sábado, 31 de julho de 2021
Um país no passado
A imagem que a Secom escolheu para homenagear o agricultor brasileiro, a silhueta de um homem carregando uma espingarda em meio a uma plantação, remete o espectador a um passado sombrio da História do campo brasileiro. Da mesma forma, a live abusiva de Jair Bolsonaro desta quinta-feira mostra o caminho que nos joga de novo nos anos 1980. Trata-se de passos calculados para levar o Brasil de volta às trevas. A ideia absurda mas visível que está por trás de cada um desses movimentos é terminar o ciclo fechando o país, o Congresso e o Supremo, suspendendo direitos políticos, calando a imprensa, baixando o porrete.
Uns acham exagero chamar o presidente do Brasil de genocida. Outros consideram abusivo compará-lo a Hitler. Para estes, algumas questões.
O agricultor armado lembra os piores momentos da guerra no campo, com a criação da União Democrática Ruralista, a UDR. Formada em 1985 como grupo de lobby para defender os interesses do setor na Constituinte, a UDR acabou se transformando no principal polo de disseminação da violência. Jagunços armados nas fazendas do interior do país se transformaram na imagem agora revivida pela Secom. Ataques contra líderes do movimento dos sem-terra, padres e sindicalistas rurais deixaram um rastro de mortes no país cujo maior símbolo foi o seringalista Chico Mendes.
A defesa tão intransigente quanto obtusa do voto impresso feita por Bolsonaro também joga luz sobre o Brasil dos coronéis do interior, que carregavam os eleitores em caminhões para votar e depois contavam seus votos, um a um. E ai de quem não votasse em quem o coronel mandou. Os mais velhos vão se lembrar das apurações das eleições que antecederam o voto eletrônico. As urnas eram abertas e as cédulas espalhadas em mesas. Cada uma delas composta por mesários, os contadores oficiais de votos, e representantes de todos os partidos. Uma algazarra, um ambiente para lá de propício para a fraude. Imagine este quadro hoje, com mais de 30 partidos ao redor das mesas de apuração.
O desembarque do Centrão no governo Bolsonaro é outro elemento que manda o país de volta para o passado. Claro que agrupamentos fisiológicos ocorrem no Parlamento brasileiro desde o Império. Evidentemente eles circulam o Poder Executivo e dele muitas vezes fazem parte sempre com o objetivo de garantir brasa sob as suas sardinhas. Mas o modelo “É dando que se recebe” explícito foi concebido no governo de Fernando Collor. Já existia sob Sarney, mas cristalizou-se no processo que acabou com o primeiro impeachment de presidente no Brasil.
As pautas de costumes, que muitos enxergam como um mal menor do extremista Jair Bolsonaro, comportam outras barbaridades que podem ajudar a tornar o Brasil um país ultrapassado. Entre elas estão a ampliação do porte de armas; o homeschooling, que permite que crianças sejam educadas em casa pelos pais; a criação do estatuto da família, proibindo a união estável de casais homoafetivos; a proibição total do aborto, mesmo para gestação de fetos anencéfalos; e o endurecimento da lei de drogas. Além, claro, da redução do rigor em casos de atentados aos direitos humanos e a aprovação do infame excludente de ilicitude.
Nem os brasileiros que ainda insistem em apoiar Bolsonaro merecem um retrocesso desse tamanho. O país, que está parado desde janeiro de 2019, corre o risco de ver sua democracia destruída ao recuar pelo menos 30 anos em direção ao passado se o presidente não for impedido. Se não agora, pelas mãos dos congressistas confortavelmente aboletados no governo, que seja em outubro do ano que vem, pelo voto livre, soberano, secreto e eletrônico.
Nazista no Planalto
Estranho tanta gente se surpreender com o fato de Jair Bolsonaro receber uma nazista alemã em seu gabinete. Eles são iguais, em todos os sentidos. Surpreendente seria se o visitante fosse um parlamentar do Partido Verde alemão.
Uns acham exagero chamar o presidente do Brasil de genocida. Outros consideram abusivo compará-lo a Hitler. Para estes, algumas questões.
O que você responderia se lhe perguntassem até onde chegaria o capitão se ele tivesse poderes ilimitados, como Hitler, Stalin, Mao ou Pol Pot? Você acha que ele não cumpriria a promessa de “matar uns 30 mil” para fazer seus acertos de conta? O homem que elogiou publicamente um dos mais notórios torturadores do Brasil trucidaria seus adversários se não tivesse que prestar contas à Justiça? Haveria risco dele usar as “suas Forças Armadas” para invadir a Venezuela e derrubar Nicolás Maduro? Pois é.
Os generais não sabem quem é o inimigo
Bolsonaro disse que o general Luiz Eduardo Ramos não é um ministro “nota 10”. Disse isso poucos dias depois de defenestrar o general para pôr em seu lugar alguém que os militares detestam: um cacique do Centrão — esse, sim, nota 10. Tempos atrás, o presidente nada fez quando Ramos foi chamado de “maria fofoca” por Ricardo Salles.
Bolsonaro disse também que o general Mourão “atrapalha um pouco”, é como aquele cunhado do qual a gente não pode se livrar, tem que aturar. Antes disso, mandou o vice-presidente — que não é seu subordinado — passar o vexame de ir a um país estrangeiro para cuidar de interesses particulares de uma igreja, expondo-o a sofrer denúncia criminal e até processo de impeachment.
Bolsonaro desautorizou e humilhou o general Pazuello várias vezes, constrangeu-o a cometer atos ilegais e até criminosos, e o sujeitou ao vexame de dizer o “ele manda, eu obedeço”. Ao chamar o general ao palanque de seu comício, o presidente o levou a infringir a lei e o regulamento militar.
Bolsonaro obrigou o comandante do Exército a acompanha-lo à ridícula inauguração de uma ponte minúscula no meio do nada, a ouvir calado um discurso golpista e o proibiu de punir Pazuello, abrindo grave precedente de quebra da disciplina militar.
Antes disso, Bolsonaro arrastou vários oficiais-generais, como Heleno, Ramos, Braga Netto, Pazuello, os almirantes Bento Albuquerque e Flávio Rocha, e o contra-almirante Barra Torres a manifestações golpistas, uma das quais em frente ao Forte Apache, QG do Exército em Brasília.
Bolsonaro atraiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, a uma armadilha, obrigando-o a sobrevoar uma das manifestações golpistas, e pressionou-o a exigir das Forças Armadas (que chama de “minhas”) declarações de fidelidade. Quando Azevedo se recusou, o presidente demitiu-o sumariamente e sem motivo, assim como fez com os comandantes das três Forças.
Bolsonaro também demitiu sumariamente, sem motivo ou explicação, os generais Santos Cruz, Rêgo Barros, Juarez Cunha, Franklimberg Freitas, João Carlos Corrêa, Marco Aurélio Vieira. Já o general Santa Rosa, constrangido por não ter condições de trabalho, preferiu se demitir. O presidente também permitiu que aliados seus promovessem linchamentos virtuais contra generais como Santos Cruz e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas.
Mas os oficiais-generais brasileiros acreditam que quem quer desmoralizar as Forças Armadas são alguns senadores que querem investigar meia dúzia de coronéis corruptos.
É curioso que militares experientes, treinados para a guerra, tenham tanta dificuldade para identificar quem é o verdadeiro inimigo.
Perigam bombardear a própria capital.
Bolsonaro disse também que o general Mourão “atrapalha um pouco”, é como aquele cunhado do qual a gente não pode se livrar, tem que aturar. Antes disso, mandou o vice-presidente — que não é seu subordinado — passar o vexame de ir a um país estrangeiro para cuidar de interesses particulares de uma igreja, expondo-o a sofrer denúncia criminal e até processo de impeachment.
Bolsonaro desautorizou e humilhou o general Pazuello várias vezes, constrangeu-o a cometer atos ilegais e até criminosos, e o sujeitou ao vexame de dizer o “ele manda, eu obedeço”. Ao chamar o general ao palanque de seu comício, o presidente o levou a infringir a lei e o regulamento militar.
Bolsonaro obrigou o comandante do Exército a acompanha-lo à ridícula inauguração de uma ponte minúscula no meio do nada, a ouvir calado um discurso golpista e o proibiu de punir Pazuello, abrindo grave precedente de quebra da disciplina militar.
Antes disso, Bolsonaro arrastou vários oficiais-generais, como Heleno, Ramos, Braga Netto, Pazuello, os almirantes Bento Albuquerque e Flávio Rocha, e o contra-almirante Barra Torres a manifestações golpistas, uma das quais em frente ao Forte Apache, QG do Exército em Brasília.
Bolsonaro atraiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, a uma armadilha, obrigando-o a sobrevoar uma das manifestações golpistas, e pressionou-o a exigir das Forças Armadas (que chama de “minhas”) declarações de fidelidade. Quando Azevedo se recusou, o presidente demitiu-o sumariamente e sem motivo, assim como fez com os comandantes das três Forças.
Bolsonaro também demitiu sumariamente, sem motivo ou explicação, os generais Santos Cruz, Rêgo Barros, Juarez Cunha, Franklimberg Freitas, João Carlos Corrêa, Marco Aurélio Vieira. Já o general Santa Rosa, constrangido por não ter condições de trabalho, preferiu se demitir. O presidente também permitiu que aliados seus promovessem linchamentos virtuais contra generais como Santos Cruz e o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Boas.
Mas os oficiais-generais brasileiros acreditam que quem quer desmoralizar as Forças Armadas são alguns senadores que querem investigar meia dúzia de coronéis corruptos.
É curioso que militares experientes, treinados para a guerra, tenham tanta dificuldade para identificar quem é o verdadeiro inimigo.
Perigam bombardear a própria capital.
Houve fraude na eleição de 2018
Depois de assistir à live de Jair Bolsonaro ontem, na qual ele apresentou como um dos indícios de fraude nas urnas eletrônicas a fala de um astrólogo que faz acupuntura em árvores, concluí que houve cambalacho na eleição de 2018.
Explico.
Para enfrentar o poste do corrupto e lavador de dinheiro, Jair Bolsonaro vendeu-se como o presidente que combateria sem trégua a corrupção, diminuiria drasticamente a criminalidade cotidiana, reduziria o tamanho do Estado, faria reformas profundas para ter menos Brasília na vida das pessoas, renunciaria ao toma lá dá cá no Congresso e lutaria para extinguir a reeleição à presidência da República.
Uma vez eleito, contudo, Jair Bolsonaro não só deixou de cumprir o que havia prometido, como fez o contrário do que os seus eleitores esperavam dele. Deu carta branca aos corruptos ao demitir Sergio Moro, aparelhar a PF e apoiar trambiques legislativos contra a Lava Jato. Não combateu a criminalidade como deveria (o número de assassinatos, por exemplo, voltou a crescer em 2020). O Estado aumentou de tamanho (ele prometeu que teria somente 15 ministérios, começou com 22 e agora tem 23) e as grandes privatizações não saíram. As reformas serão mais rasas e em menor número do que o necessário (a trabalhista poderá sofrer retrocesso, aliás, com a recriação do Ministério do Anticapitalismo), além de terem custado bilhões de reais em emendas e fundões. O toma lá dá cá está finalmente personificado na figura de Ciro Nogueira como ministro-chefe da Casa Civil. A reeleição é o único propósito de Jair Bolsonaro.
Por último, mas não menos importante, diante da maior crise sanitária em um século, ele exibiu — e ainda exibe — um comportamento de sociopata que contribuiu para boa parte das quase 550 mil mortes por Covid. Comportamento que já deveria ter levado ao seu impeachment, não contasse esse presidente infame com uma coluna de cúmplices a bom soldo na Câmara e no Senado.
Houve fraude na eleição de 2018, não resta dúvida, mas as urnas eletrônicas só a espelharam. Jair Bolsonaro é um astrólogo que fez acupuntura em árvores, antes de serrar os seus troncos.
Explico.
Para enfrentar o poste do corrupto e lavador de dinheiro, Jair Bolsonaro vendeu-se como o presidente que combateria sem trégua a corrupção, diminuiria drasticamente a criminalidade cotidiana, reduziria o tamanho do Estado, faria reformas profundas para ter menos Brasília na vida das pessoas, renunciaria ao toma lá dá cá no Congresso e lutaria para extinguir a reeleição à presidência da República.
Uma vez eleito, contudo, Jair Bolsonaro não só deixou de cumprir o que havia prometido, como fez o contrário do que os seus eleitores esperavam dele. Deu carta branca aos corruptos ao demitir Sergio Moro, aparelhar a PF e apoiar trambiques legislativos contra a Lava Jato. Não combateu a criminalidade como deveria (o número de assassinatos, por exemplo, voltou a crescer em 2020). O Estado aumentou de tamanho (ele prometeu que teria somente 15 ministérios, começou com 22 e agora tem 23) e as grandes privatizações não saíram. As reformas serão mais rasas e em menor número do que o necessário (a trabalhista poderá sofrer retrocesso, aliás, com a recriação do Ministério do Anticapitalismo), além de terem custado bilhões de reais em emendas e fundões. O toma lá dá cá está finalmente personificado na figura de Ciro Nogueira como ministro-chefe da Casa Civil. A reeleição é o único propósito de Jair Bolsonaro.
Por último, mas não menos importante, diante da maior crise sanitária em um século, ele exibiu — e ainda exibe — um comportamento de sociopata que contribuiu para boa parte das quase 550 mil mortes por Covid. Comportamento que já deveria ter levado ao seu impeachment, não contasse esse presidente infame com uma coluna de cúmplices a bom soldo na Câmara e no Senado.
Houve fraude na eleição de 2018, não resta dúvida, mas as urnas eletrônicas só a espelharam. Jair Bolsonaro é um astrólogo que fez acupuntura em árvores, antes de serrar os seus troncos.
sexta-feira, 30 de julho de 2021
Mediocridade do político
Não há político que seja mais importante do que a verdadeMark Thompson, ex-CEO que consolidou o “The New York Times” como uma das principais fontes de informação digital do mundo
O fantasma ao redor
O fantasma que ronda a democracia brasileira não é o do comunismo, como na antológica abertura do Manifesto, escrito em 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels. Com o fim da guerra fria e a morte de Luís Carlos Prestes, e dos líderes da luta armada contra o regime militar na década de 1970, como Carlos Marighella, essa narrativa se tornou completamente inverossímil, até por falta de protagonistas, sendo necessário encontrar outros pretextos: o do presidente Jair Bolsonaro é o de um fantasioso plano de fraude eleitoral, tão imaginário quanto fora o plano forjado, em 1937, pelo então capitão Olímpio Mourão Filho, para legitimar o golpe do Estado Novo, de Getúlio Vargas. General, Mourão seria um dos líderes da deposição de João Goulart pelos militares, em 1964.
