Sou o poeta dos torturados/ dos desaparecidos/ dos atirados ao mar/ Sou os olhos atentos/sobre o crimePedro Tierra
Uma caneta BIC esquecida pelo torturador fez o preso torturado se animar no meio das maiores dores que sofrera em seus 24 anos de vida. Lentamente chegou até a BIC que brilhava na sala meio escura onde se sentia cheiro de suor e sangue, e logo escondeu-a, pois os torturadores voltariam. Quando foi levado a sua cela, dolorido com hematomas e sangrando aqui e ali, se sentia vitorioso com a caneta, era sua taça, seu troféu, e dias depois catava papel de cigarro, papel higiênico, para escrever. Foi assim que começou a nascer o poeta Pedro Tierra, que viveu cinco anos em várias prisões sendo interrogado, torturado, convivendo com mortes de companheiros. Decidiu viver para escrever poesias e homenagear tanto os amigos como os desconhecidos presos e torturados que não tiveram sua sorte de viver. Entrou no cárcere como Hamilton Pereira da Silva e ao sair era Pedro Tierra, o poeta que nasceu na prisão graças a uma BIC esquecida pelo torturador.
Nas poesias estão presentes os choques elétricos, cadeira do dragão, espancamentos e mais e muito mais poesias sobre suplícios, sangue, gritos, coragem, povo, liberdade. É um espanto tudo isso se transformar em poesia. Essa poesia silenciada mais aqui que no exterior começa a ser mais conhecida através de muitos, mas especialmente do professor e poeta Alberto Pucheu. Aliás, agradeço a ele a primazia de ler seu impactante ensaio que será publicado em livro, Pedro Tierra: esta obstinada vontade de resistir. As poesias de Pedro Tierra começaram a ser publicadas no exterior traduzidas primeiro ao espanhol por Dom Pedro Casaldáliga. Vencedor de muitos prêmios, Pedro Tierra se integrou nas lutas sociais ao sair da prisão, tendo sido um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Ocupou cargos no Ministério da Cultura, em Secretaria de Cultura, integrou o MST, teve a coragem de seguir sua vida na política mesmo após cinco anos de tortura e prisão. Nunca esqueceu seus amigos que morreram, e dedicou suas poesias aos que conheceu e aos que não conheceu. Nome e sobrenomes que precisam ser recordados e que Pucheu nomeia um a um no seu emocionante ensaio com quase oitenta laudas.
Impactante foi o encontro de Pedro Tierra com o imigrante judeu Mayer Kucinski que buscava Ana Rosa, sua filha desaparecida e integrante da ALN como o poeta. “Desejava, para seguir vivendo, ver o rosto de Ana Rosa. Varava meus olhos com o cravo dos seus e me pedia, patético – a mim, que àquela altura cumpria já o terceiro ano de prisão –, uma palavra, ainda que fosse a notícia de sua morte. Eu não tinha nenhuma palavra para lhe dar.” Não tinha palavras para dizer ao velho pai Mayer, pai também do escritor Bernardo Kucinski, que escreveu o romance “K” sobre a busca do pai pela sua irmã Ana Rosa. Minha irmã mais velha, a Bluma, conheceu a adolescente Ana Rosa num Movimento Juvenil Judaico na década de 50 do século passado, e isso me aproximou dessa tragédia.
Escolhi parte do “Poema-Prólogo”, no qual Pedro Tierra sintetiza sua missão:
Fui assassinado.
Morri cem vezes
e cem vezes renasci
sob os golpes do açoite.
Meus olhos em sangue
testemunharam
a dança dos algozes
em torno do meu cadáver.
Tornei-me a mineral
memória da dor.
Para sobreviver,
recolhi das chagas do corpo
a lua vermelha de minha crença,
no meu sangue amanhecendo.
Em cinco séculos
reconstruí minha esperança.
A faca do verso feriu-me a boca
e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.
Fui poeta
do povo da noite.
Se tivesse a capacidade de fazer um filme sobre Pedro Tierra, começaria filmando a sala de interrogatório, os torturadores e a BIC que o torturador esqueceu. Esse foi o momento em que começou a nascer Pedro Tierra, que precisamos conhecer mais, como conhecer nosso Brasil invadido. Invadido por enlouquecidos em busca de lucros. Nesses dias traumáticos que o País vive, será preciso passar o inverno, muitos invernos num só, sabendo que a primavera vai chegar.