terça-feira, 30 de novembro de 2021

Se depois da CPI Bolsonaro ficar impune, será um escárnio

Os brasileiros estão acostumados com que as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) acabem sempre em nada, ou em “em pizza”, como se costuma dizer. Contudo, esperava-se que a CPI da Pandemia fosse uma exceção. Não se tem memória, por certo, de outra CPI que tenha sido tão seguida pela opinião pública com o fervor e paixão de um campeonato de futebol. O Senado ficou paralisado durante seis meses. Fez estremecer o país depois de ter descoberto as feridas abertas de um escândalo de corrupção, de negligência e de negacionismo por parte do presidente Jair Bolsonaro e deu seu Governo, que por um momento se viram encurralados.

Foram seis meses de trabalho de uma CPI que, no final, produziu um documento acusatório de mais de 1.000 páginas. Entre os acusados, estão o presidente e outras 79 pessoas, entre elas ministros, ex-ministros, políticos e empresários. Bolsonaro foi acusado de cometer crimes comuns, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade.

O documento indicou quantas vidas poderiam ter sido salvas sem os crimes políticos cometidos, abrindo a possibilidade de que o presidente poderia acabar retirado de seu cargo. Ressoou no Senado o grito de “genocida” contra ele. Foi um momento de esperança da sociedade de vingar a morte de seus entes e deixar o pesadelo de um Governo desprestigiado mundialmente.


O documento acusatório foi apresentado pela CPI ao procurador-geral Augusto Aras há um mês. E apenas agora, depois de ter sido chamado por senadores para prestar esclarecimentos, ele afirmou que irá se pronunciar sobre as providências que pretende tomar. É verdade que Aras é conhecido como amigo pessoal do presidente, a quem tenta sempre proteger, mas desta vez trata-se de algo grave demais, que diz respeito a toda sociedade. Estão em jogo as esperanças de se fazer justiça às vítimas da pandemia.

Se todos os esforços da CPI do Senado que foram elogiados pela opinião pública e vistos como uma reparação pelos excessos cometidos acabarem em fumaça, seria uma grande frustração nacional e até internacional, já que a investigação também foi seguida no exterior com interesse e preocupação. Que a CPI possa não dar em nada se intui pela desenvoltura com a qual Bolsonaro, denunciado inclusive aos tribunais internacionais, está zombado das acusações que recaem sobre ele, assim como pelo silêncio do Congresso Nacional, que poderia ter aberto um processo de impeachment contra o presidente.

O Brasil foi gravemente ferido pela pandemia em grande parte devido à negligência de seus governantes, e isso é duplamente grave porque pode aumentar, se possível, a desconfiança da sociedade em seus políticos e juízes que acabam se protegendo sem nunca serem processados.

Essa foi a única vez que a opinião pública, dada a comoção que o documento final do Senado produziu com suas graves acusações contra Bolsonaro e seu Governo, passou a esperar que servisse para tirar do poder aquele que é considerado o pior presidente da democracia. Democracia que ele tentou minar por todos os meios, ameaçando várias vezes com um golpe.

A gravidade de uma possível frustração dos resultados da CPI da Pandemia poderia ter graves repercussões nas próximas eleições presidenciais, nas quais se esperava poder libertar o país de um dos maiores pesadelos autoritários de sua história, com graves consequências na economia e na convivência do país devido à semeadura do ódio por parte de um presidente.

A responsabilidade pelo fracasso do trabalho da CPI da Pandemia significaria a sobrevivência política de Bolsonaro. O novo triunfo da extrema direita golpista seria um desastre para uma economia já gravemente fragilizada e deixaria no poder as forças reacionárias que fizeram deste país, que já foi a sexta potência econômica mundial e uma democracia consolidada aprovada por 70% da população, uma imitação das chamadas repúblicas das bananas.

A responsabilidade do Senado, caso se resigne em que a CPI que criou tantas esperanças acabe em nada e faça ressurgir o genocida Bolsonaro com ainda mais força, acabará não só manchando a memória dos mortos da pandemia mas também zombando da dor das famílias que perderam seus entes queridos.

Os mais interessados em garantir que o trabalho da CPI não acabe frustrado e sem consequências condenatórias concretas, sem esperar anos, devem ser os vários candidatos a disputar as próximas eleições presidenciais. Se é difícil para um presidente não ganhar a reeleição, já que tem toda a máquina do Estado à sua disposição, neste caso uma vitória de Bolsonaro incólume das graves acusações da CPI da Pandemia significaria uma triste derrota para a democracia.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Democracia brasileira, coitadinha

Um relatório divulgado em Estocolmo pelo Idea (Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral) aponta a decadência da democracia brasileira.

Na semana passada, escrevi um longo artigo sobre isso. Reconheço que Bolsonaro é um dos principais responsáveis, da gestão da pandemia aos ataques à imprensa e ao STF. No meu entender, contudo, Bolsonaro não inventou a decadência da democracia brasileira. Apenas aproveitou-se dela para aprofundá-la ainda mais com seus impulsos autoritários.

Gostaria de anotar alguns pontos que escapam ao radar dos grandes observadores internacionais, coisas miúdas do cotidiano, que, de certa maneira, são o dínamo da decadência, pois têm o poder de arruinar o apoio popular à democracia.

O clima de Brasília mudou nos últimos tempos. Formou-se uma frente bastante ampla de parlamentares, e até setores da Justiça, destinada a favorecer a impunidade.

Durante muito tempo, vigorou o orçamento secreto, uma aberração no sistema democrático. Em menos de dois meses, surgiram duas propostas de emenda constitucional com o mesmo apelido: PEC da Vingança. Uma delas visava ao Ministério Público; a outra, ao próprio STF. Nesta última, então, a vingança parecia mais explícita: queriam aposentar exatamente a ministra Rosa Weber, que bloqueou o orçamento secreto.


É vingança, vingança, vingança, como dizia a antiga canção popular. No momento, discutem a vingança que impediu a sabatina de um candidato ao STF: André Mendonça. Foi indicado por ser terrivelmente evangélico, e querem que a sabatina seja realizada no Dia do Evangélico.

Não pode haver impedimento a um evangélico em qualquer cargo do governo. Mas escolher um ministro apenas por sua fidelidade a uma confissão religiosa distorce completamente o sentido de formação de um tribunal superior baseado no saber jurídico.

Por falar em Justiça, aqui e ali surgem casos de pessoas presas por roubar comida. Em Minas, estava presa desde julho uma mulher acusada de roubar água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais.

Enquanto isso, o senador Flávio Bolsonaro consegue no STJ anular todas as provas contra ele acumuladas pelo Ministério Público do Rio. É um trabalho de Sísifo: recolhem-se as provas, e as instâncias superiores mandam jogá-las no lixo.

A própria campanha presidencial, que teoricamente aponta para o futuro, apresentou problemas no trato com a democracia. Bolsonaro visitou os Emirados Árabes e o Bahrein e relativizou as ditaduras do Oriente Médio.

Por sua vez, Lula, em Madri, comparou Daniel Ortega com Angela Merkel e não aceitou a tese de que é possível ser contra o embargo americano a Cuba e, simultaneamente, condenar a repressão às manifestações políticas na Ilha.

Entre os livros que saíram sobre o declínio da democracia, logo após a eleição de Trump, um deles pode ser usado ao alinhar tantas pequenas preocupações. Chama-se “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk. O livro mostra como “o toma lá dá cá” da política exclui o povo da tomada de decisões, criando um sistema de direitos sem democracia.

Aventureiros do tipo Bolsonaro prometem restituir o poder ao povo lutando contra as instituições, dispostos a criar uma democracia sem direitos.

Por isso sempre relembro que a política mesquinha e autorreferenciada que se faz em Brasília é, no fundo, uma política suicida. Favorecer um processo de decadência que coloque o povo contra a democracia cairá na cabeça de todos nós, menos, é claro, na do ditador de plantão e de sua tropa de apoio.