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso voltou a defender o sistema eleitoral brasileiro, que “nunca foi alvo de fraude”, e denunciou o caráter golpista da narrativa de Bolsonaro, ao participar da inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre. “O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’, é um discurso de quem não aceita a democracia”, disse. Barroso também fez referência à denúncia apresentada pelo ex-candidato a presidente do PSDB Aécio Neves (MG), derrotado por Dilma Rousseff (PT) em 2014: “O candidato derrotado pediu auditoria, e o próprio partido reconheceu que não houve fraude. Nunca se documentou fraude. No dia que se documentar, a Justiça Eleitoral vai apurar imediatamente. Ninguém tem paixão por urnas, mas sim por eleições livres e limpas”.
A polêmica alimentada com Barroso é uma estratégia deliberada de Bolsonaro para desacreditar a urna eletrônica e criar um ambiente eleitoral de radicalização, favorável a que não se reconheça o resultado das urnas, caso seja derrotado. As pesquisas de opinião são desfavoráveis à reeleição do presidente por causa de seu próprio radicalismo e do mau desempenho do governo À falta de uma terceira via competitiva, o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), porém, é o verdadeiro motivo da narrativa da fraude. O antipetismo é muito forte na sociedade, principalmente para aqueles que consideram toda a esquerda comunista, a tese predominante entre os bolsonaristas.
O anticomunismo no Brasil sobreviveu ao fim da União Soviética e ao colapso dos regimes do Leste Europeu, mesmo tendo a China e o Vietnã adotado uma economia de mercado, baseada no capitalismo de Estado, e os regimes da Coreia do Note e de Cuba terem se estagnado. O preconceito contra os chineses foi explorado por Bolsonaro, mas a realidade da nossa balança comercial com o gigante asiático, que transformou o nosso agronegócio no setor mais dinâmico da economia, acabou se impondo, inclusive durante a pandemia. Restaram as ligações políticas de Lula com o regime castrista de Cuba e o bolivarianismo da Venezuela, que são até um desconforto para o candidato petista. Ambos são um anacronismo político e estão em grave crise econômica e social.
Bolsonaro se opõe a Lula como Carlos Lacerda se opusera à volta de Vargas ao poder, nas eleições de 1950: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Não repete as palavras, mas seu raciocínio é o mesmo. É aí que a politização das Forças Armadas e seu controle têm um papel fundamental. Existe uma rejeição atávica ao PT por parte dos militares, exacerbada no governo de Dilma Rousseff, muito embora Lula tenha investido muito no reaparelhamento da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — mais até do que Bolsonaro. Porém o atual governo tem mais militares em ministérios e cargos comissionados do que todos os governos do regime militar.
Um golpe que anteceda as eleições é muito improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso, porque nenhuma força política responsável atua nessa direção, exceto os grupos de extrema direita que apoiam Bolsonaro, uma militância armada. Mas a hipótese de uma tentativa de golpe caso Lula seja eleito não deve ser desconsiderada. Bolsonaro trabalha para isso, apesar de não ter apoio suficiente nas Forças Armadas.
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso voltou a defender o sistema eleitoral brasileiro, que “nunca foi alvo de fraude”, e denunciou o caráter golpista da narrativa de Bolsonaro, ao participar da inauguração da nova sede do Tribunal Regional Eleitoral do Acre. “O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’, é um discurso de quem não aceita a democracia”, disse. Barroso também fez referência à denúncia apresentada pelo ex-candidato a presidente do PSDB Aécio Neves (MG), derrotado por Dilma Rousseff (PT) em 2014: “O candidato derrotado pediu auditoria, e o próprio partido reconheceu que não houve fraude. Nunca se documentou fraude. No dia que se documentar, a Justiça Eleitoral vai apurar imediatamente. Ninguém tem paixão por urnas, mas sim por eleições livres e limpas”.
A polêmica alimentada com Barroso é uma estratégia deliberada de Bolsonaro para desacreditar a urna eletrônica e criar um ambiente eleitoral de radicalização, favorável a que não se reconheça o resultado das urnas, caso seja derrotado. As pesquisas de opinião são desfavoráveis à reeleição do presidente por causa de seu próprio radicalismo e do mau desempenho do governo À falta de uma terceira via competitiva, o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), porém, é o verdadeiro motivo da narrativa da fraude. O antipetismo é muito forte na sociedade, principalmente para aqueles que consideram toda a esquerda comunista, a tese predominante entre os bolsonaristas.
O anticomunismo no Brasil sobreviveu ao fim da União Soviética e ao colapso dos regimes do Leste Europeu, mesmo tendo a China e o Vietnã adotado uma economia de mercado, baseada no capitalismo de Estado, e os regimes da Coreia do Note e de Cuba terem se estagnado. O preconceito contra os chineses foi explorado por Bolsonaro, mas a realidade da nossa balança comercial com o gigante asiático, que transformou o nosso agronegócio no setor mais dinâmico da economia, acabou se impondo, inclusive durante a pandemia. Restaram as ligações políticas de Lula com o regime castrista de Cuba e o bolivarianismo da Venezuela, que são até um desconforto para o candidato petista. Ambos são um anacronismo político e estão em grave crise econômica e social.
Bolsonaro se opõe a Lula como Carlos Lacerda se opusera à volta de Vargas ao poder, nas eleições de 1950: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Não repete as palavras, mas seu raciocínio é o mesmo. É aí que a politização das Forças Armadas e seu controle têm um papel fundamental. Existe uma rejeição atávica ao PT por parte dos militares, exacerbada no governo de Dilma Rousseff, muito embora Lula tenha investido muito no reaparelhamento da Marinha, do Exército e da Aeronáutica — mais até do que Bolsonaro. Porém o atual governo tem mais militares em ministérios e cargos comissionados do que todos os governos do regime militar.
Um golpe que anteceda as eleições é muito improvável. Exigiria um cenário de radicalização política extrema e grande conturbação social, o que não é o caso, porque nenhuma força política responsável atua nessa direção, exceto os grupos de extrema direita que apoiam Bolsonaro, uma militância armada. Mas a hipótese de uma tentativa de golpe caso Lula seja eleito não deve ser desconsiderada. Bolsonaro trabalha para isso, apesar de não ter apoio suficiente nas Forças Armadas.
Vai ter golpe?
“O que você acha? Vai ter golpe ou não?”. Esta é a pergunta recorrente, do sul ao norte do Brasil. Diferentes grupos têm marcado reuniões privadas pela Internet para debater o assunto. Encontros virtuais com a família, a versão pandêmica do famoso almoço de domingo, desde a eleição de 2014 mais perigoso do que um vidro inteiro de pimenta malagueta, foi tomado pelo tema. Eu mesma ouço essa pergunta várias vezes por dia. Há pessoas respondendo a convites internacionais com um texto padrão: “Atualmente, a média de mortes por covid-19 no Brasil é de mais de 1000 por dia, a variante Delta está se espalhando pelo país, a vacinação é lenta e Jair Bolsonaro pode dar um golpe a qualquer momento. Assim, torna-se difícil confirmar minha presença com tanta antecedência. O mais prudente seria confirmar o mais perto possível da data….”. Quando se torna corriqueiro falar sobre a possibilidade de um golpe de Estado e planejar os dias já incluindo essa “variável” é porque o golpe já está acontecendo —ou, em grande medida, já aconteceu. O golpe já está.
Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.
Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.
No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.
No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.
Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?
É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.
O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.
É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.
A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.
Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.
Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.
Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.
As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.
As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.
A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.
Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.
Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.
Já sabemos como morrem as democracias, é assunto exaustivamente esmiuçado nos últimos anos. Mas precisamos compreender melhor como nascem os golpes. A morte de uma e o nascimento do outro são parte da mesma gestação. Os golpes não acontecem mais como no século 20, ou não acontecem apenas como no século 20. Tenho trabalhado com o conceito de crise da palavra para analisar as duas primeiras décadas do século 21 no Brasil. Me parece claro que o estupro da linguagem é parte fundamental do método. Não apenas um capítulo do manual, mas uma estratégia que o atravessa inteiro.
Escrevo há mais de um ano que o golpe de Bolsonaro está em curso. O golpe de fundo começou antes de Bolsonaro assumir o poder no Brasil e se realiza e aprofunda a cada dia de Governo. Se o caso brasileiro é o mais explícito, a formulação atual dos golpes de Estado pode ser percebida em diferentes partes do globo, de Donald Trump, nos Estados Unidos, a Viktor Orbán, na Hungria. É importante perceber isso porque, se não o fizermos, não teremos como barrá-los.
No caso dos Estados Unidos, é verdade que, no último momento, as instituições, muito mais sólidas do que em qualquer outro país das Américas, mostraram-se capazes de impedir a tentativa de golpe de Trump. Mas também é verdade que, mesmo com Joe Biden no poder, o trumpismo cumpriu o objetivo de produzir um impacto profundo sobre a estrutura do país, impacto que segue ativo. Conseguiu, principalmente, produzir uma imagem, corrompendo a linguagem da democracia americana para sempre ao realizar o impensável, na cena da invasão do Capitólio. A porta agora está aberta.
No Brasil, o esgarçamento da linguagem é muito anterior à eleição de 2018, aquela que formalmente colocou a extrema direita no poder. É possível localizar pelo menos três momentos decisivos para o impeachment de Dilma Rousseff (PT), apontado por grande parte da esquerda como um golpe “branco” ou “não clássico”. Quando a presidenta é chamada de “vaca” e de “puta” em estádios de futebol, na Copa de 2014; quando, em 2015, um adesivo com sua imagem de pernas abertas se populariza nos tanques de combustível dos carros, de forma que a mangueira a penetre, simulando um estupro; e, finalmente, em 2016, durante a sessão que aprova a abertura do impeachment, em que Jair Bolsonaro, então deputado, dedica seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”.
Ao evocar a tortura da presidenta durante a ditadura civil-militar (1964-1985), Bolsonaro a tortura mais uma vez, cometendo o crime (artigo 187 do Código Penal) de apologia à tortura, e conecta explicitamente os dois momentos históricos, o da ditadura e o do impeachment, expondo a ruptura democrática que os une. “Puta” e “vaca” na boca da massa espumando ódio (e também de algumas jornalistas), estuprada na traseira dos carros da classe média, torturada mais uma vez pelo elogio à sua tortura feito por Bolsonaro em pleno parlamento. Depois disso, qual seria a dificuldade de arrancar Rousseff do poder? Se tudo isso já tinha sido aceito como “normal”, qual seria o empecilho para aceitar o impeachment?
É isso que chamo de estupro, corrosão ou esgarçamento da linguagem. A preparação do golpe é primeiro um investimento nas subjetividades. Pela capacidade de viralização dos discursos nas redes sociais, assim como pela velocidade na produção e reprodução de imagens na Internet, a sociedade vai “aceitando” o inaceitável. Em seguida, passa a assimilá-lo —e finalmente a normalizá-lo e até mesmo a reproduzi-lo. Aquilo que até então era considerado regra básica de civilidade, fundamental para permitir a convivência, é convertido em “politicamente correto” —e o politicamente correto passa a ser maliciosamente tratado como “censura” ou “cerceamento da liberdade”. Quando o golpe formalmente se efetiva, o inaceitável já está aceito e internalizado.
O mesmo fenômeno permitiu a Bolsonaro executar seu plano de disseminação do coronavírus, espalhando mentiras para atacar primeiro as máscaras e o isolamento físico, depois as vacinas, resultando (até agora) em mais de 550.000 mortos. Afirmando publicamente, como figura pública máxima, o inconcebível, Bolsonaro tornou corriqueiro milhares de pessoas desaparecem da vida da família e do país a cada dia. Hoje, a média atual de mil mortes por dia, depois de já ter ultrapassado 4.000, é motivo de comemoração. Pelo mesmo esgarçamento da linguagem, Bolsonaro tornou possível a volta dos militares ao poder em um país ainda traumatizado pelos torturadores nas ruas, assim como a rearticulação da direita que sustentou a ditadura militar no passado. Ao romper os limites primeiro no discurso, ele abre espaço e prepara o terreno para o ato.
É também pela corrosão da linguagem que, aperfeiçoando o roteiro de Trump, Bolsonaro se prepara para 2022, atacando o sistema eleitoral para contestar a eleição em que poderá ser derrotado. Quando a eleição chegar, a repetição do discurso de fraude já terá corrompido a realidade. Nessa operação sobre a subjetividade coletiva, a fraude acontece antes, fazendo com que o que efetivamente acontecerá na eleição, o voto, não importe. É assim que o direito constitucional de eleger o presidente do país vai sendo roubado de mais de 200 milhões de brasileiros sem nenhum tanque na rua. A narrativa da fraude se infiltra e se realiza nas mentes antes de qualquer ato, descolando-se dos fatos. O que importa é a crença na fraude. Que ela não se comprove porque não aconteceu não faz a menor diferença. “Acreditar se tornou um verbo muito mais importante do que “provar” —e essa distorção é apresentada como virtude. O principal papel de figuras como Bolsonaro e outros, e antes deles Trump, é pronunciar o impronunciável, abrindo um caminho subjetivo para a concretização do assalto ao sistema democrático.
A corrosão da linguagem culmina com a corrosão da própria verdade. Este é o ataque final ao “comum”. Já vimos outros bens comuns essenciais para a vida da nossa e de outras espécies —como ar puro e água potável, por exemplo— serem privatizados, mercantilizados e reembalados para a minoria que pode pagar por eles. A estabilidade do clima, outro bem comum, foi destruída. Os novos velhos golpistas fizeram —e seguem fazendo— o mesmo com o conceito compartilhado de verdade. Assim como acontece com os teóricos da conspiração nos Estados Unidos e em suas versões brasileiras, a autoverdade —ou o poder auto-ortorgado de escolher a verdade que mais convém ao indivíduo ou ao grupo— se torna mais “real” do que os fatos. De certo modo, é um retorno a um tipo de teocracia. No caso, a “verdade” é corrompida e controlada pelos sacerdotes deste novo tipo de seita.
Obviamente, a verdade se afirma e acaba por se impor no plano da realidade, como a emergência climática acabou de demonstrar, colocando países como a Alemanha debaixo d’água e deixando o Canadá mais quente do que o deserto do Saara. Mas, enquanto isso, charlatões como Bolsonaro e outros provocam uma destruição acelerada do comum que, em grande parte, é irreversível, comprometendo não só o futuro das novas gerações, mas também o presente.
