as mãos. Não, não levanta, cuidado com os movimentos bruscos. Esconde esse celular. Não vai para a praia que tem arrastão lá. Vigi, está tendo um tiroteio ali na esquina. Tá lá um corpo estendido no chão

Nananeném, era o que certamente Bruna entoava para por a filha de dois anos no berço quando uma bala atravessou a janela do quarto e a sua cabeça. Lá se foi a jovem mãe de 21 anos para o Reino dos Céus deixando a órfã e o Engenho da Rainha, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Um dia antes, 

Daiane, de 15 anos, chegava a sua casa em Belford Roxo. Não teve tempo de perguntar para a mãe o que tinha para o almoço. No fim da tarde de sexta um porco grunhia dentro do seu chiqueiro quando teve os miolos estourados. Não sei se virou bacon. Balas perdidas, balas amargas. A própria Polícia Civil do Rio contou: no Estado, 846 pessoas morreram ou ficaram feridas ao serem atingidas por balas perdidas – 83% morrem; quando não morrem 80% ficam paraplégicas – o que dá uma média de quase três vítimas por dia. Foram 72 apenas agora em outubro. Esse ano.

Feliz Dia dos Mortos. Rezemos por eles.

Precisamos falar sobre isso. Sobre a violência. Dar um basta, fazer algo. Mas nessa semana, quando esse assunto sério estava sentando na mesa, ficamos mais preocupados foi se o Renan Calheiros ia sentar ao lado da ministra Cármen Lúcia; se o new cabeludo Renan ia se pegar a tapas com o ministro careca brilhante que tem a língua solta. Se o Temer ia precisar ligar o extintor para apagar o incêndio entre os Poderes com aquele seu sorriso congelado. Quando era justamente para esses três Poderes estarem discutindo o Plano Nacional de Segurança Pública. Vai, me diz aí se leu em algum lugar o que foi que discutiram sobre esse assunto, quais foram as novas resoluções, que medidas serão tomadas para acabar com esse inferno que virou nossa vida, insegura, com medo até de nossas sombras.

É, eu também não soube de nada.

Mas nessa semana soube que em cinco anos houve mais assassinatos no Brasil do que na Síria, que está em guerra. De janeiro de 2011 a dezembro de 2015, 278.839 pessoas foram mortas aqui; na Síria, foram 256.124 vítimas. Uma pessoa foi assassinada a cada 9 minutos no Brasil em 2015. 58.383 pessoas foram assassinadas, 160 por dia, quando se fazem as contas. Imaginem quando computarem os dados desse difícil 2016.

13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil, informa o Atlas da Violência 2016. Uma pessoa é vítima de sequestro relâmpago na cidade de São Paulo a cada cinco horas.

Não sei se já perderam a conta, mas difícil também é ter dia de não se ouvir falar em caixas eletrônicos indo aos ares em pacatas cidades ou nos grandes centros urbanos, onde andam derrubando até as sedes das transportadoras de valores. Você aí ouviu falar de algum plano para controlar a venda de explosivos? Nem eu.

Os homicídios cometidos por armas de fogo no país somaram 42.291 casos em 2014, ou 21,2 para cada 100 mil habitantes. Fala de um especialista: “O Brasil não tem controle sobre vendas, não registra os compradores. Existe um mercado aberto, paralelo e ilegal, porque as indústrias estão registradas, estão vendendo, mas a gente não sabe quem compra e quem distribui isso”.

Na tevê a reportagem mostra o roubo de celulares das mãos das pessoas em plena luz do dia, no centro da cidade, usando justamente isso, o movimento, como um artifício. Um bolinho de gente de todos os tipos vai atrás da vítima, têm velhinhos, jovens, negros, brancos, uma mulher. Teatral. Um esbarrão e tchau celular, carteira e a dignidade, já que no bando tem até quem pare para se solidarizar com a vítima, distraí-la ainda mais. A cena é dantesca. Parece inspirada naquele quadro do Fantástico que não foi para a frente, o tal Eles decidem, quando 20 pessoas ficavam o dia inteiro acompanhando para palpitar o coitado que tinha uma dúvida. Chatíssimo.

E os requintes que não ficam devendo aos mais violentos filmes de terror, mistério, seriados de investigação? As pessoas matando por nada. Tem sido normal cortar o corpo, decepar cabeças, afivelar malas cheias de pedaços, tem gente até emparedando com cimento, que cavar buraco é mais difícil. Se não é a bala, é a faca, a marreta, o martelo, o pedaço de pau, a corda. Teve até flecha disparada com arco. Casos de tentativas de envenenamento de crianças, com chumbinho, veneno de rato disfarçado em doces. Tentaram suavizar um pouco: uns gaiatos bandidos se vestiram de palhaços.

É crime organizado, requintado, quadrilhas especializadas, usando cibernética, tecnologia, inteligência, dinheiro graúdo rodando. Deixando trilhas de sangue de culpados e inocentes, muitos. Bandidos e policiais, às vezes até policiais bandidos. Nós ainda estamos atrasados, burros, lentos, aprendendo só agora, por exemplo, que as câmeras de radar podem ser usadas sabiamente para a segurança, revelar culpados. E filmam melhor que testemunhas com celular já que não tremem nem se assustam com tiros e explosões.

Enquanto isso não se pode ter nada, usar nada, andar pelas ruas, nem parar no trânsito, sair e chegar ileso vale reza e aleluias.

Não é por menos que o tal Halloween cresce no Brasil – as bruxas estão soltas e não há ninguém tentando capturá-las, assustá-las ou ensinar a importância da paz. Estamos em guerra.

Bandeira branca, amor.

O que de fato importa

De volta à Lava-Jato, que há dois anos e meio não sai de cena, mas que nos últimos quatro meses dividiu o protagonismo com as Olimpíadas, as Paraolimpíadas e, por último, as eleições municipais encerradas, ontem, com a mais avassaladora derrota já colhida pelo PT em todos os seus anos de vida, a vitória do PSDB nas maiores cidades do país e o fortalecimento, por ora, do governo de Michel Temer.

Tudo o mais de previsível que possa acontecer nos próximos seis meses dificilmente será capaz de superar o que a Lava-Jato nos reserva em termos de fortes emoções.

O destino de Lula, por exemplo, será definido até o fim do ano ou início de 2017. O juiz Sérgio Moro, na segunda quinzena de novembro, tomará o depoimento de quem delatou Lula por corrupção.

Em seguida, a confirmar-se o que o próprio PT espera, Moro condenará Lula. Poderá mandar prendê-lo ou não. Se não prender, Lula aguardará em liberdade a decisão posterior do Tribunal Regional Federal da 4ª Região com sede em Porto Alegre.

Até aqui, o tribunal avalizou ou agravou as sentenças de Moro. Caso isso se repita, Lula deverá ser preso e, como ficha-suja, não disputará a eleição de 2018.

A delação de Marcelo Odebrecht e de cerca de 70 executivos da maior empreiteira do país ainda não foi fechada, mas falta pouco para que seja.


Apontada desde já como “a delação do fim do mundo” e, certamente, a maior de todos os tempos aqui ou em qualquer lugar, ela perece destinada a varrer como um tsunami o que ainda resta de pé do atual e carcomido sistema político.

Vida ingrata! Lula – sempre ele – será alvo da delação daqueles a quem tanto ajudou como presidente da República e, depois, como lobista internacional. Nada de pessoal, é claro. Foi bem recompensado pelo que fez.