Com as mudanças que uma campanha presidencial promete, será possível reduzir o abismo entre o sistema político e o povo? Uma questão-chave é como se relacionar com o Parlamento sem ser engolido pela voracidade fisiológica ou bloqueado pela sabotagem destrutiva.

É uma linha muito tênue, um desafio a nossa sobrevivência como regime democrático.

Brasil dos demônios

 


A educação na urgência da reconstrução

Não foram necessárias as demissões ocorridas no Inep e a “guerra ideológica” que cercou o Enem 2021 para que se vislumbrassem os dilemas do sistema educacional brasileiro. Sua situação atual assemelha-se ao topo de uma montanha que se entrevê em meio a nuvens ameaçadoras.

Os três últimos anos levaram ao extremo a crise desse sistema, hoje bastante arruinado. Em parte isso ocorreu como efeito da covid-19, mas a parte maior se deveu à conduta governamental, que cavalgou a pandemia e se apoiou tanto no menosprezo pela educação quanto no apreço pela ideologização dos temas pedagógicos e na incompetência dos ministros encarregados de formular e gerir a política educacional. Deu-se uma perversa combinação de fatores, que põe em risco o futuro do País.


Aulas remotas precárias, despreparo para o ensino à distância, falta de equipamentos adequados e impossibilidade do convívio presencial ajudaram a rebaixar a qualidade do ensino e a afastar muitos estudantes do estudo e da própria ideia de “escola”. A ausência de uma política educacional criteriosa completou o quadro.

A escola deixou de ser vista como estrada civilizatória que prepara para a vida, o trabalho, a convivência social. A situação vinha de antes, mas foi turbinada pelos estragos da pandemia e por tudo o que houve de esdrúxulo na gestão da área. O governo simplesmente fugiu da obrigação moral de transmitir aos jovens o que a sociedade tem de melhor, a cultura universal, o conhecimento acumulado, os instrumentos básicos para se mover na vida moderna, a leitura, a escrita, o cálculo, a História e a ética cívica. A ação governamental dirigiu-se deliberadamente para desorganizar o sistema escolar.

O Ministério da Educação (MEC) está agora com o quarto ministro de uma série em que cada um conseguiu ser pior do que o outro. Copiando seus antecessores, o atual ocupante do cargo nada faz de relevante, não demonstra conhecimento da área, esforça-se para dizimar as instituições técnicas da área, não leva alento algum às escolas distribuídas pelo País, deixando ao relento milhões de estudantes e suas famílias. Atuando como um Weintraub sem a estupidez cênica, o ministro Ribeiro é um bajulador que não se envergonha de propor uma universidade “para poucos”, de sugerir A educação sangra no Brasil. Mas seu coração não parou de pulsar, seja pelas exigências da vida moderna, seja pelo desejo de evoluir da maioria dos jovens que currículos e livros didáticos sejam expurgados de “questões ideológicas”. Flutua por sobre os nossos gravíssimos problemas educacionais.

A educação sangra no Brasil. Mas seu coração não parou de pulsar, seja pelas exigências da vida moderna, seja pelo desejo de evoluir da grande maioria dos jovens. Estão ativos os gestores escolares e os professores, que continuam resistindo e buscando saídas, aparando os muros que ameaçam ruir, muitas vezes sem recursos para atuar com maior eficiência. São mal remunerados, tratados com desdém pelo governo, pouco valorizados em termos profissionais, mas são a base para a reconstrução de que se necessita.

A volta às aulas presenciais trará consigo problemas complexos. Como será quando tudo for retomado de fato? Não está claro quanto houve de aprendizado nos últimos anos, nem como atuarão os estudantes com o retorno às salas de aula, nem como será feita a recuperação dos conteúdos perdidos. Não sabemos como estarão os professores, por mais que saibamos que não haverá falta de empenho e disposição.

Com a pandemia, os mestres afastaram-se de seu território específico, a sala de aula. Viram sua missão e sua função social serem submetidas a pressões e ataques. Foram estigmatizados como corporativistas. E tiveram atropelados seus planos de estudo e aperfeiçoamento, que são teóricos mas, acima de tudo, práticos, na lida diária com os estudantes. Escolas não se movem por leis e portarias, mas por atividades humanas, dentre as quais o relacionamento professor/aluno é a mais decisiva.

Um livro recentemente lançado nos ajuda a refletir sobre este quadro, cuja dimensão ética (o diálogo, a cooperação, a responsabilidade cívica, o uso crítico do saber) quase nunca é devidamente considerada. Em Educação e Ética na Modernidade (São Paulo: Edições 70), a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP, acompanha o percurso teórico de grandes mestres da filosofia da educação para nos convidar a um mergulho no universo educacional de nossa época, tão carregada de dilemas existenciais, de fragmentação do saber, de ausência de certezas compartilhadas, de redes hiperativas que produzem muitas trocas, mas pouca reflexão.

Carlota Boto nos faz pensar no fundamental: o que significa educar hoje, “qual o papel da escola e da família perante o império de uma sociedade da informação”, de uma mídia onipresente e da disseminação acelerada das ferramentas da tecnologia digital? Uma questão intensa, instigante, estratégica.

O livro não fornece respostas pontuais. Seu objetivo é organizar o que já se pensou sobre o tema, para que possamos ir além e agarrar os problemas urgentes que nos angustiam hoje. Precisamente o que mais falta faz hoje na educação brasileira.

Duas pandemias?

No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.

Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

Andrea Arroyo

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.

O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.

Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.

Os brasileiros que sobrevivem com comida de porco e água suja

Williams Tavares, de 19 anos, interrompe o telefonema com a reportagem para ajudar uma mulher e uma criança a transportar água para dentro da comunidade Muvuca, no Vergel do Lago, uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas. Ele retorna à ligação ofegante.

"Aqui, tudo é precário. Se em alguns dias falta o dinheiro até mesmo para comprar o pão ou a mistura, o que dá para fazer quando falta a água de beber ou de tomar banho?", diz Páscoa, como o morador da comunidade é conhecido.

Há 3,6 mil barracos na Muvuca, diz ele. Em alguns, vivem sete pessoas "espremidas". A BBC News Brasil esteve ali em visita intermediada pelo projeto Consultório na Rua, de acolhimento a pessoas vulneráveis, promovido pela Prefeitura de Maceió.

Era uma tarde, e a comunidade estava em silêncio, com muitos animais e moscas por entre as casas, bicicletas e motos paradas.

Só as mulheres estavam presentes. Os homens saem de casa antes das 7h da manhã para trabalhar. Eles são, em sua maioria, carroceiros e marisqueiros. A maioria volta no fim da tarde.

Não há saneamento básico, e apenas duas torneiras abastecem todas as famílias. Uma das moradoras contou que faz as necessidades fisiológicas em uma sacola, que é descartada na lagoa ou num descampado, hábito comum na região.

Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".

"Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa", conta Páscoa.

Apesar da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, o preço dos barracos foi inflacionado pela pandemia. Há 12 anos, Alexsandra* pagou R$ 5 mil no dela. Agora, alguns já valem mais de R$ 30 mil.

"As coisas apertaram quando essa pandemia chegou. Meu marido é carroceiro, eu sou dona de casa. Ele vive trabalhando, eu fico aqui ajeitando uma coisa, ajeitando outra", conta ela.

Na casa de Alexsandra, a água chega bem fraquinha. Seu marido, Marivaldo, foi um dos moradores que ajudaram a cavar um buraco a 200 metros da Muvuca, onde fica o "cano-mestre" de água da região.

Graças a doações, os moradores conseguiram interligá-lo a cinco barracos, que daí distribuem a água para os vizinhos.

"Passamos semanas, até um mês, sem água, que não é limpa. É suja. Nós ficamos com dor de barriga, e muita gente fica doente. (Mas) serve para a gente beber, cozinhar e tomar banho. Usamos baldes. Tem dia que um balde serve para cinco, seis pessoas tomarem banho."

Na Muvuca, a distribuição de água é responsabilidade da BRK Ambiental, empresa privada que assumiu os serviços de saneamento na região metropolitana de Maceió em julho deste ano.

