Repassando outro dia no jornal as listas de livros mais vendidos, vi que nosso complexo de vira-lata continua ovante. Dos 10 mais, 9 são americanos e 1 é brasileiro. Não sei se lá fora também é assim. Como muitos países estão vivendo dias conturbados, imagino que, neles, o interesse pelos assuntos nacionais seja pelo menos equivalente ao fascínio pelas coisas dos EUA. A exemplo do Brasil de tempos mais nacionalistas.
Num jornal de 1964 que há pouco me caiu aos olhos, também havia uma lista de livros mais vendidos. Exceto por um ou outro sobre a Guerra Fria ou a fome na África, a maioria era de brasileiros. E, entre estes, um gênero então em voga: tratados “eruditos” sobre temas irrelevantes e vice-versa, com citações em latim, prefácios de gente séria e crítica feroz de tudo. Alguns: “A Ignorância ao Alcance de Todos” (1962), “O Puxa-Saquismo ao Alcance de Todos” (1963) e “Seja Você um Canibal” (1964), todos de Nestor de Hollanda, e “Tratado Geral dos Chatos” (1963), de Guilherme Figueiredo. Tenho-os até hoje, lidos, sublinhados e anotados.
Nestor de Hollanda (1921-1970) era radialista, humorista e comunista, mais ou menos nessa ordem. E Guilherme Figueiredo (1915-1997), um escritor respeitado, com largo trânsito no meio e dramaturgo levado à cena por Tonias, Procopios e Bibis (anos depois, para seu azar, seu irmão caçula, João Batista, seria o quinto presidente da ditadura).
“A Ignorância…” pregava a analfabetização compulsória do país, já que a alfabetização parecia impossível. “O Puxa-Saquismo…” era um manual da bajulação para políticos e populares. “Seja Você um Canibal” se compunha de receitas culinárias para levar ao fogo famosos e anônimos. E, “Tratado Geral…”, um guia para identificar, evitar e, se preciso, matar um eventual chato no nosso caminho.
Todos ficaram meses nas listas dos jornais e vários ao mesmo tempo. Outro Brasil.
Ruy Castro
terça-feira, 31 de janeiro de 2023
Ser moderno
A história do mundo tem sido contada a partir de um formato consagrado nesses últimos séculos por cientistas sociais de respeito. Mas enquanto esses pensadores enlouquecem tentando desvendar a crise entre indivíduo e sociedade, os brasileiros reivindicamos a originalidade absoluta de nossos costumes, hábitos e hinos que afirmam nossa diferença. Vivemos nossa abençoada vagabundagem cantando cantigas originais, organizando relações sociais só nossas, pensando livremente sobre o que for.
Gente importante, celebrada por aí, sempre defendeu esse caráter único com um sorriso mal disfarçado, saudando nossa divina originalidade. Autores como Gilberto Freyre (espécie de fundador metafísico da tendência), Mario e Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos e Emiliano Di Cavalcanti, Jorge de Lima e Guimarães Rosa, Nelson e Glauber, apesar dos protestos ruidosos diante da injusta fome do povo, não tinham dúvida de que esse povo seria capaz de feitos extraordinários sem o lugar-comum narrativo absorvido e manifestado pelos outros povos.
Nessas horas me ocorre sempre o primeiro parágrafo da obra cintilante de um deles, Paulo Prado, que se refere ao Brasil como o território de uma população triste e melancólica em permanente anúncio de uma alegria construída por sua produção cultural. Ou como disse Euclides da Cunha sobre o poeta Castro Alves, “foi ele quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem impulsividade e desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos”. E mais adiante na mesma conferência: “Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da Humanidade”.
Do século XIX para o XX, heróis de José de Alencar e de Machado de Assis disputavam o coração dos leitores e a ilusão dos eleitores sobre o que melhor representava o Brasil. Enquanto Alencar criava situações típicas da colonização em que o valor dos locais era puro e por isso mesmo indiscutível, Machado reproduzia com ironia o talento destrutivo de situações que deviam estar ocorrendo em outro lugar, a revelar a existência de uma civilização irregular destinada a logo desaparecer.
Depois da ditadura militar e do fracasso social dos governos de José Sarney e Fernando Collor, tornou-se vitoriosa a ideia de que nada seria capaz de tirar o povo brasileiro da estrada por onde seguia. A estrada do alegre insucesso, da compulsiva festa de gargalhadas autocríticas, do riso apoiado numa cultura de televisão que derrotara todas as outras formas de conhecimento, cultivando e difundindo uma imagem do Brasil que, como seu povo, nunca tivéramos antes.
Perdemos assim o jeito de tentarmos nos explicar. Nos apropriamos de um sistema de análise em que buscamos no moderno uma saída para o vazio da ausência de futuro. O fim de toda a glória de nossa existência tornada mera presença sobre a face do corpo celeste, o planeta que nos coube.
Bolsonaro e seus cupinchas arruaceiros agravaram essa desmoralização desvalorizando nossa capacidade de descobrir novos rumos. Essa extrema direita de moleques se tornou entre nós uma esperança impossível. Assumiu-se então a ideia consolidada do fracasso da nação, só o milagre tirava nosso povo da merda conceitual em que ele se encontrava. E esse milagre não estava mais no valor da moeda, o milagre do Real se acabara assim que aquele dinheiro perdera a força nos shoppings de nossas cidades.
Só nos restou portanto sermos modernos para darmos uma explicação sobre por que não havíamos produzido um conjunto de ideias que nos recolocasse no rumo da realidade que ainda podíamos frequentar. Ser moderno é não ser ideológico, é preferir uma explicação que nos faça desabrochar mesmo que não explique nada. Porque ser moderno é não dar bola nenhuma pro futuro.
Gente importante, celebrada por aí, sempre defendeu esse caráter único com um sorriso mal disfarçado, saudando nossa divina originalidade. Autores como Gilberto Freyre (espécie de fundador metafísico da tendência), Mario e Oswald de Andrade, Heitor Villa-Lobos e Emiliano Di Cavalcanti, Jorge de Lima e Guimarães Rosa, Nelson e Glauber, apesar dos protestos ruidosos diante da injusta fome do povo, não tinham dúvida de que esse povo seria capaz de feitos extraordinários sem o lugar-comum narrativo absorvido e manifestado pelos outros povos.
Nessas horas me ocorre sempre o primeiro parágrafo da obra cintilante de um deles, Paulo Prado, que se refere ao Brasil como o território de uma população triste e melancólica em permanente anúncio de uma alegria construída por sua produção cultural. Ou como disse Euclides da Cunha sobre o poeta Castro Alves, “foi ele quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem impulsividade e desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos”. E mais adiante na mesma conferência: “Penso que seremos em breve uma componente nova entre as forças cansadas da Humanidade”.
Do século XIX para o XX, heróis de José de Alencar e de Machado de Assis disputavam o coração dos leitores e a ilusão dos eleitores sobre o que melhor representava o Brasil. Enquanto Alencar criava situações típicas da colonização em que o valor dos locais era puro e por isso mesmo indiscutível, Machado reproduzia com ironia o talento destrutivo de situações que deviam estar ocorrendo em outro lugar, a revelar a existência de uma civilização irregular destinada a logo desaparecer.
Depois da ditadura militar e do fracasso social dos governos de José Sarney e Fernando Collor, tornou-se vitoriosa a ideia de que nada seria capaz de tirar o povo brasileiro da estrada por onde seguia. A estrada do alegre insucesso, da compulsiva festa de gargalhadas autocríticas, do riso apoiado numa cultura de televisão que derrotara todas as outras formas de conhecimento, cultivando e difundindo uma imagem do Brasil que, como seu povo, nunca tivéramos antes.
Perdemos assim o jeito de tentarmos nos explicar. Nos apropriamos de um sistema de análise em que buscamos no moderno uma saída para o vazio da ausência de futuro. O fim de toda a glória de nossa existência tornada mera presença sobre a face do corpo celeste, o planeta que nos coube.
Bolsonaro e seus cupinchas arruaceiros agravaram essa desmoralização desvalorizando nossa capacidade de descobrir novos rumos. Essa extrema direita de moleques se tornou entre nós uma esperança impossível. Assumiu-se então a ideia consolidada do fracasso da nação, só o milagre tirava nosso povo da merda conceitual em que ele se encontrava. E esse milagre não estava mais no valor da moeda, o milagre do Real se acabara assim que aquele dinheiro perdera a força nos shoppings de nossas cidades.
Só nos restou portanto sermos modernos para darmos uma explicação sobre por que não havíamos produzido um conjunto de ideias que nos recolocasse no rumo da realidade que ainda podíamos frequentar. Ser moderno é não ser ideológico, é preferir uma explicação que nos faça desabrochar mesmo que não explique nada. Porque ser moderno é não dar bola nenhuma pro futuro.
Estava em curso o genocídio dos ianomâmis
Não poderia ser diferente, depois da reportagem da jornalista Sônia Bridi na reserva Indígena Ianomâmi, domingo, no Fantástico (TV Globo). O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, ontem, a investigação da possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediência de decisões judiciais por parte de autoridades do governo Jair Bolsonaro.
São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulharam o estômago quando lá estive e vi montanhas de cabelo, sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impressiona é a “racionalidade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.
O conceito foi cunhado a partir do julgamento em Jerusalém do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim. Um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelenses, que o sequestraram e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.
Convidada para assistir ao julgamento, Arendt escreveu um livro. Chegou à conclusão de que Eichmann não era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.
Na avaliação de Arendt, essa seria a justificativa para a ascensão em regimes totalitários e a banalização da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecimento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalização do mal que praticava. No entendimento de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalmente essa. Sua racionalidade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.
As crianças ianomâmis não foram exterminadas nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistência médica; as adolescentes e jovens eram exploradas sexualmente em troca de comida. Os ianomâmis estavam sendo exterminados por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos Ianomâmis era uma farsa.
A Farsa Ianomâmi disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre ONGs e forças estrangeiras para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘ianomâmis’ e “preparar a dominação futura da Amazônia (…) para a posterior criação de países indígenas independentes, sob a tutela das Nações Unidas”.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamente, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamentos de fronteira das Forças Armadas, governadores e prefeitos foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiros estavam contaminando os rios, matando e explorando os ianomâmis, em aliança com os traficantes de cocaína.
Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o então presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiros, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáveis pelos órgãos de fiscalização, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.
Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas, como a Ianomâmi, com base nos fatos já comprovados. De acordo com lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ordenou, ainda, que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentado um diagnóstico dessas comunidades, com o respectivo planejamento e cronograma de execução de medidas.
Seu despacho traduziu a banalização do mal: “Quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participação de altas autoridades federais”.
São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulharam o estômago quando lá estive e vi montanhas de cabelo, sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impressiona é a “racionalidade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.
O conceito foi cunhado a partir do julgamento em Jerusalém do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim. Um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelenses, que o sequestraram e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.
Convidada para assistir ao julgamento, Arendt escreveu um livro. Chegou à conclusão de que Eichmann não era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.
Na avaliação de Arendt, essa seria a justificativa para a ascensão em regimes totalitários e a banalização da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecimento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalização do mal que praticava. No entendimento de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalmente essa. Sua racionalidade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.
As crianças ianomâmis não foram exterminadas nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistência médica; as adolescentes e jovens eram exploradas sexualmente em troca de comida. Os ianomâmis estavam sendo exterminados por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos Ianomâmis era uma farsa.
A Farsa Ianomâmi disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre ONGs e forças estrangeiras para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘ianomâmis’ e “preparar a dominação futura da Amazônia (…) para a posterior criação de países indígenas independentes, sob a tutela das Nações Unidas”.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamente, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamentos de fronteira das Forças Armadas, governadores e prefeitos foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiros estavam contaminando os rios, matando e explorando os ianomâmis, em aliança com os traficantes de cocaína.
Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o então presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiros, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáveis pelos órgãos de fiscalização, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.
Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas, como a Ianomâmi, com base nos fatos já comprovados. De acordo com lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ordenou, ainda, que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentado um diagnóstico dessas comunidades, com o respectivo planejamento e cronograma de execução de medidas.
Seu despacho traduziu a banalização do mal: “Quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participação de altas autoridades federais”.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
O dízimo golpista
‘Em nome do pai, dos filhos, dos espíritos e dos santos, amém’ é o enredo de 2023 da Gaviões da Fiel. As alas da escola reunirão na avenida espíritas, evangélicos, católicos e seguidores do candomblé e da umbanda. Contra a intolerância religiosa, a alegria da música e a irreverência carnavalesca.