Mas além de Lula, a delação atingirá cabeças coroadas de quase todos os partidos, algumas delas aspirantes à sucessão de Temer.

O governo não escapará incólume. Temer talvez se veja obrigado a promover uma pequena reforma ministerial. Talvez promova uma reforma de médio porte, aproveitando para livrar-se de alguns ministros que não correspondem às exigências dos seus cargos.

Estilhaços da delação poderão alcançar o próprio Temer. Embora protegido pelo exercício do mandato, ele não ficará bem.

O Supremo Tribunal Federal (STF) não ficará bem se ali continuarem seguindo devagar, quase parando, as denúncias e os processos que envolvem políticos e autoridades com direito a fórum especial.

Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, é um desses políticos. Responde no STF a onze processos. O primeiro, depois de sete anos emperrado, está pronto para ser julgado.

Quando chegar ao seu final, a Lava-Jato de pouco terá servido na ausência de uma reforma política que de fato desmonte o que a provocou.

Políticos que se imaginam a salvo da Lava-Jato, ou que rezam para se salvar, falam em reforma política a ser aprovada para produzir efeitos em 2018. Mas serão eles (cruzes!) que votarão tal reforma. É de se acreditar que produzirão algo decente?

Outro dia, em meio a uma sessão da Câmara dos Deputados, tentou-se aprovar uma anistia para quem se elegeu com dinheiro não declarado à Justiça. E também para os doadores do dinheiro.

A proposta de anistia está sendo revista. Deverá ser reapresentada em breve. Estamos nos estertores de um sistema político moribundo que teima em respirar. Todo cuidado com ele é pouco.

A desinvenção do inimigo

No verão de 2014, a polícia portuguesa deteve Calunga Gima, de 29 anos, cidadão angolano, naturalizado holandês, que invadiu a pista do aeroporto da Portela, em Lisboa, armado de uma faca. Levado a julgamento, sob a acusação de terrorismo, Calunga Gima confessou que estivera na Síria, com uns “rapazes amigos” e que “fingira converter-se ao islão” para não parecer indelicado. O que mais o terá chocado, durante a breve visita à Síria, foi constatar que alguns dos rapazes seus amigos, fundamentalistas islâmicos, eram homossexuais. Veio para Lisboa, de trem, porque (como tentou explicar aos juízes) estava a ser perseguido por maus espíritos. Achou que na capital portuguesa estaria mais sossegado. Bebês de poucos dias olhavam-no com estranheza, por onde quer que ele passasse, gritavam o seu nome e choravam. Após uma série de estranhas peripécias e desventuras, achou-se próximo ao Aeroporto da Portela. Saltou a vedação, sempre perseguido por uma legião de espíritos, e aproximou-se de um avião das linhas aéreas angolanas, já com os motores ligados: “Queria enfiar a minha cabeça nas turbinas” — justificou, perante os juízes atônitos. — “Queria encher a cabeça de turbulência, porque talvez assim confundisse os maus espíritos”.

O episódio acima, absolutamente verídico, serviu de base para a construção do personagem principal da peça “O terrorista elegante”, que eu e Mia Couto escrevemos em Moçambique, em janeiro, e que estreou há poucos dias em Lisboa. A peça, uma encomenda do grupo de teatro A Comuna, pretende discutir o clima de medo que se instalou um pouco por todo o Ocidente, e vem justificando as piores arbitrariedades e criando um ambiente de intolerância contra os imigrantes e as minorias étnicas e religiosas, que é, afinal, o que o terrorismo islâmico pretende. A intolerância gera azedume e revolta; a revolta faz surgir novos combatentes, num ciclo de violência que apenas serve para alimentar o próprio fascismo islâmico. O terrorismo triunfa no instante em que a inteligência colapsa.

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Charles Poitier Bentinho, o nosso terrorista elegante, parece, de início, tão desnorteado quanto o personagem que lhe deu origem. Contudo, ao invés daquele, não foge de espíritos maus: pelo contrário, ganha a vida a combatê-los. Uma vez preso, rapidamente se apercebe que os três policiais que o interrogam, um homem e duas mulheres, uma das quais ao serviço de uma agência antiterrorista norte-americana, sofrem, todos eles, de demônios vários: o medo, a culpa, o ciúme, um persistente rancor colonial. Bentinho, o prisioneiro, compreende que a sua missão é ajudar os interrogadores a libertarem-se de tais demônios — e é o que faz.

Passando dos palcos para a realidade, creio que nos fazem muita falta figuras como Charles Poitier Bentinho, capazes de apaziguar os espíritos, mostrando que só é possível vencer a violência através da aproximação. Isto é, quando os homens se aproximarem tanto que, olhando-se nos olhos, consigam ver-se a si mesmos refletidos na alma uns dos outros, como num espelho.

Para desencadear uma guerra, é preciso primeiro fabricar o inimigo. O ato inicial de tal processo consiste em afastar o outro de nós; precisamos torná-lo alheio: o inimigo não é como nós porque não fala a nossa língua, porque não partilha as nossas crenças religiosas, porque não gosta de samba ou de feijoada. Na fase seguinte, o inimigo já não é bem humano. Não sendo humano, pode ser exterminado. Deve ser exterminado.

Para encerrar uma guerra, para pacificar um país ou uma região, urge desencadear o processo inverso: devolver ao outro a humanidade. Aproximá-lo de nós.

A música, a literatura, o cinema, o teatro, constituem, desde sempre, instrumentos de aproximação. Talvez por isso todas as artes sejam tão odiadas e reprimidas nos territórios ainda dominados pelos fascistas islâmicos. A melhor maneira de combater a intolerância é através da cultura. Apoiando escritores, músicos, artistas plásticos etc. nos países de maioria islâmica e dando a conhecer essas expressões artísticas no nosso próprio universo. Tenho a certeza de que haveria enormes surpresas. Quantos brasileiros conhecem, só a título de exemplo, o novo rap argelino ou a vibrante cena rock e de música alternativa das noites de Beirute?

Calunga Gima foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão efetiva pelo crime de atentado à segurança de um transporte aéreo e posse de arma branca. Não se provou que tivesse ligações a nenhum grupo terrorista.
José Eduardo Agualusa

Bandidos bancados por nós?

O chamado Congresso Nacional se converteu num tremendo pau de galinheiro. E custa caríssimo aos cofres públicos.

Aproveito, aliás, para dar uma sugestão ao governo: se é para economizar, por que continuar mantendo o Senado e a Câmara? Basta um deles. Um pode muito bem fazer o que o outro faz – e, além disso, a roubalheira seria reduzida.

Bastava ter o Senado, que é numericamente menor e, portanto, deve ter um número menor de ladrões.

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O problema é que, em vez de economizar, essa turma quer enfiar mais grana em suas contas. Nossos políticos profissionais são insaciáveis. Não foi por acaso que elegeram o meliante Cunha presidente deles.

Agora mesmo circula na Câmara projeto de um tal de Marcus Pestana, do PSDB de Minas, destinado a encher a burra dos partidos políticos. Quem pagaria? Nós, os eternos otários.

A ideia é passar anualmente três bilhões aos partidos (ou clubes de gatunos): 2% da arrecadação do imposto de renda de pessoa física.

Isto é: querem nos obrigar, por lei, a financiar um bando de vigaristas, que já vivem de meter a mão no bolso dos outros. A bancar uma corja de canalhas para que eles continuem agindo contra os reais interesses e as reais necessidades da população.

