Quando Bolsonaro perguntou esses dias “cadê nossa liberdade?”, ele se referia à liberdade de divulgar notícia falsa. Afinal, se o gabinete do ódio, que chama de “gabinete da liberdade”, sofre tímidas restrições de plataformas privadas para desinformar sobre a pandemia e manipular nossas emoções políticas, restava só ensaiar uma canetada contra as redes.
A liberdade econômica, princesa de Paulo Guedes, encontra seus limites no fígado de Bolsonaro e no bolso do centrão. E vice-versa. Serve para uma Havan, não para qualquer Facebook.
Apesar da insistência dos profetas da democracia “risco zero”, que tentam nos tranquilizar e recalibram seus detectores de “instituições funcionando” para que os gritos das ruas e os sussurros dos generais sejam ignorados, o Brasil lidera a terceira onda de autocratização no mundo. Assim concluiu o relatório “Autocratização se torna viral”, produzido pelo centro de pesquisa V-Dem (Varieties of Democracy).
Esse processo segue passos meio padronizados: governos atacam a mídia, a ciência e a sociedade civil; constroem inimigos por discurso de ódio e desinformação, reprimem a divergência e atiçam a incivilidade; aos poucos, vão eviscerando a capacidade estatal de fiscalizar o poder e responsabilizar infratores.
Alimentam desconfiança no voto e terminam pela transformação constitucional do país. Não deixam de realizar eleições, mas combatem as pré-condições de eleições livres e justas. Aos poucos a democracia eleitoral dá lugar à chamada autocracia eleitoral, ou autoritarismo competitivo. Isso se um golpe à antiga não encerrar o processo antes, mas tem sido recurso ultrapassado e dispensável.
Para dimensionar a corrosão do espaço cívico com menos abstração ou impressionismo, vale olhar para o conjunto de casos de agressão ou inviabilização arbitrária das liberdades. O repertório tático de um governo autoritário conjuga asfixia financeira, estigmatização e intimidação pública e privada e, se preciso for, repressão. Tudo isso por meios mais ou menos explícitos, mais ou menos formais.
No campo da liberdade de expressão, o relatório da organização Artigo 19 sobre 2019-2020 descreve como e por que, no espaço de poucos anos, o Brasil foi de país “aberto” para país “restrito”. Estudos assim, contudo, não conseguem mensurar o quanto práticas de intimidação e o acosso jurídico de alvos específicos, ao despertarem medo pelo exemplo, desencadeiam um cala-boca geral.
O índice mundial de liberdade de imprensa, calculado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, mostra que o país declinou e ingressou na categoria vermelha, classificada como “difícil”, a segunda pior numa escala de cinco.
A liberdade científica e acadêmica segue o mesmo padrão. No índice global de liberdade acadêmica, construído pelos centros V-Dem e Global Public Policy Institute, o Brasil caiu para categoria C numa escala de A a D. Na América Latina, estamos melhor que a Venezuela, pior que todos os outros. Se você acha que o colapso digital do CNPq, nesta semana, tem a ver com isso, você acertou.
Não temos ainda um índice de liberdade artística para oferecer. Mas quem acompanha a vida cultural do país sabe a gravidade do momento: exposição de fotos sobre a construção democrática do país, em Juiz de Fora, foi suspensa porque o juiz viu nela “engenhos de publicidade”; secretaria de cultura inviabiliza apoio ao Festival de Jazz do Capão, com parecer extravagante que define a finalidade da música (“glória de Deus e a renovação da alma”).
Se quiser discutir liberdade de informação, acompanhe a redução da transparência oficial e as novas práticas de sigilo, acompanhadas pela máquina de desinformação. Se quiser falar de liberdade religiosa, olhe não apenas para os numerosos ataques de intolerância, mas ao centrão teocrático em Brasília.
Cadê nossa liberdade? Está aí. Vai reclamar?
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