A companhia reconhece a falta de uma rede local e explica que "os ramais existentes na localidade e utilizados pela população não fazem parte da rede pública, foram construídos no passado como uma solução informal, não regularizada no município".

A concessionária diz que ainda avalia, junto aos órgãos competentes, como atuará em áreas não regularizadas pelo poder público, mas estima que, até 2027, deve universalizar o acesso à água em toda a Região Metropolitana de Maceió, com investimento de R$ 2,6 bilhões.

Outra moradora, Marleide, de 44 anos, conta que uma forma de contornar a falta de água é pagar a alguém para buscar no Rio do Remédio, que se encontra com a lagoa ali perto. "E nem sempre está boa para beber, viu?"

Marleide ajuda a cuidar da sogra, a ex-marisqueira Maria, de 56 anos, conhecida como Vaninha, que ficou cega por conta da diabetes e passa a maior parte do tempo deitada na cama.

Ela depende da família para ter água para o banho e se sustentar, porque o dinheiro da aposentadoria não tem sido suficiente para comprar comida e remédios.

Páscoa vive em um barraco com a avó e a irmã mais nova. Por não serem marisqueiros ou carroceiros e trabalharem com outras coisas, estão em condições um pouco melhores que a maioria dos moradores da Muvuca.

Antes, quando a família dividia o mesmo espaço entre sete pessoas, ele pedia dinheiro nos sinais de trânsito. Atrasou os estudos por conta disso — hoje, está no segundo ano do ensino médio, e quer cursar Direito.

"Eu fiz um curso de almoxarife, tento fazer bicos, faço um curso técnico de assistente administrativo e quero passar numa faculdade. Dá pra contar numa mão quem tem carteira fichada [emprego CLT] aqui na Muvuca", diz.

"Aqui é a gente pela gente. A Muvuca fica mais afastada de tudo. Não tem médico, remédio, exame, nada. Eu mesmo já fui para uma UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] em cima de uma carroça", conta.

Alexsandra, que estava por perto, completa: "Nós somos esquecidos''.

Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em economia regional, diz que, em comunidades como a Muvuca, a pobreza estrutural se soma à dependência de políticas públicas.

"O fenômeno da pobreza não é recente. Podemos dizer que houve uma queda até 2015, mas o processo [de empobrecimento] vem se acentuando desde então."

De acordo com o Ministério da Cidadania, Alagoas tem 689 mil famílias inscritas no CadÚnico de programas sociais federais, das quais 425 mil recebiam o Bolsa Família.

No ano passado, o auxílio emergencial cobriu 1,2 milhão de pessoas no Estado, com um valor que variava entre R$ 600 e R$ 1,2 mil. No segundo semestre, caiu pela metade e, na parcela mais recente, foi fornecido a 717 mil pessoas no Estado, com valores entre R$ 150 e R$ 370.

Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, Alagoas teve mais 38,6 mil pessoas empurradas à pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 89 por mês. O número total chega a quase 1,2 milhão de pessoas, o que corresponde a 35% da população do Estado.

A crise que o país atravessa se revela ainda pior em Alagoas, que tem a quarta maior taxa de desemprego do Brasil (18,8%), acima da média nacional (13,7%), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de agosto.

"Qualquer aumento de desemprego e inflação dificulta muita coisa para essas pessoas. Quando a renda média cai, as pessoas passam necessidade", explica Carvalho.

Amanda, de 25 anos, está grávida e, enquanto segura uma filha, observa outro filho ao seu lado. Na geladeira, tinha só um refrigerante, um saco de banana, um pouco de água e mais dois pacotes de leite em pó.

Eram 15h, e ela ainda esperaria mais três no mínimo até que o marido chegar do trabalho com o pão e uma mistura — ou nada. Ela conta que se pegou chorando ao encarar a geladeira que anos atrás já esteve cheia.

A pandemia foi uma época diferente para Amanda, de 25 anos, e sua família. No começo, por ter dois filhos, recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 1,2 mil e conseguia assim pagar as contas. Beneficiada pelo Bolsa Família por conta dos filhos, Amanda também disse não saber o que seria dela com o fim do benefício.

"Todo dia é assim a luta da gente. Tem dia que Deus manda [comida], tem dia que não manda. Aumentou o preço de tudo, e já estão falando que o gás vai aumentar de novo. Meu Deus do céu, onde a gente vai parar?", diz.

Combate à pobreza e plano de governo

Fizeram piada quando um político, por descuido ou coragem, repetiu num discurso, há alguns anos, uma das joias da chamada sabedoria popular: é melhor ser rico e saudável do que pobre e doente. Típica de para-choque de caminhão, a frase pode ser um lugar-comum, mas é também uma dura descrição de um país onde cerca de 100 milhões de pessoas, quase 50% da população, vivem sem coleta de esgoto. A oferta de água tratada é mais ampla, mas carecem desse atendimento cerca de 35 milhões de habitantes. Destes, 5,5 milhões vivem nas cem maiores cidades. Esses números, do Instituto Trata Brasil, foram publicados em março e remetem, obviamente, à distribuição individual e regional da renda e da riqueza. Segundo o Atlas de Saneamento, recémeditado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), só 60,3% dos municípios tinham coleta de esgoto em 2017.

Também a inflação prejudica mais os pobres. Nos 12 meses até outubro, os preços ao consumidor subiram 11,39% para as famílias de renda muito baixa, 11,13% para as de renda baixa, 9,76% para as de renda média alta e 9,32% para as da faixa mais alta, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No estrato mais pobre, a renda mensal domiciliar correspondeu a R$ 1.808,79 em junho de 2021. No grupo mais abonado, superou R$ 17.764,49. Além de ser frequentemente mais elevada para os mais carentes, a inflação é especialmente penosa para esses consumidores quando a alta de preços, como tem ocorrido, envolve itens como alimentos, eletricidade e gás de cozinha.


Saúde e dinheiro, dois aspectos das enormes desigualdades nacionais, estão claramente vinculados a fatores como educação, formação profissional, oportunidades de trabalho, prioridades políticas e programas de investimento. Candidatos e prováveis candidatos à eleição presidencial de 2022 começam a falar desses temas, essenciais para a reconstrução do Brasil nos próximos anos – se voltar a existir em Brasília algo parecido com um governo nacional. O País estará novamente em risco, se o discurso anticorrupção prevalecer, como em 2018, sobre propostas e planos de desenvolvimento econômico e social. Compromisso de honestidade é obrigação mínima de todo candidato. Não é programa de governo, mas dezenas de milhões de eleitores parecem ter caído nessa confusão.

Qualquer programa sério terá de cuidar, direta ou indiretamente, do combate às desigualdades. Isso deverá envolver atenção à saúde e à distribuição das oportunidades. Será preciso, como ação básica, manter a ajuda aos pobres em condições semelhantes às da Bolsa Família ou de sua antecessora, a Bolsa Escola. Mas o combate efetivo às desigualdades só ocorrerá com expansão da economia e das possibilidades de realização pessoal. Não adianta falar em “porta de saída” quando falta, como tem faltado, um lugar para onde ir.

Só haverá para onde ir – e isso vale para a maioria dos cidadãos – se o governo retomar as políticas de ampliação e modernização produtiva, de aumento de eficiência e de integração no mercado global. Será necessário, obviamente, reconstruir o setor industrial, devastado em dez anos de retrocesso.

Alguns segmentos cresceram, ganharam vigor e conquistaram mercados nesse período. Mas a estatística oficial conta uma história de retrocesso iniciada antes da recessão de 2015-2016. Pessoas distraídas confundiram esse desmonte com a passagem, no mundo rico, para a fase pós-industrial. Na economia brasileira ocorreu algo muito diferente: um recuo histórico. Ao mesmo tempo, outros países, avançados e emergentes, continuaram progredindo e ampliando a distância em relação ao Brasil.

Não se pode falar de expansão e modernização da economia sem cuidar, embora algumas pessoas abominem a expressão, do capital humano. Será preciso resgatar o ensino fundamental, fortalecer os cursos médios e profissionais e investir no desenvolvimento científico e tecnológico. Este esforço foi, para usar uma linguagem suave, amplamente negligenciado no regime anticientífico e antiacadêmico do presidente Jair Bolsonaro.