No ano passado, a mesma Gaviões desfilou sob o tema “Basta!”, em referência direta aos desmandos na saúde, educação e política esperneados por aquele ex-líder da extrema direita. Dizia a letra do samba: A democracia alienada e a ditadura disfarçada/basta de hipocrisia/é hora da luta sair do papel.
E, logo depois das eleições presidenciais, a torcida da Gaviões protagonizou a mais linda reação aos golpistas, quando, a caminho do Rio, em razão de um jogo contra o Flamengo, rompeu os bloqueios dos caminhoneiros em avenidas de São Paulo. Os bolsonaristas em fuga ainda puderam ver pelo retrovisor, no alto de um viaduto, a faixa estendida pela torcida corintiana: “Somos pela Democracia”.
O samba pela concórdia religiosa chega à avenida depois da prisão de alguns pastores golpistas. Não apenas postaram a catilinária habitual contra as urnas eletrônicas, como invadiram os palácios no 8 de janeiro. Ancorados no dízimo arrecadado — aquele que não paga imposto —, ajudaram a destruir o patrimônio público.
Não é de hoje, sempre existiram maus religiosos disfarçados em nome da fé. Ainda sob tal escudo, perpetraram muitos crimes. Na eleição passada, o discurso de campanha escondeu a incompetência na gestão da pandemia — quase 700 mil vítimas — para vociferar o discurso fundamentalista de algumas denominações evangélicas contra religiões afro. A começar pela célebre ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Tudo depois ecoado por parlamentares tuiteiros de cabelo pintado.
O número de golpistas presos, tamanha a barbárie da tentativa de golpe, deixou em segundo plano a prisão e a conspiração urdida por pastores evangélicos, sob inspiração do capitão e de seus militares de pijama (nem todos). Sob o governo bolsonarista, os religiosos conservadores sentiram-se confortáveis na sedição contra a democracia, como na propagação de suas aversões. Releram a Bíblia de acordo com seus interesses financeiros e políticos. Com sucesso, incentivaram ataques aos terreiros de religiões afro e a seus seguidores.
Logo depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, ao postarem opiniões e vídeos para caracterizar como manifestações democráticas o que foi um ataque ao resultado das eleições, praticaram outras ações criminosas. Protegidos pelo lero-lero da liberdade de expressão, buscam destruir o Estado Democrático e difundir entre a população narrativas escusas sempre pintadas pelo verniz da fé.
Durante a pandemia, em lugar de pedir compras rápidas de vacinas ou de respiradores, para proteger seu rebanho, revelaram seus interesses ao lutar para que seus templos não ficassem fechados. Afinal, o dízimo on-line não se mostrava tão eficiente como a coleta presencial.
O Brasil de 2023 precisa não apenas discutir o papel dos militares na sociedade, sem medo de golpe ou de quarteladas, como deveria enfrentar a sedição empreendida pelos pastores de extrema direita. Por décadas, o catolicismo conservador se viu confrontado por reações de quem não comungava com atrasos civilizatórios — como a luta contra o divórcio ou a pílula anticoncepcional. Eram duros debates, porém não se colocava, tal como posto agora por setores evangélicos, preconceito religioso. Tratava-se de rejeitar a proverbial catequização, em nome da fé, de igualar a todos sob as mesmas crenças.
É ainda o caso de usar a liberdade de opinião para discursar malquerenças dentro dos templos contra os gays. Embora a homofobia seja considerada crime pela Constituição, os pastores brigam para mostrar seus púlpitos como espaços livres da lei geral. Assim, pela enviesada fé, a recorrência no preconceito.
A França, de maneira mais grave, enfrenta há alguns anos o que se avizinha no Brasil. Os imãs brigam para impor preconceitos e costumes estranhos à sociedade francesa. Também querem espaços onde valham seus preceitos islâmicos fundamentalistas — quase sempre contrários à secular tolerância legal religiosa do país, num evidente caráter de retrocesso civilizatório. Lá, como aqui, a extrema direita se esconde atrás das liberdades civis para exterminar conquistas como… a liberdade de opinião. Isso não é um samba.
No ano passado, a mesma Gaviões desfilou sob o tema “Basta!”, em referência direta aos desmandos na saúde, educação e política esperneados por aquele ex-líder da extrema direita. Dizia a letra do samba: A democracia alienada e a ditadura disfarçada/basta de hipocrisia/é hora da luta sair do papel.
E, logo depois das eleições presidenciais, a torcida da Gaviões protagonizou a mais linda reação aos golpistas, quando, a caminho do Rio, em razão de um jogo contra o Flamengo, rompeu os bloqueios dos caminhoneiros em avenidas de São Paulo. Os bolsonaristas em fuga ainda puderam ver pelo retrovisor, no alto de um viaduto, a faixa estendida pela torcida corintiana: “Somos pela Democracia”.
O samba pela concórdia religiosa chega à avenida depois da prisão de alguns pastores golpistas. Não apenas postaram a catilinária habitual contra as urnas eletrônicas, como invadiram os palácios no 8 de janeiro. Ancorados no dízimo arrecadado — aquele que não paga imposto —, ajudaram a destruir o patrimônio público.
Não é de hoje, sempre existiram maus religiosos disfarçados em nome da fé. Ainda sob tal escudo, perpetraram muitos crimes. Na eleição passada, o discurso de campanha escondeu a incompetência na gestão da pandemia — quase 700 mil vítimas — para vociferar o discurso fundamentalista de algumas denominações evangélicas contra religiões afro. A começar pela célebre ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Tudo depois ecoado por parlamentares tuiteiros de cabelo pintado.
O número de golpistas presos, tamanha a barbárie da tentativa de golpe, deixou em segundo plano a prisão e a conspiração urdida por pastores evangélicos, sob inspiração do capitão e de seus militares de pijama (nem todos). Sob o governo bolsonarista, os religiosos conservadores sentiram-se confortáveis na sedição contra a democracia, como na propagação de suas aversões. Releram a Bíblia de acordo com seus interesses financeiros e políticos. Com sucesso, incentivaram ataques aos terreiros de religiões afro e a seus seguidores.
Logo depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, ao postarem opiniões e vídeos para caracterizar como manifestações democráticas o que foi um ataque ao resultado das eleições, praticaram outras ações criminosas. Protegidos pelo lero-lero da liberdade de expressão, buscam destruir o Estado Democrático e difundir entre a população narrativas escusas sempre pintadas pelo verniz da fé.
Durante a pandemia, em lugar de pedir compras rápidas de vacinas ou de respiradores, para proteger seu rebanho, revelaram seus interesses ao lutar para que seus templos não ficassem fechados. Afinal, o dízimo on-line não se mostrava tão eficiente como a coleta presencial.
O Brasil de 2023 precisa não apenas discutir o papel dos militares na sociedade, sem medo de golpe ou de quarteladas, como deveria enfrentar a sedição empreendida pelos pastores de extrema direita. Por décadas, o catolicismo conservador se viu confrontado por reações de quem não comungava com atrasos civilizatórios — como a luta contra o divórcio ou a pílula anticoncepcional. Eram duros debates, porém não se colocava, tal como posto agora por setores evangélicos, preconceito religioso. Tratava-se de rejeitar a proverbial catequização, em nome da fé, de igualar a todos sob as mesmas crenças.
É ainda o caso de usar a liberdade de opinião para discursar malquerenças dentro dos templos contra os gays. Embora a homofobia seja considerada crime pela Constituição, os pastores brigam para mostrar seus púlpitos como espaços livres da lei geral. Assim, pela enviesada fé, a recorrência no preconceito.
A França, de maneira mais grave, enfrenta há alguns anos o que se avizinha no Brasil. Os imãs brigam para impor preconceitos e costumes estranhos à sociedade francesa. Também querem espaços onde valham seus preceitos islâmicos fundamentalistas — quase sempre contrários à secular tolerância legal religiosa do país, num evidente caráter de retrocesso civilizatório. Lá, como aqui, a extrema direita se esconde atrás das liberdades civis para exterminar conquistas como… a liberdade de opinião. Isso não é um samba.
A descoberta da Amazônia
Quando Márcio Souza, amazonense, escritor, diretor de teatro, crítico de cinema, autor do conhecido e festejado livro “Galvez, o Imperador do Acre”, foi convidado pela Universidade de Berkeley, na California, para ministrar curso sobre a Amazônia, ele descobriu que não havia uma única obra sobre história desta imensa e rica região. O professor organizou a primeira história geral da Amazônia numa edição de mimeógrafo para seus estudantes californianos.
Depois de várias versões, ele concluiu sua “História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI”, editora Record, 2019. A questão dos índios amazônicos, especificamente dos ianomanis, se insere dentro do desconhecimento generalizado da região. No entanto, pilantras de diversas nacionalidades perceberam meios de gerar renda. Por exemplo, ingleses se depararam, séculos atrás, com indígenas jogando esporte parecido com futebol na Amazônia ocidental. A bola quicava e tinha elasticidade. Descobriram a seringueira. Levaram sementes para a Malásia e destruíram importante atividade comercial da região.
Os índios sempre constituíram uma espécie de ser humano que não encontra explicação razoável nos chamados civilizados. O Marechal Candido Mariano da Silva Rondon andou pela selva fazendo contato com índios arredios. Mas o militar era uma ilha entre seus colegas. Ele criou a primeira reserva indígena. No entanto, o branco chamado civilizado não compreende e nem aceita povos sem propriedade privada ou moeda, que não negocia mercadorias. Além disso, a sabedoria de seus anciãos sabe misturar ervas que produzem curas milagrosas. Vez por outra, grandes laboratórios multinacionais recorrem a produtos amazônicos para produzir remédios que rendem milhões de dólares.
Se a Amazônia é uma grande área desconhecida dos brasileiros, os índios constituem uma incógnita ainda mais ignorada. Os exemplos do continente americano não são edificantes. Os norte-americanos fizeram da conquista do oeste um exercício de matança de índios. O general Custer dizia que “índio bom é índio morto”. Os argentinos também trataram de exterminar os povos originários desde os patagones até os fueguinos, da Terra do Fogo.
A alegada ignorância sobre o que se passa na Amazônia incentiva as práticas de uma terra sem lei. Vigora a opinião do mais forte, dos mais armados e daquele que tem mais dinheiro. O garimpo é atividade especial. Envolve risco, investimento importante, coragem e disposição para viver de maneira precária. Naturalmente produz riqueza. Ouro tem valor em qualquer lugar do mundo, em qualquer latitude, em qualquer situação. No Brasil e no exterior. Garimpeiro sabe do risco, mas conhece a extensão do ganho. Com uma vantagem: Ninguém paga imposto. E há muitos garimpos porque há muito ouro.
Os ianomanis estão localizados no norte de Roraima, ao redor do grande rio Uraricoera. A reserva fica próxima da BR 174, que liga Boa Vista a fronteira com a Venezuela. Estrada boa, asfaltada. Quem quiser, pode viajar por terra até Caracas. Já fiz essa aventura. Beleza de paisagem na grande savana, na Venezuela. A principal atividade econômica na região é ouro e a extração de diamantes. A riqueza da Amazônia é indescritível.
Aos olhos dos brancos e do finado governo Bolsonaro os índios atrapalham o progresso e o desenvolvimento da região. O resultado é este: mais de mil indivíduos daquela etnia foram internados em hospital de campanha da Aeronáutica, em Boa Vista, em situação crítica de saúde. Segundo informações do Ministério dos Povos Indígenas cerca de 570 crianças morreram nos últimos meses por doenças, fome ou contaminação por mercúrio, utilizado pelos garimpeiros para separar ouro de outros minerais.
O chanceler alemão Olaf Scholz virá a Brasília para conversar com o presidente Lula sobre integração do Mercosul com a União Europeia. O brasileiro falou por mais de uma hora sobre o mesmo assunto por telefone com Emmanuel Macron, presidente da França. O acordo é vantajoso para as duas partes. Mas envolve, em primeiro lugar, a preservação da Amazônia e dos povos indígenas. Os europeus agora se preocupam com a matéria por causa do alegado aquecimento do planeta. E se não obtiverem garantias neste assunto, não haverá acordo.
Os brasileiros, no governo Lula, descobriram a Amazônia, perceberam a catástrofe dos ianomanis e a vasta corrupção ocorrida no propalado apoio aqueles indígenas. Há uma corrente de interesses escusos que vai desde o guarda da FUNAI até o poderoso político eleito para supostamente defender a região. Não há mais argumentos para esconder a ignorância sobre o que ocorre no norte do território nacional.