O nome do projeto é uma pérola de cinismo: Fundo de Financiamento da Democracia. Mais uma vez, é a retórica cafajeste dos políticos profissionais para tentar engabelar a sociedade brasileira.

Anteontem, aliás, também Renan Calheiros, o Réu, abriu a boca para falar de democracia. Não dá.

Renan e seus pestanas deveriam ser proibidos de pronunciar a palavra “democracia”. Toda vez que o fazem, desmoralizam a expressão. Mas, para se proibirem de falar de democracia, eles precisariam de uma ética da linguagem. E como a teriam, se não fazem questão de ética para nada?

Para ser levado a sério, o Congresso terá de acabar com o escândalo da sociedade jurídica de castas (vale dizer: dar um fim ao foro privilegiado) e com a aposentadoria especialíssima dos políticos, além de não anistiar o crime do caixa 2. No mínimo.

Outro dia, por sinal, o mesmo Renan elogiou o caráter de Cármen Lúcia. Ou seja: ele sabe o que é caráter. Se não tem, é porque não quer.

Na verdade, se o Congresso tivesse caráter, as coisas estariam andando de outro modo no Brasil.

Mas também o STF tem de apressar o passo. Mandar para a cadeia, com os bens confiscados, essa legião de larápios que suja o nome do país.

Até lá, os bandidos que financiem suas bandidagens. Não queiram nos obrigar a fazer isso.

Um alegre bom-dia

Doris Day e Gene Nelson no filme "Lullaby of Broadway".(1951)

Lobista não é parlamentar

Recentemente, foi apresentada no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 47/2016 para regulamentar a atividade de representação de interesses perante o poder público, o famoso lobby. O tema gera controvérsias. Desde a promulgação da Constituição de 1988, vários projetos foram apresentados com o objetivo de atribuir à atividade um caráter legítimo e legal. Até agora nenhum prosperou, revelando o interesse de boa parte dos congressistas em manter a atividade à margem da lei.

50 Ilustrações que vão Mexer com Você:
Pawel Kuczynski

Na defesa da regularização do lobby, alega-se com frequência seu caráter inevitável. Tendo em vista que sempre existirá, é preferível que a defesa de interesses privados seja feita sob a luz da lei, dizem os apoiadores da causa. O argumento, porém, dá ao lobby uma injusta conotação de mal necessário. A representação de interesses privados é legítima e pode contribuir para a melhoria da qualidade da representação política. Não há razão para considerar que tais interesses – tanto o lucrativo como o terceiro setor, beneficente – obrigatoriamente contrariem o interesse público. Nesse assunto não cabem ingenuidades, como também não cabem preconceitos. E, justamente por isso, a regulamentação do lobby deve estabelecer regras que, tornando a prática mais transparente, dificultem a proliferação de interesses e atuações pouco legítimas.

Assim, seria razoável olhar com bons olhos a PEC 47/2016. O texto, porém, apresenta sérios inconvenientes. Em primeiro lugar, ele inclui o Poder Judiciário como possível espaço para o exercício do lobby. Ora, na esfera judiciária, a defesa de interesses já tem um trilho bem definido, que é o processo judicial. A admissão de outras vias seria conferir um indevido caráter político ao Judiciário, cuja missão institucional exige precisamente uma delicada isenção. Definitivamente, o Judiciário não é território para o lobby.

Outro grave defeito da PEC 47/2016 está em abrir a possibilidade de se conceder aos “agentes de representação de interesses” prerrogativas que de modo nenhum devem ter. Por exemplo, segundo a proposta, as entidades federativas poderão conceder aos lobistas do Poder Legislativo o “direito a voz no âmbito de reunião de comissão; direito à apresentação formal de emendas a proposições; direito ao acompanhamento pessoal da tramitação de matéria de seu interesse, vedado o acesso aos ambientes exclusivos de parlamentares; direito de acostar memoriais e documentos a proposições de seu interesse”.

Ao tratar dos lobistas do Poder Executivo, a PEC também vai além do razoável, e menciona a possibilidade de lhes conceder o “direito de acostar memoriais e documentos aos processos de seu interesse”.

A concessão de tais prerrogativas é um evidente exagero. No caso do Legislativo, os lobistas são presenteados indevidamente com o instituto da representação: poderão apresentar emendas e propostas como se parlamentares fossem. No caso do Executivo, o texto é vago a ponto de admitir interferências em qualquer etapa do processo de elaboração de projetos e estudos.

O exercício da atividade de representação de interesses não requer esse tipo de atuação, com intromissões diretas e extemporâneas. Afinal, um dos objetivos da regulamentação do lobby é estabelecer uma clara e saudável distinção institucional entre o lobby e o exercício do cargo de parlamentar ou das atribuições executivas. A propositura de emendas em projetos legislativos, principalmente, deve continuar sendo prerrogativa exclusiva dos parlamentares, para que não haja dúvidas quanto à vigência do sistema representativo.

A regulamentação do lobby só tem sentido se reforçar a representação política prevista na Constituição, que se dá exclusivamente por meio do voto. Uma legislação sobre o tema deve garantir transparência ao trabalho do lobista, permitindo o acompanhamento pela sociedade da lisura e da legitimidade dos interesses defendidos por meio dessa atividade. Afinal, o objetivo da regulamentação não é aumentar o poder do lobby. É torná-lo mais visível e, assim, mais controlado.

Editorial - Estadão

Muitos caciques, poucos índios

O recente falecimento de Carlos Alberto Torres, capitão do escrete canarinho de 1970 na Copa do México, a qual nos sagrou tricampeões, fez-me lembrar de um tema interessante: nossos líderes em campo. Tite, um treinador acima de qualquer suspeita, conseguiu a proeza de tomar uma decisão pior do que a de Dunga, o técnico anterior (e sobre o qual tenho tanta simpatia quanto reservas). Consta ter instituído um rodízio da braçadeira em contraste com a decisão anterior, que era a braçadeira no pior braço possível – o do Neymar Jr., e isso é minha opinião.

Liderança é um assunto fascinante. Assim como a autoridade, ela emana de uma pessoa, porém apenas se concretiza no outro. Ou melhor, o verdadeiro líder não é quem está numa posição de comando, e sim quem as pessoas ao seu redor identificam ser. E não adianta adjetivar, dourar a pílula, enfeitar. Onde começamos a classificar, tipo “liderança técnica”, “liderança moral” e “liderança anímica”, ali pode não existir um líder autêntico. Tomando o exemplo do futebol, a braçadeira nos identifica como sendo o capitão, mas não vem acompanhada dos predicados para que ocupemos o cargo.

Paz seja convosco!  Palavra para meditação: Somos responsáveis uns pelos outros  O Senhor perguntou a Caim: Onde está o seu irmão Abel(Gênesis 4:9)  Desde o início, dica claro que Deus coloca prioridades nos relacionamentos familiares, ou seja, os fraternais.  O marido tem a responsabilidade de vigiar pela sua família, a esposa o mesmo, uns velando pelos outros.  Nos tempos atuais, as pessoas não querem se responsabilizar por muito tempo com as pessoas de seu relacionamento(família):
Ultimamente, o termo “liderança” anda no foco. Parece que em todos os escritórios de RH há uma gincana instituída para caçar líderes. Está pior do que buscas de Pokemón. As escolas também se preocupam em “formar líderes”, como se o sucesso pessoal e profissional dependesse desta posição. Por resultado, o que vemos é muito cacique para pouco índio. Com isso, um problema: onde só há líderes, não há líder. Como referi, a autoridade existe apenas quando reconhecida pelo outro, e este será, lógico, um liderado. Se eu me submeto e passo a me sentir menos – ou menor ou fracassado –, tal posição não servirá. Assim nasce a imensa crise de autoridade.