Nem o agronegócio está seguro. Eficiente ao produzir, o setor perde poder de competição ao depender do transporte rodoviário e, pior que isso, de um transporte realizado em rodovias insuficientes e frequentemente mal conservadas. Isso remete à urgência de retomar o investimento em infraestrutura, com base em planos bem elaborados e, tanto quanto possível, com participação de capital privado. A atual administração avançou nessa área muito menos do que havia prometido.

É muito difícil esperar um quadro melhor no próximo ano. Concentrado na reeleição e nos interesses pessoais e familiares, o presidente sobrepõe seus objetivos às normas da responsabilidade fiscal e da boa administração. Dispõe, para isso, da cooperação do ministro da Economia, do apoio cada vez mais caro do Centrão e da boa vontade dos presidentes da Câmara e do Senado, tolerantes, até agora, às práticas orçamentárias sem transparência. Aos pobres sobra uma ajuda calibrada para os planos eleitorais. 

domingo, 28 de novembro de 2021

Brasil no osso

 


Um homicida no Planalto

“Este relator está sobejamente convencido de que há um homicida homiziado no Palácio do Planalto”, disse o senador Renan Calheiros em seu último discurso na CPI da Pandemia. São palavras fortes e Renan, um orador à moda antiga, também recorre a termos pouco usuais, como “sobejamente” e “homiziado”. Mas o ex-presidente do Senado falou por todos nós. E também acertou em cheio ao comparar Jair Bolsonaro ao pastor Jim Jones, responsável pela morte de mais de 1.000 pessoas na Guiana em 1978. Segundo ele, Bolsonaro agiu como “um missionário enlouquecido para matar o próprio povo”.

Nove crimes foram imputados ao “enlouquecido”, que é responsabilizado pelo alto número de mortes na pandemia. Bolsonaro é acusado desde charlatanismo até prevaricação e crimes contra a humanidade. Tudo isso fartamente documentado nas 1.287 páginas do relatório, que expressa os seis meses de trabalho da CPI. Em circunstâncias normais, tais crimes levariam ao impeachment de um presidente da República. Mas nesta quadra terrível da vida nacional, tudo indica que Bolsonaro contará com o escudo protetor do procurador-geral da República, Augusto Aras, a quem caberia tocar os processos.


É quase certo que Aras vai engavetar os pedidos de investigação ou empurrá-los com a barriga. Mas o que foi apurado pela CPI apurado está. E as acusações contra Bolsonaro também serão levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos na Costa Rica e ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (já há denúncias na Corte Internacional de Haia). Mesmo com a cumplicidade de Aras, Jair Bolsonaro dificilmente vai escapar da Justiça ao fim de seu mandato. Seus desmandos e crimes não ficarão impunes.

Mas todo cuidado é pouco com o “homicida do Planalto”. Se o escudo de Aras não falhar, o Capitão Corona só deixará o cargo em 31 de dezembro de 2022. Até lá, mesmo como um pato manco impopular e desmoralizado, ele continuará com a caneta na mão e poderá trazer prejuízos ainda maiores para o país. Hoje o balanço de seu governo é pra lá de medíocre. O desemprego atinge mais de 13 milhões de trabalhadores. A inflação supera 10% ao ano, na maior taxa desde 1995, e o crescimento da economia deve ficar entre 0,5% e 1% no ano que vem. Mal na economia, o governo Bolsonaro é um desastre em todas as frentes. O ex-capitão é, sem dúvida, o pior presidente de todos os tempos.

Seu fracasso só é comparável ao do general João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, que chegou ao Palácio do Planalto com inflação de 40% e o deixou com taxa anual acima de 200%. Dizem em Brasília que, se as pesquisas indicarem que as chances de reeleição são remotas, Bolsonaro sairá candidato ao Senado ou à Câmara. Assim, contará com a imunidade parlamentar para enfrentar os futuros processos. Pode ser. Mas o mais certo é que ele repetirá o exemplo de Figueiredo e deixará o Palácio pelas portas do fundo. Dali, a exemplo do último ditador, Bolsonaro vai para o lixo da história.
Octavio Costa

E o boato se americanizou: 'Fake news'

Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou de outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto - tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular - começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.
Érico Veríssimo

O 'empazuellamento' do Brasil

Eduardo Pazuello, lembra-se? Ex-general do Exército na ativa e ex-ministro porcino da Saúde. Aquele que foi sem nunca ter sido. Já passou à história do Brasil. O futuro falará dele como símbolo da redução do Estado a um rebanho de invertebrados a mando de Jair Bolsonaro. Sua imortal frase "Um manda, outro obedece", dita para 200 milhões de brasileiros, não ficará apenas como expressão de uma pusilanimidade bovina, mas porque pode ter contribuído para a devastação de vidas pela Covid, já que avalizava a quebra de um contrato de compra de vacinas, ordenada por quem o tangia.

Mas é injusto concentrar o empazuellamento em Pazuello. Afinal, ele nunca foi o único pazuello do pedaço, e talvez nem o primeiro. Está em curso um processo de pazuellização em todas as instituições nacionais, com ênfase nas que garantem a imunidade de Bolsonaro e cáfila.


O futuro ministro do Supremo Tribunal Federal André Mendonça, por exemplo, cuja sabatina no Senado está agora por dias, será mais um pazuello no STF. Irá somar-se a Kássio Nunes Marques, que Bolsonaro classificou como "10% dele [Bolsonaro] no Supremo", e a outros que às vezes se juntam a Kássio em pazuellagens pontuais. Uma delas, a que trava o julgamento das rachadinhas de Flávio Bolsonaro e permite ao STJ empazuellar-se de braçada, dando a Flávio sucessivas vitórias. O empazuellamento final será a extinção desse caso.

E a CPI da Covid temia que, depois de meses levantando os crimes contra a vida praticados pelo governo durante a epidemia, tivesse seu relatório posto para dormir pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Pois não há mais o que temer. O relatório já ronca no berço esplêndido da empazuellada PGR.

Mas o grande empazuellamento, não por acaso, é o do Exército. Não importa quão cheios de vento, seus generais foram reduzidos a pazuellos por Bolsonaro, e isso também entrará para a história.

O Brasil perdeu toda a credibilidade

Poucos dias depois do fim da última Conferência do Clima da ONU, a COP26, a Comissão Europeia apresentou um projeto de lei que propõe proibir a importação para a União Europeia (UE) de todos os produtos provenientes de áreas desmatadas. E não importa se as leis locais permitem ou não esse desmatamento. Se, por exemplo, soja ou óleo de palma forem cultivados em áreas que em 31 de dezembro de 2020 ainda eram floresta, sua importação para a UE seria proibida.

Seriam afetadas inicialmente as importações de carne bovina, madeira, soja, óleo de palma, café e cacau, além de uma lista de produtos derivados, como chocolate e couro. A lista poderia ser ampliada futuramente, segundo a UE. Milho e borracha devem ser adicionados. E como fica o minério de ferro, por exemplo, que é extraído em áreas de floresta tropical?


Com a proposta, a UE reage à pressão de consumidores e organizações ambientais que querem reduzir a responsabilidade da Europa na destruição de florestas tropicais mundo afora. O projeto de lei deve agora ser submetido ao Parlamento Europeu e aos Estados-membros da UE. Eles ainda podem fazer mudanças antes que a proposta seja aprovada, e isso pode levar algum tempo.

Mas já está claro que esse projeto de lei é um golpe amargo para agricultores e exportadores brasileiros. Pois futuramente eles devem ter que comprovar que seus produtos não foram cultivados em áreas desmatadas. Isso é caro e complicado. Especialmente porque o Brasil é um produtor para o qual as certificadoras vão olhar particularmente de perto, para ver se não há produtos de áreas desmatadas nas cadeias de fornecimento. Mesmo agricultores que hoje se atêm às leis no Brasil podem vir a enfrentar incertezas quanto à possibilidade de vender seus produtos para a Europa.

