sexta-feira, 31 de julho de 2020

Brasil do peão boiadeiro


Bolsonaro pode estar certo

Jair Bolsonaro disse que o brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada. Bolsonaro deve saber — porque, no caso dele, é verdade. Basta ver seus amigos: políticos rastaqueras, policiais desonestos, milicianos condenados, assessores corruptos e industriais da violência. Até seus ex-vizinhos na Barra têm contas com a lei. Um presidente da República com acusados de assassínio na casa ao lado? Para Bolsonaro, é normal. Imagino seus churrascos com eles no condomínio, discutindo duplas sertanejas, o último programa do Ratinho ou um novo modelo de fuzil.

Daí não surpreende que seu governo inclua as piores pessoas do país. Ele não conhece outras. Dizia-se que dois ou três de seus ministros eram pessoas bem intencionadas. Mas pessoas bem intencionadas não se sentam a uma mesa com Ricardo Salles, Damares Alves, Ernesto Araújo, André Mendonça e Marcelo Álvaro Antônio —como a reunião ministerial de 22 de abril, ainda abrilhantada por Abraham Weintraub, tão bem demonstrou.

Quando Bolsonaro tentou obrigar seu então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a t omar medidas que contrariavam o juramento médico, falou-se que, se se submetesse, Mandetta estaria rasgando seu diploma. Não se submeteu, foi despedido e saiu com o diploma intacto. Seu sucessor, Nelson Teich, também médico e submetido à mesma indignidade, saiu antes de manchar o diploma. O general Eduardo Pazuello, que o substituiu, não tem diploma médico para proteger. Apenas uma farda, que mandará para a lavanderia.

A intimidade com Bolsonaro não compromete só diplomas e fardas. Torna as togas também sujeitas a respingos. Não que alguns de seus ocupantes, como o procurador-geral Augusto Aras, e o presidente do STJ, João Otavio de Noronha, estejam preocupados. A vaga no STF lhes exigirá, de qualquer maneira, uma toga nova.

Pensando bem, todo dia se confirma a frase de Bolsonaro.

Notícias do Arco da Velha

Passamos por um período horroroso, cruel, que nos faz sofrer muito. Difícil escapar da angústia, da tristeza. Dá vontade de não ler os jornais, queremos nos proteger de tanta dor. Mas fica na vontade, pois é impossível deixar de acompanhar o noticiário.

Ignorar o comportamento abissal, vergonhoso, estúpido, das autoridades de nosso país seria deixar de acompanhar o martírio da Nação, deixar de nos solidarizar com nossos irmãos. E também precisamos saber tudo que se passa para tentar nos salvar dessa pandemia, verdadeira praga, castigo dos céus.


O único alento: as pesquisas por vacinas e sua provável chegada dentro de pouco tempo. Modo de falar, pois esse pouco tempo é uma verdadeira eternidade para quem vive por onde anda o vírus infernal.

Vamos aos jornais, pois. E logo nos damos conta de que ao lado do noticiário sobre mortes e mais mortes, damos de cara com novidades do tamanho da mente das pessoas que ocupam os postos máximos no Brasil.

Sem rigor cronológico, apenas com a ajuda de uma memória já bem gasta, vamos pois às notícias saídas do Arco da Velha:

a) O Banco Central vai lançar uma nota de R$200,00. ‘O lobo-guará, animal escolhido para ilustrar a cédula, tem uma forma peculiar de caçar. Eles usam o olfato, mas principalmente a audição (com suas grandes orelhas) para caçar. Quando percebem as presas, saltam para desorientá-las e assim conseguem atacar com maior facilidade’ (Rogério Cunha de Paula, especialista em canídeos.).

b) O inacreditável presidente da República do Brasil, e ex-capitão do Exército, resolveu relaxar numa viagem ao Nordeste, região que não conhecia. Na Bahia, numa pequena cidade chamada Campo Alegre de Lourdes, ele soltou a frase que o definirá para sempre: “Vocês são pessoas iguais às outras quatro regiões do nosso Brasil”. Não é um pensamento magnífico? Digno de quem o expeliu?

c) Bolsonaro critica projeto contra fake news e reclama: ‘não vai poder mais se manifestar sobre nada’. O chefe do Executivo Brasileiro, pelo visto, acha que só pode se manifestar através de notícias falsas. Falar como qualquer outro chefe de Estado, diante de um microfone e aos olhos da Nação que governa, isso seria impensável.

