Os intolerantes de 2021 militam em conflitos do passado, expondo a má qualidade do debate em torno da bela História do Brasil. Até aí, tudo não passaria de um exercício de autoritarismo em torno da memória, mas vai-se aos fatos e se vê que, só na semana passada, a Secretaria de Cultura anunciou a criação de uma linha de crédito de R$ 600 milhões para as comemorações do Bicentenário da Independência. Desde julho, o cineasta Josias Teófilo vinha reclamando dessa inação. Afinal, sabia-se há 199 anos que, no dia 7 de setembro do ano que vem, o Brasil comemoraria seus dois séculos de existência.
Quem quiser chamar o 31 de março de 1964 de golpe, que chame. Quem quiser homenagear João Cândido, que o homenageie. A objeção dos comandantes da Marinha pode ser legítima, mas falta explicar por que se deu o nome do almirante Saldanha da Gama ao lindo navio-escola da Força. Saldanha insurgiu-se contra o governo de Floriano Peixoto, aderiu à Revolta Federalista do Rio Grande do Sul e foi degolado num combate, em 1895. Se os almirantes não tivessem se rebelado contra Floriano, talvez ele não tivesse convocado eleições. Se os marujos de João Cândido não tivessem se rebelado, a chibata não teria sido abolida em 1910.
O Brasil já viveu tempos de tolerância. Em 1860, quando Dom Pedro II viajava pelo Nordeste, os fofoqueiros do Paço contaram-lhe que o almirante Marques Lisboa, comandante do barco que o conduzia, descera na localidade de Tamandaré para visitar o túmulo de seu irmão que morrera combatendo o governo de Pedro I. Pior, queria transladar seus restos para o Rio. O imperador tratou do caso e decidiu dar-lhe o título de barão de Tamandaré. Vinte e nove anos depois, quando um golpe militar destronou e desterrou Dom Pedro II, o então marquês de Tamandaré, que ficara no Paço durante todo o dia 15 de novembro, ajudou a claudicante imperatriz a embarcar.
O que diferencia a intolerância de hoje das outras, passadas, é a laborfobia. O radical quer radicalizar, mas trabalhar que é bom, nada. O Bicentenário vem aí e, pelo que se vê, o governo nada fez. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa celebrou a data com muitas iniciativas, inclusive uma exposição internacional. Em 1972, o general Emílio Médici patrocinou uma patriotada com os restos de Dom Pedro I, mas tomou algumas iniciativas culturalmente relevantes. Agora, de Brasília, só vem silêncio.
Pena, porque o governador João Doria há tempo prepara a reinauguração, em grande estilo, do Museu do Ipiranga. Em setembro de 2022, em plena campanha eleitoral, Doria terá o que mostrar, e Brasília ficará chupando o dedo, repetindo que em 31 de março de 1964 houve uma revolução. Ela cassou o mandato de deputado do pai do governador, que havia batalhado na CPI com seu colega Rubens Paiva, que investigava a corrupção eleitoral do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, cujo guru deixou o Brasil e morreu muito tempo depois, nos Estados Unidos. Rubens Paiva foi assassinado no DOI do Rio de Janeiro.
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