Bernard Bouton |
Não é só Trump e o espetáculo decadente de um homem sem qualidades a recusar-se a aceitar a sua derrota. Não são só as mentiras e as manobras sórdidas, o egoísmo no seu expoente máximo no poder. Tudo isso acabará, felizmente, em breve. É o legado que Trump deixa, as caixas de Pandora que abriu, o indizível que pronunciou, as covas fundas que cavou, os exemplos que inspirou. Há 73 milhões de americanos que depositaram a sua confiança num ser humano desprezível, que se deixaram enlear em loucas teorias da conspiração, que são incapazes de distinguir factos de alucinações, e para quem os valores da igualdade, da justiça social, da compaixão, não importam nada. Há 70% de republicanos que não acreditam que estas eleições foram livres e justas. A semente está lançada. Onde houver um populista no mundo, as eleições a partir de agora nunca mais serão iguais. Acusações de fraude infundadas, desrespeito pelas instituições e pelo mais nobre ato de expressão da vontade popular serão constantes mesmo em democracias sólidas.
Trump não é a causa de todos os males do mundo, naturalmente. É apenas fruto podre de uma época e das suas condições, expressão máxima de uma tempestade perfeita de forças que confluem para aquela que é a maior ameaça para a ordem mundial e para o valor da liberdade desde a Segunda Guerra Mundial. A causa está na tecnologia que libertou novamente os piores fantasmas da natureza humana, que o Homem pensava ter enterrado com a civilidade e a democracia. Os homens são capazes do melhor, mas também do pior quando entregues a si próprios, aos seus medos e angústias, ao seu inato egoísmo. Sobretudo quando a vida não lhes corre bem, quando a crise agudiza, quando as soluções que lhes apresentam são gastas e pouco convincentes, quando a sua saúde e o seu conforto estão ameaçados. O Homem tanto quer, que se arrisca a tudo perder. Já vimos isto acontecer antes, e não foi bonito de se ver. Parece que estou a imaginar Thomas Hobbes, com o seu Leviatã debaixo do braço, a dizer “Eu bem avisei!” ao crente e bem-intencionado Jean-Jacques Rousseau. Acreditar na natureza intrinsecamente boa do ser humano é uma tarefa cada vez mais difícil quando mergulhamos no submundo de ódio e mentiras em que se transformaram as redes sociais. Quando percebemos que há tanta gente que prefere acreditar em qualquer coisa, menos na ciência, nos médicos e nos jornalistas. E quando olhamos para as forças políticas que crescem banhadas neste caldo de ressentimento, angústia e ignorância.
Se olharmos para a democracia como um grande ecossistema natural que se autorregula, podemos tentar acreditar que, depois de as pessoas provarem a água e não gostarem, o bem, a decência e a civilidade acabarão sempre por vencer. O problema é que os humanos são peritos a destruir ecossistemas antes considerados indestrutíveis, como se vê pelo que fizemos ao nosso planeta. Anne Applebaum explicou bem o fracasso da política e o apelo sedutor dos totalitarismos no livro O Crepúsculo da Democracia, em que, tomando os maus exemplos da História, do estalinismo à Alemanha nazi, analisa os movimentos populistas atuais pelo mundo, passando por Boris Johnson ao desmantelar do Estado de Direito na Polónia, na Hungria ou no Brasil. Não chegou a Portugal, mas teria bom material para se entreter. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como Morrem as Democracias, também mostraram como, no século XXI, elas não finam com uma revolução armada: morrem devagarinho, com pezinhos de lã, avanço aqui, cedência acoli, fechar de olhos acolá.
Estarei enganada, a ser pessimista? Nunca desejei tão ardentemente que sim. Não me saem da cabeça as palavras de Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, com quem falei há três semanas: “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.” Eu sei, tenho a certeza, de que lado vou estar. Sou bastante pragmática, mas estarei sempre do lado do humanismo, dos valores e dos princípios que tenho por inegociáveis e inalienáveis. Só é pena que cada vez mais gente, sobretudo gente com responsabilidades políticas, não saiba.
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