Na verdade, a UE não pode simplesmente desconsiderar leis ambientais nacionais e deve cumprir acordos no comércio internacional. Agora, o Brasil teria que tentar formar uma aliança com outros países produtores para negociar exceções ou prazos com o bloco europeu. No Brasil, por exemplo, faz pouco sentido colocar o cacau na lista, pois seu cultivo muitas vezes protege regiões de floresta tropical contra o desmatamento. A situação da borracha é semelhante, e, em parte, também a do café.

O problema, no entanto, é a falta de credibilidade do Brasil. Quem deve confiar em negociadores brasileiros quando eles omitem o mais recente recorde de desmatamento justamente na Conferência do Clima, apesar de os números estarem disponíveis há muito tempo? Como um governo pode ser levado a sério quando continua a enfraquecer os órgãos ambientais em termos de pessoal e financiamento e, em vez disso, envia militares ou policiais despreparados para a Amazônia para protegê-la? Ou como pode ser levado a sério um presidente que acaba de declarar mais uma vez que a floresta tropical não pega fogo porque é muito úmida?

O Brasil raramente se viu tão vulnerável e indefeso diante de medidas unilaterais de seus parceiros comerciais. As associações agrícolas brasileiras podem agradecer em Brasília por isso.

Improviso institucional trava o Brasil

O Brasil está travado institucionalmente por doses cavalares de improviso e casuísmo que foram sendo tolerados nos últimos três anos e culminaram num cenário em que não há previsibilidade alguma nos campos jurídico, político, fiscal e econômico.

O responsável pelo império da incerteza é Jair Bolsonaro, claro, mas os demais Poderes, o Ministério Público, o mercado e o Tribunal de Contas da União (TCU) são alguns dos cúmplices.

Bolsonaro não tinha maioria. Achava que obteria apoio parlamentar colocando sua turba das redes sociais para acossar o Congresso. Obviamente, não funcionou.

Mudou de método e decidiu comprar uma base parlamentar à custa de orçamento secreto. Vinha funcionando, até o Supremo Tribunal Federal (STF) mandar acabar com a brincadeira.

Agora, diante do impasse institucional, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, resolvem se unir para salvaguardar o caráter sorrateiro das emendas do relator e preservar seus comandados da luz do dia. Resultado: anunciam que descumprirão decisão judicial! E marcam sessão do Congresso numa sexta-feira para tornar a desobediência oficial!

Quais os caminhos possíveis a partir daí? Pacheco pode usar sua voz aveludada para tentar convencer Rosa Weber de que não está afrontando a decisão tomada pelo plenário da mais alta Corte do país. Mas ela não acreditará. Quanto mais se pode esticar uma corda dessas sem profundas consequências para o ordenamento democrático?


Da mesma forma, com o fim desastroso do Bolsa Família, criou-se um vácuo jurídico e fiscal em que o Auxílio Brasil existe de forma anômala: no papel, mas sem uma receita permanente que o assegure.

A partir daí, vale tentar uma sucessão de cavalos de pau legislativos, fiscais e até na lógica mais primária. Mas é o tal “se colar, colou”. Como o TCU e o STF já deram mostras de que podem aceitar gambiarras, o Congresso e o Executivo vão exagerando na dose das que propõem.

Além da revogação do teto de gastos e do calote nos precatórios, a atual versão da PEC acaba por rasgar também a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A dificuldade em passar esse trambolho pelo Senado, apesar de tantos absurdos, acaba sendo mais resultado de questões políticas que de uma genuína preocupação dos senadores com o futuro das contas públicas, o ambiente de investimentos no Brasil transformado em Casa da Mãe Joana ou o que ficará de papagaio para o próximo governo.

O que está pegando, no fundo, são as artimanhas de Davi Alcolumbre para deixar de aprovar André Mendonça para o STF, a disputa interna por uma vaga no TCU, a pretensão eleitoral de Pacheco e outras tantas questões típicas de Câmara de Vereadores, e não do Senado Federal.

De forma silenciosa, e nem sempre linear, acaba acontecendo a bolsonarização de todas as instituições. Com um presidente que avacalha todos os ritos, que gasta os dias em papo furado com apoiadores, solenidades da importância da chegada do Papai Noel e viagens desprovidas de estratégia comercial ou diplomática, tudo vai sendo rebaixado.

As relações entre os Poderes hoje se assemelham a novelas de baixo orçamento de emissoras com traço de audiência. Quando seria tolerável que, depois de anunciar que não cumprirá uma decisão judicial, o presidente do Senado pedisse uma audiência com uma ministra do Supremo para tentar levá-la no papo?

O Brasil está, com tanto improviso coordenado, contratando um ano eleitoral em que não se tem a mínima ideia de qual será a cara do Orçamento. Como e onde se vai gastar?

O que será feito de concreto, e não mero chute grotesco, para conter a inflação galopante, para tentar gerar empregos e para fazer com que o país volte a ser, se não atraente, ao menos minimamente confiável aos olhos de governos parceiros e investidores privados?

A julgar pelos passos claudicantes das nossas instituições, absolutamente nada. Vamos assim, na base de patéticas tentativas e sucessivos erros.

Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto-socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxíio ao homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome, pedindo providências às autoridades. As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, estado da Guanabara, um homem morreu de fome.

Morreu de fome.
Fernando Sabino, "A mulher do vizinho"

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Brasil em seu labirinto

 


As cousas do mundo

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa,
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Gregório de Mattos

Privilégios de classe e casta na educação

Educação não é privilégio é o título da obra mais importante do fundador do conceito de escola pública em tempo integral no Brasil, o baiano de Caetité Anísio Teixeira, que, não por homenagem vazia, mas por mérito incontestável, completa o nome do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Ou seja, a repartição pública que administra o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no centro das atenções no momento. Aliás, Enem e Inep são os dois piores exemplos de como a teoria no nome é invertida: entre os privilégios de classe e de casta no País destaca-se o elitista vezo histórico, oposto à intenção benemérita do formulador dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), no Rio, e dos Centros Educacionais Unificados (Ceus), em São Paulo.

Não se trata de imposição da direita ou da esquerda, mas de uma tradição arraigada, que deforma todas as tentativas de corrigir seu rumo. Inspirada em Ruth Cardoso, mulher do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a pesquisadora de políticas públicas Ana Fonseca criou o programa de Renda Mínima na gestão do tucano José Roberto Magalhães Teixeira, o Grama, em Campinas. À época, o ex-reitor da Universidade de Brasília (UNB) Cristovam Buarque implantou no governo do Distrito Federal o programa Bolsa Escola. A denominação condicionava o desembolso de dinheiro público ao incentivo para lares pobres matricularem a prole. No primeiro governo Lula, do qual Buarque foi ministro da Educação, a ideia original alterou o enfoque educativo para assistencialista com o Bolsa Família, que manteve, mas não priorizou, a necessidade da matrícula para o recebimento do dinheiro. O desgoverno Bolsonaro deixou o programa social finar por inanição e promete substituí-lo por outro, assumido como apenas assistencialista, o tal Auxílio Brasil.

Essa inversão da prioridade educacional para a assistencial direciona, evidentemente, o objetivo social para o político, assumindo a mendicância militante. Seja à esquerda, seja à direita, como sequência natural dos antigos programas paternalistas das obras contra as secas e condicionando a emergência à compra indireta dos votos num populismo contra o povo, como o pratica o atual desgoverno. A história contemporânea produziu a adulteração da denominação dos planos de incentivo à educação básica em muletas sociais para a distância abissal entre as migalhas para a instrução pública inicial e o dispêndio insustentável no nível superior. O exemplo de Inep/enem é de uma clareza absoluta. Criado para avaliar e, em seguida, qualificar o ensino médio, que seria a prioridade evidente de qualquer gestor público bem intencionado, é usado como via de acesso para instituições superiores, substituindo o método tradicional do vestibular. A perenidade dos privilégios de classe e casta é óbvia, cega, muda e surda.

