terça-feira, 3 de novembro de 2015

A volta da paranoia

Eu fui ver a “Ponte dos Espiões”, de Spielberg. O filme é sensacional. Trata daquele celebre caso do U2, o avião de reconhecimento que foi derrubado pelos soviéticos em 1960.

E mais importante do que o enredo é o contexto em que ele se passa: a loucura anticomunista dos norte-americanos daquela época. A paranoia estava estampada nos rostos dos militares e agentes da CIA durante a Guerra Fria. Vemos ali os rostos trincados, os olhos fuzilando ódio, as queixadas intolerantes, as beiçolas mussolínicas e implacáveis, todos os traços da estupidez competente que marca os defensores do ‘sonho americano, depois da Segunda Guerra Mundial.

Ali vemos os séculos da ideologia religiosa que começou com humildade bíblica e descambou para o rancor e a boçalidade fanática de hoje.

Eles acham que os democratas são “cães infiéis”, exatamente como pensam os muçulmanos. Os fundamentalistas que nos deram “tea parties” são um detergente. Querem limpar a América dominada pelos “esquerdistas” como o Obama, e encarnam o pensamento dos milhões de idiotas que jazem entre o hambúrguer e o sofá diante da TV, que acham que os problemas do mundo podem ser ‘raspados’, que dissidências se esmagam, que as complexidades devem ser achatadas, que o múltiplo tem de virar uno e que tudo tem um princípio (desde quando Deus criou o mundo há 6.000 anos...) e um fim que deve ser igual ao início. Eles ostentam uma certeza que nunca nos premia com um olhar compassivo, como aquele casal puritano no célebre quadro de Grant Wood, “American Gothic”.

Com a euforia multilateral dos anos 90, tínhamos esquecido o que era a boa e velha direita mesmo. Agora, ressurge no mundo uma grande busca de chefes, de líderes com bandeiras do “futuro”, um autoritarismo que renega a moleza inoperante e lenta da democracia.

A razão fracassa e instala-se o reino da estupidez. E o que é o fascismo senão a estupidez no poder?

Eu já estive lá, pouco antes da queda do U2. Eu vi a Guerra Fria de perto, vi seus efeitos na cabeça dos norte-americanos quando morei na Flórida em 1957, ainda “teenager”.

A cidadezinha era igual aquela do “Truman Show”. As ruas, pessoas, rituais, sorrisos e lágrimas, tudo parecia programado por uma máquina social obsessiva. A vida e a morte eram padronizadas, previstas: abraços gritados, roupas iguais, torcidas histéricas no baseball, alegrias obrigatórias, formando uma missão cheia de fé, como um carrossel de certezas girando para um futuro garantido. Os ídolos da época eram Elvis Presley rebolando na TV e James Dean, cadáver presente nos gestos e roupas da “juventude transviada”.



Não havia espaço para dúvidas naquela cidade, mas percebia-se que a solidez de certezas, se rompida, provocaria um grave desastre. Pairava um clima de intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os fracos, as meninas bonitas contra as feias, as sérias contra as “galinhas”. Eu, turista tropical, era um tipo misterioso; tímido mas, como era estrangeiro, os colegas da “high school” me poupavam por minha habilidade em dar-lhes “cola” em “spelling”, soletrando palavras de raiz latina que, para eles, eram enigmas.

A violência dos alunos me assustava. Eu me chocava com as botas de cowboy marchetadas de estrelas de prata, as facas de mola de onde a lâmina pulava, os casacos de couro negro, uma rebeldia reacionária e “republicana” dos anos de Eisenhower. Havia nos rostos um orgulho de cowboys.

Mas, desde 1949, com a explosão da bomba H pelos soviéticos, destronando a liderança dos destruidores de Hiroshima, os norte-americanos temiam outra humilhação.

Até que um dia chegou a noticia devastadora. Tinha subido aos céus o satélite russo, o Sputnik, girando como uma bola de basquete em órbita da Terra. Pânico na cidade. Em minutos, a cidade parecia um campo de refugiados, com cabeças inchadas, com pavor dos comunistas invasores.
No colégio, começaram “fire drills” incessantes, alarmes evacuando os alunos para porões e abrigos atômicos. O então senador Lyndon Jonhson berrou: “Brevemente estarão jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras caindo do céu...”

No alto, o satélite Sputnik humilhava os norte-americanos, com seus “bip bips” como gargalhadas de extraterrestre.

A partir desse dia, lá em baixo, na cidadezinha da Flórida, eu mudei. Não para mim, mas para os outros. Os colegas “transviados” me investigaram com perguntas: “O que você acha? Teu país gosta dos russos?”. Eu tremia e escondia minha vaga admiração juvenil pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados – brasileiro, latino, sabe-se lá? Depois disso, não me pediam mais cola de palavras, mal me olhavam. Melinda ficou mais pálida e nosso namoro definhou.

Eu estava vendo o “choque e pavor” da América profunda. Essa era a época da chamada “silent generation”, passiva e ignorante. Sua reação era a mesma dos fundamentalistas do “Tea Party” hoje. São mais perigosos que os islamitas guerreiros, que explodem trens e aviões, mas não devastam o Ocidente, por rancor, vingança e onipotência, como fez o Bush.

Depois, quase acabou o mundo em 1962, quando os cubanos instalaram mísseis soviéticos na ilha.
Hoje, a paranoia da direita é mais difusa, disfarçada num mundo onde a polaridade Rússia x América acabou, apesar de que o Putin, o cover de Stalin, quer restaurar o tempo da KGB. Cresce a vontade de irracionalismo, diante da falta de soluções.

O caos é hoje uma trágica novela sem fim, como vemos na TV: islã virado em barbárie, Oriente Médio enterrado no lixo da primavera árabe, a miséria se afogando em barquinhos de borracha na costa da Itália, a insolúvel guerra do nazista Bibi Netaniahu contra os palestinos.

A chamada “direita” – mesmo fingindo de “esquerda” como no Brasil do PT – renasce em toda parte sem barreiras de contenção. Já pensaram se o Mitt Romney tivesse sido eleito? E se Hillary não ganhar? Virá um tempo de desprezo pela “sensatez” dos “fracos e covardes” democratas. A paranoia está de volta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário