segunda-feira, 26 de julho de 2021

Chutando o futuro

Desde as cavernas, o homem sente a necessidade de prever o futuro. Lendo as sombras da fogueira, jogando ossos no chão ou interpretando os sinais da natureza, tentando adivinhar o dia de amanhã para se sentir no controle de seu destino.

Hoje evoluímos um pouco e usamos desde astrologia até big data para traçarmos nossos caminhos de vida com alguma segurança. A taxa de acertos era aceitável até março de 2020, quando a pandemia foi decretada e jogou para o alto os planos de bilhões de pessoas e zilhões de empresas.

Logo prever o futuro se tornou um campeonato de chute. A ignorância sobre o vírus fez de governantes, médicos e cientistas meros videntes tentando adivinhar números de fatalidades nos próximos meses. Os curandeiros de Facebook misturando remédios milagrosos e vitaminas com cúrcuma para evitar o contágio.

No meio da catástrofe, começamos a acreditar nas previsões de um homem novo nascendo na adversidade. Um novo homem espiritualizado, empático, generoso começa a rever seus valores para sobreviver. O rabino inglês Jonathan Sacks definiu a pandemia como “o mais perto de uma revelação divina a que um ateu poderia chegar”. Fé é o que não falta nas trincheiras ou nas UTIs.

Na Itália, as pessoas trancadas em casa foram para as varandas cantar em coro unindo o mundo todo numa corrente de alegria e compaixão. Profissionais da saúde desbancaram os fantasiados da Marvel para se tornar nossos super-heróis. As doações de cestas básicas e respiradores ajudaram a aliviar o desespero. A natureza se recuperou longe do homem e suas fumaças, e, apesar da dor indescritível das mortes solitárias, tudo indicava que havia uma semente de um renascimento da humanidade no meio da tragédia.

O tempo passou, e a ciência tomou as rédeas novamente. Menos chutes e mais dados deixaram claro que máscaras e distanciamento eram as únicas armas para controlar o volume de doentes nos hospitais enquanto as vacinas não ficavam prontas.

Mas a ciência perdeu a sua aura de confiabilidade. Tantas previsões conflitantes geraram a disputa entre fechar tudo para proteger a vida e abrir para proteger a economia, a guerra de sempre entre as coisas do coração e as do bolso. Revoltas contra máscaras e lockdowns estouraram incentivadas pelos Trumps e Bolsonaros do mundo, que parecem adorar ver o circo pegar fogo e ouvir os gritos de quem ficou preso dentro.

As vacinas chegaram muito antes do previsto, e o que deveria ser festejado como uma conquista milagrosa da humanidade é tratado com desdém por quem acredita nas imbecilidades propagadas pelos piromaníacos de circo.

Enquanto a Índia, o Brasil, o Equador e a África do Sul sofriam de falta de vacina, oxigênio e leitos, o Primeiro Mundo nadava em imunizantes que, muitas vezes, não eram usados por ideologia ou pura paranoia de uma gente mimada pela fartura.

Globalizamos mercadorias, mas não mais a empatia. Mesmo com a falta de vacinas no Terceiro Mundo, parece que hoje não há mais espaço nos países ricos para movimentos solidários como o Live Aid, organizado por Bob Geldof em 1985, que coletou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia.

A pandemia deixou claro: a previsão que importa para os próximos anos não será sobre o trabalho remoto, nem o ensino domiciliar, ou o fim do turismo de negócios. Será como conseguiremos medir e remediar o abismo que se formou entre pobres e ricos. No mercado de trabalho, entre os homens e as mulheres obrigadas a abandonar seus empregos para cuidar das crianças. Será sobre a escalada da desigualdade que aumentou a distância entre quem tem e quem não tem. Seja internet para poder estudar em casa, seja comida, emprego ou acesso a um sistema de saúde decente.

Já dá para prever que a tendência do mundo é se tornar menos global, mais fechado e tribalista. Mas não dá para saber se sairemos dessa motivados para a busca do bem comum, mais generosos uns com os outros ou se precisamos aceitar nossa condição de seres egoístas e autocentrados que sempre fomos. Para mim, é ingênuo buscar no outro um ser humano que faça jus ao adjetivo. Vamos procurar esse novo homem, menos egoísta e mais solidário, dentro de nós mesmos.

Não precisamos de videntes para nos dizer que tentar controlar o destino é enxugar gelo. Melhor seguir o grande Zécrates Pagodinho, o “filósofo de Xerém”, tradutor de Carpe Diem para o samba: “Deixa a vida me levar, vida leva eu / Sou feliz e agradeço, por tudo que Deus me deu”.

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