A braçadeira de capitão só faz mal a quem não é líder. Ela confundiu a cabeça do Neymar Jr. o tempo inteiro e segue a atrapalhar o time até hoje (destituí-lo se tornou um dilema). E a solução mágica encontrada por Tite foi o tal rodízio, um pecado inverso – muitos líderes, nenhum líder. Carlos Alberto, o “Capita”, liderava diversos gênios (Tostão, Jairzinho, Rivelino…) e um rei (Pelé). A braçadeira lhe caía tão bem como a poucos. Quem sabe Tite, olhando as reportagens sobre seu falecimento, reveja suas posições e identifique no grupo um líder, um capitão. Isso, ou minha suspeita recai sobre a própria autoridade enquanto técnico. Porque isso eu não disse: muito mais do que liderados, líderes se reconhecem a distância.

Rubem Penz

Exploração política da pobreza

Tem sido comum entre nós que grupos políticos em disputa atribuam apelidos uns aos outros. A versão mais atualizada desse hábito surgiu nas manifestações públicas a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Quem era a favor ganhou o designativo "coxinha". Quem era contra virou "mortadela". Conquanto as coxinhas fossem meramente simbólicas e não aparecessem fisicamente, a mortadela, essa sim, chegava em cestos, servida com pão. Em torno desses sanduíches se comprimiam manifestantes trazidos em ônibus para atuarem como figurantes nos eventos governistas. Faziam lembrar os filmes épicos do cineasta norte-americano Cecil B. DeMille, nos quais multidões eram contratadas para povoar a tela em cenas que causavam grande impressão. Nas manifestações contra o impeachment, quando a câmera dava um close, viam-se homens e mulheres humildes, em camisetas vermelhas, atacando com disposição o prometido sanduíche.

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Não raro, alguém se infiltrava nessa multidão, entrevistando-a e testando-a sobre suas convicções. As respostas, como seria de se esperar, mostravam que a quase totalidade não tinha ideia sobre a razão de ali estar. Embora muitos assistissem a essas cenas, posteriormente exibidas nas redes sociais, como coisa jocosa, tratava-se, na verdade, de algo constrangedor e triste. Triste e constrangedor. Como não se constranger ante a falsificação da cidadania? Como não se entristecer quando seres humanos têm sua dignidade rebaixada à condição de figurante de cidadão, ao preço de um sanduíche e alguns vinténs, num ato presumivelmente político? Nada contra quem foi levado a esse nível de carência. Apenas dó e respeito. Mas tudo contra quem se vale dessas pessoas e de suas precariedades para difundir uma mensagem de araque em comícios com figurantes. Após tantos anos no poder, precisam valer-se dos apelos da pobreza para atribuir vigor e atrair adesão à falácia de que acabaram com ela.

Pobre pobreza, sempre tão na ponta da língua e longe dos corações! Eleição após eleição, governo após governo, com crescente vigor a partir do "Tudo pelo social" do companheiro José Sarney, a pobreza ganhou o primeiro plano da retórica eleitoral. Na prática, os resultados são tão escassos quanto pode ser percebido tão logo se dissipa a algaravia dos discursos. Tudo se passa como se o discurso fosse capaz de superar os fatos e a autolouvação alterasse as estatísticas, proporcionasse emprego aos desempregados, salário e renda aos devedores. E pão com mortadela a quem tem fome. Sim, porque o pão com mortadela sumiu com o desinteresse pelas massas de figurantes. A volta vem e os "calaveras" se secam, ensinam os fronteiriços.

A economia nacional, que surfou sobre a crise no mar da China compradora crendo que o céu seria sempre azul e a brisa suave, se espatifou contra os rochedos da realidade. Era inevitável. A casa foi assaltada. O poço secou. A responsabilidade fiscal foi demitida das contas públicas. As maiores empreiteiras no Brasil abasteceram seus cofres diretamente do PIB nacional. A turma do Pixuleco enricou como Tio Patinhas jamais imaginou. Com o dinheiro do BNDES, o Brasil se transformou em mecenas ideológico de nossos satélites ibero-americanos e africanos. Mas tudo foi feito, dizem-nos, por incondicional amor aos pobres.

Pior do que isso. Agora, quando se pretende reerguer o país e medidas de austeridade se impõem, retomam o discurso da irresponsabilidade fiscal. Exigem que não se pague a dívida que quintuplicaram, cobram que se baixe a taxa de juros que elevaram e que o novo governo faça logo e faça bem, pela saúde e pela educação, tudo que não foi feito em 13 anos. Por amor e em defesa dos pobres.

O zelo pelos mais necessitados não é saliva de discurso. Antes de tudo é criar condições para que as pessoas, elas mesmas, promovam seu desenvolvimento humano e social. A pobreza, por si só, é uma chaga nacional. Explorá-la politicamente, em nome dela, é perverso.

Paisagem do Dia

Nature Photography by Oer-Wout
Oer-Wout

A anistia vem a galope

Enquanto a torcida se distrai com as eleições municipais, os deputados articulam uma nova jogada na Câmara. O plano é driblar o Ministério Público e aprovar uma anistia geral ao caixa dois. Se der certo, será um gol de placa do sistema político ameaçado pela Lava Jato.

A ideia é ousada: usar um pacote moralizador para legalizar o financiamento ilegal de campanhas. Os parlamentares prometem aprovar a criminalização do caixa dois, uma das chamadas dez medidas contra a corrupção. Parece boa notícia, mas há um detalhe. Ao proibir o trambique no futuro, a Câmara quer perdoar quem o praticou no passado.

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O lance já foi ensaiado em setembro. A bola não entrou graças a deputados da Rede e do PSOL, que se insurgiram contra o acordo fechado pelos grandes partidos. Agora a anistia ameaça voltar a galope. O motivo da pressa é a delação da Odebrecht, que deve entregar mais de 200 políticos de todas as siglas.

O novo acordão para "estancar a sangria" tem o aval do governo Temer e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Na quarta (26), ele repetiu uma tese dos réus do mensalão: caixa dois e corrupção seriam "coisas distintas", sem ligação entre si.

Em entrevista a Mario Sergio Conti, na Globo News, o deputado indicou que apoia o perdão ao financiamento irregular das eleições passadas. "Nós temos que dar um corte e dizer que daqui para a frente está criminalizado", disse, apesar de a lei já prever punições ao caixa dois.

Questionado se estava defendendo uma anistia a criminosos, Maia abriu o jogo: "Alguma solução vai ter que ser dada. Eu acho que anistia é uma palavra forte". De falta de transparência, não poderemos acusá-lo.