Depois de várias versões, ele concluiu sua “História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI”, editora Record, 2019. A questão dos índios amazônicos, especificamente dos ianomanis, se insere dentro do desconhecimento generalizado da região. No entanto, pilantras de diversas nacionalidades perceberam meios de gerar renda. Por exemplo, ingleses se depararam, séculos atrás, com indígenas jogando esporte parecido com futebol na Amazônia ocidental. A bola quicava e tinha elasticidade. Descobriram a seringueira. Levaram sementes para a Malásia e destruíram importante atividade comercial da região.
Se a Amazônia é uma grande área desconhecida dos brasileiros, os índios constituem uma incógnita ainda mais ignorada. Os exemplos do continente americano não são edificantes. Os norte-americanos fizeram da conquista do oeste um exercício de matança de índios. O general Custer dizia que “índio bom é índio morto”. Os argentinos também trataram de exterminar os povos originários desde os patagones até os fueguinos, da Terra do Fogo.
A alegada ignorância sobre o que se passa na Amazônia incentiva as práticas de uma terra sem lei. Vigora a opinião do mais forte, dos mais armados e daquele que tem mais dinheiro. O garimpo é atividade especial. Envolve risco, investimento importante, coragem e disposição para viver de maneira precária. Naturalmente produz riqueza. Ouro tem valor em qualquer lugar do mundo, em qualquer latitude, em qualquer situação. No Brasil e no exterior. Garimpeiro sabe do risco, mas conhece a extensão do ganho. Com uma vantagem: Ninguém paga imposto. E há muitos garimpos porque há muito ouro.
Os ianomanis estão localizados no norte de Roraima, ao redor do grande rio Uraricoera. A reserva fica próxima da BR 174, que liga Boa Vista a fronteira com a Venezuela. Estrada boa, asfaltada. Quem quiser, pode viajar por terra até Caracas. Já fiz essa aventura. Beleza de paisagem na grande savana, na Venezuela. A principal atividade econômica na região é ouro e a extração de diamantes. A riqueza da Amazônia é indescritível.
Aos olhos dos brancos e do finado governo Bolsonaro os índios atrapalham o progresso e o desenvolvimento da região. O resultado é este: mais de mil indivíduos daquela etnia foram internados em hospital de campanha da Aeronáutica, em Boa Vista, em situação crítica de saúde. Segundo informações do Ministério dos Povos Indígenas cerca de 570 crianças morreram nos últimos meses por doenças, fome ou contaminação por mercúrio, utilizado pelos garimpeiros para separar ouro de outros minerais.
O chanceler alemão Olaf Scholz virá a Brasília para conversar com o presidente Lula sobre integração do Mercosul com a União Europeia. O brasileiro falou por mais de uma hora sobre o mesmo assunto por telefone com Emmanuel Macron, presidente da França. O acordo é vantajoso para as duas partes. Mas envolve, em primeiro lugar, a preservação da Amazônia e dos povos indígenas. Os europeus agora se preocupam com a matéria por causa do alegado aquecimento do planeta. E se não obtiverem garantias neste assunto, não haverá acordo.
Os brasileiros, no governo Lula, descobriram a Amazônia, perceberam a catástrofe dos ianomanis e a vasta corrupção ocorrida no propalado apoio aqueles indígenas. Há uma corrente de interesses escusos que vai desde o guarda da FUNAI até o poderoso político eleito para supostamente defender a região. Não há mais argumentos para esconder a ignorância sobre o que ocorre no norte do território nacional.
Mata-'bicho'
Eles [indígenas] têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho.Antonio Denarium (PP), governador de Roraima,
Brasil desperta para o genocídio dos yanomamis
Tanto as imagens de crianças yanomamis famintas quanto aquelas de sobreviventes dos campos de concentração nazistas envergonham os cidadãos, alemães ou brasileiros, surpresos, como se aquela realidade estivesse escondida. No caso alemão, a censura não permitia o conhecimento da realidade, no nosso caso, há décadas a imprensa denuncia, há quatro anos o governo se manifestava sobre o risco de os yanomamis proclamarem uma nação independente do Brasil. Havia estratégia ou ao menos o desejo de que houvesse uma limpeza étnica, para proteger a soberania nacional. Faz parte desta visão negar apoio sanitário, permitir que as terras yanomamis fossem ocupadas e que a água de seus rios contaminada.
Todos sabiam o que acontecia com os yanomamis, faltavam as fotos.
Da mesma forma, todos sabem o genocídio que há séculos se pratica contra os brasileiros pobres ao negar-lhes educação de qualidade. O ser humano tem corpo e mente: o genocídio pode ser com o assassinato de corpos, ou com o impedimento da prática cultural dos povos originários; ou a negação de escola na sociedade moderna, impedindo a vida plena por falta de emprego e renda. Por 350 anos, o Brasil cometeu genocídio contra os negros escravos, ao negar-lhes tudo; a partir de 1888 soltaram as algemas dos corpos, mas não libertaram os negros, nem os pobres brancos: para libertar é preciso ensinar a usar o mapa que orienta o solto na sua caminhada. Não demos o mapa para a vida contemporânea: escrever bem português, falar outros idiomas, ter noção de ciência, arte, história, geografia, conhecer as ferramentas do mundo, dispor de um ou mais ofício.
Desde a abolição da escravatura, estamos cometendo genocídio educacional, deixando os analfabetos e os alfabetizados sem educação necessária, sobrevivendo como se estivessem em uma câmara sem oxigênio, incinerando seus cérebros, no vácuo de conhecimento. Há alguns anos despertamos para o que ocorre na Amazônia, ao vermos florestas queimando, agora, para o genocídio contra os yanomamis: as fotos mostram ossos aflorando nos corpos, mas não mostra o cérebro de cada pessoa que vive sem saber ler.
Uma parte dos brasileiros continua vivendo na ignorância do genocídio cometido ao seu redor, por desrespeito aos povos originários ou negando escola de qualidade para que os brasileiros sem educação substituam os escravos com baixos salários. Faltam fotos mostrando o cérebro de quem não sabe ler e de cada excluído de escola com qualidade. Difícil entender que a foto de escola pública do presente é um retrato do país no futuro.
Por falta de foto, empresários, universitários, políticos e sindicalistas não se chocam com o genocídio educacional. Em grau diferente de maldade, toda criança sem escola de qualidade é um pequeno yanomami, e todos os outros brasileiros somos grandes genocidas. Porque sabemos o que acontece, mas não vemos as fotos do horror. Sabemos da realidade, mas a ignoramos por não a vermos fotografada.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
Cuidado com os 'homens de bem'
O patriota com camiseta de Bolsonaro que vandalizou o relógio no Palácio do Planalto tem três passagens pela polícia em Goiás, por ameaça física, tráfico de drogas e receptação de carros roubados. A patriota que, enrolada na bandeira do Brasil na invasão do STF, gabou-se de ter emporcalhado o banheiro dos ministros, também tem uma condenação por tráfico, em Santa Catarina. E outro patriota capturado nos distúrbios, munido de bombas, estilingues e material para coquetel molotov, era foragido por ter matado um homem a facadas no Pará em 2018.
Um patriota do Paraná, suspeito de ter fretado quatro ônibus que levaram golpistas de Londrina a Brasília, já cumpriu dois anos por sonegação de R$ 1,2 milhão em impostos. Outro patriota, este de Mato Grosso, foi acusado em 2021 de ameaçar a ex-mulher com uma barra de ferro e, ao ser preso, jurou matá-la "assim que saísse da cadeia". A quantidade de infratores da Lei Maria da Penha entre os capturados na praça dos Três Poderes é grande, com destaque para um patriota de Minas Gerais, que tentou esfaquear a mãe.
Todos os patriotas de Bolsonaro se dizem "homens de bem". Mas desde quando "homens de bem" estão associados a tantos problemas com a lei?
O cardápio de crimes em que se envolvem é infinito: genocídio dos yanomamis, contrabando de madeira, garimpo ilegal, assassinato de sertanistas, intimidade com milicianos, arsenais domésticos clandestinos, cocaína no avião presidencial, Viagra e próteses penianas para generais, venda de cloroquina, comissão na aquisição de vacinas, Bíblias a peso de ouro, rachadinhas, compra de mansões com dinheiro vivo, cheques para a primeira-dama, militares com salários de seis dígitos, mamatas com o cartão corporativo, empresários financiadores de terrorismo etc. etc.
Desconfie de gente de camisa amarela e ficha na polícia. Pode ser um "homem de bem".
Um patriota do Paraná, suspeito de ter fretado quatro ônibus que levaram golpistas de Londrina a Brasília, já cumpriu dois anos por sonegação de R$ 1,2 milhão em impostos. Outro patriota, este de Mato Grosso, foi acusado em 2021 de ameaçar a ex-mulher com uma barra de ferro e, ao ser preso, jurou matá-la "assim que saísse da cadeia". A quantidade de infratores da Lei Maria da Penha entre os capturados na praça dos Três Poderes é grande, com destaque para um patriota de Minas Gerais, que tentou esfaquear a mãe.
Todos os patriotas de Bolsonaro se dizem "homens de bem". Mas desde quando "homens de bem" estão associados a tantos problemas com a lei?
O cardápio de crimes em que se envolvem é infinito: genocídio dos yanomamis, contrabando de madeira, garimpo ilegal, assassinato de sertanistas, intimidade com milicianos, arsenais domésticos clandestinos, cocaína no avião presidencial, Viagra e próteses penianas para generais, venda de cloroquina, comissão na aquisição de vacinas, Bíblias a peso de ouro, rachadinhas, compra de mansões com dinheiro vivo, cheques para a primeira-dama, militares com salários de seis dígitos, mamatas com o cartão corporativo, empresários financiadores de terrorismo etc. etc.
Desconfie de gente de camisa amarela e ficha na polícia. Pode ser um "homem de bem".
Ode ao rebanho (Redondilhas bem intencionadas)
Pensar é só excepção
à tendência bem normal
de repelir a razão
que serve pra fazer mal.
A turba prefere seguir
a palavra do profeta:
obedecer faz sentir
tudo bom como chupeta.
Pensar por si faz doer,
dá trabalho e faz suar:
caminho próprio fender
é perigoso e dá azar.
Obedecer ao rebanho
dá conforto e sossego:
é bom como tomar banho
e não cria desapego.
Possuir ideias suas
é solene atrevimento:
exige boas charruas
e algum discernimento.
Sê por isso bem mandado,
bom menino e bem fodido:
pensar por si é pecado
e torna-se aborrecido!
Eugénio Lisboa
à tendência bem normal
de repelir a razão
que serve pra fazer mal.
A turba prefere seguir
a palavra do profeta:
obedecer faz sentir
tudo bom como chupeta.
Pensar por si faz doer,
dá trabalho e faz suar:
caminho próprio fender
é perigoso e dá azar.
Obedecer ao rebanho
dá conforto e sossego:
é bom como tomar banho
e não cria desapego.
Possuir ideias suas
é solene atrevimento:
exige boas charruas
e algum discernimento.
Sê por isso bem mandado,
bom menino e bem fodido:
pensar por si é pecado
e torna-se aborrecido!
Eugénio Lisboa
No caso yanomami, desafio da PF é provar dolo de Bolsonaro em genocídio
Nos próximos meses, uma pergunta latejará no noticiário: Pode Bolsonaro ser fisgado numa ação penal por genocídio? Na CPI da Covid, a ideia de vincular o capitão a um genocídio produzia ebulição nas redes sociais. Mas a tipificação desse crime exige um alvo específico —como os judeus para os nazistas ou os armênios para os turcos. Agora a coisa é diferente.
Nos últimos quatro anos, o governo tomou o partido dos garimpeiros ilegais. Nesta quarta-feira, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar a prática de crimes como omissão de socorro, desvios de verbas destinadas à saúde indígena e, para desassossego de Bolsonaro, genocídio.
No Brasil, o genocídio é definido na lei 2.889, de 1956. O artigo 1º anota que genocida é quem teve “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Na pandemia, o negacionismo de Bolsonaro produziu mortes indiscriminadamente. Os yanomami, porém, se encaixam na definição legal como alvo individualizado.
Portanto, a degradação letal a que foram submetidos os indígenas pode, sim, configurar o crime de genocídio. A culpa pode ser atribuída por ação e também por omissão. Proliferam evidências de que as digitais de Bolsonaro estão impressas no flagelo yanomami. A exemplo do que fez em outros casos, o capitão produziu provas contra si mesmo. Mas será necessário demonstrar que houve dolo, má-fé. Esse é o principal desafio da Polícia Federal.