A pretexto de extinguir o inexistente risco da ditadura comunista, o golpe militar de 1964 paralisou as instituições democráticas por 20 anos, mas perdeu, por evidentes limitações intelectuais, a guerra pelo controle ideológico dos câmpus. Quando o regime ruiu sobre os próprios pés de barro, o domínio intelectual do marxismo-leninismo mostrou seu fascínio de corações e mentes e exibiu sua adesão ao elitismo dominante das origens de classe de seus devotos e prosélitos. O Inep deixou de honrar o nome do pedagogo que o batizara. E o Enem sobreviveu à invasão solitária do policial federal na elaboração secreta da prova. Como a intelligentsia socialista manteve as superstições de cátedras intactas após a invasão do câmpus da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pelos meganhas comandados pelo coronel reformado do Exército Erasmo Dias, em 1977.

Marx, o papa do “socialismo científico”, não compareceu na prova a que o menor número de inscritos desde 2005 foi submetido. Mas seu arrimo de família e sócio minoritário, Friedrich Engels, manteve acesa a luta de classes num quesito esquisito retirado de sua insignificante obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Esse texto, obsoleto há 176 anos, desde a publicação, desmoraliza os autores da prova, que podiam ter tratado do desemprego do operariado brasileiro a olho nu na calçada de casa. E também os fracassados interventores Jair Bolsonaro, Milton Ribeiro e Danilo Dupas, vítimas da própria ignorância. Eles na certa conhecem Chico Buarque e Henfil, mas dificilmente terão lido Admirável Mundo Novo, do britânico Aldous Huxley, parodiado em canção pelo sertanejo Zé Ramalho, sucesso na trilha sonora de O Rei do Gado, telenovela de Benedito Ruy Barbosa. Dificilmente terão compreendido que o título da canção, que troca mundo por gado, ironiza a alcunha pejorativa de fanáticos bolsonaristas.

Neste momento em que crianças desmaiam de fome nas classes, desafiando sua exclusão da instrução pela desnutrição, a esquerda resistente e a direita demolidora associam-se na manutenção desumana do elitismo impiedoso que expulsa os pobres da escola e a pandemia do exame escolar. São cúmplices da inanição letal e da repartição da ignorância, único bem repartido na república dos desiguais.

O Bicentenário do blá-blá-blá

O capitão não quer que se trate o 31 de março de 1964 como golpe militar. Prefere falar em revolução. O senador Paulo Paim (PT-RS) quer colocar o nome do marinheiro João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria pelo seu papel na Revolta da Chibata, de 1910, mas os comandantes da Marinha objetam. Argumentam que nada justifica uma insurreição.

Os intolerantes de 2021 militam em conflitos do passado, expondo a má qualidade do debate em torno da bela História do Brasil. Até aí, tudo não passaria de um exercício de autoritarismo em torno da memória, mas vai-se aos fatos e se vê que, só na semana passada, a Secretaria de Cultura anunciou a criação de uma linha de crédito de R$ 600 milhões para as comemorações do Bicentenário da Independência. Desde julho, o cineasta Josias Teófilo vinha reclamando dessa inação. Afinal, sabia-se há 199 anos que, no dia 7 de setembro do ano que vem, o Brasil comemoraria seus dois séculos de existência.


Quem quiser chamar o 31 de março de 1964 de golpe, que chame. Quem quiser homenagear João Cândido, que o homenageie. A objeção dos comandantes da Marinha pode ser legítima, mas falta explicar por que se deu o nome do almirante Saldanha da Gama ao lindo navio-escola da Força. Saldanha insurgiu-se contra o governo de Floriano Peixoto, aderiu à Revolta Federalista do Rio Grande do Sul e foi degolado num combate, em 1895. Se os almirantes não tivessem se rebelado contra Floriano, talvez ele não tivesse convocado eleições. Se os marujos de João Cândido não tivessem se rebelado, a chibata não teria sido abolida em 1910.

O Brasil já viveu tempos de tolerância. Em 1860, quando Dom Pedro II viajava pelo Nordeste, os fofoqueiros do Paço contaram-lhe que o almirante Marques Lisboa, comandante do barco que o conduzia, descera na localidade de Tamandaré para visitar o túmulo de seu irmão que morrera combatendo o governo de Pedro I. Pior, queria transladar seus restos para o Rio. O imperador tratou do caso e decidiu dar-lhe o título de barão de Tamandaré. Vinte e nove anos depois, quando um golpe militar destronou e desterrou Dom Pedro II, o então marquês de Tamandaré, que ficara no Paço durante todo o dia 15 de novembro, ajudou a claudicante imperatriz a embarcar.

O que diferencia a intolerância de hoje das outras, passadas, é a laborfobia. O radical quer radicalizar, mas trabalhar que é bom, nada. O Bicentenário vem aí e, pelo que se vê, o governo nada fez. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa celebrou a data com muitas iniciativas, inclusive uma exposição internacional. Em 1972, o general Emílio Médici patrocinou uma patriotada com os restos de Dom Pedro I, mas tomou algumas iniciativas culturalmente relevantes. Agora, de Brasília, só vem silêncio.

Pena, porque o governador João Doria há tempo prepara a reinauguração, em grande estilo, do Museu do Ipiranga. Em setembro de 2022, em plena campanha eleitoral, Doria terá o que mostrar, e Brasília ficará chupando o dedo, repetindo que em 31 de março de 1964 houve uma revolução. Ela cassou o mandato de deputado do pai do governador, que havia batalhado na CPI com seu colega Rubens Paiva, que investigava a corrupção eleitoral do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, cujo guru deixou o Brasil e morreu muito tempo depois, nos Estados Unidos. Rubens Paiva foi assassinado no DOI do Rio de Janeiro.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Pensamento do Dia

 


A cara da destruição

Nenhum brasileiro será capaz de esquecer o grande equivoco de 2018. Depois da ditadura militar, instaurada pós golpe de 64, temos vivido, sem dúvida, os piores momentos de nossa história. Agravados pelos descalabros provocados pela pandemia do Covid, mortes e sofrimentos evitáveis, não fosse o descaso visceral desse governo.

Nem os bolsonaristas mais radicais escaparão às más lembranças da gasolina a quase oito reais, botijão de gás a 120, comércio quebrando, desemprego nas alturas, fome e miséria se espalhando sem dó nem piedade pelas ruas das grandes e pequenas cidades.

Como esquecer?

Está ai, em pleno século XXI, a tragédia que se abate sobre o povo yanomami. Sem remédio para a malária, o único mal comprovadamente combatido pela cloroquina, os índios estão padecendo da doença, fome e desassistência. Velhos e crianças morrendo por inanição do governo.

Como não enxergar o desmatamento em série, boiadas pisoteando as florestas? Impossível não lembrar dos desvios morais e éticos da Fundação Palmares, e de seu presidente racista, fascista, inumano. Lancinante observar as tentativas de esfacelamento da cultura e da educação do País.

Isso sim tem a cara do Governo. Incontáveis infortúnios.

Bolsonaro tem a face da destruição, da ruína. A sua cara, sim, como ele pediu, é a do Enem que não trouxe uma palavra sobre pandemia ou fome. Aplicada nesse domingo, Covid 19 não existiu para os estudantes. Como inserir um tema que não preocupou o governo? Ah.. trouxe Chico Buarque, Raul Seixas, gado marcado, e cinco questões sobre escravidão e racismo. Não basta.

A crise no Enem e a exoneração de 37 servidores são fatos. A interferência do governo nas questões é inquestionável. Está proibida a palavra ditadura, e golpe deve ser substituido por “revolução”. Sim, essa é a cara de Bolsonaro. Cara da história distorcida, contada pelo avesso.

Ainda falta um ano e 38 dias para nos livrarmos dessa sarna. Mas a esta altura, em 2022, já teremos um novo presidente.