Pac-man do terror


Às vésperas da decisão do Congresso sobre cortar recursos públicos para partidos nanicos, multiplicam-se pedidos de registro de siglas na Justiça Eleitoral. O número cresceu em duas semanas de 34 para 52 novos grupos tentando se oficializar, o que engrossará a milícia de 35 siglas oficiais

Gregos e troianos Na lista, há os ligados a causas ambientais, como o Animais; os religiosos, como a UDC do B (União da Democracia Cristã do Brasil); e os esportistas, como o já notório PNC (Partido Nacional Corinthiano). 
Deu na Folha 

Vergonha, lágrimas e mágoa no berço do PT

 
PT virou aquele partido que foi feito para ser diferente, mas briga para ser igual 
Gilson Menezes, ex-prefeito de Diadema deixou o PT antes da primeira eleição de Lula à Presidência
Pouco sobrou do Primeiro de Maio original, quase não se encontram vestígios daquele estádio que, no dia 13 de maio de 1979, abrigou a mais emblemática greve da história do Brasil, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Com boa vontade, é possível identificar o local em que o palco daquele ato foi montado, ouvir o som dos helicópteros da polícia voando baixo e, em resposta, a turba que cantava o Hino da Independência – bem como recordar de um problema no equipamento de som que fez cerca de 60 mil trabalhadores repetirem, como se estivessem em um jogral, as palavras de um líder emergente, Luiz Inácio Lula da Silva.

Todas essas reminiscências só são possíveis se você for uma testemunha ocular daquela história, se você for alguém como Gilson Menezes, de 67 anos, o primeiro prefeito eleito pelo PT.

Ali, no centro do gramado do Primeiro de Maio, o homem que venceu as eleições de 1982, em Diadema, caiu em prantos: “A ideia da criação do PT já estava presente nesse estádio, já estava presente nessa greve, já era quase uma realidade. E agora? Está tudo desmoronando. Por que fizeram isso?”, pergunta.

De fato, menos de um ano depois daquele movimento, no início de 1980, nascia o PT. Menezes, que em 1978 havia se destacado como liderança sindical, principalmente por conseguir paralisar a Scania (fabricante de caminhões), participou das primeiras conversas sobre a criação do partido. “No começo, discutíamos nos bares, restaurantes e nas nossas casas. O partido ainda nem tinha um nome definido. Havia quem defendesse o nome PP (Partido Popular)”, recorda.

Em 1982, Menezes acabou sendo candidato contra sua vontade – mais para consolidar a legenda e dar visibilidade a lideranças locais. “Eu tinha vergonha de dizer que era candidato”, lembra. Chances de vencer? Quase não se pensava na possibilidade. Na época, Paulo Afonso, que era o vice na chapa, dizia: ‘Não devemos ganhar. Vencer seria um fel amargo’”. Menezes recorda ainda que concorrer à prefeitura significava apenas “fincar bandeira do PT”.

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domingo, 30 de outubro de 2016

Se entrega, Corisco

Renan Calheiros, no passado, perdia cabelos mas não perdia a cabeça. Agora, ele ganhou cabelos mas perde a cabeça, com frequência. Recentemente, disse que o Senado parecia um hospício e afirmou que ajudou a senadora Gleisi Hoffman no seu embate com a Lava-Jato. Hoje, sabemos que ordenou varreduras em vários pontos estratégicos ligados aos senadores investigados pela roubalheira na Petrobras.

E Renan perdeu a cabeça de novo, chamando um juiz federal de juizeco e o ministro da Justiça de chefete de polícia. Sua polícia legislativa funciona como uma espécie de jagunços de terno escuro e gravata, a serviço de alguns coronéis instalados no Senado. Quando combatemos Renan e o obrigamos a deixar o cargo de presidente, os jagunços já estavam lá. Como o Brasil vivia num estado meio letárgico, tivemos de enfrentar a braço os jagunços de Renan para garantir a transparência de uma reunião sobre seu destino.

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O sono brasileiro não é mais tão profundo como na época. Ainda assim, Renan sequer foi julgado pelos crimes de que era acusado na época. São as doçuras do foro privilegiado. Agora, ele quer que o foro privilegiado, que já era uma excrescência para deputados e senadores, estenda-se também aos seus jagunços. E que o espaço do Senado seja um santuário para qualquer quadrilha que tenha, pelo menos, um parlamentar como membro.

Talvez Renan esteja desesperado. Mas essa hipótese ainda precisa ser confirmada. Há sempre alguém que se acha o verdadeiro guardião das leis e se dispõe a defender Renan e o Senado, independentemente desse contexto bárbaro que presenciamos há anos. O próprio Gilmar Mendes, cujas posições são respeitáveis, saiu em defesa de Renan, sugerindo que a polícia não deveria entrar ali. Mas o que fazer quando a própria polícia do Senado comete uma delinquência? A resposta das pessoas que não foram atingidas pela Lava-Jato, mas se incomodam com o sucesso da operação, é sempre esta: falem com o Supremo. No caso do Renan, sob investigação em 12 processos diferentes, e sempre na presidência do Senado, o que significa falar com o Supremo?

Estamos falando com o Supremo há anos. Ele manda grampear senadores adversários, como fez com Marconi Perillo, orienta a agressividade e a truculência de seus jagunços contra deputados. Até hoje, para ele, o Supremo é apenas o cemitério de seus processos.

Renan, Gilmar Mendes e todos os defensores desse absurdo não conseguem me convencer que é preciso pedir licença ao Supremo para punir jagunços que usam equipamentos do Estado, diárias pagas pelo governo, para fazer varreduras na campanha de Lobão Filho, no Maranhão. Varreduras inclusive sob supervisão do genro de Lobão Filho, um homem chamado Marcos Regadas Filho, acusado de sequestro e mencionado no assassinato do blogueiro Décio Sá.

A diversão desse personagem para qual os jagunços trabalharam é usar o helicóptero para dar voos rasantes no Rio Preguiça em Barreirinhas, aterrorizando banhistas e pescadores.

— Foge, meu preto, que isso é vendaval — ouvia-se o grito dos pescadores

O halo protetor do Supremo não se limita aos bandidos do Congresso, mas aos seus jagunços e cúmplices regionais. A Lava-Jato não é infalível. Está sujeita a críticas como todas as atividades de governo. Não se deve usar o êxito da Lava-Jato com intenções corporativas, inclusive num momento de crise econômica como a nossa. Até aí, tudo bem. Mas negar à PF o direito de entrar no Senado quando o crime está sendo cometido pela própria polícia parlamentar, isso me parece um absurdo. O foro privilegiado tem sido uma espécie de escudo para os bandidos eleitos. Se o espaço onde atuam torna-se também um santuário para todos os que trabalham lá, teremos não só a impunidade de indivíduos mas a liberação de espaços especiais para o crime.

Nas campanhas que fiz contra Renan, desenhamos um cartaz dizendo: “se entrega, Corisco”. Isso foi há muito tempo. Seus crimes não foram punidos na época. Ainda me lembro das imagens das boiadas se deslocando no sertão para fingir Renan que era um grande criador. Os crimes não apenas deixaram de ser punidos. Aumentaram exponencialmente ao longo dos anos, ancorando-se inclusive na pilhagem da Petrobras.

Eduardo Cunha foi preso. Não tinha mais mandato. Se Renan continuar solto, é apenas porque tem um. É justo cometer crimes em série, sob o escudo de um mandato parlamentar? Renan está nervoso porque percebe o crepúsculo de um sistema de impunidade tecido pela audácia dos coronéis e a inoperância do Supremo. A evolução do país o levou a perder a cabeça, algo raro no passado. Espero que não chegue a arrancar os cabelos e ouça o meu conselho de anos atrás: se entrega, Corisco.

Fernando Gabeira

Poder e governo

Os governos são as estruturas das sociedades organizadas que executam coisas. Administram. Mandam projetos de leis. Exercem o poder de polícia. Compõem a “administração pública”. Essa coluna é para pensar se quando dizemos “governo” estamos pensando “poder”. Se sim, é provável que estejamos dramaticamente errados. Governo e poder não são a mesma coisa. O Poder pode sustentar um governo ou mandá-lo embora. O governo precisa negociar com o Poder para se manter governo. Acabamos de ver acontecer.

Não há programa político mais belo do que o expresso por Lincoln durante a Guerra Civil Americana: “Um governo do povo, pelo povo e para o povo”. Mas na década de 1950 Eisenhower, um ultraconservador, já denunciava o perigo do crescimento de um “complexo industrial-militar”. Uma entidade silenciosa e brutal, para a qual “o povo” é uma coisa abstrata, e “governo” uma correia de transmissão. O complexo industrial-militar tornou-se o Poder. Os governos podiam lhe ser dóceis ou, ainda que com contradições, lutar com ele. Kennedy quis lutar. Sabemos como acabou.

photography / hipster / indie / grunge:

Mas o complexo industrial-militar ainda era uma coisa. Apesar das sombras, do segredo das suas operações, podiam-se indicar os homens por trás dele. Apontar as fábricas da morte. Não mais. O desenvolvimento mais refinado do capitalismo na época da sua globalização, na qual temos a agonia e a responsabilidade de viver, virtualizou tudo. Nossa época viu mudar a geografia do poder. Ele se disseminou. Dizemos: “o sistema financeiro internacional”; “os bancos”; “as bolsas”, “o mercado”. São nomes adequados para o novo Poder. Mas ainda falta dizer que ele se articula por todo o planeta, que não é mais uma árvore, cujos frutos viessem envenenados. É uma grama, espalha-se sobre todo o território. Constitui o mundo.

Parece tremendo, imperial. Há filósofos e cientistas políticos que usam essa palavra para falar do Poder no mundo de hoje: o Império. É uma boa palavra. Mas não é original. Já tivemos impérios antes, com essa natureza global. O de Alexandre. O romano. O de Carlos Magno. O britânico. O nosso tem um componente novo, desnorteante: não precisa de imperador. Funciona como caem as maçãs e retornam os cometas: no piloto automático. E é policêntrico. Em geral, quando dizemos “Império” pensamos logo nos Estados Unidos. Mas há muito tempo que esse domínio precisa ser partilhado. Ou se torna ineficaz. E no mundo pós-moderno, ser ineficaz é mortal. O Poder funciona porque se policentralizou. Ele exige a Europa, a China, o Japão. O Ocidente e o Oriente. E as suas beiradas: grupo dos 20, BRICS, Mercosul e o que mais houver. Sua estrutura é móvel. Contraditória e convergente. Nos seus pontos contraditórios há às vezes governos, regiões inteiras, que se opõem relativamente ao Centro. Negociam com ele. Tentam levá-lo aos seus limites. Os seus limites. É preciso reconhecê-los, em cada momento e cada lugar. Não são sempre os mesmos. A sabedoria dos governos que divergem do Poder está na sutileza com que testam esses limites. E agem em consequência. Avançam onde podem, recuam quando devem, transigem, pactuam, resistem. Precisam se virar com o que têm. Não haverá ajuda de fora. Não há mais Fora. Governar se faz por dentro. Ou quebra.

Tivemos uma experiência de governos que souberam que não há Fora, mas não gostaram do que viram por dentro. Propuseram reformas, desenvolveram projetos que tocaram no que há de mais mortal, de mais pútrido entre os efeitos do Poder: a espantosa pobreza. A vida humilhada. Testaram pouco os limites. Comprometeram-se demais. Uma no prego, outra na ferradura, uma vela a Deus, outra ao diabo. Acabaram não sabendo mais onde estava um e onde se escondia o outro. Deus guiava a esperança — e foi grande! O diabo, como se sabe, mora nos detalhes. É nos detalhes que o Poder está todo presente. E esses governos da última década, que avançaram muito mas não encostaram nos limites, foram quebrados. Não sei se não teriam sido, se tivessem levado mais longe a vara com que tinham de cutucar a onça. Não sei se nos limites o bicho que pega é só uma onça ou é coisa mais feroz. Mas quebraram. Foram quebrados. Eram governos que não estavam no poder. No Poder.

E agora temos um que está. Ou melhor, o Poder está nele. É muito medíocre para ter poder. O Poder o tem. Esse é o momento do maior perigo. Porque no passado estávamos acostumados a lutar de fora para dentro. Mas o Fora acabou. Precisamos aprender a nos mover por dentro, junto com os humilhados do mundo. Movermo-nos com: co-movermo-nos. Precisamos de todas as nossas reservas amorosas para reaprender a política. Deixou de ser óbvia, a política.

Ser amoroso num tempo de raiva e ódio é pedir para perder. Mas há derrotas que honram. Precisamos reaprender a honra. Antes que não haja mais.
Rena lendo jornal Quanto mais mente mais facil mentir calunia

Educação para lançar foguetes

Você terá de contratar e liderar um time com uma missão bem difícil: lançar um foguete tripulado com destino a Marte. Que tipo de profissionais você vai buscar para cumprir essa tarefa? Certamente, pessoas com excelente formação e domínio dos conhecimentos necessários à sua função, capazes de resolver problemas complexos e inesperados, que saibam trabalhar em equipe, desenvolvam estratégias para lidar com diferentes situações – pessoas criativas, inovadoras.

Afinal, chegar a um mundo tão distante não é nada trivial.

Sabe o que mais não é trivial? Lançar 25 foguetes por ano. Às vezes, até mais. E sabe que profissionais fazem isso? Os professores. Cada aluno traz desafios a um professor como os do lançamento de um foguete. Cada um deles tem o próprio sistema de propulsão, tem uma condição inicial, diferentes combustíveis, diferentes trajetórias e projetos de vida. Eles têm muitos mundos a alcançar.

O cérebro humano é muito mais complexo (e interessante) que um motor de foguete. Os mecanismos cerebrais de uma criança, a forma como ela pensa, compreende, aprende, reage, se desenvolve, produz, analisa, reedita – tudo isso compõe uma ciência que precisa ser conhecida por todos os professores preparados para garantir que cada aluno aprenda tudo a que tem direito e muito mais. Ensinar também é uma ciência nada trivial.

Apesar disso, continuamos a ouvir dizer que ser bom professor é um dom. Ao longo da História o professor tem sido representado pela sociedade brasileira como um abnegado: primeiro, como um sacerdote – marca deixada pelos jesuítas –, depois, como uma tia, mulher de espírito maternal que dedicava seu tempo a cuidar de crianças e adolescentes. E se ensinar é um dom, a formação na ciência do ensinar não precisaria ser levada muito a sério: afinal, basta saber o conteúdo que será ensinado e... ora, ensinar.

Nada mais incorreto!

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Infelizmente, a história da formação de professores mostra que, com poucas exceções, desde que se tornou o lócus da formação docente, a universidade seguiu o modelo de preparar para o domínio específico dos conteúdos da área de conhecimento que o professor vai lecionar, em detrimento da formação pedagógico-didática. Embora haja um crescente entendimento de que a formação de professores requer um efetivo preparo pedagógico-didático, ainda é muito forte a depreciação desse aspecto, que se refere a como a criança aprende e à forma de ensinar.

Comumente ouvimos que há excesso de teoria e falta prática. Não é bem isso. O fato é que a teoria, muito necessária, precisa estar atrelada à prática, de modo que uma dialogue com a outra.

Estamos falando em formação do profissional professor, duas palavras com a mesma origem etimológica. Estamos, portanto, falando não apenas do professor por vocação, mas do professor profissional, competente, preparado e valorizado.

Essa separação entre os conteúdos que precisam ser ensinados e o modo de ensiná-los aparece na dualidade bacharelado e licenciatura, modalidades por vezes alocadas em duas unidades universitárias distintas – respectivamente, as faculdades específicas – como de Matemática, Letras, Geografia, Física e Educação Física – e a faculdade de Educação. Como a parte pedagógica é pouco valorizada, as licenciaturas acabam tendo muito menos prestígio no mundo universitário. Afinal, quem se está preparando para a prática do ensino acaba por produzir menos artigos acadêmicos e emplacar menos pesquisas nas publicações especializadas, algo tão valorizado pela academia e pelos incentivos governamentais.

Não há mais a menor dúvida (alguma vez houve?) de que a educação é a base para uma sociedade mais justa e para um país crescer de forma sustentável e com distribuição de renda. Também há inúmeras evidências dos efeitos positivos da educação em outras áreas, como saúde, segurança, inovação, emprego e renda, entre tantas outras.

Se a educação é a base, seu pilar central são os professores. Não há educação de qualidade sem professores qualificados, valorizados, com condições ideais de trabalho. O professor é a base das demais profissões. Por sua imensa importância para cada um de nós e para o Brasil, o trabalho e os resultados desses profissionais devem ser também acompanhados, celebrados, cobrados.

Quando falamos em ter expectativas altas quanto ao aprendizado dos alunos, estamos falando também em altas expectativas acerca do trabalho dos professores. Não esperamos um favor da tia nem o toque mágico do sacerdote. Confiamos ao professor grande parte do que é e será o Brasil. Por isso devemos apoiá-lo.

No País, 61,7% dos futuros professores estão em cursos presenciais e 38,3% em cursos a distância. Em contraposição, 97,3% dos estudantes de Engenharia estão nos presenciais e 2,7% nos cursos a distância. Se, corretamente, as faculdades de Engenharia têm tanto prestígio e compreendemos que são centrais na construção do País, na inovação e no avanço tecnológico, é difícil entender e aceitar a nossa incongruência lógica de não perceber que a formação dos professores é igualmente – ou até mais – importante e complexa. A sólida preparação dos professores exige tanta ou mais ciência.

Podemos entender (mas não justificar) que as universidades – de forma geral, mas não total – não deem a mesma importância à formação dos professores que dão à dos engenheiros. Essa preponderância é inerente à história da construção universitária no Brasil.

Mas precisamos, como sociedade, vestir a carapuça, uma vez que nós mesmos não valorizamos os professores como deveríamos. Ainda temos de caminhar muito rumo a encarar a educação como valor da sociedade, e o professor como o principal profissional do País.

Aí, mais do que nunca, todos e cada um dos alunos serão como foguetes. Poderão ir muito longe, a Marte e muito além.

Rebeldes tateando em busca de uma causa

O sangue do adolescente esfaqueado em Curitiba na última segunda-feira já seria motivo mais que suficiente para tentarmos entender melhor o movimento de ocupação de escolas deflagrado por estudantes secundaristas, apoiados, em alguns casos, por docentes e universitários. Mas a amplitude do movimento suscita questões importantes sobre a presente situação brasileira.

O objetivo declarado, bem o sabemos, é protestar contra a reforma do ensino médio proposta pelo governo Temer. A reforma é uma tentativa de modernizar o currículo, tornando-o mais flexível. Pretende reduzir o número de matérias obrigatórias a fim de aumentar a concentração em Português, Inglês e Matemática. Isso é bom ou ruim? É óbvio que essa pergunta interessa a todos os cidadãos brasileiros, a todas as comunidades de que se compõe a nossa sociedade, não apenas às comunidades diretamente envolvidas no processo educacional.

A primeira questão a considerar é, pois, por que dezenas de milhares de estudantes e professores optaram por uma tática violenta (ocupação é violência), descartando liminarmente o diálogo com as autoridades do governo, com os especialistas que trabalharam no projeto da reforma e com outras comunidades potencialmente interessadas. Por que uma tática que os isola, quando só teriam a ganhar ampliando o alcance de sua manifestação? Por que não uma série bem organizada de debates, pacífica e ordeira, tecnologia que nossa sociedade, felizmente, domina há tanto tempo?

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Sabemos que o comportamento de um grupo social numeroso nunca se deve a uma causa única. Há sempre uma conjunção de motivos. Na reflexão a seguir, abordarei três hipóteses, em grau crescente de plausibilidade, designadas como civismo educacional, ativismo romântico e politização de esquerda.

A hipótese do civismo educacional já foi parcialmente suscitada. Debater a reforma do ensino é um direito de todo cidadão. Entre os docentes e discentes, ou seja, na comunidade mais diretamente envolvida no processo educacional, é razoável admitir que esse direito seja vivenciado de modo mais intenso, como um dever cívico. É difícil crer que essa motivação tenha sido suficiente para levar centenas de milhares de secundaristas a se integrar ao movimento, invadindo escolas e nelas permanecendo por vários dias. Presumivelmente, uma atitude cívica de tal intensidade teria mais chance de se desenvolver entre adultos, principalmente entre os mais bem informados sobre as questões em jogo. Admitamos, porém, que a hipótese do civismo ajude a compreender por que uma parcela dos participantes vê sentido na tática de ocupar escolas.

Minha segunda hipótese é a do ativismo romântico. Para o jovem inclinado ao romantismo, a “normalidade burguesa” é um tédio insuportável. Ele deseja ardorosamente mudar a sociedade, mas não sabe como. Não conseguindo identificar-se com a sociedade existente e não atinando com os fundamentos da ordem política democrática, ele não atura as convenções e instituições que lhe servem de base, vendo-as como um mundo de aparências e hipocrisia. Durante o século 20 o romantismo alimentou todo tipo de fantasia revolucionária; e, ainda hoje, por toda parte e todas as classes e grupos etários há estudantes, intelectuais, artistas e clérigos imbuídos da crença de que só através dessa fonte fáustica chegarão à plena posse de sua alma e ao sentido de sua vida. Num país como o Brasil, socialmente dilacerado e dilacerante, essa forma de romantismo compreensivelmente se alastra com facilidade, se não como uma motivação destrutiva consciente, ao menos como uma tentativa de experimentar situações “contraculturais”, à margem da sociedade.

Mais robusta, entretanto, parece-me ser a hipótese ideológica, ou seja, a da politização de esquerda. Ninguém ignora que o PT e os pequenos partidos comunistas disputam acirradamente o controle do movimento estudantil, geralmente apoiados por uma parcela do corpo docente. Um leitor desavisado poderá surpreender-se com essa afirmação. Esses partidos e suas facções agem orientados pelo que chamam de socialismo. Mas como, se a URSS desmoronou há um quarto de século? Se a China, desde Deng Xiaoping, abandonou suas antigas crenças a respeito da cor do gato, interessando-se apenas em saber se ele come ratos? Sem esquecer que Cuba, com a bancarrota soviética, virou carta fora do baralho. O que resta é a Coreia do Norte brincando de bomba atômica e a Venezuela a um passo de sua tragédia anunciada. Lembremos, como arremate, que a recente eleição municipal e a Operação Lava Jato reduziram o PT a pó de traque.

Contra esse pano de fundo de tantos fiascos, como compreender que as organizações comunistas conservem sua influência e até consigam se expandir no meio estudantil? Dado o espaço disponível, limitar-me-ei a duas observações sucintas. Primeiro, as crenças antiliberais, entre as quais o comunismo se destaca, correspondem com exatidão à noção de ideologia como o oposto do conhecimento racional. Caracterizam-se por uma incapacidade profunda de assimilar e processar informações novas, contrárias ao sentido que lhes é inerente.