Faltam aos yanomamis comida, remédio, água limpa e proteção contra criminosos ambientais. Lula deflagrou no final de semana uma operação interministerial para socorrer os indígenas. Bolsonaro classificou a crise humanitária de “mais uma farsa da esquerda”. Disse que, em maio de 2021, numa visita a Roraima, não ouviu dos indígenas senão um pedido por “internet”. Lamentou que esteja empacado no Congresso projeto que abre reservas dos patrícios originários para o agronegócio.
Sempre que Bolsonaro se apropria de uma notícia, os fatos se perdem para sempre. Mas certas realidades, por eloquentes, não deixam de existir apenas porque os ignorantes as ignoram. No momento, pouca coisa é tão palpável quanto o o sofrimento inflingido aos yanomami. A assistência governamental aos indígenas jamais foi um primor. Mas o descaso ganhou sob Bolsonaro a aparência de escândalo. O capitão, como de hábito, diz o que bem quer. É preciso que investigadores e magistrados comecem a lhe dizer o que ele não deseja ouvir.
Nos últimos quatro anos, o governo tomou o partido dos garimpeiros ilegais. Nesta quarta-feira, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar a prática de crimes como omissão de socorro, desvios de verbas destinadas à saúde indígena e, para desassossego de Bolsonaro, genocídio.
No Brasil, o genocídio é definido na lei 2.889, de 1956. O artigo 1º anota que genocida é quem teve “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Na pandemia, o negacionismo de Bolsonaro produziu mortes indiscriminadamente. Os yanomami, porém, se encaixam na definição legal como alvo individualizado.
Portanto, a degradação letal a que foram submetidos os indígenas pode, sim, configurar o crime de genocídio. A culpa pode ser atribuída por ação e também por omissão. Proliferam evidências de que as digitais de Bolsonaro estão impressas no flagelo yanomami. A exemplo do que fez em outros casos, o capitão produziu provas contra si mesmo. Mas será necessário demonstrar que houve dolo, má-fé. Esse é o principal desafio da Polícia Federal.
Faltam aos yanomamis comida, remédio, água limpa e proteção contra criminosos ambientais. Lula deflagrou no final de semana uma operação interministerial para socorrer os indígenas. Bolsonaro classificou a crise humanitária de “mais uma farsa da esquerda”. Disse que, em maio de 2021, numa visita a Roraima, não ouviu dos indígenas senão um pedido por “internet”. Lamentou que esteja empacado no Congresso projeto que abre reservas dos patrícios originários para o agronegócio.
Sempre que Bolsonaro se apropria de uma notícia, os fatos se perdem para sempre. Mas certas realidades, por eloquentes, não deixam de existir apenas porque os ignorantes as ignoram. No momento, pouca coisa é tão palpável quanto o o sofrimento inflingido aos yanomami. A assistência governamental aos indígenas jamais foi um primor. Mas o descaso ganhou sob Bolsonaro a aparência de escândalo. O capitão, como de hábito, diz o que bem quer. É preciso que investigadores e magistrados comecem a lhe dizer o que ele não deseja ouvir.
A nossa Noite dos Cristais
O poeta Ferreira Gullar costumava dizer que seus poemas nasciam do espanto a que era acometido diante dos incidentes da vida, daí lhe viria a inspiração em que o inesperado deflagrava nele o impulso para fixar num poema a sua percepção do que sentia sobre a experiência vivida. Gullar nos deixou uma obra genial, mas o tamanho do espanto que sentimos com os fatos calamitosos desse inesquecível dia 8 de janeiro que não abandonam a nossa memória não nos têm conduzido às sendas da criação, e já se ouvem vozes que nos sugerem ir em frente, passar um pano e voltarmos ao regaço do cotidiano de sempre.
O dia 8 de janeiro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito um pogrom num bairro judeu destruindo suas lojas.
Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.
Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988. Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto Schartz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.
O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.
Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de janeiro ocorra mais uma vez.
O dia 8 de janeiro foi a data da profanação do que havia de sagrado entre os brasileiros no culto de suas tradições e seu projeto de futuro, sempre reiterado de seguir em frente na realização dos ideais civilizatórios de que Brasília, saída das mãos de Oscar Niemeyer e de Lucio Costa como projeto sinalizador da utopia brasileira de realizar nos trópicos pela obra de um país miscigenado uma cultura democrática e singular. Os palácios de Brasília, as sedes dos três poderes republicanos, não eram separados das vistas do público por muros, mas por vidros a fim de afirmar os ideais da transparência do poder. Neste famigerado dia 8 abateram-se as vidraças dos palácios de Brasília com a mesma fúria com que as hordas nazistas, em 1938, levaram a efeito um pogrom num bairro judeu destruindo suas lojas.
Seu propósito era o de colapsar a sede do poder democrático recentemente investido a fim de impedir a realização dos seus fins declarados de ruptura com uma história nascida da relação monstruosa entre o latifúndio e a escravidão, que preservada em seus fundamentos de exclusão, encontrou lugar nos processos de modernização autoritária que nos trouxeram aos dias de hoje. A tentativa criminal foi abortada, mas antes disso ela conspurcou e maculou o que dava sentido à nossa história e alento para seguir seu curso.
Os alemães, depois de 1945 com a derrota do nazismo, acertaram suas contas com os sicários que a tinham dissociado da sua rica história cultural no Tribunal de Nuremberg. Aqui, e pelas mesmas razões, é imperativo levar aos tribunais todos os que atentaram por ações ou omissões contra a nossa incipiente democracia. Qualquer tergiversação nessa linha deixa os flancos abertos para recidivas do fascismo que já encontrou as brechas em nossa sociedade para se infiltrar, que não se restringem às ocupações de posições de poder, mirando com igual intensidade as interpretações sobre o sentido da nossa história que vinham animando a construção da nossa democracia, do que foi exemplar a elaboração da Carta de 1988. Tais interpretações que foram se sucedendo e se retroalimentando desde José Bonifácio, Euclides da Cunha e tantos outras que imediatamente as seguiram, encontraram ressonância na ensaística moderna como nas obras de Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro, Roberto Schartz, Rubem Barbosa Filho, para citar apenas alguns, que tentaram desvendar quais poderiam ser os rumos para uma sociedade cujo ponto de partida, o atraso ibérico, lhe era tão pouco propício. Cada qual, a seu modo, interpretava o nosso destino como vocacionado para uma intervenção de ruptura com o nosso passado.
O avanço continuado do moderno, antípoda do processo de modernização com que a ordem burguesa abriu seu caminho entre nós pelo autoritarismo político e a exclusão social, pôs em cheque a reprodução do passado, sustentado na ordem burguesa pelos seus vínculos com a ordem patrimonial que lhe garantia no plano da política. O regime Bolsonaro significou em todos os sentidos, político, cultural, econômico, um levante das forças do passado a fim de obstar a passagem do moderno, e foram elas que estavam presentes nos acampamentos em que se gestava o assalto à democracia brasileira, quer financiando suas ações, quer nas concepções dos seus movimentos, quer arrostando como massa de apoio setores retardatários da sociedade.
Esconjurar nosso espanto diante da calamidade a que fomos expostos, saída das próprias entranhas da nossa sociedade, é obra coletiva a ser desencadeada por um julgamento público, quando se investigue as origens presentes e remotas do mal que nos ronda, sempre com a inspiração de que jamais o dia 8 de janeiro ocorra mais uma vez.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023
Tem alma os verdugos?
Uma alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma vontade, de um querer, de um desejar não especificamente localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade imaterial, a alma, que, através da consciência, seria, ao mesmo tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A flor absolve o martelo?
O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas.
Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A alma dos verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: “Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade”. Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, de que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.
Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…
José Saramago, "O caderno"
Ficou dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar de o não serem efectivamente, não podem viver separados), não são especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células nervosas dispostas em seis camadas ligadas entre si), se encontra ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo, não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação de uma “amostra material” dessa mesma materialidade…
O voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou, também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas.
Schopenhauer (a vontade como essência do mundo, mais além da representação cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A alma dos verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se, felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos, folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte definição: “Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou não fazer algo. Nela se radica a liberdade”. Como se vê, nada mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de súbito, com um instintivo temor, de que as cintilantes medalhas a que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto) que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria, insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.
Importa pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado a extrema unção a uma das suas vítimas…
José Saramago, "O caderno"
Yanomami: tragédia humanitária anunciada
Diante da tragédia humanitária que se instalou sobre os povos Yanomami e Ye’kuana, publicizada neste janeiro de 2023, a Associação Brasileira de Antropologia reitera denúncias já realizadas por meio de notas técnicas e manifestações ao longo dos últimos quatro anos. Ratifica a urgência da retirada de invasores e a construção de um plano emergencial para o qual nós, associados da ABA, e demais entidades abaixo subscritas, nos colocamos à disposição para colaborar com as ações no âmbito de nossas competências.
O povo Yanomami compreende um conjunto cultural e linguístico constituído por quatro subgrupos adjacentes que vivem nos estados de Roraima e Amazonas, assim como na Venezuela. Além dos Yanomami, vivem no território o povo Ye’kuana, de língua Karib e povos isolados. Em dados de 2011, sua população total era de mais de 19 mil pessoas. Embora seu território tenha sido criado em 1991, no Brasil, os conflitos com os garimpeiros persistem desde então, recebendo atenção intermitente e ineficaz por parte do Estado brasileiro. Uma das maiores crises deflagradas pela invasão de garimpeiros em território Yanomami ocorreu em 1993, num episódio conhecido por massacre de Haximu. Na ocasião, 16 pessoas, a maioria crianças, mulheres e idosos, foram brutalmente assassinados.
Ao longo dos anos, antropólogo/as têm produzido inúmeros materiais etnográficos sobre os Yanomami, muitos dos quais mobilizados nas ações e denúncias da ABA sobre as violações de direitos a esse povo. Nos últimos quatro anos, essas denúncias se intensificaram na medida em que a violência contra os Yanomami também escalou de forma brutal. Em março de 2019, denunciamos com a Abrasco o desmonte do subsistema de saúde junto à população indígena. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em abril de 2020, já na pandemia de covid-19, afirmamos que a chegada da pandemia se deparava com desmonte nas políticas de saúde, entre elas a demissão de profissionais da antropologia nas equipes multidisciplinares de assistência básica a estes Povos.
Alertamos sobre as consequências das fake news sobre a vacina junto à população indígena entre outras. Em maio de 2021, chamamos a atenção sobre o risco de genocídio dos povos isolados e um ano mais tarde, em maio de 2022, sobre o risco de genocídio na terra Indígena Yanomami e Ye’kuana. As denúncias relacionavam, desde então, a invasão da TIYY pelo garimpo ilegal, a contaminação por mercúrio, a desestruturação dos serviços de saúde, o aumento de violência nas comunidades, as violações sexuais, a fome e a desnutrição, o aumento exponencial dos casos de malária, situações nas quais mulheres, idosos, idosas e crianças são as mais vulnerabilizadas.
Diante da reportagem realizada pelas jornalistas Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum no Sumaúma – Jornalismo do centro do mundo, em 20/01/2023, e de sua repercussão, vimos informar que as notas produzidas pela ABA e outras associações científicas, acima indicadas, são documentos públicos, muitos dos quais enviados às autoridades, que estavam, portanto, cientes da grave situação dos Povos Yanomami e Ye’kuana. Assim como os documentos elaborados pela associação Hutukara Yanomami ao longo destes últimos anos.
A retirada dos invasores, o atendimento à saúde e a segurança alimentar são ações urgentes. É uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), tal como declarada pela Portaria GM/MS nº 28 de 20 de janeiro de 2023, da ministra da Saúde [Nísia Trindade]. Esta situação requer a abertura de inquérito policial para apurar o crime de genocídio e crimes ambientais na Terra Indígena Yanomami, como determinado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública [Flávio Dino]. A criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, decretada pelo presidente da República, é igualmente importante. Todas as medidas governamentais são urgentes e indispensáveis, inclusive a descontaminação de rios e solo, envenenados pelo mercúrio garimpeiro. Mas também é urgente e indispensável que a sociedade brasileira esteja informada e mobilizada para a defesa da vida e de todos os direitos dos povos originários.
Além disso, ressaltamos que as imagens tornadas públicas se referem apenas a uma parcela da situação instaurada entre os Yanomami. Ainda não há informações sobre a totalidade da área atingida e de suas consequências, bem como sobre a preocupante situação dos povos indígenas em isolamento voluntário que vivem na TIYY. Lembramos ainda que, além do plano emergencial, serão necessários planos de médio e longo prazos que assegurem a estabilidade territorial e sanitária necessária para a sustentabilidade dos modos de vida Yanomami e Ye’kuana.