Bolsonaro é protagonista, sim, mas é também instrumento. Conhecido como uma metralhadora giratória de asneiras violentas e violências boçais durante seus sete mandatos no parlamento, seu “dom” foi instrumentalizado. A destruição do tecido social por uma operação na linguagem aposta nas chamadas “guerras culturais”. É na desumanização dos negros, das mulheres, dos LGBTQIA+ que começa o ataque. É na chamada “pauta dos costumes” que a violência vai sendo formulada como se fosse seu oposto. Quando Bolsonaro afirma preferir um filho morto em acidente de trânsito a um filho gay, por exemplo, ele coloca a abominação na homossexualidade, encobrindo a abominação que é sua afirmação. O inaceitável é ser gay —e não defender a morte de gays. O inaceitável é o aborto de um embrião —e não a morte de uma mulher com história e afetos por complicações em procedimentos sem cuidado. E assim por diante. A cada afirmação de extrema violência, Bolsonaro foi destruindo o conceito de inviolabilidade da vida e normalizando a destruição dos corpos. A principal função de figuras como Bolsonaro é tornar tudo possível —primeiro na linguagem, em seguida no ato.
Neste momento, Bolsonaro já cumpriu sua missão maior, o que pode eventualmente torná-lo descartável. Ele claramente vai se tornando um incômodo para os grupos que agora mais uma vez se rearticulam e que, com ele, conquistaram avanços inimagináveis até então, como os próprios militares, os representantes e lobistas do agronegócio, os evangélicos de mercado e o campo da direita. Assim como Fabrício Queiroz se tornou descartável e um incômodo para a quadrilha familiar dos Bolsonaro, ele mesmo se torna perigoso para os articuladores do projeto maior, que o reconhecem como uma peça importante do jogo, mas jamais como o dono do tabuleiro. Muito vai depender da capacidade de Bolsonaro se adequar, uma capacidade que nele parece inexistente. Suspeito que é esta parte de seu próprio fenômeno que Bolsonaro não compreende. Ao miliciarizar o Governo central, acreditou que estava no comando absoluto.
As democracias morrem por muitas razões, na minha opinião a mais importante delas é o fato de serem seletivas, em diferentes graus: só funcionam para determinada parcela da sociedade, deixando outras de fora. As democracias morreriam então pela corrosão provocada pela sua própria ausência. Ou morreriam pelo tanto de arbitrariedade com que são capazes de conviver. No Brasil, o nível de exceção que a minoria dominante da sociedade é capaz de tolerar é uma enormidade. Desde que as arbitrariedades sejam contra os pretos e contra os indígenas, contra as mulheres e contra os LGBTQIA+ está tudo “dentro da normalidade”. A possibilidade de as forças de segurança do Estado derrubarem portas, invadirem casas e executarem suspeitos e não suspeitos nas periferias e favelas urbanas durante todo o período democrático é, sem dúvida, o exemplo mais evidente do caso brasileiro.
As ditaduras nascem em diferentes tempos e espaços. Assim como as parcelas da sociedade beneficiadas pela democracia convenceram-se durante décadas de que viviam numa democracia, mesmo sabendo que grande parte da população era submetida a uma rotina diária de arbitrariedades, estas mesmas parcelas têm hoje dificuldade para enxergar que a ditadura já está consolidada em várias partes do Brasil, onde pessoas precisam abandonar suas casas para não morrer e as forças de segurança e o judiciário estão a serviço dos violadores. Hoje, nas áreas “nobres” das capitais e cidades, os ataques autoritários usam o judiciário e a Polícia Federal para se realizar, como nas recentes ofensivas a colunistas da imprensa tradicional, a mais recente delas contra Conrado Hübner Mendes, colunista da Folha de S. Paulo e professor da prestigiosa faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Há outras partes do Brasil em que os ataques são a fogo e bala, como na floresta amazônica, onde casas de indígenas como Maria Leusa Munduruku são queimadas e lideranças camponesas como Erasmo Alves Theofilo têm a cabeça a prêmio. Na floresta e nas periferias urbanas, corpos humanos tombam sem provocar alarde e as execuções pelas forças policiais explodem.
A percepção de golpe se alastra quando os que não costumam ser atacados passam a ser atacados, no Brasil a minoria branca e mais rica. É uma percepção legítima, porque é ela que mostra que o tecido social se rasgou em partes consideradas até então intocadas e intocáveis. A quebra destes limites sinaliza que outras forças se moveram, ameaçando o precário equilíbrio mesmo dos mais privilegiados. Em 2017, ao testemunhar a execução de um morador de rua pela polícia no bairro nobre de Pinheiros, a classe média se mobilizou para denunciar e protestar, celebrando uma missa na simbólica Catedral da Sé. Era ainda o Brasil de Michel Temer (MDB), mas a ditadura foi largamente lembrada. Ali, o “limite” estabelecido pela lei não escrita de que o Estado pode executar pessoas, mas apenas em bairros de periferia, havia sido rompido. A quebra demandava reação, pelas melhores razões e também para impedir que a violência policial rompesse outro limite e o próximo a tombar fosse alguém que habitasse não as ruas, mas os apartamentos e casas com um dos metros quadrados mais caros da cidade.
Ao se infiltrar no imaginário coletivo, o debate do “será que vai ter golpe” cumpre ainda outra função estratégica: a de interditar e ocupar o espaço do debate urgente do impeachment de Bolsonaro. Sobre isso, há um flagrante assalto à linguagem, ao normalizar o fato de Arthur Lira (Progressistas), o corrupto presidente da Câmara de Deputados, ter seu traseiro esparramado sobre mais de 120 pedidos de impeachment ou sobre o superpedido de impeachment. Pela repetição, a crítica legítima a Lira vai se esvaziando e passa a se assimilar que assim é: a mobilização da sociedade pela democracia, traduzida em pedidos de impeachment mais do que legítimos, é pervertida e usada como instrumento de chantagem do Centrão para tomar os cofres públicos. Sempre que aceitamos o abuso de poder e de função como inevitável, acostumando-nos às arbitrariedades, o golpe avança.
Hoje, com Bolsonaro, vários limites foram ultrapassados. Limites que, mesmo para um país de marcos civilizatórios tão elásticos como o Brasil, até bem pouco tempo atrás seria impensável tê-los rompido. Quando o assunto principal é se haverá golpe ou não, tema abordado com a mesma naturalidade do aumento do preço do feijão, o último jogo do Corinthians ou a mais recente série da Netflix, o que resta de democracia? O golpe já pedalou a linguagem, infiltrou-se no cotidiano e está ativo. O golpe já foi dado. A dúvida é só até onde ele será capaz de chegar.
Bolsonaro já nem finge que trabalha
O presidente Jair Bolsonaro desistiu até de tentar fingir que governa, que trabalha. Daqui às eleições, será alguém voltado apenas à tentativa cada vez mais desesperada de se reeleger. A live desta quinta-feira pode ser considerada a peça inaugural de um vale-tudo cada vez mais perigoso para permanecer no poder.
Bolsonaro montou uma “surperprodução” no Palácio da Alvorada. Fez um rapapé para aumentar a audiência da transmissão que faz todas as quintas-feiras abrindo, via Secom, credenciamento para a imprensa.
Apresentaria, finalmente, as “provas” da fraude da eleição de 2014, algo que vem apontando há anos de forma leviana, com o mentiroso “roubo” de sua própria eleição em primeiro turno.
Nos primeiros minutos, fraudes viraram “indícios”. E Bolsonaro enfileirou ataques: ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral, ao ministro Luís Roberto Barroso, aos senadores da CPI.
Com o rosto transfigurado pelo pânico diante da perda de popularidade e pela evidência de que a classe política não embarcará em seu delírio, Bolsonaro, sem conexão nenhuma, misturou armamento da população, Cuba, Argentina, PT, Lula, Tarcísio Freitas e outras tantas platitudes para se fazer de vítima de um complô de quem não quer eleições democráticas.
Ficou flagrante o uso da máquina do Executivo em favor de uma obsessão autoritária: foi produzida às pressas uma logomarca com um “garoto-propaganda” do tal “voto auditável”.
Na melhor técnica de um mentiroso contumaz e descompromissado com a democracia, Bolsonaro enfileirou perguntas conspiratórias para as quais, é claro, não apresentou respostas. Não era esse o objetivo: era plantar alguma ponta de dúvida na cabeça dos eleitores.
O que Bolsonaro fez foi um longo e premeditadamente discurso passivo-agressivo, com a audiência turbinada pelo uso ostensivo da máquina pública. O ministro da Justiça, Anderson Torres, fez parte da patacoada, ao anunciar previamente sua presença na live.<
A gravidade do uso, numa cruzada contra a Justiça e contra as eleições, do ministério que tem sob seu guarda-chuva a Polícia Federal é comparável à da captura das Forças Armadas nessa empreitada. E as duas coisas estão em curso numa velocidade cada vez maior, sem que Bolsonaro seja contido.
Dedicado que está a fazer arruaça com a democracia, Bolsonaro já nem finge que coordena o governo no auge de uma pandemia em que já caminhamos para 600 mil mortos, ainda mergulhados numa crise social e econômica.
Seus comandos de governo, de agora a 2022, serão apenas para projetos que permitam melhorar suas chances eleitorais, como o Bolsa Família turbinado.
Sua agenda já minguada de compromissos oficiais será recheada apenas de entrevistas a rádios de todo o país, conversas inconsequentes com apoiadores na frente do Alvorada e esses ataques à democracia, cada vez mais desavergonhados.
Ontem ele falou em eleições vencidas “na mão grande”, chamou eleitores de idiotas, insuflou movimentos contra Luís Barroso, repetiu que o STF conferiu a governos e prefeituras poderes semelhantes ao do estado de sítio. E daí? E daí nada, fica por isso mesmo, o dito pelo não dito.
Bolsonaro falou ininterruptamente por mais de 40 minutos, sem nem esboçar a tal prova de fraude. Mas semeando a todo tempo teorias da conspiração sobre tudo e todos.
Convocou, ainda, um ato em 1º de agosto a favor do tal voto impresso. Bolsonaro deturpa o sentido de palavras como democracia e liberdade e as transforma em armas no sentido oposto.
Que faça isso usando um palácio oficial e recursos públicos, com ministros de Estado como coadjuvantes canhestros, é mostra de que o arcabouço institucional já está gravemente conspurcado pelo veneno que ele inocula dia a dia.
Bolsonaro montou uma “surperprodução” no Palácio da Alvorada. Fez um rapapé para aumentar a audiência da transmissão que faz todas as quintas-feiras abrindo, via Secom, credenciamento para a imprensa.
Apresentaria, finalmente, as “provas” da fraude da eleição de 2014, algo que vem apontando há anos de forma leviana, com o mentiroso “roubo” de sua própria eleição em primeiro turno.
Nos primeiros minutos, fraudes viraram “indícios”. E Bolsonaro enfileirou ataques: ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral, ao ministro Luís Roberto Barroso, aos senadores da CPI.
Com o rosto transfigurado pelo pânico diante da perda de popularidade e pela evidência de que a classe política não embarcará em seu delírio, Bolsonaro, sem conexão nenhuma, misturou armamento da população, Cuba, Argentina, PT, Lula, Tarcísio Freitas e outras tantas platitudes para se fazer de vítima de um complô de quem não quer eleições democráticas.
Ficou flagrante o uso da máquina do Executivo em favor de uma obsessão autoritária: foi produzida às pressas uma logomarca com um “garoto-propaganda” do tal “voto auditável”.
Na melhor técnica de um mentiroso contumaz e descompromissado com a democracia, Bolsonaro enfileirou perguntas conspiratórias para as quais, é claro, não apresentou respostas. Não era esse o objetivo: era plantar alguma ponta de dúvida na cabeça dos eleitores.
O que Bolsonaro fez foi um longo e premeditadamente discurso passivo-agressivo, com a audiência turbinada pelo uso ostensivo da máquina pública. O ministro da Justiça, Anderson Torres, fez parte da patacoada, ao anunciar previamente sua presença na live.<
A gravidade do uso, numa cruzada contra a Justiça e contra as eleições, do ministério que tem sob seu guarda-chuva a Polícia Federal é comparável à da captura das Forças Armadas nessa empreitada. E as duas coisas estão em curso numa velocidade cada vez maior, sem que Bolsonaro seja contido.
Dedicado que está a fazer arruaça com a democracia, Bolsonaro já nem finge que coordena o governo no auge de uma pandemia em que já caminhamos para 600 mil mortos, ainda mergulhados numa crise social e econômica.
Seus comandos de governo, de agora a 2022, serão apenas para projetos que permitam melhorar suas chances eleitorais, como o Bolsa Família turbinado.
Sua agenda já minguada de compromissos oficiais será recheada apenas de entrevistas a rádios de todo o país, conversas inconsequentes com apoiadores na frente do Alvorada e esses ataques à democracia, cada vez mais desavergonhados.
Ontem ele falou em eleições vencidas “na mão grande”, chamou eleitores de idiotas, insuflou movimentos contra Luís Barroso, repetiu que o STF conferiu a governos e prefeituras poderes semelhantes ao do estado de sítio. E daí? E daí nada, fica por isso mesmo, o dito pelo não dito.
Bolsonaro falou ininterruptamente por mais de 40 minutos, sem nem esboçar a tal prova de fraude. Mas semeando a todo tempo teorias da conspiração sobre tudo e todos.
Convocou, ainda, um ato em 1º de agosto a favor do tal voto impresso. Bolsonaro deturpa o sentido de palavras como democracia e liberdade e as transforma em armas no sentido oposto.
Que faça isso usando um palácio oficial e recursos públicos, com ministros de Estado como coadjuvantes canhestros, é mostra de que o arcabouço institucional já está gravemente conspurcado pelo veneno que ele inocula dia a dia.
quinta-feira, 29 de julho de 2021
A habitação não é um mercado; é um direito!
A situação da habitação nas principais áreas urbanas do País não é menos do que dramática!
Custos crescentes para a compra ou o arrendamento e a expulsão especulativa da população nos principais centros urbanos, a par de uma frequente precariedade ou mesmo clandestinidade (ou informalidade, se quiserem) dos vínculos contratuais, agravaram brutalmente a dificuldade no acesso à habitação. Na Grande Lisboa, o mercado de construção de novas casas praticamente não gera habitação a preços acessíveis às classes intermédias; só se constrói gama alta.
Os resultados estão aí. Regresso em força da construção clandestina (e do florescente negócio ilegal associado); sobrelotação das habitações; cada vez mais famílias, imigrantes, idosos sujeitos a soluções precárias, a morar em partes de casa e a acentuada exploração.