Dura missão de resgatar nossa dignidade. Quem sabe recuperar nossa alegria e o famigerado orgulho de ser brasileiro? Num País dilacerado pelo ódio, alforriar nossas almas já será um grande avanço. Com a cara da esperança, depois do flagelo.
Mirian Guaraciaba

Brasil é a democracia com mais aspectos em declínio do mundo

O Brasil é a democracia que registrou piora no maior número de fatores que medem a qualidade do regime democrático nos último cinco anos. Foram retrocessos em oito aspectos, entre eles liberdades civis, independência do Judiciário, integridade da imprensa e liberdade de expressão.

Os dados estão em relatório divulgado nesta segunda-feira pelo Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA, na sigla em inglês), sediado em Copenhague. O IDEA é uma organização intergovernamental apoiada por 34 países e dedicada ao estudo e à avaliação da democracia. O relatório se baseia no acompanhamento de 16 fatores relacionados ao funcionamento adequado de regimes democráticos.

Segundo os pesquisadores do IDEA, o Brasil teve melhoria consistente de seus indicadores nas décadas de 1990 e “sobretudo” na de 2000, tendência que começou a apresentar sinais de desgaste em 2013, quando houve as Jornadas de Junho, e entrou em queda em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. O relatório afirma que a piora dos indicadores foi “exacerbada” com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019.


O documento dá destaque a iniciativas e declarações de Bolsonaro que questionaram o sistema eletrônico de votação e a atuação do Supremo Tribunal Federal. O relatório diz que o presidente “testou explicitamente as instituições democráticas brasileiras, acusando ministros do Tribunal Superior Eleitoral de se prepararem para conduzir atividades fraudulentas relacionadas às eleições de 2022 e atacando a mídia“.

O IDEA registra ainda que o presidente “alegou que as eleições poderiam ser canceladas a menos que ele fosse alterado” e “declarou que não iria obedecer determinações do Supremo Tribunal Federal, que conduz um inquérito contra ele por espalhar notícias falsas sobre o sistema eleitoral no país.”

O relatório informa que o Brasil foi um dos quatro países monitorados que teve declínio na qualidade do controle do seu governo, um dos quesitos importantes para o bom funcionamento de democracias, que reúne os fatores “efetividade do Parlamento”, “independência do Judiciário” e “integridade da imprensa”. Além do Brasil, tiveram piora nesse quesito a Polônia, o Benin e o Iêmen.

O texto ressalta que diversos fatores democráticos do Brasil ainda estão em nível superior ao da média da América Latina, devido aos esforços do país para consolidar sua democracia nas décadas passadas. “Seu bom desempenho anterior torna possível que a qualidade democrática do país se reduza sem que ele perca seu status de democracia. Isso demonstra, por um lado, que a democracia brasileira, apesar de ter sofrido anos de retrocesso democrático e queda acentuada em seus indicadores, é resiliente em muitos aspectos, o que é essencial para a reversão do processo atual”, afirma o texto.

O relatório também aponta melhoria em alguns aspectos, especialmente em termos de inovações democráticas no Brasil, e cita como exemplo a criação de observatórios para monitorar as compras e ações do governo relacionadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19.

O processo de erosão democrática enfrentada pelo Brasil é compartilhado por diversas outras nações, em meio ao aumento da desigualdade, da crise de representação partidária e da difusão de notícias falsas em redes sociais.

Desde 1975, quando o IDEA começou a monitorar esses fatores, a década passada foi a que teve o maior de número de países sofrendo deterioração democrática, e a lista de países inclui potências geopolíticas e econômicas como os Estados Unidos e a Índia.

Em 2020, pela segunda vez em vinte anos, o número de países que registrou declínio da qualidade de sua democracia foi maior do que os que registraram melhora.

Um dos aspectos do declínio democrático é o questionamento cada vez maior da lisura de processos eleitorais. As acusações infundadas do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump de que as eleições americanas de 2020 teriam sido fraudadas influenciou comportamentos semelhantes em líderes do Brasil, México, Mianmar e Peru, entre outros países, segundo o relatório.

Na União Europeia (UE), três países-membros registraram declínio na qualidade da sua democracia em 2020: a Hungria, comandada pelo primeiro-ministro ultranacionalista Viktor Orbán, a Polônia, governada pelo partido populista Lei e Justiça, que está contestando princípios básicos da UE, e a Eslovênia, cujo primeiro-ministro Janez Janša tem tendências crescentemente autocráticas.

Desde 2015, cinco países perderam o status de democracia, segundo o IDEA: Benin, Costa do Marfim, Honduras, Sérvia e Turquia.

A entidade afirma que “os últimos dois anos desde nosso último relatório não foram bons para a democracia” e que as conquistas alcançadas quando a democracia tornou-se o regime de governança predominante no mundo “agora estão em uma situação precária como nunca antes”. “Esta é a hora para as democracias serem ousadas, inovarem e se revitalizarem”, disse o secretário-geral do IDEA, Kevin Casas-Zamora, em um comunicado.

A imagem do Brasil

Desde os governos militares, os presidentes brasileiros demonstram preocupação com a imagem do Brasil no exterior. Comunicados oficiais alertavam que os inimigos da pátria trabalhavam para prejudicar ou manchar a maneira como estrangeiros enxergavam o país.

Naquela época, os diplomatas brasileiros no exterior mudavam de calçada para evitar encontrar brasileiros no exílio.

Os governos militares, de fato, não tinham grande prestígio nos países europeus, por causa da restrição aos direitos civis, censura à imprensa e tortura de presos políticos. Nos Estados Unidos, a questão era outra: a enorme dívida externa.

O ministro Delfim Netto certa vez disse que dívida não se paga. Ela deve ser rolada. Assim foi feito. O governo brasileiro enviou diversas cartas ao Fundo Monetário Internacional aceitando as exigências de bom comportamento fiscal.

Não cumpriu a maioria delas, até que teve de renegociar com os credores, depois de o país ter entrado em situação falimentar. O Banco do Brasil ficou sem recursos no exterior. O crédito interbancário secou. A negociação com os credores se tornou urgente. E ocorreu de maneira correta.


Hoje o país não tem mais a dívida externa, em compensação possui enorme dívida interna, o que coloca os bancos nacionais em berço esplêndido. Eles têm um único grande cliente que paga as maiores taxas de juro do mundo. É doce ser banqueiro no Brasil.


O governo brasileiro não dispõe dos recursos necessários para financiar o desenvolvimento nacional. É preciso construir estradas, hospitais, escolas, universidades, financiar pesquisas. Por essa razão, os ministros se lançam em viagens pelos principais centros financeiros do mundo, em busca de investidores, que costumam exigir ambiente de paz, confiança, respeito aos contratos e aos pagamentos acertados.

A imagem do Brasil no exterior é requisito essencial para atingir estes objetivos. Quando foi eleito, no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves enviou seu fiel assessor Francisco Dornelles aos centros financeiros internacionais para garantir que o Brasil pagaria os juros da dívida externa.

Em seguida, Tancredo fez uma longa viagem à Europa e aos Estados Unidos. Falou de redemocratização, respeito aos direitos civis e garantia das liberdades, além da convocação da Assembleia Constituinte.

Fernando Collor, após ser eleito, também fez um longo giro pelo mundo, passando por países europeus, depois Japão, Rússia e Estados Unidos.

Fernando Henrique é um scholar, deu aulas no exterior, um homem do mundo. Não hesitou em viajar diversas vezes ao estrangeiro para exibir sua erudição. Ganhou a amizade do ex-presidente Bill Clinton. Passou temporadas em Camp David, casa de campo do primeiro mandatário norte-americano.

Quando presidente, Lula viajou muito ao exterior. Ele coordenou ações, na Europa, com os partidos socialistas democráticos, além de aglutinar a esquerda latino-americana com seu apoio a Cuba, Nicarágua e Venezuela. Lula, hoje, não anda pelas ruas do Brasil. Ele é questionado por atos de corrupção em seu governo, os quais culminaram com a prisão dele, em Curitiba, e de diversos auxiliares, inclusive do então todo poderoso Antônio Palocci, que se transformou em delator. Por intermédio de uma série de manobras jurídicas, foi libertado, mas não absolvido das acusações.