A Associação Brasileira de Antropologia, nesta oportunidade, rememora a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Tribunal Permanente dos Povos, em 2022, e alia-se às iniciativas da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) nas denúncias já realizadas por crime de genocídio e crimes contra a humanidade, junto ao Tribunal Penal Internacional.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
O povo Yanomami compreende um conjunto cultural e linguístico constituído por quatro subgrupos adjacentes que vivem nos estados de Roraima e Amazonas, assim como na Venezuela. Além dos Yanomami, vivem no território o povo Ye’kuana, de língua Karib e povos isolados. Em dados de 2011, sua população total era de mais de 19 mil pessoas. Embora seu território tenha sido criado em 1991, no Brasil, os conflitos com os garimpeiros persistem desde então, recebendo atenção intermitente e ineficaz por parte do Estado brasileiro. Uma das maiores crises deflagradas pela invasão de garimpeiros em território Yanomami ocorreu em 1993, num episódio conhecido por massacre de Haximu. Na ocasião, 16 pessoas, a maioria crianças, mulheres e idosos, foram brutalmente assassinados.
Ao longo dos anos, antropólogo/as têm produzido inúmeros materiais etnográficos sobre os Yanomami, muitos dos quais mobilizados nas ações e denúncias da ABA sobre as violações de direitos a esse povo. Nos últimos quatro anos, essas denúncias se intensificaram na medida em que a violência contra os Yanomami também escalou de forma brutal. Em março de 2019, denunciamos com a Abrasco o desmonte do subsistema de saúde junto à população indígena. Em audiência pública na Câmara dos Deputados, em abril de 2020, já na pandemia de covid-19, afirmamos que a chegada da pandemia se deparava com desmonte nas políticas de saúde, entre elas a demissão de profissionais da antropologia nas equipes multidisciplinares de assistência básica a estes Povos.
Alertamos sobre as consequências das fake news sobre a vacina junto à população indígena entre outras. Em maio de 2021, chamamos a atenção sobre o risco de genocídio dos povos isolados e um ano mais tarde, em maio de 2022, sobre o risco de genocídio na terra Indígena Yanomami e Ye’kuana. As denúncias relacionavam, desde então, a invasão da TIYY pelo garimpo ilegal, a contaminação por mercúrio, a desestruturação dos serviços de saúde, o aumento de violência nas comunidades, as violações sexuais, a fome e a desnutrição, o aumento exponencial dos casos de malária, situações nas quais mulheres, idosos, idosas e crianças são as mais vulnerabilizadas.
Diante da reportagem realizada pelas jornalistas Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum no Sumaúma – Jornalismo do centro do mundo, em 20/01/2023, e de sua repercussão, vimos informar que as notas produzidas pela ABA e outras associações científicas, acima indicadas, são documentos públicos, muitos dos quais enviados às autoridades, que estavam, portanto, cientes da grave situação dos Povos Yanomami e Ye’kuana. Assim como os documentos elaborados pela associação Hutukara Yanomami ao longo destes últimos anos.
A retirada dos invasores, o atendimento à saúde e a segurança alimentar são ações urgentes. É uma Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), tal como declarada pela Portaria GM/MS nº 28 de 20 de janeiro de 2023, da ministra da Saúde [Nísia Trindade]. Esta situação requer a abertura de inquérito policial para apurar o crime de genocídio e crimes ambientais na Terra Indígena Yanomami, como determinado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública [Flávio Dino]. A criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami, decretada pelo presidente da República, é igualmente importante. Todas as medidas governamentais são urgentes e indispensáveis, inclusive a descontaminação de rios e solo, envenenados pelo mercúrio garimpeiro. Mas também é urgente e indispensável que a sociedade brasileira esteja informada e mobilizada para a defesa da vida e de todos os direitos dos povos originários.
Além disso, ressaltamos que as imagens tornadas públicas se referem apenas a uma parcela da situação instaurada entre os Yanomami. Ainda não há informações sobre a totalidade da área atingida e de suas consequências, bem como sobre a preocupante situação dos povos indígenas em isolamento voluntário que vivem na TIYY. Lembramos ainda que, além do plano emergencial, serão necessários planos de médio e longo prazos que assegurem a estabilidade territorial e sanitária necessária para a sustentabilidade dos modos de vida Yanomami e Ye’kuana.
A Associação Brasileira de Antropologia, nesta oportunidade, rememora a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo Tribunal Permanente dos Povos, em 2022, e alia-se às iniciativas da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) nas denúncias já realizadas por crime de genocídio e crimes contra a humanidade, junto ao Tribunal Penal Internacional.
Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
O verbo matar
Quem se espanta com o espetáculo de horror diversificado que o mundo de hoje oferece faria bem se tivesse o dicionário como livro de leitura diurna e noturna. Pois ali está, na letra M, a chave do temperamento homicida, que convive no homem com suas tendências angélicas, e convive em perfeita harmonia de namorados.
O consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o sentimentalismo; que redija projetos de paz universal, à maneira de Kant, e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive matando.
A ideia de matar é de tal modo inerente ao homem, que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.
Todos os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la. Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí, matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.
O estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na cabeça.
Beber um gole no botequim, ato de aparência gratuita, confortador e pacificante, envolve sinistra conotação. É o mata-bicho, indiscriminado. E quantos bichos se matam, em pensamento, a cada instante! Até para definir as coisas naturais adotamos ponto de vista de morte violenta. Essa planta convolvulácea é apresentada por sua propriedade maléfica: mata-cabras. Nasceu para isso, para dizimar determinada espécie de mamíferos? Não. Assim a batizamos. Outra é mata-cachorro. Uma terceira, mata-cavalo, e o dicionarista acrescenta o requinte: “goza da fama de produzir frutos venenosos”. Certo peixe fluvial atende (ou devia atender) por mata-gato, como se pulasse d’água para caçar felinos por aí, ou se estes mergulhassem com intenção de ajustar contas com ele. Em Santa Catarina, o vento de inverno que sopra lá dos Andes é recebido com a exclamação: “Chegou o mata-baiano”.
Já não se usa, mas usou-se muito um processo de secar a tinta em cartas e documentos quaisquer: botar por cima um papel grosso, chupão, que se chamava mata-borrão e matava mesmo, sugando o sangue azul da vítima, qual vampiro de escritório.
A carreta necessita de correia de couro que una seu eixo ao leito. O nome que se arranjou para identificá-la, com sadismo, é mata-boi. Mata-cachorro não é só planta flacurtiácea, que acumula o título de mata-calado. É também alcunha de soldado de polícia estadual, e do pobre-diabo que, no circo, estende o tapete e prepara o picadeiro para a função.
Matar charadas constitui motivo de orgulho intelectual para o matador. Há um matador profissional, remunerado pelos cofres públicos: o mata-mosquito, que pouca gente conhece como guarda sanitário. Mata-junta? É a fasquia usada para vedar juntas entre tábuas. O sujeito vulgarmente conhecido como chato, ao repetir a mesma cantilena, “mata o bicho do ouvido”. Certa espécie de algodoeiro é mata-mineiro, certa árvore é matamatá, ninguém no interior ignora o que seja mata-burro, mata-cobra tanto é marimbondo como porrete e formiga. Ferida em lombo de animal chama-se matadura. Nosso admirável dedo polegar, só lhe reconhecem uma prestança: a de mata-piolhos.
Mandioca mata-negro. Peixe matante. Vegetal mata-olho. Mata-pulga, planta de que se fazem vassouras. Mata-rato, cigarro ordinário. Enfeites e atavios, meios especiais para atingir certos fins, são matadores. “Ela veio com todos os matadores” provoca admiração e êxtase. “Eunice com seus olhos matadores”, decassílabo de vítima jubilosa.
Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, os pogroms, o napalm, as bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.
Carlos Drummond de Andrade, "De notícias e não notícias faz-se a crônica"
O consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o sentimentalismo; que redija projetos de paz universal, à maneira de Kant, e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive matando.
A ideia de matar é de tal modo inerente ao homem, que, à falta de atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.
Todos os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la. Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí, matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.
O estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na cabeça.
Beber um gole no botequim, ato de aparência gratuita, confortador e pacificante, envolve sinistra conotação. É o mata-bicho, indiscriminado. E quantos bichos se matam, em pensamento, a cada instante! Até para definir as coisas naturais adotamos ponto de vista de morte violenta. Essa planta convolvulácea é apresentada por sua propriedade maléfica: mata-cabras. Nasceu para isso, para dizimar determinada espécie de mamíferos? Não. Assim a batizamos. Outra é mata-cachorro. Uma terceira, mata-cavalo, e o dicionarista acrescenta o requinte: “goza da fama de produzir frutos venenosos”. Certo peixe fluvial atende (ou devia atender) por mata-gato, como se pulasse d’água para caçar felinos por aí, ou se estes mergulhassem com intenção de ajustar contas com ele. Em Santa Catarina, o vento de inverno que sopra lá dos Andes é recebido com a exclamação: “Chegou o mata-baiano”.
Já não se usa, mas usou-se muito um processo de secar a tinta em cartas e documentos quaisquer: botar por cima um papel grosso, chupão, que se chamava mata-borrão e matava mesmo, sugando o sangue azul da vítima, qual vampiro de escritório.
A carreta necessita de correia de couro que una seu eixo ao leito. O nome que se arranjou para identificá-la, com sadismo, é mata-boi. Mata-cachorro não é só planta flacurtiácea, que acumula o título de mata-calado. É também alcunha de soldado de polícia estadual, e do pobre-diabo que, no circo, estende o tapete e prepara o picadeiro para a função.
Matar charadas constitui motivo de orgulho intelectual para o matador. Há um matador profissional, remunerado pelos cofres públicos: o mata-mosquito, que pouca gente conhece como guarda sanitário. Mata-junta? É a fasquia usada para vedar juntas entre tábuas. O sujeito vulgarmente conhecido como chato, ao repetir a mesma cantilena, “mata o bicho do ouvido”. Certa espécie de algodoeiro é mata-mineiro, certa árvore é matamatá, ninguém no interior ignora o que seja mata-burro, mata-cobra tanto é marimbondo como porrete e formiga. Ferida em lombo de animal chama-se matadura. Nosso admirável dedo polegar, só lhe reconhecem uma prestança: a de mata-piolhos.
Mandioca mata-negro. Peixe matante. Vegetal mata-olho. Mata-pulga, planta de que se fazem vassouras. Mata-rato, cigarro ordinário. Enfeites e atavios, meios especiais para atingir certos fins, são matadores. “Ela veio com todos os matadores” provoca admiração e êxtase. “Eunice com seus olhos matadores”, decassílabo de vítima jubilosa.
Se a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o bombardeio aéreo de alvos residenciais, os pogroms, o napalm, as bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional, Mozart, o amor.
Carlos Drummond de Andrade, "De notícias e não notícias faz-se a crônica"
quarta-feira, 25 de janeiro de 2023
Entre, a casa é sua (onde golpistas se abrigavam)
Os traços de Niemeyer, o plano espacial de Lúcio Costa e o paisagismo de Burle Marx, com nove jardins e a famosa Praça dos Cristais, dão ao QG do Exército em Brasília um ar futurístico que esconde por trás do cartão postal o aspecto doméstico comum às demais áreas residenciais militares, espalhadas pelo país.
Mas quem se der ao trabalho de uma visita ao Google, ou a bulas turísticas, poderá constatar que o QG do Exército, das fotos reducionistas, é uma Vila Militar, situada no Setor Militar Urbano (SMU), entre os bairros Sudoeste e Noroeste, um dos metros quadrados mais valorizados da Capital, com 635 casas destinadas a famílias de militares de diversas patentes e população de 2,5 mil pessoas (Wikipedia).
Reproduz o sistema de quadras de Brasília – QRO (Quadra Residencial dos Oficiais), QRS (dos Sargentos) – e QRG (dos Generais). A enorme área verde, com pomares e pequena fauna, a fez conhecida como Fazendinha entre os militares.
As quadras residenciais indicam a patente dos moradores das casas: Quadra Residencial dos Oficiais (QRO), Quadra Residencial de Sargentos (QRS), Quadra Residencial de Generais (QRG). Esta, com 14 casas de 210 metros cada, sete delas para generais e famílias e sete para oficiais assistentes, todos coronéis.
Possui ainda dois blocos de dois pavimentos com oito apartamentos para oficiais solteiros e dois hotéis de trânsito.