A procura de habitação pública junto dos municípios e organismos do Estado deixou de ter origem predominante no estrato populacional elegível para a chamada habitação social e passou a ter dezenas de milhares de famílias que, até aqui, garantiam pelos seus meios a habitação e agora não conseguem.
A habitação deixou há muito de ser tratada, pelas políticas públicas, como um direito cuja concretização, como a saúde ou a educação, também tem de ter uma resposta do Estado. Foi remetida para a condição de ativo de mercado para bancos, fundos, investidores ou promotores imobiliários. É sintomático que depois do PER, na década de 1990, o único investimento financeiro relevante do Estado na habitação tenha sido o crédito bonificado.
Três décadas depois, anunciam-se verbas robustas do Plano de Recuperação e Resiliência para esta área. É positivo, mas já não vai chegar para as necessidades.
A política pública de habitação não pode estar refém, para que haja investimento, da existência de verbas europeias. Ela tem de ter, no Orçamento do Estado, as verbas adequadas às exigências da sociedade. Tem de incluir a regulação da especulação imobiliária, que, além de negar habitação a quem dela precisa, vai descaracterizando muitos territórios urbanos. Tem de alterar de imediato a Lei dos Despejos (também conhecida como do arrendamento), que continua a fazer vítimas nas principais cidades. E regulamentar devidamente a nova Lei de Bases.
A política de habitação de que precisamos no País exige mais habitação pública, muito para além da resposta à habitação social (que também precisamos de aumentar). Tem de garantir que as classes intermédias, os idosos, as pessoas com deficiência ou os jovens tenham acesso à habitação. Enquanto, em Portugal, apenas 2% do parque habitacional é público, noutros países europeus esse valor chega a 30 por cento. Mais habitação pública terá, além do mais, um importante efeito regulador no mercado, tornando-o também mais acessível.
A política de habitação tem de cuidar da qualidade das casas. O conforto térmico é, por exemplo, uma questão essencial num tempo em que se prenunciam mais frequentes vagas de calor. A habitação pública não pode continuar a ser de medíocre qualidade.
A política de habitação não pode estar entregue quase só aos municípios, porque a desresponsabilização da administração central reduz a resposta à emergência que se vive.
A habitação é mais do que a casa. É o seu entorno, os espaços públicos, equipamentos e acessibilidades que o servem. Isso também é política de habitação.
Se queremos garantir verdadeiramente o direito à habitação, ela não pode continuar a ser predominantemente um negócio. Este direito tem de ser assegurado por políticas públicas com alto grau de prioridade, incluindo orçamental. Tem de ser não só habitação social, mas habitação para todos. Tem de ser uma casa, mas também um ambiente urbano saudável. Tem de travar a especulação e os despejos arbitrários.
A política de habitação não pode ser um fogacho a cada 30 anos. Tem de ser constante! Porque a habitação é um dos mais básicos direitos. E o nosso povo está longe de ter esse direito assegurado.
Custos crescentes para a compra ou o arrendamento e a expulsão especulativa da população nos principais centros urbanos, a par de uma frequente precariedade ou mesmo clandestinidade (ou informalidade, se quiserem) dos vínculos contratuais, agravaram brutalmente a dificuldade no acesso à habitação. Na Grande Lisboa, o mercado de construção de novas casas praticamente não gera habitação a preços acessíveis às classes intermédias; só se constrói gama alta.
Os resultados estão aí. Regresso em força da construção clandestina (e do florescente negócio ilegal associado); sobrelotação das habitações; cada vez mais famílias, imigrantes, idosos sujeitos a soluções precárias, a morar em partes de casa e a acentuada exploração.
A procura de habitação pública junto dos municípios e organismos do Estado deixou de ter origem predominante no estrato populacional elegível para a chamada habitação social e passou a ter dezenas de milhares de famílias que, até aqui, garantiam pelos seus meios a habitação e agora não conseguem.
A habitação deixou há muito de ser tratada, pelas políticas públicas, como um direito cuja concretização, como a saúde ou a educação, também tem de ter uma resposta do Estado. Foi remetida para a condição de ativo de mercado para bancos, fundos, investidores ou promotores imobiliários. É sintomático que depois do PER, na década de 1990, o único investimento financeiro relevante do Estado na habitação tenha sido o crédito bonificado.
Três décadas depois, anunciam-se verbas robustas do Plano de Recuperação e Resiliência para esta área. É positivo, mas já não vai chegar para as necessidades.
A política pública de habitação não pode estar refém, para que haja investimento, da existência de verbas europeias. Ela tem de ter, no Orçamento do Estado, as verbas adequadas às exigências da sociedade. Tem de incluir a regulação da especulação imobiliária, que, além de negar habitação a quem dela precisa, vai descaracterizando muitos territórios urbanos. Tem de alterar de imediato a Lei dos Despejos (também conhecida como do arrendamento), que continua a fazer vítimas nas principais cidades. E regulamentar devidamente a nova Lei de Bases.
A política de habitação de que precisamos no País exige mais habitação pública, muito para além da resposta à habitação social (que também precisamos de aumentar). Tem de garantir que as classes intermédias, os idosos, as pessoas com deficiência ou os jovens tenham acesso à habitação. Enquanto, em Portugal, apenas 2% do parque habitacional é público, noutros países europeus esse valor chega a 30 por cento. Mais habitação pública terá, além do mais, um importante efeito regulador no mercado, tornando-o também mais acessível.
A política de habitação tem de cuidar da qualidade das casas. O conforto térmico é, por exemplo, uma questão essencial num tempo em que se prenunciam mais frequentes vagas de calor. A habitação pública não pode continuar a ser de medíocre qualidade.
A política de habitação não pode estar entregue quase só aos municípios, porque a desresponsabilização da administração central reduz a resposta à emergência que se vive.
A habitação é mais do que a casa. É o seu entorno, os espaços públicos, equipamentos e acessibilidades que o servem. Isso também é política de habitação.
Se queremos garantir verdadeiramente o direito à habitação, ela não pode continuar a ser predominantemente um negócio. Este direito tem de ser assegurado por políticas públicas com alto grau de prioridade, incluindo orçamental. Tem de ser não só habitação social, mas habitação para todos. Tem de ser uma casa, mas também um ambiente urbano saudável. Tem de travar a especulação e os despejos arbitrários.
A política de habitação não pode ser um fogacho a cada 30 anos. Tem de ser constante! Porque a habitação é um dos mais básicos direitos. E o nosso povo está longe de ter esse direito assegurado.
O bazar de Bolsonaro
O presidente Jair Bolsonaro pode ser ignorante em muitas coisas, mas sabe fazer contas à moda dele. Na aritmética bolsonarista, dois mais dois sempre são mais que quatro, conforme o desejo de sua freguesia no Congresso – de cuja fidelidade o presidente depende para sobreviver no cargo.
Foi com base na matemática do fisiologismo que Bolsonaro calculou em R$ 4 bilhões o valor do fundo eleitoral, que distribui recursos públicos para financiar campanhas. É mais ou menos o dobro do que foi destinado para a eleição municipal de 2020 – e um pouco inferior ao que foi bloqueado e cortado no orçamento da Educação deste ano.
Bolsonaro não chegou a esse valor sozinho, é claro. Teve ajuda dos líderes políticos e de partidos que cobram cada vez mais caro para participar da base aliada e defender seu impopular governo.
Como se sabe, o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022 encaminhado pelo governo ao Congresso, e aprovado no dia 15 passado, estabelece que o valor do fundo eleitoral seja equivalente a 25% da soma dos orçamentos da Justiça Eleitoral de 2021 e 2022. Técnicos da Câmara calcularam que isso dá em torno de R$ 5,7 bilhões, quase o triplo do fundo eleitoral de 2020.
Os governistas poderiam ter impedido que essa aberração prosperasse, mas escolheram nada fazer. Assim que a aprovação do aumento do fundo eleitoral tornou-se pública, causando justificada indignação, o presidente Bolsonaro, como já se tornou praxe, tratou de tentar se livrar da responsabilidade. Acusou o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, que presidiu a sessão que votou a LDO, de impedir que o aumento do fundo fosse derrubado. O exame do que aconteceu naquela sessão, contudo, mostra que o deputado Ramos apenas seguiu o regimento, enquanto os governistas colaboravam decisivamente para a aprovação.
Para efeito da encenação dos bolsonaristas e de seus associados, nada disso importa. Bolsonaro prometeu vetar o aumento do fundo: “Seis bilhões para fundo eleitoral? Pelo amor de Deus!”, disse o presidente, com fingida indignação.
Passadas duas semanas, Bolsonaro trocou a indignação pela resignação – esta, tão falsa quanto aquela. Informou a seus aduladores no cercadinho do Alvorada que não vetará os R$ 5,7 bilhões, mas apenas “o excesso do que a lei garante”. Segundo Bolsonaro, “a lei (prevê) quase R$ 4 bilhões” e “o extra de R$ 2 bilhões vai ser vetado”. O presidente disse que não pode “vetar o que está na lei”, porque, se o fizer, estará “incurso em crime de responsabilidade”.
Em entrevista à Rádio Itatiaia, Bolsonaro voltou a falar na tal “lei”, provavelmente referindo-se à Lei 13.487, que instituiu o fundo eleitoral. “Diz na lei que a cada eleição o valor tem que ser corrigido levando-se em conta a inflação. Então, eu tenho que cumprir a lei”, disse o presidente. Não há nada disso na lei.
Supondo-se que houvesse obrigação legal de reajustar o fundo eleitoral pela inflação, contudo, o valor jamais chegaria aos tais R$ 4 bilhões anunciados pelo presidente. Se aplicados os índices inflacionários previstos na LDO encaminhada pelo seu próprio governo, e não o peculiar cálculo do presidente, o fundo teria de ser reajustado para R$ 2,197 bilhões.
Portanto, nem as vírgulas do discurso do presidente são verdadeiras, como já não eram verdadeiras no palavrório de Bolsonaro ao informar em 2019 que também não poderia vetar o aumento do fundo eleitoral naquela ocasião porque, ora vejam, corria o risco de sofrer impeachment por crime de responsabilidade.
É evidente, conforme declarou o deputado Marcelo Ramos, que Bolsonaro faz apenas “jogo de cena”, posando de presidente zeloso com o dinheiro público enquanto avaliza, na prática, a duplicação do fundo eleitoral, para alegria dos congressistas. Não se sabe exatamente que instrumento legal o presidente usará para aprovar o fundo eleitoral de R$ 4 bilhões, mas criatividade é o que não falta entre os oportunistas.
Em se tratando de um fundo eleitoral que nem deveria existir, qualquer centavo é imoral. Mas os tempos não são exatamente virtuosos. No bazar presidencial, está tudo a preço de ocasião.
Foi com base na matemática do fisiologismo que Bolsonaro calculou em R$ 4 bilhões o valor do fundo eleitoral, que distribui recursos públicos para financiar campanhas. É mais ou menos o dobro do que foi destinado para a eleição municipal de 2020 – e um pouco inferior ao que foi bloqueado e cortado no orçamento da Educação deste ano.
Bolsonaro não chegou a esse valor sozinho, é claro. Teve ajuda dos líderes políticos e de partidos que cobram cada vez mais caro para participar da base aliada e defender seu impopular governo.
Como se sabe, o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2022 encaminhado pelo governo ao Congresso, e aprovado no dia 15 passado, estabelece que o valor do fundo eleitoral seja equivalente a 25% da soma dos orçamentos da Justiça Eleitoral de 2021 e 2022. Técnicos da Câmara calcularam que isso dá em torno de R$ 5,7 bilhões, quase o triplo do fundo eleitoral de 2020.
Os governistas poderiam ter impedido que essa aberração prosperasse, mas escolheram nada fazer. Assim que a aprovação do aumento do fundo eleitoral tornou-se pública, causando justificada indignação, o presidente Bolsonaro, como já se tornou praxe, tratou de tentar se livrar da responsabilidade. Acusou o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, que presidiu a sessão que votou a LDO, de impedir que o aumento do fundo fosse derrubado. O exame do que aconteceu naquela sessão, contudo, mostra que o deputado Ramos apenas seguiu o regimento, enquanto os governistas colaboravam decisivamente para a aprovação.
Para efeito da encenação dos bolsonaristas e de seus associados, nada disso importa. Bolsonaro prometeu vetar o aumento do fundo: “Seis bilhões para fundo eleitoral? Pelo amor de Deus!”, disse o presidente, com fingida indignação.
Passadas duas semanas, Bolsonaro trocou a indignação pela resignação – esta, tão falsa quanto aquela. Informou a seus aduladores no cercadinho do Alvorada que não vetará os R$ 5,7 bilhões, mas apenas “o excesso do que a lei garante”. Segundo Bolsonaro, “a lei (prevê) quase R$ 4 bilhões” e “o extra de R$ 2 bilhões vai ser vetado”. O presidente disse que não pode “vetar o que está na lei”, porque, se o fizer, estará “incurso em crime de responsabilidade”.
Em entrevista à Rádio Itatiaia, Bolsonaro voltou a falar na tal “lei”, provavelmente referindo-se à Lei 13.487, que instituiu o fundo eleitoral. “Diz na lei que a cada eleição o valor tem que ser corrigido levando-se em conta a inflação. Então, eu tenho que cumprir a lei”, disse o presidente. Não há nada disso na lei.
Supondo-se que houvesse obrigação legal de reajustar o fundo eleitoral pela inflação, contudo, o valor jamais chegaria aos tais R$ 4 bilhões anunciados pelo presidente. Se aplicados os índices inflacionários previstos na LDO encaminhada pelo seu próprio governo, e não o peculiar cálculo do presidente, o fundo teria de ser reajustado para R$ 2,197 bilhões.
Portanto, nem as vírgulas do discurso do presidente são verdadeiras, como já não eram verdadeiras no palavrório de Bolsonaro ao informar em 2019 que também não poderia vetar o aumento do fundo eleitoral naquela ocasião porque, ora vejam, corria o risco de sofrer impeachment por crime de responsabilidade.
É evidente, conforme declarou o deputado Marcelo Ramos, que Bolsonaro faz apenas “jogo de cena”, posando de presidente zeloso com o dinheiro público enquanto avaliza, na prática, a duplicação do fundo eleitoral, para alegria dos congressistas. Não se sabe exatamente que instrumento legal o presidente usará para aprovar o fundo eleitoral de R$ 4 bilhões, mas criatividade é o que não falta entre os oportunistas.