Nas condições atuais, justamente por terem perdido seus referenciais internacionais, as esquerdas ditas socialistas regridem a um mero “movimentismo” sustentado em elaborações intelectuais quase totalmente vazias de conteúdo. O leitor interessado em apreciar este ponto pode esquecer seu Marx, vá direto às Reflexões sobre a Violência de George Sorel, o inventor do anarco-sindicalismo. O conteúdo das ideias – Sorel ensinou – é uma questão secundária. Os “oprimidos” aprendem é pelo movimento, por uma luta incessante. Para tanto basta um mito. Pode ser a figura de um populista corrupto ou uma narrativa maniqueísta do tipo “nós contra a elite”. Qualquer mito serve e quanto mais simples, melhor. Os “oprimidos” não precisam queimar pestanas em cima dos cartapácios de Marx.

Brasil deveria mudar o modo como lida com a memória da escravidão?

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Jean Baptiste Debret (1820)
Uma sala com peças de um navio que levava para o Brasil 500 mulheres, crianças e homens escravizados é a principal atração do novo museu sobre a história dos americanos negros, em Washington.

Numa segunda-feira de outubro, era preciso passar 15 minutos na fila para entrar na sala com objetos do São José - Paquete de África, no subsolo do Museu de História e Cultura Afroamericana.

Inaugurado em setembro pelo Smithsonian Institution, o museu custou o equivalente a R$ 1,7 bilhão se tornou o mais concorrido da capital americana: os ingressos estão esgotados até março de 2017.

Em 1794, o São José deixou a Ilha de Moçambique, no leste africano, carregado de pessoas que seriam vendidas como escravas em São Luís do Maranhão. A embarcação portuguesa naufragou na costa da África do Sul, e 223 cativos morreram.

Visitantes - em sua maioria negros americanos - caminhavam em silêncio pela sala que simula o porão de um navio negreiro, entre lastros de ferro do São José e algemas usadas em outras embarcações (um dos pares, com circunferência menor, era destinado a mulheres ou crianças).

"Tivemos 12 negros que se afogaram voluntariamente e outros que jejuaram até a morte, porque acreditam que quando morrem retornam a seu país e a seus amigos", diz o capitão de outro navio, em relato afixado na parede.
Prova de existência

Ferragens usadas em navios negreiros
Expor peças de um navio negreiro era uma obsessão do diretor do museu, Lonnie Bunch. Em entrevista ao The Washington Post, ele disse ter rodado o mundo atrás dos objetos, "a única prova tangível de que essas pessoas realmente existiram".

Destroços do São José foram descobertos em 1980, mas só entre 2010 e 2011 pesquisadores localizaram em Lisboa documentos que permitiram identificá-lo. Um acordo entre arqueólogos marinhos sul-africanos e o Smithsonian selou a vinda das peças para Washington.

Que o destino do São José fosse o Brasil não era coincidência, diz Luiz Felipe de Alencastro, professor emérito da Universidade de Paris Sorbonne e um dos maiores especialistas na história da escravidão transatlântica.

Ele afirma à BBC Brasil que fomos o paradeiro de 43% dos africanos escravizados enviados às Américas, enquanto os Estados Unidos acolheram apenas 0,5%.

Segundo um estudo da Universidade de Emory (EUA), ao longo da escravidão ingressaram nos portos brasileiros 4,8 milhões de africanos, a maior marca entre todos os países do hemisfério.

Esse contingente, oito vezes maior que o número de portugueses que entraram no Brasil até 1850, faz com que Alencastro costume dizer que o Brasil "não é um país de colonização europeia, mas africana e europeia".

O fluxo de africanos também explica porque o Brasil é o país com mais afrodescendentes fora da África (segundo o IBGE, 53% dos brasileiros se consideram pretos ou pardos).

Por que, então, o Brasil não tem museus ou monumentos sobre a escravidão comparáveis ao novo museu afroamericano de Washington?
Apartheid e pilhagem da África

Para Alencastro, é preciso considerar as diferenças nas formas como Brasil e EUA lidaram com a escravidão e seus desdobramentos.

Ele diz que, nos EUA, houve uma maior exploração de negros nascidos no país, o que acabaria resultando numa "forma radical de racismo legal, de apartheid".

Até a década de 1960, em partes do EUA, vigoravam leis que segregavam negros e brancos em espaços públicos, ônibus, banheiros e restaurantes. Até 1967, casamentos inter-raciais eram ilegais em alguns Estados americanos.

No Brasil, Alencastro diz que a escravidão "se concentrou muito mais na exploração dos africanos e na pilhagem da África", embora os brasileiros evitem assumir responsabilidade por esses processos.

Ele afirma que muitos no país culpam os portugueses pela escravidão, mas que brasileiros tiveram um papel central na expansão do tráfico de escravos no Atlântico.

Alencastro conta que o reino do Congo, no oeste da África, foi derrubado em 1665 em batalha ordenada pelo governo da então capitania da Paraíba.

"O pelotão de frente das tropas era formado por mulatos pernambucanos que foram barbarizar na África e derrubar um reino independente", ele diz.

Vizinha ao Congo, Angola também foi invadida por milicianos do Brasil e passou vários anos sob o domínio de brasileiros, que a tornaram o principal ponto de partida de escravos destinados ao país.

"Essas histórias são muito ocultadas e não aparecem no Brasil", ele afirma.

Piano ao domingo

Dois anos para meditar, antes da sucessão presidencial

A partir de hoje começa no país um jejum de dois anos sem eleição. Excelente oportunidade para 140 milhões de eleitores meditarem a respeito dos votos dados e por dar. Arrependimento? Sensação de dever cumprido? Ou de tempo perdido?

Da próxima vez que o eleitor se deparar com as diabólicas maquininhas de votar, estará escolhendo o futuro presidente da República, além de governadores, deputados e senadores. Tempo de sobra para decidir sobre os rumos a tomar.

Do que o Brasil mais necessita, além de eleições? Persistir no desvio adotado de maio para cá, sob nova direção e empenhado em cercear direitos e exigir sacrifícios das camadas menos favorecidas? Ou ampliar espaços para distribuir pela maioria carente a riqueza concentrada nas elites?

São duas alternativas a concentrar as atenções gerais sem possibilidade de integração entre elas. Ou uma ou outra. Dois anos bastarão para o país decidir se os 12 milhões de desempregados se multiplicarão ou serão sensivelmente reduzidos. Tempo há para a sociedade definir-se até que outra vez sejamos chamados a votar pela distribuição ou a concentração da riqueza.

Desde que o mundo é mundo essa dicotomia atormenta a humanidade. Raras vezes, porém, abre-se ocasião como essa, um interregno de dois anos para a revelação do futuro.
O PT começa a reunir os cacos, visando ressurgir, e um nome começa a ser lembrado para presidir o partido. É o ministro Patrus Ananias, que até agora passou incólume pelo lamaçal dos últimos anos. Resta saber se tem disposição.

Os idiotas confessos

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

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E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — “Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniquidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

Nelson Rodrigues

Juiz também deve pensar

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Cada juiz do Brasil deveria chegar em casa, olhar-se no espelho, refletir e concluir: “Eu decido o futuro das pessoas; na democracia, a cada vez que falo por intermédio de um grupo, maculo a minha independência
Reinaldo Jardim