Foi esse ambiente familiar dos militares que serviu por dois meses ao acampamento dos “patriotas”, onde foram arquitetados atos de vandalismo que culminaram com a invasão dos prédios do Congresso, Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto.
Ali foram entregues as bombas para o terrorismo explícito, uma delas originalmente prevista para explodir dentro do aeroporto e que acabou plantada fora dele em um caminhão de combustível.
A severíssima vigilância para as famílias militares não detectou nenhuma anormalidade, segundo relatório oficial aceito pelo Superior Tribunal Militar. A proximidade física e ideológica entre moradores e manifestantes, no entanto, põe sob suspeita esse juízo e explica as presenças, algumas vezes registradas, de oficiais e familiares no acampamento.
É a esse fator que se atribui o empenho do comandante do Exército, General Júlio César de Arruda, em impedir prisões em flagrante na área após os atos do dia 8, o que lhe custou o cargo. A barreira de tanques e as ameaças verbais do general à Polícia Militar não terão sido apenas protocolares por ser a área de jurisdição do Exército.
“Você não vai fazer prisões aqui dentro”, disse ao ministro da Justiça, Flávio Dino, dedo em riste, como um chefe de família reagiria em defesa de sua própria casa protegendo de riscos os seus.
Sugeriu mais desespero que disciplina ou excesso de zelo legal. Seria preciso uma triagem seletiva, negligenciada no tempo, que poupasse eventuais moradores do mesmo destino de militantes extremistas.
Tinha suas razões o comandante para impedir o arrastão de segurança. Toda a área é uma extensão das casas e famílias militares, como as superquadras de Brasília funcionam como um quintal de cada domicílio.
O acampamento foi no quintal das famílias militares onde, assim como nos clubes da oficialidade, só entram paisanos avalizados por fardados.
Essa população militar e suas famílias têm atendimento do Hospital Militar de Área de Brasília (HMAB), duas escolas – uma pública (Escola Classe do SMU) e Soldadinho de Chumbo (particular, com creche), com ensino fundamental, o Clube dos Oficiais do Exército (onde civis são admitidos mediante abono de um militar) e o clube de Subtenentes e sargentos do Exército.
O complexo tem dois teatros – o Pedro Calmon, para 1.220 pessoas, com palco de 230 metros, e o Poupex, para 649 pessoas. Seriam excelentes e qualificadas alternativas ao Teatro Nacional, fechado há sete anos, não fosse a pauta de gestão exclusiva do Exército e de dificílimo acesso aos comuns.
É área sob jurisdição militar, mas não de segurança nacional, onde a circulação de público é livre. Mas ninguém passa despercebido ali ou deixa de ser notado pela vigilância permanente, mais severa nas áreas residenciais, principalmente na quadra dos generais, onde cercas, guaritas e sentinelas garantem segurança máxima.
Qualquer morador de Brasília sabe que não transita na área sem dezenas de olhos treinados para detectar suspeitos – e não suspeitos -, em circulação no local. Como não se entra nos jardins de uma casa sem permissão do proprietário.
Não obstante, aos militantes extremistas coube por parte do Exército anfitrião o gentil “entre, a casa é sua”. Às forças de segurança legais, o tratamento reservado aos hostis – “afastem-se daqui”, arma em punho.
O braço forte do slogan do Exército foi levantado contra a Polícia Militar. Já a mão amiga, aos militantes extremistas.
Não há do que reclamar.
João Bosco Rabello
Mas quem se der ao trabalho de uma visita ao Google, ou a bulas turísticas, poderá constatar que o QG do Exército, das fotos reducionistas, é uma Vila Militar, situada no Setor Militar Urbano (SMU), entre os bairros Sudoeste e Noroeste, um dos metros quadrados mais valorizados da Capital, com 635 casas destinadas a famílias de militares de diversas patentes e população de 2,5 mil pessoas (Wikipedia).
Reproduz o sistema de quadras de Brasília – QRO (Quadra Residencial dos Oficiais), QRS (dos Sargentos) – e QRG (dos Generais). A enorme área verde, com pomares e pequena fauna, a fez conhecida como Fazendinha entre os militares.
As quadras residenciais indicam a patente dos moradores das casas: Quadra Residencial dos Oficiais (QRO), Quadra Residencial de Sargentos (QRS), Quadra Residencial de Generais (QRG). Esta, com 14 casas de 210 metros cada, sete delas para generais e famílias e sete para oficiais assistentes, todos coronéis.
Possui ainda dois blocos de dois pavimentos com oito apartamentos para oficiais solteiros e dois hotéis de trânsito.
Foi esse ambiente familiar dos militares que serviu por dois meses ao acampamento dos “patriotas”, onde foram arquitetados atos de vandalismo que culminaram com a invasão dos prédios do Congresso, Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto.
Ali foram entregues as bombas para o terrorismo explícito, uma delas originalmente prevista para explodir dentro do aeroporto e que acabou plantada fora dele em um caminhão de combustível.
A severíssima vigilância para as famílias militares não detectou nenhuma anormalidade, segundo relatório oficial aceito pelo Superior Tribunal Militar. A proximidade física e ideológica entre moradores e manifestantes, no entanto, põe sob suspeita esse juízo e explica as presenças, algumas vezes registradas, de oficiais e familiares no acampamento.
É a esse fator que se atribui o empenho do comandante do Exército, General Júlio César de Arruda, em impedir prisões em flagrante na área após os atos do dia 8, o que lhe custou o cargo. A barreira de tanques e as ameaças verbais do general à Polícia Militar não terão sido apenas protocolares por ser a área de jurisdição do Exército.
“Você não vai fazer prisões aqui dentro”, disse ao ministro da Justiça, Flávio Dino, dedo em riste, como um chefe de família reagiria em defesa de sua própria casa protegendo de riscos os seus.
Sugeriu mais desespero que disciplina ou excesso de zelo legal. Seria preciso uma triagem seletiva, negligenciada no tempo, que poupasse eventuais moradores do mesmo destino de militantes extremistas.
Tinha suas razões o comandante para impedir o arrastão de segurança. Toda a área é uma extensão das casas e famílias militares, como as superquadras de Brasília funcionam como um quintal de cada domicílio.
O acampamento foi no quintal das famílias militares onde, assim como nos clubes da oficialidade, só entram paisanos avalizados por fardados.
Essa população militar e suas famílias têm atendimento do Hospital Militar de Área de Brasília (HMAB), duas escolas – uma pública (Escola Classe do SMU) e Soldadinho de Chumbo (particular, com creche), com ensino fundamental, o Clube dos Oficiais do Exército (onde civis são admitidos mediante abono de um militar) e o clube de Subtenentes e sargentos do Exército.
O complexo tem dois teatros – o Pedro Calmon, para 1.220 pessoas, com palco de 230 metros, e o Poupex, para 649 pessoas. Seriam excelentes e qualificadas alternativas ao Teatro Nacional, fechado há sete anos, não fosse a pauta de gestão exclusiva do Exército e de dificílimo acesso aos comuns.
É área sob jurisdição militar, mas não de segurança nacional, onde a circulação de público é livre. Mas ninguém passa despercebido ali ou deixa de ser notado pela vigilância permanente, mais severa nas áreas residenciais, principalmente na quadra dos generais, onde cercas, guaritas e sentinelas garantem segurança máxima.
Qualquer morador de Brasília sabe que não transita na área sem dezenas de olhos treinados para detectar suspeitos – e não suspeitos -, em circulação no local. Como não se entra nos jardins de uma casa sem permissão do proprietário.
Não obstante, aos militantes extremistas coube por parte do Exército anfitrião o gentil “entre, a casa é sua”. Às forças de segurança legais, o tratamento reservado aos hostis – “afastem-se daqui”, arma em punho.
O braço forte do slogan do Exército foi levantado contra a Polícia Militar. Já a mão amiga, aos militantes extremistas.
Não há do que reclamar.
João Bosco Rabello
Bolsonaro se vingou dos ianomâmis
Jair Bolsonaro vivia seu primeiro ano em Brasília quando o governo Fernando Collor demarcou a terra ianomâmi. Três dias depois, o jovem deputado subiu à tribuna para protestar. “Essa área é a mais rica do país. Por que instituir uma reserva indígena lá?”, reclamou.
Em tom conspiratório, ele sustentou que os ianomâmis seriam uma ameaça à segurança nacional. Da noite para o dia, poderiam iniciar um movimento separatista. “A curto prazo, essa área poderá tornar-se independente, e a perderemos definitivamente”, fantasiou. Começava ali, em novembro de 1991, sua cruzada contra a maior terra indígena da Amazônia.
Bolsonaro tentou convencer o Supremo Tribunal Federal a derrubar a demarcação. Sem sucesso na Corte, apresentou um projeto para anular o ato no Congresso. “Amanhã se dirá aí que estamos massacrando os ianomâmis. Em nome dos direitos humanos, quem garante que tropas estrangeiras não vão ocupar a Amazônia?”, discursou, em 1992.
Em meio ao palavrório, o deputado deixou escapar seu real objetivo: liberar a exploração predatória da floresta. “Como o homem perdeu o paraíso através de uma maçã, os brasileiros vão perder o paraíso que é esse atual território. Não através de uma maçã, é lógico, mas através do nióbio, da cassiterita, do diamante”, disse.
A Câmara arquivou a proposta naufragou, mas Bolsonaro insistiu em perseguir os ianomâmis. Ao longo de sete mandatos, ele testou diferentes argumentos para depreciar os indígenas. No governo Fernando Henrique, alegou que eles seriam fantoches de ONGs controladas pela Casa Branca.
Na era Lula, trocou de inimigo imaginário e passou a atacar a China. A potência asiática estaria interessada em colonizar “grandes espaços vazios” nos confins da Amazônia. “Vão lotar seus cargueiros e despejar esse excesso populacional”, delirou.
Em 1998, o deputado chamou o Exército de “incompetente” por não ter aniquilado os povos originários. “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”, disse.
O plano de extermínio não prosperou, mas o capitão nunca se deu por vencido. Eleito presidente, ele desmontou a Funai, incentivou o garimpo ilegal e deixou os indígenas morrerem de fome. Bolsonaro se vingou dos ianomâmis.
Em tom conspiratório, ele sustentou que os ianomâmis seriam uma ameaça à segurança nacional. Da noite para o dia, poderiam iniciar um movimento separatista. “A curto prazo, essa área poderá tornar-se independente, e a perderemos definitivamente”, fantasiou. Começava ali, em novembro de 1991, sua cruzada contra a maior terra indígena da Amazônia.
Bolsonaro tentou convencer o Supremo Tribunal Federal a derrubar a demarcação. Sem sucesso na Corte, apresentou um projeto para anular o ato no Congresso. “Amanhã se dirá aí que estamos massacrando os ianomâmis. Em nome dos direitos humanos, quem garante que tropas estrangeiras não vão ocupar a Amazônia?”, discursou, em 1992.
Em meio ao palavrório, o deputado deixou escapar seu real objetivo: liberar a exploração predatória da floresta. “Como o homem perdeu o paraíso através de uma maçã, os brasileiros vão perder o paraíso que é esse atual território. Não através de uma maçã, é lógico, mas através do nióbio, da cassiterita, do diamante”, disse.
A Câmara arquivou a proposta naufragou, mas Bolsonaro insistiu em perseguir os ianomâmis. Ao longo de sete mandatos, ele testou diferentes argumentos para depreciar os indígenas. No governo Fernando Henrique, alegou que eles seriam fantoches de ONGs controladas pela Casa Branca.
Na era Lula, trocou de inimigo imaginário e passou a atacar a China. A potência asiática estaria interessada em colonizar “grandes espaços vazios” nos confins da Amazônia. “Vão lotar seus cargueiros e despejar esse excesso populacional”, delirou.
Em 1998, o deputado chamou o Exército de “incompetente” por não ter aniquilado os povos originários. “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”, disse.
O plano de extermínio não prosperou, mas o capitão nunca se deu por vencido. Eleito presidente, ele desmontou a Funai, incentivou o garimpo ilegal e deixou os indígenas morrerem de fome. Bolsonaro se vingou dos ianomâmis.
O relatório que apontava há 56 anos maus-tratos a indígenas e descaso de militares
A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar vestígios. É o que destacava em 1967 o procurador Jader de Figueiredo Correia em um relatório que descrevia violências praticadas contra povos indígenas no Brasil por militares, integrantes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), funcionários públicos, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, madeireiros e empresários.
"A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível", revelava o relatório escrito há 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.
Ele mostrava o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. "O Serviço de Proteção ao Índio degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio", apontou o relatório, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.
Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, violência e falta de assistências a comunidades indígenas no Brasil, como os Yanomami, já estava documentado naquele relatório composto por 26 volumes e 5.492 páginas.
A investigação foi resultante de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas.
Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Houve a recomendação de prisões, demissões ou a suspensão do trabalho, além de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judiciário.
Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Fundação Nacional do Índio, que passou depois a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Ninguém foi preso.
A Comissão Nacional da Verdade investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorrida no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985
O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, através de seus servidores, ou de forma indireta, por omissão diante dos ataques contra essas populações originárias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a conivência de políticos locais, estaduais e federais.
"Há repetição permanente desse problema. São 56 anos desde a denúncia do Relatório Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional indígena às suas terras e ao usufruto de seus territórios segue inalterado. Os povos são atacados em suas comunidades e aldeias, sem solução", reclama Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, responsável pelo resgate do Relatório Figueiredo nos arquivos do governo federal.
O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situação de "o maior escândalo administrativo do Brasil".
Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do indígena, assassinatos individuais e coletivos, prostituição de indígenas, sevícias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, dilapidação do patrimônio indígena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, exploração de minérios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doação criminosa de terras, venda de veículos.
Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcançou cifras incalculáveis. Não sendo "possível levantar com exatidão os valores subtraídos aos índios (sic) para exigir ressarcimento".
Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adulteração de documentos oficiais, fraudaram processos de comprovação de contas, desviaram verbas orçamentárias, aplicaram irregularmente dinheiro público. Eles acarretaram em omissões dolosas das autoridades e dos próprios servidores, admissões fraudulentas de funcionários e incúria administrativa.
Com relação à violência, o documento registra o genocídio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lançamento de explosivos de avião sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio.
"Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avião, e a estricnina (veneno) adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de 'pi-ri-pi-pi' (metralhadora) e racham vivos, a facão, do púbis para a cabeça o sobrevivente", relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia.
O caso do extermínio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. Depoimento de Ramis Bucair, servidor público, descreve a ação de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a ação, localizaram com vida uma indígena e seu filho de seis anos. O menino acabou morto com um tiro na cabeça. A mulher foi pendurada pelos pés, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de facão.
A comissão chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das mãos do próprio Ramos Bucair uma fita de áudio com a gravação da confissão do crime, com a voz de Ataíde Pereira dos Santos.
Também há registro sobre a extinção de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó-Hãhãhãe, utilizando o envenenamento químico de doença. "A serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas a denúncia de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo".
"É preciso desarmar os mecanismos de repetição da história que existem. A não-repetição de violações de direitos humanos pressupõe a criação de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gestão e ação do Estado brasileiro. Estes procedimentos se constituem em prática lesiva ao direito indígena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário que, quando não são protagonistas, dão sustentação fundamental à repetição de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme denúncias de genocídio e crimes de lesa-humanidade em análise no Tribunal Penal Internacional", afirma Marcelo Zelic.
Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
No relatório da CNV são apontadas as mortes de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos.
No capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas consta que o maior número de mortos está entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) - 2.650 mortos; Tapayuna (MT) - 1.180; Yanomami (AM/RR) - 354; Xetá (PR) - 192; Panará (MT) - 176; Parakanã (PA) - 118; Xavante Marãiwatsédé (MT) - 85; Araweté (PA) - 72 e Arara (PA) - 14 mortos.
Atualmente, a população brasileira é composta por aproximadamente 900 mil indígenas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.
Responsável pela saúde indígena na década de 1970, a Funai foi omissa e levou à morte muitos indivíduos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relatório. Eram casos de sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por infecções sexualmente transmissíveis.
O mesmo relatório da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o município de Caracaraí e o limite entre Roraima e Amazonas, também provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 indígenas abrigados em malocas no rio Catrimani na década de 70.
"O Relatório Figueiredo elencava entre 'os crimes contra a pessoa e a propriedade do índio' práticas como, entre outras, 'sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena'. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas práticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em consideração o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constituição, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanitária", diz Edilene Coffaci, antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
E Marcelo Zelic diz: "Os governos agem sob pressão. O Estado age para tirar o problema da frente, mas é uma situação cíclica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema é grave, vai para a imprensa, há uma ação da sociedade. Daqui a pouco tudo some do noticiário e as coisas voltam a ser como eram antes".
Esse ciclo de violência contra os povos indígenas não termina porque corresponde a uma cultura de índole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.
Attié afirma que os indígenas estão sendo expropriados de seus territórios e violentados desde a chegada europeia, no século 16. "Penso que essa expropriação sempre se deu de modo ilícito - foram construídas teorias jurídicas especificamente para justificar esse processo, conferindo àqueles que se apropriaram das terras indígenas títulos falsos, validados pela própria constituição do direito moderno, que subsiste até hoje".
Para superar esse ciclo, há necessidade de medidas que dizem respeito a políticas públicas, sobretudo as de reconhecimento dos territórios e de sua proteção efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.
"Igualmente, há necessidade de impedir que os assassinatos contra líderes indígenas permaneçam. A criação de um Ministério para os Povos Indígenas significa alçar as políticas da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente", diz Attié.
"Mas isso não basta, pois há necessidade de enfrentar corajosamente a revisão do que significa propriedade e restabelecer a propriedade indígena - são os verdadeiros donos do território brasileiro - e empreender uma política bastante radical na reatribuição de terras, o que afetará os donos do poder e os donos de extensas áreas, detentores ilegítimos do que não lhes pertence de direito", afirma Attié, ao apontar que "talvez auxilie na compreensão dessa política a consciência de que defender indígenas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que são guardiães."
Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Também aponta que "nunca se investigou o Reformatório Krenak, que era um campo de concentração, quantas terras indígenas foram invadidas, quantas crianças indígenas foram levadas à força em aviões da FAB para outras regiões do país, quantos Guaranis foram mortos na construção da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos indígenas".
Para garantir o direito e a vida dos povos indígenas, reafirma o professor do Mackenzie, é preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constituição brasileira.
"A terra indígena é ancestral, essencial para a existência dessas culturas. Os povos indígenas não detêm a terra, eles são a própria terra. Também é necessário dar maior protagonismo a esses povos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a presidência da nova Funai com uma indígena, como começou a ser feito agora", diz Bastos.
"A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível", revelava o relatório escrito há 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.
Ele mostrava o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. "O Serviço de Proteção ao Índio degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio", apontou o relatório, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.
Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, violência e falta de assistências a comunidades indígenas no Brasil, como os Yanomami, já estava documentado naquele relatório composto por 26 volumes e 5.492 páginas.
A investigação foi resultante de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas.
Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Houve a recomendação de prisões, demissões ou a suspensão do trabalho, além de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judiciário.
Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Fundação Nacional do Índio, que passou depois a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Ninguém foi preso.
A Comissão Nacional da Verdade investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorrida no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985
O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, através de seus servidores, ou de forma indireta, por omissão diante dos ataques contra essas populações originárias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a conivência de políticos locais, estaduais e federais.
"Há repetição permanente desse problema. São 56 anos desde a denúncia do Relatório Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional indígena às suas terras e ao usufruto de seus territórios segue inalterado. Os povos são atacados em suas comunidades e aldeias, sem solução", reclama Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, responsável pelo resgate do Relatório Figueiredo nos arquivos do governo federal.
O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situação de "o maior escândalo administrativo do Brasil".
Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do indígena, assassinatos individuais e coletivos, prostituição de indígenas, sevícias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, dilapidação do patrimônio indígena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, exploração de minérios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doação criminosa de terras, venda de veículos.
Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcançou cifras incalculáveis. Não sendo "possível levantar com exatidão os valores subtraídos aos índios (sic) para exigir ressarcimento".
Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adulteração de documentos oficiais, fraudaram processos de comprovação de contas, desviaram verbas orçamentárias, aplicaram irregularmente dinheiro público. Eles acarretaram em omissões dolosas das autoridades e dos próprios servidores, admissões fraudulentas de funcionários e incúria administrativa.
Com relação à violência, o documento registra o genocídio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lançamento de explosivos de avião sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio.
"Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avião, e a estricnina (veneno) adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de 'pi-ri-pi-pi' (metralhadora) e racham vivos, a facão, do púbis para a cabeça o sobrevivente", relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia.
O caso do extermínio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. Depoimento de Ramis Bucair, servidor público, descreve a ação de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a ação, localizaram com vida uma indígena e seu filho de seis anos. O menino acabou morto com um tiro na cabeça. A mulher foi pendurada pelos pés, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de facão.
A comissão chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das mãos do próprio Ramos Bucair uma fita de áudio com a gravação da confissão do crime, com a voz de Ataíde Pereira dos Santos.
Também há registro sobre a extinção de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó-Hãhãhãe, utilizando o envenenamento químico de doença. "A serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas a denúncia de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo".
"É preciso desarmar os mecanismos de repetição da história que existem. A não-repetição de violações de direitos humanos pressupõe a criação de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gestão e ação do Estado brasileiro. Estes procedimentos se constituem em prática lesiva ao direito indígena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário que, quando não são protagonistas, dão sustentação fundamental à repetição de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme denúncias de genocídio e crimes de lesa-humanidade em análise no Tribunal Penal Internacional", afirma Marcelo Zelic.
Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
No relatório da CNV são apontadas as mortes de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos.
No capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas consta que o maior número de mortos está entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) - 2.650 mortos; Tapayuna (MT) - 1.180; Yanomami (AM/RR) - 354; Xetá (PR) - 192; Panará (MT) - 176; Parakanã (PA) - 118; Xavante Marãiwatsédé (MT) - 85; Araweté (PA) - 72 e Arara (PA) - 14 mortos.
Atualmente, a população brasileira é composta por aproximadamente 900 mil indígenas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.
Responsável pela saúde indígena na década de 1970, a Funai foi omissa e levou à morte muitos indivíduos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relatório. Eram casos de sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por infecções sexualmente transmissíveis.
O mesmo relatório da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o município de Caracaraí e o limite entre Roraima e Amazonas, também provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 indígenas abrigados em malocas no rio Catrimani na década de 70.
"O Relatório Figueiredo elencava entre 'os crimes contra a pessoa e a propriedade do índio' práticas como, entre outras, 'sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena'. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas práticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em consideração o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constituição, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanitária", diz Edilene Coffaci, antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
E Marcelo Zelic diz: "Os governos agem sob pressão. O Estado age para tirar o problema da frente, mas é uma situação cíclica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema é grave, vai para a imprensa, há uma ação da sociedade. Daqui a pouco tudo some do noticiário e as coisas voltam a ser como eram antes".
Esse ciclo de violência contra os povos indígenas não termina porque corresponde a uma cultura de índole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.
Attié afirma que os indígenas estão sendo expropriados de seus territórios e violentados desde a chegada europeia, no século 16. "Penso que essa expropriação sempre se deu de modo ilícito - foram construídas teorias jurídicas especificamente para justificar esse processo, conferindo àqueles que se apropriaram das terras indígenas títulos falsos, validados pela própria constituição do direito moderno, que subsiste até hoje".
Para superar esse ciclo, há necessidade de medidas que dizem respeito a políticas públicas, sobretudo as de reconhecimento dos territórios e de sua proteção efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.
"Igualmente, há necessidade de impedir que os assassinatos contra líderes indígenas permaneçam. A criação de um Ministério para os Povos Indígenas significa alçar as políticas da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente", diz Attié.
"Mas isso não basta, pois há necessidade de enfrentar corajosamente a revisão do que significa propriedade e restabelecer a propriedade indígena - são os verdadeiros donos do território brasileiro - e empreender uma política bastante radical na reatribuição de terras, o que afetará os donos do poder e os donos de extensas áreas, detentores ilegítimos do que não lhes pertence de direito", afirma Attié, ao apontar que "talvez auxilie na compreensão dessa política a consciência de que defender indígenas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que são guardiães."
Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Também aponta que "nunca se investigou o Reformatório Krenak, que era um campo de concentração, quantas terras indígenas foram invadidas, quantas crianças indígenas foram levadas à força em aviões da FAB para outras regiões do país, quantos Guaranis foram mortos na construção da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos indígenas".
Para garantir o direito e a vida dos povos indígenas, reafirma o professor do Mackenzie, é preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constituição brasileira.