Em se tratando de um fundo eleitoral que nem deveria existir, qualquer centavo é imoral. Mas os tempos não são exatamente virtuosos. No bazar presidencial, está tudo a preço de ocasião.
O pacto com o Centrão
O presidente Jair Bolsonaro confirmou, na manhã de ontem, depois de duas horas e meia de conversa, a indicação do senador Ciro Nogueira (PI), presidente doPP, para o estratégico cargo de ministro-chefe da Casa Civil do Palácio do Planalto. Entre suas tarefas, estão a coordenação dos principais programas do governo, a participação nas decisões sobre remanejamento de verbas do Orçamento, a construção de alianças regionais e a articulação com o Congresso Nacional, na qual terá dois objetivos prioritárias: domar a CPI da Covid no Senado, em que os governistas estão em minoria, e articular a aprovação do voto impresso na Câmara. São duas missões quase impossíveis, a esta altura do campeonato.
O repertório de mudanças bem-sucedidas no Palácio do Planalto, em momentos de apuros, não é pequeno. Entretanto, também houve fracassos. Um deles ocorreu no governo Collor, quando o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, assumiu a recém-criada Secretaria de Governo. Collor tentara manter seu governo afastado do jogo político-partidário e, por meio de medidas provisórias, viabilizar seu programa. Entretanto, no início de 1992, o recrudescimento da inflação, o crescimento do desemprego e as denúncias envolvendo membros do governo levaram-no a buscar uma base parlamentar que lhe assegurasse apoio.
Havia duas hipóteses: ceder alguns postos ao PSDB, que fracassou; ou trazer para o governo o PDS (atual PP), o PTB e o PL, a solução adotada. Entretanto, Pedro Collor, irmão do presidente, denunciou a existência de vasto esquema de corrupção no interior do governo, que teria sido montado por Paulo César Farias, o PC, ex-tesoureiro de sua campanha presidencial. Em consequência, uma CPI no Congresso começou a investigar o governo. Na ocasião, Bornhausen afirmou: “As CPIs nunca deram em nada”. No final de agosto, porém, aconselhou Collor a renunciar ao mandato. O resto da história todos já sabem.
O repertório de mudanças bem-sucedidas no Palácio do Planalto, em momentos de apuros, não é pequeno. Entretanto, também houve fracassos. Um deles ocorreu no governo Collor, quando o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, assumiu a recém-criada Secretaria de Governo. Collor tentara manter seu governo afastado do jogo político-partidário e, por meio de medidas provisórias, viabilizar seu programa. Entretanto, no início de 1992, o recrudescimento da inflação, o crescimento do desemprego e as denúncias envolvendo membros do governo levaram-no a buscar uma base parlamentar que lhe assegurasse apoio.
Havia duas hipóteses: ceder alguns postos ao PSDB, que fracassou; ou trazer para o governo o PDS (atual PP), o PTB e o PL, a solução adotada. Entretanto, Pedro Collor, irmão do presidente, denunciou a existência de vasto esquema de corrupção no interior do governo, que teria sido montado por Paulo César Farias, o PC, ex-tesoureiro de sua campanha presidencial. Em consequência, uma CPI no Congresso começou a investigar o governo. Na ocasião, Bornhausen afirmou: “As CPIs nunca deram em nada”. No final de agosto, porém, aconselhou Collor a renunciar ao mandato. O resto da história todos já sabem.
Outro fracasso foi a indicação de Michel Temer, vice-presidente da República, como articulador político do governo, após a vitória do deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) na disputa pela Presidência da Câmara, contra o petista Arlindo Chinaglia (SP), candidato da presidente Dilma Rousseff, que interferiu na eleição e foi derrotada. Temer assumiu em 7 de abril de 2015, após as manifestações ocorridas no mês anterior, quando milhares de pessoas foram às ruas pedir o impeachment de Dilma. As funções da Secretaria de Relações Institucionais passaram à alçada da Vice-Presidência. Temer procurou acalmar os ânimos, porém, quatro meses depois, deixou a articulação, alegando ter sofrido boicote em seu trabalho. Ainda se reuniu com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e lideranças do PMDB, na tentativa de aproximar o partido do governo.
Dilma fizera uma reforma ministerial em 5 de outubro, cortando oito da 39 pastas e ampliando o espaço do PMDB, que passou de seis para sete ministérios, incluindo a pasta da Saúde; Ciência, Tecnologia e Inovação; dos Portos; Agricultura; Minas e Energia; Turismo e Secretaria de Aviação Civil já eram controlados pelo PMDB. Entretanto, em 2 de dezembro, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) acatou um dos pedidos de abertura do processo de impeachment de Dilma. Dias depois, Eliseu Padilha deixou o governo e, em seguida, Michael Temer enviou carta à presidente da República na qual afirmou: “Passei os quatro anos de governo como vice decorativo… Perdi todo protagonismo político que tivera no passado e que poderia ter sido usado pelo governo. Só era chamado para resolver as votações do PMDB e as crises políticas”. O desfecho da crise todos também conhecem.
O presidente Bolsonaro não vai matar a fome de elefantes com alface. Tudo bem que o PP seja o antigo PDS, originário da Arena, o partido do regime militar, mas o Centrão tem outras legendas gulosas. A repactuação do “sistema de poder” entre os militares, as oligarquias nordestinas, as igrejas evangélicas e setores empresariais que apoiam o governo, sobretudo do agronegócio, depende de três variáveis: uma redistribuição de cargos na Esplanada, principalmente nos ministérios “capilarizados”; a retomada do crescimento econômico e um horizonte eleitoral nos estados no qual Bolsonaro consiga resgatar sua expectativa de poder nas eleições de 2022.
Dilma fizera uma reforma ministerial em 5 de outubro, cortando oito da 39 pastas e ampliando o espaço do PMDB, que passou de seis para sete ministérios, incluindo a pasta da Saúde; Ciência, Tecnologia e Inovação; dos Portos; Agricultura; Minas e Energia; Turismo e Secretaria de Aviação Civil já eram controlados pelo PMDB. Entretanto, em 2 de dezembro, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) acatou um dos pedidos de abertura do processo de impeachment de Dilma. Dias depois, Eliseu Padilha deixou o governo e, em seguida, Michael Temer enviou carta à presidente da República na qual afirmou: “Passei os quatro anos de governo como vice decorativo… Perdi todo protagonismo político que tivera no passado e que poderia ter sido usado pelo governo. Só era chamado para resolver as votações do PMDB e as crises políticas”. O desfecho da crise todos também conhecem.
O presidente Bolsonaro não vai matar a fome de elefantes com alface. Tudo bem que o PP seja o antigo PDS, originário da Arena, o partido do regime militar, mas o Centrão tem outras legendas gulosas. A repactuação do “sistema de poder” entre os militares, as oligarquias nordestinas, as igrejas evangélicas e setores empresariais que apoiam o governo, sobretudo do agronegócio, depende de três variáveis: uma redistribuição de cargos na Esplanada, principalmente nos ministérios “capilarizados”; a retomada do crescimento econômico e um horizonte eleitoral nos estados no qual Bolsonaro consiga resgatar sua expectativa de poder nas eleições de 2022.
Cadê a nossa liberdade?
Todo autocrata enche a boca para falar de liberdade. O autocrata brasileiro chama juiz de imbecil e pedófilo em nome da liberdade; ameaça fechar tribunal e encher boca de jornalista de porrada em nome da liberdade; aponta fraude sem provas nas eleições que venceu e impõe condições às próximas em nome da liberdade; sugere a você morrer asfixiado em nome da sua liberdade “post mortem”. “Ela não é dissociada do oxigênio que respiramos”, já disse.
Quando Bolsonaro perguntou esses dias “cadê nossa liberdade?”, ele se referia à liberdade de divulgar notícia falsa. Afinal, se o gabinete do ódio, que chama de “gabinete da liberdade”, sofre tímidas restrições de plataformas privadas para desinformar sobre a pandemia e manipular nossas emoções políticas, restava só ensaiar uma canetada contra as redes.
A liberdade econômica, princesa de Paulo Guedes, encontra seus limites no fígado de Bolsonaro e no bolso do centrão. E vice-versa. Serve para uma Havan, não para qualquer Facebook.
Apesar da insistência dos profetas da democracia “risco zero”, que tentam nos tranquilizar e recalibram seus detectores de “instituições funcionando” para que os gritos das ruas e os sussurros dos generais sejam ignorados, o Brasil lidera a terceira onda de autocratização no mundo. Assim concluiu o relatório “Autocratização se torna viral”, produzido pelo centro de pesquisa V-Dem (Varieties of Democracy).
Esse processo segue passos meio padronizados: governos atacam a mídia, a ciência e a sociedade civil; constroem inimigos por discurso de ódio e desinformação, reprimem a divergência e atiçam a incivilidade; aos poucos, vão eviscerando a capacidade estatal de fiscalizar o poder e responsabilizar infratores.
Alimentam desconfiança no voto e terminam pela transformação constitucional do país. Não deixam de realizar eleições, mas combatem as pré-condições de eleições livres e justas. Aos poucos a democracia eleitoral dá lugar à chamada autocracia eleitoral, ou autoritarismo competitivo. Isso se um golpe à antiga não encerrar o processo antes, mas tem sido recurso ultrapassado e dispensável.
Para dimensionar a corrosão do espaço cívico com menos abstração ou impressionismo, vale olhar para o conjunto de casos de agressão ou inviabilização arbitrária das liberdades. O repertório tático de um governo autoritário conjuga asfixia financeira, estigmatização e intimidação pública e privada e, se preciso for, repressão. Tudo isso por meios mais ou menos explícitos, mais ou menos formais.
No campo da liberdade de expressão, o relatório da organização Artigo 19 sobre 2019-2020 descreve como e por que, no espaço de poucos anos, o Brasil foi de país “aberto” para país “restrito”. Estudos assim, contudo, não conseguem mensurar o quanto práticas de intimidação e o acosso jurídico de alvos específicos, ao despertarem medo pelo exemplo, desencadeiam um cala-boca geral.
O índice mundial de liberdade de imprensa, calculado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, mostra que o país declinou e ingressou na categoria vermelha, classificada como “difícil”, a segunda pior numa escala de cinco.
A liberdade científica e acadêmica segue o mesmo padrão. No índice global de liberdade acadêmica, construído pelos centros V-Dem e Global Public Policy Institute, o Brasil caiu para categoria C numa escala de A a D. Na América Latina, estamos melhor que a Venezuela, pior que todos os outros. Se você acha que o colapso digital do CNPq, nesta semana, tem a ver com isso, você acertou.
Não temos ainda um índice de liberdade artística para oferecer. Mas quem acompanha a vida cultural do país sabe a gravidade do momento: exposição de fotos sobre a construção democrática do país, em Juiz de Fora, foi suspensa porque o juiz viu nela “engenhos de publicidade”; secretaria de cultura inviabiliza apoio ao Festival de Jazz do Capão, com parecer extravagante que define a finalidade da música (“glória de Deus e a renovação da alma”).
Se quiser discutir liberdade de informação, acompanhe a redução da transparência oficial e as novas práticas de sigilo, acompanhadas pela máquina de desinformação. Se quiser falar de liberdade religiosa, olhe não apenas para os numerosos ataques de intolerância, mas ao centrão teocrático em Brasília.
Cadê nossa liberdade? Está aí. Vai reclamar?
Quando Bolsonaro perguntou esses dias “cadê nossa liberdade?”, ele se referia à liberdade de divulgar notícia falsa. Afinal, se o gabinete do ódio, que chama de “gabinete da liberdade”, sofre tímidas restrições de plataformas privadas para desinformar sobre a pandemia e manipular nossas emoções políticas, restava só ensaiar uma canetada contra as redes.
A liberdade econômica, princesa de Paulo Guedes, encontra seus limites no fígado de Bolsonaro e no bolso do centrão. E vice-versa. Serve para uma Havan, não para qualquer Facebook.
Apesar da insistência dos profetas da democracia “risco zero”, que tentam nos tranquilizar e recalibram seus detectores de “instituições funcionando” para que os gritos das ruas e os sussurros dos generais sejam ignorados, o Brasil lidera a terceira onda de autocratização no mundo. Assim concluiu o relatório “Autocratização se torna viral”, produzido pelo centro de pesquisa V-Dem (Varieties of Democracy).
Esse processo segue passos meio padronizados: governos atacam a mídia, a ciência e a sociedade civil; constroem inimigos por discurso de ódio e desinformação, reprimem a divergência e atiçam a incivilidade; aos poucos, vão eviscerando a capacidade estatal de fiscalizar o poder e responsabilizar infratores.
Alimentam desconfiança no voto e terminam pela transformação constitucional do país. Não deixam de realizar eleições, mas combatem as pré-condições de eleições livres e justas. Aos poucos a democracia eleitoral dá lugar à chamada autocracia eleitoral, ou autoritarismo competitivo. Isso se um golpe à antiga não encerrar o processo antes, mas tem sido recurso ultrapassado e dispensável.
Para dimensionar a corrosão do espaço cívico com menos abstração ou impressionismo, vale olhar para o conjunto de casos de agressão ou inviabilização arbitrária das liberdades. O repertório tático de um governo autoritário conjuga asfixia financeira, estigmatização e intimidação pública e privada e, se preciso for, repressão. Tudo isso por meios mais ou menos explícitos, mais ou menos formais.
No campo da liberdade de expressão, o relatório da organização Artigo 19 sobre 2019-2020 descreve como e por que, no espaço de poucos anos, o Brasil foi de país “aberto” para país “restrito”. Estudos assim, contudo, não conseguem mensurar o quanto práticas de intimidação e o acosso jurídico de alvos específicos, ao despertarem medo pelo exemplo, desencadeiam um cala-boca geral.
O índice mundial de liberdade de imprensa, calculado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, mostra que o país declinou e ingressou na categoria vermelha, classificada como “difícil”, a segunda pior numa escala de cinco.
A liberdade científica e acadêmica segue o mesmo padrão. No índice global de liberdade acadêmica, construído pelos centros V-Dem e Global Public Policy Institute, o Brasil caiu para categoria C numa escala de A a D. Na América Latina, estamos melhor que a Venezuela, pior que todos os outros. Se você acha que o colapso digital do CNPq, nesta semana, tem a ver com isso, você acertou.
Não temos ainda um índice de liberdade artística para oferecer. Mas quem acompanha a vida cultural do país sabe a gravidade do momento: exposição de fotos sobre a construção democrática do país, em Juiz de Fora, foi suspensa porque o juiz viu nela “engenhos de publicidade”; secretaria de cultura inviabiliza apoio ao Festival de Jazz do Capão, com parecer extravagante que define a finalidade da música (“glória de Deus e a renovação da alma”).