No exterior, ele caminha com desembaraço. Proferiu discurso impactante, em nível de estadista, diante do parlamento europeu. Aplaudido de pé. Falou em universidade em Paris, foi recebido com honras de chefe de estado por Emmanuel Macron, na França. Conversou com Olaf Scholz, possível sucessor de Angela Merkel, na Alemanha, e com o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sanchez. Lula faz no exterior o que não faz no Brasil.

Bolsonaro, por sua vez, respondeu com um périplo pelos países árabes, em busca dos petrodólares. No exterior, o chefe do governo trata de assuntos internos. Fala do conteúdo das provas do Enem e comunica o adiamento de seu possível casamento com o PL, presidido por Valdemar Costa Neto, condenado a sete anos de prisão por corrupção.

No exterior, os presidentes brasileiros discutem assuntos internos com mais facilidade. A repercussão interna é garantida. Aos estrangeiros, como no caso dos árabes, agora, resta assistir sem entender ao que faz o presidente naquelas plagas com enorme comitiva.

Lula quer chegar ao Brasil envolto pela boa vontade dos principais líderes europeus. Bolsonaro pode dizer que foi buscar investimentos nos povos do deserto. Mas nem um nem outro, neste momento, têm condições de andar pelas ruas do país sem um poderoso séquito de seguranças.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

E no país dos cheques...

 


Blearghh! em uníssono

Leitores escreveram apoiando uma onomatopeia que usei outro dia (29/10) ao descrever a sensação de asco diante de alguma nova agressão de Jair Bolsonaro ao Brasil. A onomatopeia era "Blearghh!", criada por Jaguar no Pasquim dos anos 70 para identificar o som de um vômito. Jaguar, o maior cartunista brasileiro de todos os tempos e a quem devemos uma edição abrangente de sua obra, fez dela a trilha sonora de seu personagem Gastão, o Vomitador, que assim expressava sua reação ao que acontecia no Brasil da ditadura. O Brasil de Bolsonaro obrigaria Gastão a vomitar de hora em hora.

Não sei de onde Jaguar tirou o "Blearghh!", mas é perfeito. Parece inglês, mas dicionários como o "Webster" e o "Cambridge" não o registram. Donde poderia muito bem ser incorporado ao português, e com mais propriedade do que outras interjeições em inglês que estão indevidamente se impondo por aqui. Ninguém mais fala "Epa!" —fala "Oops!". Ninguém exclama "Pô!" ou "Genial!", mas "Uau!", tradução de "Wow!". E ouço dizer que, nas redes sociais, usa-se "Cof! Cof!" —"Cough! Cough!" mal pronunciado— para insinuar tosse no sentido de ironia.

É verdade que os gibis americanos sempre nos impuseram essas coisas. "Brrr!" é sentir frio. "Gulp!" é engolir em seco. "Boo!" é dar um susto. "Bang!" é um tiro ou explosão. "Hmmm..." é pensar, ponderar. "ZZZ" é dormir. Mas a submissão ao colonizador tem limites. Em breve estaremos gritando "Ouch!" [autch] e não "Ai!" a uma martelada no dedo e fazendo "Atchoo!" em vez de "Atchim!" ao espirrar.

Por que soluções com séculos de eficácia comprovada são substituídas por outras piores? O último brasileiro a se manter fiel a "Rá-rá-rá!" ao rir por escrito é o nosso José Simão. O pessoal hoje prefere "Rsrsrsrsrs", que para mim soa como um rosnado, ou cacareja em uníssono escrevendo "Kkkkkkkkkk!".

O uníssono deveria ser reservado ao "Blearghh!" e dirigido a —você sabe.

Amazônia morre diante de nós

Por mais tempo que eu viva, jamais esquecerei o líder indígena Piraima’á, da Aldeia Juriti, falando em tom aflito. “Eles estão matando as árvores, eles estão nos matando.” Foram 745 milhões de árvores que tombaram em um ano para que o número de 13.235 km2 desmatados fosse possível. No governo Bolsonaro foram derrubados um bilhão e novecentos milhões de árvores. Esse é o projeto Bolsonaro. A simbiose entre árvores e gente que eu ouvi do líder indígena, em 2012, explica o Brasil e sua tragédia. O que está ocorrendo não é tolerável. Diante dos nossos olhos Bolsonaro executa o projeto de destruição e morte. Este governo está matando as árvores, ele está nos matando.

Os cálculos de quantas árvores morreram neste ano e neste governo foram feitos por Tasso Azevedo, do MapBiomas. Assim fica mais fácil entender a imensidão da tragédia que vivemos. A informação da alta de 21,9% no desmatamento em um ano foi, além de tudo, ocultada. O mundo viu o ministro do meio ambiente falar manso na COP, como se fosse diferente do seu antecessor e mentor. O presidente voou para as arábias para mentir melhor no meio de ditadores e afirmar que a floresta está intocada.


A Amazônia sangra e morre diante de nossos olhos. E toleramos. Os indígenas têm as suas terras invadidas por garimpeiros que desmatam e contaminam as águas da maior bacia hidrográfica do mundo. E toleramos. O governo mente em nosso nome para o mundo. E toleramos. Dados são escondidos por ministros. E toleramos. Deputados e senadores legalizam o crime dos grileiros, ladrões da terra nossa. E toleramos. As Forças Armadas vão para dentro da floresta, a um alto custo, para combater o desmatamento, e ele cresce. Toleramos.

O projeto de destruição e morte de Jair Bolsonaro se espalha pelo Brasil e fulmina os seres vivos. Diante da pandemia, o presidente trabalhou para espalhar o vírus mortal. Bolsonaro debochou dos mortos e dos doentes. “Maricas”, ele disse. Conspirou contra a vida usando o aparelho do Estado. E toleramos. Políticos corruptos protegem o presidente porque estão na fila para receber o dinheiro dos nossos impostos em nacos do Orçamento através de emendas que legalizam a corrupção.

Para derrubar tanta mata assim em um ano é preciso ser um projeto de governo, ter a cobertura do Congresso em leis que estimulam isso, demolir o aparato estatal de proteção da floresta e dos indígenas, ter a ajuda de um procurador-geral. O Congresso é cúmplice. O Procurador-Geral da República é cúmplice. Os ministros são cúmplices. Os generais são cúmplices. Eles governam o Brasil para o despenhadeiro moral, ambiental, climático e humano.

As empresas pintam de verde as suas propagandas, mas elas estão neste país da morte da floresta. Se são todas sustentáveis, seriam as partes melhores do que o todo? É preciso que se levantem mesmo que seja em defesa de seus próprios negócios contra o governo que nos tira do mundo e transforma o Brasil em criminoso ambiental. Não haverá mercado para os produtos brasileiros. Uso esse argumento porque talvez funcione com o capital brasileiro. A Europa começou na última semana a se fechar para produtos que não estejam livres de desmatamento e degradação da floresta. Os Estados Unidos e a China assinaram um acordo se comprometendo a também seguir o caminho de banir produtos que venham do crime ambiental. O cerco está se fechando, senhores do capital.

As empresas colorem de preto as suas propagandas, fingindo terem em seus quadros de direção pessoas pretas. E não há uma única mulher negra na direção de qualquer empresa grande brasileira. Os homens negros são uma minoria ínfima. Enquanto isso o governo instala dentro do setor público, exatamente no órgão criado para a promoção da maioria discriminada, pessoa capaz de ofender diariamente os pretos e as pretas do Brasil. E toleramos.

A destruição da Amazônia é parte de um projeto muito maior que mata pessoas e sonhos e valores e árvores. Que exclui e regride. A letra da música “Maninha”, de Chico Buarque, tem um verso assim: “Pois hoje só dá erva daninha no chão que ele pisou.” Isso me lembra o atual governo. Meu irmão Cláudio, na ditadura, costumava me consolar cantando essa música. Em outro verso a música diz: “Se lembra do futuro que a gente combinou.” Não podemos esquecer do futuro que a gente combinou, no qual a floresta e seus povos seriam protegidos. Escrevemos isso na Constituição.