"A terra indígena é ancestral, essencial para a existência dessas culturas. Os povos indígenas não detêm a terra, eles são a própria terra. Também é necessário dar maior protagonismo a esses povos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a presidência da nova Funai com uma indígena, como começou a ser feito agora", diz Bastos.
terça-feira, 24 de janeiro de 2023
Novo slogan político
Alguém escreveu num muro branco da Universidade do Porto, em Portugal, a sua exigência política: “Queremos mentiras novas!”. Quem o escreveu sabia das coisas. Sabia que seria inútil pedir o impossível: “Basta de mentiras!”. Na política, apenas as mentiras são possíveis. Mas ele já estava cansado das mentiras velhas, batidas, como piadas cujo fim já se conhece, que diariamente aparecem nos jornais. Mentiras velhas são um desrespeito à inteligência daqueles a quem são dirigidas. Que mintam, mas que respeitem a minha inteligência! Mintam usando a imaginação! Por isso escrevia, em nome da inteligência, do possível e do humor: “Queremos mentiras novas!”.
Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"
Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"
Yanomamis
Tento, no presente texto, contribuir para o debate que já começou sobre a perplexidade “ampliada”, já em voga de maneira acelerada, sobre a barbárie bolsonarista e os seus efeitos cada vez mais visíveis na nossa subjetividade brasileira “cordial”, que irá nos acompanhar ainda por muito tempo. Trata-se de um texto de memória, mais de um militante político um pouco intelectualizado, menos de um ensaio escrito e subsumido em pretensões teóricas. Como foi possível?
Começo com a transcrição de uma parte da Carta de 18 outubro de 2021, que me foi remetida pelo meu amigo Professor Flávio Aguiar, residente em Berlim, que me brindou com o afeto de uma pesquisa sobre alguns familiares meus, de origem judia – do lado da minha mãe – que era filha de uma alemã “pura”, com um judeu “puro” – cuja família inicialmente viveu – no Século XX – na região de Santa Maria, aqui no nosso Rio Grande do Sul. Meu nome completo é Tarso Fernando Herz Genro e o Herz vem desta procedência.
O relato do meu amigo Flávio Aguiar tem uma solidariedade dolorosa, expressa na sua secura medida, bem como uma precisão material que deixar ali – naquele conjunto de palavras – um testemunho de rejeição radical justificada a tudo que cheira a nazismo. A tudo que se reporta ao fascismo e ao nazifascismo, sejam seus sopros trazidos pela presença fétida das pessoas que com ele conciliam, seja pelas milhares de inscrições nazistas e fascistas que transitam nas redes estão nas paredes das cidades sem alma, nos discursos de ódio de todas as classes e estão no coração dos grandes e pequenos artífices, que abraçaram a dança da morte em cada dia da sua vida degradada.
Diz o meu amigo: “Caro Tarso, prepare-se para mais emoções. Estou te enviando o link do relato mais circunstanciado que encontrei sobre os Herz. Junto uma foto do sobrinho do teu avô, Günther Herz, que foi assassinado em Auschwitz em 1944, aos 25 anos de idade. Encontrei outros relatos mais centrados na vida política de Carl Herz. Está tudo em alemão.” Aos 25 anos de idade!
Os meus ascendentes diretos judeus viveram em Altona e depois, já com três filhos, se mudaram para Berlim, onde militaram na socialdemocracia alemã, ao lado de Bebel, Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Carl Herz meu tio-avô, foi sacado da Prefeitura de Kreusberg, onde era Prefeito, em março de 1933, por um grupo de nazistas da SS. Quando a Polícia Municipal interferiu foi para prender quem estava sofrendo a violência, deixando livre a milícia hitlerista que espancava Carl Herz duramente.
Junto com a carta de Flávio veio uma foto do meu primo Günter, assassinado pelos nazistas, aos 25 anos de idade, em 31 de março de 1944, cujo semblante imediatamente me lembrou o meu avô Hermann Herz, seu tio, com quem convivi por mais de duas décadas, em São Borja e depois em Santa Maria para onde nossa família se mudou em 1953.
A carta de Flávio é posterior aos eventos da Hebraica, onde Jair Bolsonaro se apresentou em 3 de abril de 2017, com uma limpidez nazista extraordinária, arremetendo taticamente seu ódio psicopático, não contra os judeus, mas contra os negros, pessoas com identidade sexual diversa, gente com algum tipo de deficiência física (no caso Lula, originária de acidente de trabalho) e indígenas Amazônia e de toda a América
O discurso de Jair Bolsonaro recebeu provavelmente a repulsa da maior parte da comunidade judia, mas seus impropérios contra a esquerda mantiveram-no – até o final da eleição – com certo apoio nesta comunidade, bem como seu nome espraiou-se por outros setores sociais, mais ricos ou mais pobres, em todo o território nacional, tornando-o presidente do Brasil e ao mesmo tempo um pária mundial.
As pessoas que o apoiavam, “racionalmente”, tinham duas formulações básicas, para responder aos seus contendores: “pelo menos ele é autêntico” e “na verdade ele faz um tipo”, não fará tudo aquilo de “mal”, que ele diz. São as duas argumentações na política mais calhordas e desqualificantes que ouvi ao longo da minha já não curta vida. Ambas naturalizam o mal e fazem dele uma opção contra a civilização, a humanidade, a urbanidade e a mínima socialidade comunitária, que surgiu a partir das evoluções democráticas que resistiram mais de 200 anos de provas e agressões de todos os tipos.
Lembrei-me hoje do meu primo que não conheci, Günter Herz, que se recusou a sair de Berlim, com os demais membros da família, porque pensava poder manter-se na luta junto às organizações clandestinas contra Hitler e seus assassinos de uniforme. Lembrei-me dele quando vi as fotos das crianças Yanomami, suas mães, pais irmãos, irmãs: esquálidos, famélicos, doentes, morrendo, que seguiram os oitocentos mil brasileiros e brasileiras de todas as idades, fulminados pela impiedade fascista de Bolsonaro.
Como foi possível que este formidável engano coletivo vencesse aqui no Brasil – como venceu na Alemanha – nação mais culta e desenvolvida daquela época? Só foi e é possível a morte vencer porque, ao ser naturalizada de forma racional e em escala industrial – aqui como na Alemanha – foi tornada uma ficção inofensiva na consciência dos humanos. E assim, vencedora, domina o espírito de uma maioria, não ingênua ou enganada – naquele momento – mas uma maioria que queria ver o demônio funcionar como operador escondido das suas vidas sem rumo. Isso se faz pela política, pela propaganda, pela informação.
Vejo o meu primo Günter, que não conheci, em alguma fila de execução nazista do Campo de Auschwitz. Ele vai triste, mas sereno, sabe que perdeu e que deveria ter saído, mas pensa que o que viveu valeu. E muito. Sua consciência política de jovem rebelde e corajoso também já sabe – como sabemos hoje para sempre – que tudo isso pode se repetir: tanto como sonho sonhado, como sendo um pesadelo vivido. Não adianta só perplexidades generosas ou arrependimentos tardios. O que adianta é a Justiça imperfeita dos homens ser erguida como uma luz matinal, que nos acordará numa primavera improvável que dura certo tempo. E que queremos seja para sempre.
Começo com a transcrição de uma parte da Carta de 18 outubro de 2021, que me foi remetida pelo meu amigo Professor Flávio Aguiar, residente em Berlim, que me brindou com o afeto de uma pesquisa sobre alguns familiares meus, de origem judia – do lado da minha mãe – que era filha de uma alemã “pura”, com um judeu “puro” – cuja família inicialmente viveu – no Século XX – na região de Santa Maria, aqui no nosso Rio Grande do Sul. Meu nome completo é Tarso Fernando Herz Genro e o Herz vem desta procedência.
O relato do meu amigo Flávio Aguiar tem uma solidariedade dolorosa, expressa na sua secura medida, bem como uma precisão material que deixar ali – naquele conjunto de palavras – um testemunho de rejeição radical justificada a tudo que cheira a nazismo. A tudo que se reporta ao fascismo e ao nazifascismo, sejam seus sopros trazidos pela presença fétida das pessoas que com ele conciliam, seja pelas milhares de inscrições nazistas e fascistas que transitam nas redes estão nas paredes das cidades sem alma, nos discursos de ódio de todas as classes e estão no coração dos grandes e pequenos artífices, que abraçaram a dança da morte em cada dia da sua vida degradada.
Diz o meu amigo: “Caro Tarso, prepare-se para mais emoções. Estou te enviando o link do relato mais circunstanciado que encontrei sobre os Herz. Junto uma foto do sobrinho do teu avô, Günther Herz, que foi assassinado em Auschwitz em 1944, aos 25 anos de idade. Encontrei outros relatos mais centrados na vida política de Carl Herz. Está tudo em alemão.” Aos 25 anos de idade!
Os meus ascendentes diretos judeus viveram em Altona e depois, já com três filhos, se mudaram para Berlim, onde militaram na socialdemocracia alemã, ao lado de Bebel, Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Carl Herz meu tio-avô, foi sacado da Prefeitura de Kreusberg, onde era Prefeito, em março de 1933, por um grupo de nazistas da SS. Quando a Polícia Municipal interferiu foi para prender quem estava sofrendo a violência, deixando livre a milícia hitlerista que espancava Carl Herz duramente.
Junto com a carta de Flávio veio uma foto do meu primo Günter, assassinado pelos nazistas, aos 25 anos de idade, em 31 de março de 1944, cujo semblante imediatamente me lembrou o meu avô Hermann Herz, seu tio, com quem convivi por mais de duas décadas, em São Borja e depois em Santa Maria para onde nossa família se mudou em 1953.
A carta de Flávio é posterior aos eventos da Hebraica, onde Jair Bolsonaro se apresentou em 3 de abril de 2017, com uma limpidez nazista extraordinária, arremetendo taticamente seu ódio psicopático, não contra os judeus, mas contra os negros, pessoas com identidade sexual diversa, gente com algum tipo de deficiência física (no caso Lula, originária de acidente de trabalho) e indígenas Amazônia e de toda a América
O discurso de Jair Bolsonaro recebeu provavelmente a repulsa da maior parte da comunidade judia, mas seus impropérios contra a esquerda mantiveram-no – até o final da eleição – com certo apoio nesta comunidade, bem como seu nome espraiou-se por outros setores sociais, mais ricos ou mais pobres, em todo o território nacional, tornando-o presidente do Brasil e ao mesmo tempo um pária mundial.
As pessoas que o apoiavam, “racionalmente”, tinham duas formulações básicas, para responder aos seus contendores: “pelo menos ele é autêntico” e “na verdade ele faz um tipo”, não fará tudo aquilo de “mal”, que ele diz. São as duas argumentações na política mais calhordas e desqualificantes que ouvi ao longo da minha já não curta vida. Ambas naturalizam o mal e fazem dele uma opção contra a civilização, a humanidade, a urbanidade e a mínima socialidade comunitária, que surgiu a partir das evoluções democráticas que resistiram mais de 200 anos de provas e agressões de todos os tipos.
Lembrei-me hoje do meu primo que não conheci, Günter Herz, que se recusou a sair de Berlim, com os demais membros da família, porque pensava poder manter-se na luta junto às organizações clandestinas contra Hitler e seus assassinos de uniforme. Lembrei-me dele quando vi as fotos das crianças Yanomami, suas mães, pais irmãos, irmãs: esquálidos, famélicos, doentes, morrendo, que seguiram os oitocentos mil brasileiros e brasileiras de todas as idades, fulminados pela impiedade fascista de Bolsonaro.
Como foi possível que este formidável engano coletivo vencesse aqui no Brasil – como venceu na Alemanha – nação mais culta e desenvolvida daquela época? Só foi e é possível a morte vencer porque, ao ser naturalizada de forma racional e em escala industrial – aqui como na Alemanha – foi tornada uma ficção inofensiva na consciência dos humanos. E assim, vencedora, domina o espírito de uma maioria, não ingênua ou enganada – naquele momento – mas uma maioria que queria ver o demônio funcionar como operador escondido das suas vidas sem rumo. Isso se faz pela política, pela propaganda, pela informação.
Vejo o meu primo Günter, que não conheci, em alguma fila de execução nazista do Campo de Auschwitz. Ele vai triste, mas sereno, sabe que perdeu e que deveria ter saído, mas pensa que o que viveu valeu. E muito. Sua consciência política de jovem rebelde e corajoso também já sabe – como sabemos hoje para sempre – que tudo isso pode se repetir: tanto como sonho sonhado, como sendo um pesadelo vivido. Não adianta só perplexidades generosas ou arrependimentos tardios. O que adianta é a Justiça imperfeita dos homens ser erguida como uma luz matinal, que nos acordará numa primavera improvável que dura certo tempo. E que queremos seja para sempre.
Assinar:
Postagens (Atom)