Se quiser discutir liberdade de informação, acompanhe a redução da transparência oficial e as novas práticas de sigilo, acompanhadas pela máquina de desinformação. Se quiser falar de liberdade religiosa, olhe não apenas para os numerosos ataques de intolerância, mas ao centrão teocrático em Brasília.
Cadê nossa liberdade? Está aí. Vai reclamar?
quarta-feira, 28 de julho de 2021
Bolsonaro e Ciro Nogueira fizeram um bom negócio para os dois
O senador Ciro Nogueira (PP-PI), novo chefe da Casa Civil da presidência da República, não chegará ao ponto de cobrar que Jair Bolsonaro passe a usar máscara, deixe de provocar aglomerações e pare de denunciar o voto eletrônico como instrumento de fraude. A ninguém se pede o que não pode dar, Nogueira aprendeu.
Mas que pelo menos Bolsonaro não entre mais em guerra direta com o Supremo Tribunal Federal, impeça que os militares continuem fazendo pronunciamentos políticos, e acredite que ele, Nogueira, dará conta da tarefa de falar pelo governo com o Congresso, os partidos e demais atores da cena nacional.
Não se trata, portanto, de calar o presidente da República. Isso seria impossível e mesmo indesejável. Mas sim de aparar arestas criadas por ele, e liberá-lo para que faça o que mais gosta de fazer – circular pelo país em campanha pela reeleição, pregar aos seus devotos e faturar as boas realizações do seu governo.
Que boas realizações foram essas até agora? Não caberá a Nogueira listá-las, mas ao ministro das Comunicações Fábio Faria (PSD-RN) e aos demais ministros. Se tudo correr assim, Bolsonaro recuperará parte da popularidade perdida e poderá disputar as eleições do ano que vem em pé de igualdade com Lula (PT).
Bem administrado, o negócio feito entre Bolsonaro e Nogueira pode vir a ser bom para os dois. Quem faz o cargo é quem o ocupa. O primeiro chefe da Casa Civil do governo Bolsonaro foi Onyx Lorenzoni, que fez carreira batendo nos políticos. O segundo e o terceiro foram generais sem preparo para a missão.
O governo terceirizou a articulação política, o que significa que por ela respondiam muitos nomes ao mesmo tempo. Não tinha como dar certo, como não deu. Por último, da articulação cuidou a deputada Flávia Arruda (PL-DF), ministra da Secretaria do Governo, sem experiência nem envergadura para tal.
Nogueira vai para a Casa Civil com a intenção de enfrentar os problemas que atormentam Bolsonaro, e não os que o atormentam como presidente nacional do PP que em 2018 elegeu 41 deputados federais e sete senadores. No Piauí, de um total de 224 prefeitos, quase 100 respondem ao seu comando.
Saciar o apetite por verbas de rebanho tão grande requer livre trânsito e muita influência dentro do governo. Isso pesou para que Nogueira aceitasse o convite de Bolsonaro de trocar o Senado pela chefia da Casa Civil. Se mais adiante ele concluir que não fez um bom negócio, sempre haverá tempo para desfazê-lo.
Tem ensaiado o que dirá ao presidente. Dirá que tentou resolver seus problemas, mas que as condições que lhe foram dadas não permitiram. Que voltará ao Senado onde poderá ficar ainda por mais quatro ou cinco anos. E que, de lá, seguirá o apoiando. A não ser que… Bem, essa parte não será adiantada.
Mas que pelo menos Bolsonaro não entre mais em guerra direta com o Supremo Tribunal Federal, impeça que os militares continuem fazendo pronunciamentos políticos, e acredite que ele, Nogueira, dará conta da tarefa de falar pelo governo com o Congresso, os partidos e demais atores da cena nacional.
Não se trata, portanto, de calar o presidente da República. Isso seria impossível e mesmo indesejável. Mas sim de aparar arestas criadas por ele, e liberá-lo para que faça o que mais gosta de fazer – circular pelo país em campanha pela reeleição, pregar aos seus devotos e faturar as boas realizações do seu governo.
Que boas realizações foram essas até agora? Não caberá a Nogueira listá-las, mas ao ministro das Comunicações Fábio Faria (PSD-RN) e aos demais ministros. Se tudo correr assim, Bolsonaro recuperará parte da popularidade perdida e poderá disputar as eleições do ano que vem em pé de igualdade com Lula (PT).
Bem administrado, o negócio feito entre Bolsonaro e Nogueira pode vir a ser bom para os dois. Quem faz o cargo é quem o ocupa. O primeiro chefe da Casa Civil do governo Bolsonaro foi Onyx Lorenzoni, que fez carreira batendo nos políticos. O segundo e o terceiro foram generais sem preparo para a missão.
O governo terceirizou a articulação política, o que significa que por ela respondiam muitos nomes ao mesmo tempo. Não tinha como dar certo, como não deu. Por último, da articulação cuidou a deputada Flávia Arruda (PL-DF), ministra da Secretaria do Governo, sem experiência nem envergadura para tal.
Nogueira vai para a Casa Civil com a intenção de enfrentar os problemas que atormentam Bolsonaro, e não os que o atormentam como presidente nacional do PP que em 2018 elegeu 41 deputados federais e sete senadores. No Piauí, de um total de 224 prefeitos, quase 100 respondem ao seu comando.
Saciar o apetite por verbas de rebanho tão grande requer livre trânsito e muita influência dentro do governo. Isso pesou para que Nogueira aceitasse o convite de Bolsonaro de trocar o Senado pela chefia da Casa Civil. Se mais adiante ele concluir que não fez um bom negócio, sempre haverá tempo para desfazê-lo.
Tem ensaiado o que dirá ao presidente. Dirá que tentou resolver seus problemas, mas que as condições que lhe foram dadas não permitiram. Que voltará ao Senado onde poderá ficar ainda por mais quatro ou cinco anos. E que, de lá, seguirá o apoiando. A não ser que… Bem, essa parte não será adiantada.
Nem arroz, nem feijão, nem circo
Decerto é algum trauma de infância: nunca esqueci a musiquinha. Outro dia me peguei cantando: "Marco extraordinário/ Sesquicentenário da Independência/ Potência de amor e de paz/ Esse Brasil faz coisas/ Que ninguém imagina que faz". E fiquei imaginando a festa que o governo Bolsonaro, tão patriota, irá preparar para os 200 anos do Sete de Setembro.
Que tal outra Taça da Independência? A minicopa de 1972 contou com as seleções da Argentina, França, Iugoslávia e Irã, entre outras. Na decisão, o Brasil venceu Portugal com gol de Jairzinho aos 44 minutos do segundo tempo, tudo perfeito, como se tivesse sido combinado. Com os craques portugueses, visitaram o país os restos mortais de dom Pedro 1º.
As paradas militares reuniram multidões com bandeirinhas. Nos palanques, homens de casaca e mulheres de chapéu aplaudiram o "milagre econômico". O Hino do Sesquicentenário trazia a promessa de dias ainda melhores: "E vamos mais e mais/ Na festa do amor e da paz". Composto por Miguel Gustavo —o mesmo do hit "Pra Frente Brasil"—, foi gravado em duas versões, a da dupla Miltinho e Shirley e a de Ângela Maria. Tocado sem parar no rádio e na televisão, virou sucesso nos bailes de Carnaval. "É dom Pedro 1º/ É dom Pedro do Grito/ Esse grito de glória/ Que a cor da história/ À vitória nos traz", divertiam-se as odaliscas montadas nos ombros dos havaianos. Que farra, eu pensava com meus 10 anos, morrendo de inveja.
Mas parece que o regime atual, para variar, apronta mais um desgosto. Já não temos feijão e arroz no prato, e podemos ficar sem circo. Instalada em 2019, a Comissão Interministerial Brasil 200 Anos até agora não planejou a festa. Nem sequer uma reles motociata. Diplomatas portugueses têm estranhado o silêncio dos brasileiros.
Não há de ser nada. É capaz de o ministro-sanfoneiro compor uma sofrência. Ele não é Miguel Gustavo, mas não se pode querer tudo na vida.
Que tal outra Taça da Independência? A minicopa de 1972 contou com as seleções da Argentina, França, Iugoslávia e Irã, entre outras. Na decisão, o Brasil venceu Portugal com gol de Jairzinho aos 44 minutos do segundo tempo, tudo perfeito, como se tivesse sido combinado. Com os craques portugueses, visitaram o país os restos mortais de dom Pedro 1º.
As paradas militares reuniram multidões com bandeirinhas. Nos palanques, homens de casaca e mulheres de chapéu aplaudiram o "milagre econômico". O Hino do Sesquicentenário trazia a promessa de dias ainda melhores: "E vamos mais e mais/ Na festa do amor e da paz". Composto por Miguel Gustavo —o mesmo do hit "Pra Frente Brasil"—, foi gravado em duas versões, a da dupla Miltinho e Shirley e a de Ângela Maria. Tocado sem parar no rádio e na televisão, virou sucesso nos bailes de Carnaval. "É dom Pedro 1º/ É dom Pedro do Grito/ Esse grito de glória/ Que a cor da história/ À vitória nos traz", divertiam-se as odaliscas montadas nos ombros dos havaianos. Que farra, eu pensava com meus 10 anos, morrendo de inveja.
Mas parece que o regime atual, para variar, apronta mais um desgosto. Já não temos feijão e arroz no prato, e podemos ficar sem circo. Instalada em 2019, a Comissão Interministerial Brasil 200 Anos até agora não planejou a festa. Nem sequer uma reles motociata. Diplomatas portugueses têm estranhado o silêncio dos brasileiros.
Não há de ser nada. É capaz de o ministro-sanfoneiro compor uma sofrência. Ele não é Miguel Gustavo, mas não se pode querer tudo na vida.
Brasil bate no fundo do poço do isolamento internacional
No momento, praticamente não existe um chefe de governo democrático que queira se encontrar com Jair Bolsonaro. Na União Europeia, evita-se prudentemente o presidente brasileiro, pois isso não pegaria bem junto ao eleitorado. Nem mesmo os fãs do britânico Boris Johnson devem ter uma opinião muito boa de Bolsonaro, conhecido no exterior sobretudo por duas coisas: a devastação da Floresta Amazônica e sua catastrófica gestão da pandemia, com mais de 550 mil brasileiros mortos.
Como ninguém quer se encontrar com Bolsonaro, ele aceita o que vem. Nesse caso foi, justamente, Beatrix von Storch, deputada federal e vice-porta-voz da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD). Não se trata de um partido normal: o Departamento Federal de Proteção da Constituição – uma espécie de Abin alemã – levantou suspeitas de que a sigla abrigaria extremistas e impunha ameaças à ordem democrática, chegando a colocá-la sob observação do serviço secreto.
Além disso, o presidente do Brasil se encontrou com uma mulher que tachou a chefe de governo alemã, Angela Merkel, de "a maior criminosa da história da Alemanha do pós-guerra". O fato de ele se deixar ser visto ao lado dessa pária sublinha mais uma vez o desastre que o bolsonarismo perpetrou na política externa brasileira.
A perda de importância do país é dramática: Bolsonaro reduziu o Brasil de peso-pesado internacional a mero peso-mosca. É mais ou menos como se Merkel marcasse uma reunião com o deputado (e palhaço) brasileiro Tiririca, para discutir com ele o futuro da Europa e da América Latina.
O problema não são os avós
Como mostram as fotos do encontro, Bolsonaro e Von Storch se divertiram à beça. Poucas vezes se viu o presidente com um sorriso tão largo, e a ultradireitista alemã tão relaxada. O problema do encontro não é a ascendência de Beatrix von Storch – como enfatizaram diversos veículos de imprensa brasileiros. De fato, ambos seus avôs estiveram profundamente envolvidos nos crimes nazistas: um como ministro de Adolf Hitler (e criminoso de guerra condenado), e o outro como membro convicto do Partido Nacional-Socialista (NSDAP) e oficial da milícia SA.
Só que milhões de alemães têm antepassados que veneravam Hitler, injuriavam os judeus e se apoderaram de suas fortunas quando foram deportados e assassinados. Os avôs e bisavôs da maior parte dos alemães eram soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas nazistas, ou até membros do NSDAP ou da força paramilitar SS.
Um de meus avôs viveu por um breve período num apartamento em Gleiwitz (hoje Gliwice, na Polônia) que pertencia a judeus deportados. A cidade fica próximo ao campo de extermínio de Auschwitz, e minha mãe se lembra até hoje que em certos dias "chovia cinza". Ninguém lhe explicava por quê.
Meu outro avô voltou para casa de um campo de prisioneiros soviético cinco anos após o fim da Segunda Guerra, mudo e sem reconhecer os filhos. Ele jamais falou sobre a guerra. Nós supomos que ele vivenciou coisas terríveis e talvez também tenha participado de atrocidades.
Não se pode condenar os alemães de hoje à punição coletiva. E tampouco se pode acusar Beatrix von Storch de ter a família que tem. O que pode lhe ser imputado é ela dar continuidade à ideologia criminosa de seu avô. Ela disse que é lícito atirar em refugiadas e seus filhos que tentem atravessar a fronteira para a Alemanha, e pertence a uma sigla, a AfD, cujos deputados e funcionários disseram coisas como estas:
"Eu desejo tanto uma guerra civil e milhões de mortos, mulheres, crianças. Para mim, tanto faz. Seria tão bonito. Quero mijar nos cadáveres e dançar em cima dos túmulos. Sieg Heil!"
"Esse tipo de gente [estrangeiros e esquerdistas], é claro que temos que eliminar."
"Quando a gente chegar, vai ter arrumação, vai ter purgação!"
"Homossexuais na prisão? A gente também devia fazer isso na Alemanha!"
"Precisamos atacar e acabar com os meios de comunicação impressos."
"Lares para refugiados em chamas não são um ato de agressão."
"Fuzilar a corja ou mandar de volta para a África abaixo de pancadas."
É possível que tais declarações nem soem tão estranhas para os leitores brasileiros. Seu presidente já soltou coisas do gênero, por exemplo: "Fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com o FHC. Não deixar pra fora, não, matando. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente."
Portanto, é inegável o parentesco de espírito entre Bolsonaro e Von Storch. Ambos são representantes da nova ultradireita global, que prega racismo, homofobia e autoritarismo, e para tal se serve de táticas, formulações e teorias de conspiração análogas. O mais absurdo que compartilham é a afirmação de que defenderiam "valores conservadores e cristãos". Eles não defendem valor nenhum!
Jair Bolsonaro e Beatrix von Storch são irmão e irmã no espírito. O fato de o presidente brasileiro – assim como seu filho Eduardo, ou o ministro da Ciência Marcos Pontes – se encontrar com essa pária da política alemã mostra, acima de tudo, quão solitário e absolutamente incompetente esse governo se tornou. Está isolado por ser incapaz de travar um diálogo com quem pense diferente. Diplomacia lhe é uma palavra desconhecida. Para o Brasil, que há poucos anos ainda tinha um peso no mundo como país de referência, é uma tragédia.
Philipp Lichterbeck
Como ninguém quer se encontrar com Bolsonaro, ele aceita o que vem. Nesse caso foi, justamente, Beatrix von Storch, deputada federal e vice-porta-voz da ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD). Não se trata de um partido normal: o Departamento Federal de Proteção da Constituição – uma espécie de Abin alemã – levantou suspeitas de que a sigla abrigaria extremistas e impunha ameaças à ordem democrática, chegando a colocá-la sob observação do serviço secreto.
Além disso, o presidente do Brasil se encontrou com uma mulher que tachou a chefe de governo alemã, Angela Merkel, de "a maior criminosa da história da Alemanha do pós-guerra". O fato de ele se deixar ser visto ao lado dessa pária sublinha mais uma vez o desastre que o bolsonarismo perpetrou na política externa brasileira.
A perda de importância do país é dramática: Bolsonaro reduziu o Brasil de peso-pesado internacional a mero peso-mosca. É mais ou menos como se Merkel marcasse uma reunião com o deputado (e palhaço) brasileiro Tiririca, para discutir com ele o futuro da Europa e da América Latina.
O problema não são os avós
Como mostram as fotos do encontro, Bolsonaro e Von Storch se divertiram à beça. Poucas vezes se viu o presidente com um sorriso tão largo, e a ultradireitista alemã tão relaxada. O problema do encontro não é a ascendência de Beatrix von Storch – como enfatizaram diversos veículos de imprensa brasileiros. De fato, ambos seus avôs estiveram profundamente envolvidos nos crimes nazistas: um como ministro de Adolf Hitler (e criminoso de guerra condenado), e o outro como membro convicto do Partido Nacional-Socialista (NSDAP) e oficial da milícia SA.
Só que milhões de alemães têm antepassados que veneravam Hitler, injuriavam os judeus e se apoderaram de suas fortunas quando foram deportados e assassinados. Os avôs e bisavôs da maior parte dos alemães eram soldados da Wehrmacht, as Forças Armadas nazistas, ou até membros do NSDAP ou da força paramilitar SS.
Um de meus avôs viveu por um breve período num apartamento em Gleiwitz (hoje Gliwice, na Polônia) que pertencia a judeus deportados. A cidade fica próximo ao campo de extermínio de Auschwitz, e minha mãe se lembra até hoje que em certos dias "chovia cinza". Ninguém lhe explicava por quê.
Meu outro avô voltou para casa de um campo de prisioneiros soviético cinco anos após o fim da Segunda Guerra, mudo e sem reconhecer os filhos. Ele jamais falou sobre a guerra. Nós supomos que ele vivenciou coisas terríveis e talvez também tenha participado de atrocidades.
Não se pode condenar os alemães de hoje à punição coletiva. E tampouco se pode acusar Beatrix von Storch de ter a família que tem. O que pode lhe ser imputado é ela dar continuidade à ideologia criminosa de seu avô. Ela disse que é lícito atirar em refugiadas e seus filhos que tentem atravessar a fronteira para a Alemanha, e pertence a uma sigla, a AfD, cujos deputados e funcionários disseram coisas como estas:
"Afinal, agora nós temos tantos estrangeiros no país que valeria a pena mais um Holocausto."
"Eu desejo tanto uma guerra civil e milhões de mortos, mulheres, crianças. Para mim, tanto faz. Seria tão bonito. Quero mijar nos cadáveres e dançar em cima dos túmulos. Sieg Heil!"
"Esse tipo de gente [estrangeiros e esquerdistas], é claro que temos que eliminar."
"Quando a gente chegar, vai ter arrumação, vai ter purgação!"
"Homossexuais na prisão? A gente também devia fazer isso na Alemanha!"
"Precisamos atacar e acabar com os meios de comunicação impressos."
"Lares para refugiados em chamas não são um ato de agressão."
"Fuzilar a corja ou mandar de volta para a África abaixo de pancadas."
É possível que tais declarações nem soem tão estranhas para os leitores brasileiros. Seu presidente já soltou coisas do gênero, por exemplo: "Fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil, começando com o FHC. Não deixar pra fora, não, matando. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente."
Portanto, é inegável o parentesco de espírito entre Bolsonaro e Von Storch. Ambos são representantes da nova ultradireita global, que prega racismo, homofobia e autoritarismo, e para tal se serve de táticas, formulações e teorias de conspiração análogas. O mais absurdo que compartilham é a afirmação de que defenderiam "valores conservadores e cristãos". Eles não defendem valor nenhum!
Jair Bolsonaro e Beatrix von Storch são irmão e irmã no espírito. O fato de o presidente brasileiro – assim como seu filho Eduardo, ou o ministro da Ciência Marcos Pontes – se encontrar com essa pária da política alemã mostra, acima de tudo, quão solitário e absolutamente incompetente esse governo se tornou. Está isolado por ser incapaz de travar um diálogo com quem pense diferente. Diplomacia lhe é uma palavra desconhecida. Para o Brasil, que há poucos anos ainda tinha um peso no mundo como país de referência, é uma tragédia.
Philipp Lichterbeck
segunda-feira, 26 de julho de 2021
Chutando o futuro
Desde as cavernas, o homem sente a necessidade de prever o futuro. Lendo as sombras da fogueira, jogando ossos no chão ou interpretando os sinais da natureza, tentando adivinhar o dia de amanhã para se sentir no controle de seu destino.
Hoje evoluímos um pouco e usamos desde astrologia até big data para traçarmos nossos caminhos de vida com alguma segurança. A taxa de acertos era aceitável até março de 2020, quando a pandemia foi decretada e jogou para o alto os planos de bilhões de pessoas e zilhões de empresas.
Logo prever o futuro se tornou um campeonato de chute. A ignorância sobre o vírus fez de governantes, médicos e cientistas meros videntes tentando adivinhar números de fatalidades nos próximos meses. Os curandeiros de Facebook misturando remédios milagrosos e vitaminas com cúrcuma para evitar o contágio.
No meio da catástrofe, começamos a acreditar nas previsões de um homem novo nascendo na adversidade. Um novo homem espiritualizado, empático, generoso começa a rever seus valores para sobreviver. O rabino inglês Jonathan Sacks definiu a pandemia como “o mais perto de uma revelação divina a que um ateu poderia chegar”. Fé é o que não falta nas trincheiras ou nas UTIs.
Na Itália, as pessoas trancadas em casa foram para as varandas cantar em coro unindo o mundo todo numa corrente de alegria e compaixão. Profissionais da saúde desbancaram os fantasiados da Marvel para se tornar nossos super-heróis. As doações de cestas básicas e respiradores ajudaram a aliviar o desespero. A natureza se recuperou longe do homem e suas fumaças, e, apesar da dor indescritível das mortes solitárias, tudo indicava que havia uma semente de um renascimento da humanidade no meio da tragédia.
O tempo passou, e a ciência tomou as rédeas novamente. Menos chutes e mais dados deixaram claro que máscaras e distanciamento eram as únicas armas para controlar o volume de doentes nos hospitais enquanto as vacinas não ficavam prontas.
Mas a ciência perdeu a sua aura de confiabilidade. Tantas previsões conflitantes geraram a disputa entre fechar tudo para proteger a vida e abrir para proteger a economia, a guerra de sempre entre as coisas do coração e as do bolso. Revoltas contra máscaras e lockdowns estouraram incentivadas pelos Trumps e Bolsonaros do mundo, que parecem adorar ver o circo pegar fogo e ouvir os gritos de quem ficou preso dentro.
As vacinas chegaram muito antes do previsto, e o que deveria ser festejado como uma conquista milagrosa da humanidade é tratado com desdém por quem acredita nas imbecilidades propagadas pelos piromaníacos de circo.
Enquanto a Índia, o Brasil, o Equador e a África do Sul sofriam de falta de vacina, oxigênio e leitos, o Primeiro Mundo nadava em imunizantes que, muitas vezes, não eram usados por ideologia ou pura paranoia de uma gente mimada pela fartura.
Globalizamos mercadorias, mas não mais a empatia. Mesmo com a falta de vacinas no Terceiro Mundo, parece que hoje não há mais espaço nos países ricos para movimentos solidários como o Live Aid, organizado por Bob Geldof em 1985, que coletou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia.
A pandemia deixou claro: a previsão que importa para os próximos anos não será sobre o trabalho remoto, nem o ensino domiciliar, ou o fim do turismo de negócios. Será como conseguiremos medir e remediar o abismo que se formou entre pobres e ricos. No mercado de trabalho, entre os homens e as mulheres obrigadas a abandonar seus empregos para cuidar das crianças. Será sobre a escalada da desigualdade que aumentou a distância entre quem tem e quem não tem. Seja internet para poder estudar em casa, seja comida, emprego ou acesso a um sistema de saúde decente.
Já dá para prever que a tendência do mundo é se tornar menos global, mais fechado e tribalista. Mas não dá para saber se sairemos dessa motivados para a busca do bem comum, mais generosos uns com os outros ou se precisamos aceitar nossa condição de seres egoístas e autocentrados que sempre fomos. Para mim, é ingênuo buscar no outro um ser humano que faça jus ao adjetivo. Vamos procurar esse novo homem, menos egoísta e mais solidário, dentro de nós mesmos.
Não precisamos de videntes para nos dizer que tentar controlar o destino é enxugar gelo. Melhor seguir o grande Zécrates Pagodinho, o “filósofo de Xerém”, tradutor de Carpe Diem para o samba: “Deixa a vida me levar, vida leva eu / Sou feliz e agradeço, por tudo que Deus me deu”.
Hoje evoluímos um pouco e usamos desde astrologia até big data para traçarmos nossos caminhos de vida com alguma segurança. A taxa de acertos era aceitável até março de 2020, quando a pandemia foi decretada e jogou para o alto os planos de bilhões de pessoas e zilhões de empresas.
Logo prever o futuro se tornou um campeonato de chute. A ignorância sobre o vírus fez de governantes, médicos e cientistas meros videntes tentando adivinhar números de fatalidades nos próximos meses. Os curandeiros de Facebook misturando remédios milagrosos e vitaminas com cúrcuma para evitar o contágio.
No meio da catástrofe, começamos a acreditar nas previsões de um homem novo nascendo na adversidade. Um novo homem espiritualizado, empático, generoso começa a rever seus valores para sobreviver. O rabino inglês Jonathan Sacks definiu a pandemia como “o mais perto de uma revelação divina a que um ateu poderia chegar”. Fé é o que não falta nas trincheiras ou nas UTIs.
Na Itália, as pessoas trancadas em casa foram para as varandas cantar em coro unindo o mundo todo numa corrente de alegria e compaixão. Profissionais da saúde desbancaram os fantasiados da Marvel para se tornar nossos super-heróis. As doações de cestas básicas e respiradores ajudaram a aliviar o desespero. A natureza se recuperou longe do homem e suas fumaças, e, apesar da dor indescritível das mortes solitárias, tudo indicava que havia uma semente de um renascimento da humanidade no meio da tragédia.
O tempo passou, e a ciência tomou as rédeas novamente. Menos chutes e mais dados deixaram claro que máscaras e distanciamento eram as únicas armas para controlar o volume de doentes nos hospitais enquanto as vacinas não ficavam prontas.
Mas a ciência perdeu a sua aura de confiabilidade. Tantas previsões conflitantes geraram a disputa entre fechar tudo para proteger a vida e abrir para proteger a economia, a guerra de sempre entre as coisas do coração e as do bolso. Revoltas contra máscaras e lockdowns estouraram incentivadas pelos Trumps e Bolsonaros do mundo, que parecem adorar ver o circo pegar fogo e ouvir os gritos de quem ficou preso dentro.
As vacinas chegaram muito antes do previsto, e o que deveria ser festejado como uma conquista milagrosa da humanidade é tratado com desdém por quem acredita nas imbecilidades propagadas pelos piromaníacos de circo.
Enquanto a Índia, o Brasil, o Equador e a África do Sul sofriam de falta de vacina, oxigênio e leitos, o Primeiro Mundo nadava em imunizantes que, muitas vezes, não eram usados por ideologia ou pura paranoia de uma gente mimada pela fartura.
Globalizamos mercadorias, mas não mais a empatia. Mesmo com a falta de vacinas no Terceiro Mundo, parece que hoje não há mais espaço nos países ricos para movimentos solidários como o Live Aid, organizado por Bob Geldof em 1985, que coletou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia.
A pandemia deixou claro: a previsão que importa para os próximos anos não será sobre o trabalho remoto, nem o ensino domiciliar, ou o fim do turismo de negócios. Será como conseguiremos medir e remediar o abismo que se formou entre pobres e ricos. No mercado de trabalho, entre os homens e as mulheres obrigadas a abandonar seus empregos para cuidar das crianças. Será sobre a escalada da desigualdade que aumentou a distância entre quem tem e quem não tem. Seja internet para poder estudar em casa, seja comida, emprego ou acesso a um sistema de saúde decente.
Já dá para prever que a tendência do mundo é se tornar menos global, mais fechado e tribalista. Mas não dá para saber se sairemos dessa motivados para a busca do bem comum, mais generosos uns com os outros ou se precisamos aceitar nossa condição de seres egoístas e autocentrados que sempre fomos. Para mim, é ingênuo buscar no outro um ser humano que faça jus ao adjetivo. Vamos procurar esse novo homem, menos egoísta e mais solidário, dentro de nós mesmos.
Não precisamos de videntes para nos dizer que tentar controlar o destino é enxugar gelo. Melhor seguir o grande Zécrates Pagodinho, o “filósofo de Xerém”, tradutor de Carpe Diem para o samba: “Deixa a vida me levar, vida leva eu / Sou feliz e agradeço, por tudo que Deus me deu”.
Privilégios políticos são abraço de urso para a Igreja
Muitos se questionam por que razão a fé cristã cresce nalguns países e áreas do mundo e diminui noutros. A verdade é que o extremo desenvolvimento da ciência e da tecnologia, assim como a difusão do conhecimento e a democratização do ensino superior parecem ter concorrido para o decréscimo da influência social das igrejas cristãs. Além disso o processo de secularização e o aumento da sociedade do bem-estar nos países desenvolvidos também não serão alheios ao fenómeno. Durante muito tempo, acreditava-se que o aumento da prosperidade impediria os indivíduos de procurar um poder superior para responder às suas necessidades quotidianas, pelo que haveria uma ligação entre riqueza e ateísmo.
Porém, um estudo realizado com uma amostra global de 166 países de 2010 a 2020, revisto por pares e publicado na revista Sociology of Religion (Universidade de Oxford) desafia tais tentativas de explicação, e aponta antes para um fator aparentemente surpreendente. Afinal o que determina a vitalidade cristã nas sociedades estará relacionado com a medida em que os governos dão apoio oficial às igrejas em termos legais e políticos. Ou seja, quanto maior for esse apoio governamental mais se reduz o número de cristãos, uma relação que se mantém mesmo levando em conta as tendências demográficas gerais.
Note-se, porém, que tal apoio dos governos não deve ser confundido com liberdade religiosa ou direitos decorrentes da cidadania, mas apenas com privilégios atribuídos pelo estado às confissões.
Os autores do estudo, Nilay Saiya e Stuti Manchanda, falam em três paradoxos que ajudam a explicar o fenómeno. O primeiro é o do pluralismo. Embora em diversos setores da fé cristã se acredite que a melhor forma de ela prosperar seja a exclusão do espaço social das outras religiões, a verdade é que o cristianismo revela-se mais forte nos países em que se vê obrigado a competir com outras tradições de fé em igualdade de oportunidades. Adam Smith ajudaria a explicar o paradoxo através do exemplo da economia de mercado que estimula a competição, a inovação e o vigor entre empresas concorrentes. De igual modo seria de esperar que o mercado religioso não regulamentado tivesse efeito idêntico nas instituições religiosas. A pesquisa revela que em sete dos dez países do mundo nos quais a população cristã cresce mais rapidamente não existe praticamente apoio oficial ao cristianismo.
O segundo paradoxo é o do privilégio. Nove dos dez países que revelam o declínio mais rápido da população cristã no mundo oferecem os maiores apoios públicos às igrejas. Esses privilégios podem incluir financiamento do estado para fins religiosos, acesso especial a instituições do estado e isenções de regulamentos impostos a grupos religiosos minoritários. Portanto, se a competição entre religiões estimula a vitalidade cristã, o favoritismo estatal às igrejas compromete essa vitalidade, decerto contra a intenção dos governos.
As igrejas favorecidas podem até utilizar a sua posição de privilégio para exercer influência sobre a sociedade, mas isso apenas sucede por via de rituais e símbolos, como uma religião civil e não pelo fervor espiritual. Os casos históricos no âmbito do protestantismo são imensos na Europa, desde o Reino Unido com a Igreja de Inglaterra aos países escandinavos com o luteranismo. Mas o fenómeno verifica-se igualmente nos países de tradição católica como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália, onde durante o século vinte os governos discriminaram ativamente os não católicos nas áreas de direito da família, radiodifusão religiosa, política tributária e educação. Coisa semelhante acontece na Rússia com a igreja ortodoxa.
O terceiro paradoxo é o da perseguição. Já no século II Tertuliano dizia que “o sangue dos mártires é a semente da igreja”. A fé cristã cresce rapidamente em diversos países muçulmanos, como o Irão e o Afeganistão, onde sofre uma perseguição duríssima. Também a China vive um crescimento exponencial. O sociólogo das religiões Fenggang Yang afirma que desde a década de 50 o cristianismo protestante cresceu 23 vezes, prevendo que em 2030 a China terá mais cristãos do que qualquer outro país no mundo e em meados do século metade da China poderá ser cristã.
É por isso que os partidos populistas de direita, apesar de alcançarem ganhos eleitorais momentâneos em nome duma defesa da “nação cristã” (resta saber o que será isso…), a prazo estarão apenas a contribuir para um declínio mais acentuado da fé na Europa.
Porém, um estudo realizado com uma amostra global de 166 países de 2010 a 2020, revisto por pares e publicado na revista Sociology of Religion (Universidade de Oxford) desafia tais tentativas de explicação, e aponta antes para um fator aparentemente surpreendente. Afinal o que determina a vitalidade cristã nas sociedades estará relacionado com a medida em que os governos dão apoio oficial às igrejas em termos legais e políticos. Ou seja, quanto maior for esse apoio governamental mais se reduz o número de cristãos, uma relação que se mantém mesmo levando em conta as tendências demográficas gerais.
Note-se, porém, que tal apoio dos governos não deve ser confundido com liberdade religiosa ou direitos decorrentes da cidadania, mas apenas com privilégios atribuídos pelo estado às confissões.
Os autores do estudo, Nilay Saiya e Stuti Manchanda, falam em três paradoxos que ajudam a explicar o fenómeno. O primeiro é o do pluralismo. Embora em diversos setores da fé cristã se acredite que a melhor forma de ela prosperar seja a exclusão do espaço social das outras religiões, a verdade é que o cristianismo revela-se mais forte nos países em que se vê obrigado a competir com outras tradições de fé em igualdade de oportunidades. Adam Smith ajudaria a explicar o paradoxo através do exemplo da economia de mercado que estimula a competição, a inovação e o vigor entre empresas concorrentes. De igual modo seria de esperar que o mercado religioso não regulamentado tivesse efeito idêntico nas instituições religiosas. A pesquisa revela que em sete dos dez países do mundo nos quais a população cristã cresce mais rapidamente não existe praticamente apoio oficial ao cristianismo.
O segundo paradoxo é o do privilégio. Nove dos dez países que revelam o declínio mais rápido da população cristã no mundo oferecem os maiores apoios públicos às igrejas. Esses privilégios podem incluir financiamento do estado para fins religiosos, acesso especial a instituições do estado e isenções de regulamentos impostos a grupos religiosos minoritários. Portanto, se a competição entre religiões estimula a vitalidade cristã, o favoritismo estatal às igrejas compromete essa vitalidade, decerto contra a intenção dos governos.
As igrejas favorecidas podem até utilizar a sua posição de privilégio para exercer influência sobre a sociedade, mas isso apenas sucede por via de rituais e símbolos, como uma religião civil e não pelo fervor espiritual. Os casos históricos no âmbito do protestantismo são imensos na Europa, desde o Reino Unido com a Igreja de Inglaterra aos países escandinavos com o luteranismo. Mas o fenómeno verifica-se igualmente nos países de tradição católica como Portugal, Espanha, Bélgica e Itália, onde durante o século vinte os governos discriminaram ativamente os não católicos nas áreas de direito da família, radiodifusão religiosa, política tributária e educação. Coisa semelhante acontece na Rússia com a igreja ortodoxa.
O terceiro paradoxo é o da perseguição. Já no século II Tertuliano dizia que “o sangue dos mártires é a semente da igreja”. A fé cristã cresce rapidamente em diversos países muçulmanos, como o Irão e o Afeganistão, onde sofre uma perseguição duríssima. Também a China vive um crescimento exponencial. O sociólogo das religiões Fenggang Yang afirma que desde a década de 50 o cristianismo protestante cresceu 23 vezes, prevendo que em 2030 a China terá mais cristãos do que qualquer outro país no mundo e em meados do século metade da China poderá ser cristã.
É por isso que os partidos populistas de direita, apesar de alcançarem ganhos eleitorais momentâneos em nome duma defesa da “nação cristã” (resta saber o que será isso…), a prazo estarão apenas a contribuir para um declínio mais acentuado da fé na Europa.
Meia-volta, volta e meia, os militares no Brasil
Civis que ocuparam o cargo de ministro da Defesa garantem que as Forças Armadas não embarcam numa aventura golpista. Eles sabem mais do que eu. No entanto tenho algumas dúvidas.
Não são dúvidas turbinadas pelo preconceito ou pelo ressentimento. Como jornalista, sempre destaquei ações positivas dos militares; no Congresso, mantive as melhores relações com assessores parlamentares das Forças Armadas, entre eles o general Villas Bôas.
Os fatos abalam qualquer certeza. Desde a não punição do general Pazuello até as recentes notícias sobre ameaças do ministro da Defesa, o curso dos acontecimentos nos leva à desconfiança. É difícil imaginar como uma sucessão de pequenas atitudes autoritárias pode conduzir a uma firme decisão democrática, no dia D e na hora H, como diz Pazuello.
Outro dia, um general ficou bravo comigo porque critiquei Pazuello por sua audácia ao assumir um cargo para o qual não tinha a mínima competência. Mencionei sua obediência cega a Bolsonaro, e o general entendeu minha crítica como uma tentativa de minar o conceito de disciplina dos militares. E disse que era capaz de matar ou morrer pela pátria.
Na verdade, peço muito menos que matar ou morrer: simplesmente pensar. Bolsonaro não merece uma obediência cega. Ninguém merece. O que está em jogo é uma noção de dignidade dos militares, discussão importante, pois, do seu prestígio, depende parcialmente a consistência da defesa nacional.
O perigoso esporte de humilhar generais, título do artigo que provocou a ira dos generais, continua a ser praticado. O general Ramos soube de sua saída da chefia da Casa Civil pela imprensa e confessou que se sentiu atropelado por um trem.
O general Mourão é enviado numa missão a Angola para defender, em nome do Brasil, a política da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não é política de Estado, e a tarefa não deveria ser aceita por um general.
Tenho muita tranquilidade em discutir o conceito de obediência na política. Não acho que seja uma extensão do conceito de disciplina militar. Nisso, sempre discordarei dos generais da direita, assim como discordei dos generais da esquerda nos longos debates sobre o chamado centralismo democrático.
O melhor instrumento que a sociedade tem para tratar da questão militar que aparece volta e meia é precisamente determinar uma meia-volta: aprovar o projeto que impede militares da ativa de ocupar cargos civis no governo. Votar logo essa proposta de voto impresso, decidir democraticamente se o teremos ou não.
Isso não basta. Concordo com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann: o Congresso é omisso ao não discutir os grandes temas da defesa nacional. A omissão dos parlamentares passa aos militares uma sensação de irresponsabilidade ou mesmo de ignorância em relação à dimensão do tema. Impede que a variável ambiental tenha a importância estratégica que merece, atrasa uma solução negociada para o futuro da Amazônia.
A fragilidade da representação política contribui também para que os militares tenham uma visão resignada do Congresso. Nos Anos de Chumbo, seus aliados eram da Arena, partido dos coronéis nordestinos; na eleição indireta à Presidência, o candidato dos militares era Paulo Maluf.
Não me espanta que o governo atual tenha se transformado numa associação entre militares e o Centrão. A escolha ideológica sempre foi mais importante que uma sempre anunciada recusa à corrupção.
Durante a Guerra Fria, a ideia de se unir com qualquer um para evitar o comunismo tinha um poder maior de atração. De lá para cá, a sociedade brasileira evoluiu, o comunismo fracassou, apesar da sobrevivência autoritária do PC chinês.
Resistir aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Ele é a base real da conciliação.
Fernando Gabeira
Não são dúvidas turbinadas pelo preconceito ou pelo ressentimento. Como jornalista, sempre destaquei ações positivas dos militares; no Congresso, mantive as melhores relações com assessores parlamentares das Forças Armadas, entre eles o general Villas Bôas.
Os fatos abalam qualquer certeza. Desde a não punição do general Pazuello até as recentes notícias sobre ameaças do ministro da Defesa, o curso dos acontecimentos nos leva à desconfiança. É difícil imaginar como uma sucessão de pequenas atitudes autoritárias pode conduzir a uma firme decisão democrática, no dia D e na hora H, como diz Pazuello.
Outro dia, um general ficou bravo comigo porque critiquei Pazuello por sua audácia ao assumir um cargo para o qual não tinha a mínima competência. Mencionei sua obediência cega a Bolsonaro, e o general entendeu minha crítica como uma tentativa de minar o conceito de disciplina dos militares. E disse que era capaz de matar ou morrer pela pátria.
Na verdade, peço muito menos que matar ou morrer: simplesmente pensar. Bolsonaro não merece uma obediência cega. Ninguém merece. O que está em jogo é uma noção de dignidade dos militares, discussão importante, pois, do seu prestígio, depende parcialmente a consistência da defesa nacional.
O perigoso esporte de humilhar generais, título do artigo que provocou a ira dos generais, continua a ser praticado. O general Ramos soube de sua saída da chefia da Casa Civil pela imprensa e confessou que se sentiu atropelado por um trem.
O general Mourão é enviado numa missão a Angola para defender, em nome do Brasil, a política da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso não é política de Estado, e a tarefa não deveria ser aceita por um general.
Tenho muita tranquilidade em discutir o conceito de obediência na política. Não acho que seja uma extensão do conceito de disciplina militar. Nisso, sempre discordarei dos generais da direita, assim como discordei dos generais da esquerda nos longos debates sobre o chamado centralismo democrático.
O melhor instrumento que a sociedade tem para tratar da questão militar que aparece volta e meia é precisamente determinar uma meia-volta: aprovar o projeto que impede militares da ativa de ocupar cargos civis no governo. Votar logo essa proposta de voto impresso, decidir democraticamente se o teremos ou não.
Isso não basta. Concordo com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann: o Congresso é omisso ao não discutir os grandes temas da defesa nacional. A omissão dos parlamentares passa aos militares uma sensação de irresponsabilidade ou mesmo de ignorância em relação à dimensão do tema. Impede que a variável ambiental tenha a importância estratégica que merece, atrasa uma solução negociada para o futuro da Amazônia.
A fragilidade da representação política contribui também para que os militares tenham uma visão resignada do Congresso. Nos Anos de Chumbo, seus aliados eram da Arena, partido dos coronéis nordestinos; na eleição indireta à Presidência, o candidato dos militares era Paulo Maluf.
Não me espanta que o governo atual tenha se transformado numa associação entre militares e o Centrão. A escolha ideológica sempre foi mais importante que uma sempre anunciada recusa à corrupção.
Durante a Guerra Fria, a ideia de se unir com qualquer um para evitar o comunismo tinha um poder maior de atração. De lá para cá, a sociedade brasileira evoluiu, o comunismo fracassou, apesar da sobrevivência autoritária do PC chinês.
Resistir aos impulsos autoritários de Bolsonaro dará à sociedade brasileira mais força contra qualquer nova ameaça aos fundamentos da democracia. O argumento ganha um peso maior se for aceito pelos militares. Ele é a base real da conciliação.
Fernando Gabeira
Assinar:
Postagens (Atom)