d) Fraudes, roubos, desvios, compras superfaturadas, verba liberada para combater a pandemia guardada numa gaveta misteriosa, são pequenas/gigantescas notícias inseridas entre as notas relatando o número de mortes em tal ou qual dia "em tal ou qual município".

e) Guardei a “mais pior” para o fim. Veja, Leitor, se você consegue decifrá-la. Durante os áureos anos da Lava Jato, as decisões do Juiz Sergio Moro e de sua força tarefa, foram examinadas pelos mais altos tribunais do país. Ele passou glorioso por todas as investigações. Foi considerado o juiz mais brilhante de todos. Elogiado aqui e no resto do mundo. Sua fama era tal, que o candidato magrinho, o Bolsonaro, logo percebeu que sem ele não chegaria nem aos pés da rampa do Planalto. O que fez o ex-capitão? Convenceu o juiz a fazer parte de sua campanha, dando-lhe o cargo de Ministro da Justiça e da Segurança Pública por uns breves anos, até a primeira vaga no STF, que seria dele. A danada da mosca azul pousou em Sergio Moro, que aceitou o convite. Foi seu mal. Até muito pouco tempo atrás, repito, a Lava Jato era exaltada por todos, Moro o super herói de todos. Agora, por motivos que jamais serão expostos em praça pública, auxiliado e incensado pelo estranho PGR Augusto Aras, o que o governo faz é tentar destruir a reputação de Sergio Moro.

Recorde-se que os bolsonaristas gozam da fama de serem ferozes inimigos da corrupção. Durante a campanha exaltaram a Lava Jato por todos os meios ao seu alcance e homenagearam Moro com todas as medalhas em estoque no almoxarifado. E, no entanto, assistem impassíveis à tentativa de destruição de sua obra.

D’ agora em diante, tudo será possível.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Esfera pública e fake news

Até o século XVIII, a cultura europeia era uma representação da aristocracia da época, que traduzia a imagem de si mesma e dos súditos conforme seus interesses, com demonstrações de poder, desfiles militares, grandes palácios. Até que às tabernas somaram-se os cafés, teatros e salões literários, espaços fora da esfera de poder do Estado, lugares onde as pessoas podiam conversar e debater qualquer assunto de seu interesse, sem os filtros dos cerimoniais. Essa ampliação da “esfera pública” criou oportunidades para o questionamento da cultura representativa do Estado. A literatura e a pintura da época –– não existiam fotografia, cinema, rádio e televisão, muito menos internet — registram essa mudança.

Surgiu um espaço entre a esfera privada e o controle do Estado, que criou oportunidades para o enlace de interesses comuns dos indivíduos, até então contidos no âmbito familiar ou individual, e completamente à margem da esfera oficial. Esse foi um fator decisivo para a Revolução Francesa, em 1789, e suas consequências principais: o surgimento de instituições políticas democraticamente eleitas, tribunais independentes, declarações de direito etc. Um dos estudiosos da esfera pública é o filósofo Jungen Habermas, o teórico da “razão comunicativa”, hoje com 91 anos, um dos representantes vivos da famosa Escola de Frankfurt. Segundo ele, a sociedade é dependente da crítica às suas próprias tradições: os indivíduos precisam questioná-las e mudá-las, via a critica racional. Por isso, na “esfera pública”, surgem novos consensos e possibilidades de mudanças. E a sociedade se fortalece.


Essa conquista parece ameaçada, ironicamente, pela ampliação da própria “esfera pública”, via redes sociais. Esse é um debate que ocorre no mundo, por causa da suspeita de utilização de redes para manipulação da opinião pública e interferência nas eleições, como ocorreu na do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A “esfera pública” foi ampliada por esse “espaço virtual”, à margem das instituições políticas tradicionais, porém, sob controle dos novos protagonistas da globalização: Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Apple, Huawei. Ou seja, empresas em rede constituídas como estruturas supranacionais gigantes.

Aqui no Brasil, a polêmica também esquentou bastante. Discute-se no Congresso uma legislação de combate às fake news, e o Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu tirar do ar blogueiros radicais de extrema direita, ligados ao presidente Jair Bolsonaro, cuja eleição também é resultado da emergência das redes sociais na política brasileira e, em parte, da atuação desses blogueiros, financiados por alguns empresários. A decisão cita como titulares das contas a serem suspensas, além do ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, novo aliado de Bolsonaro: Luciano Hang, empresário; Edgard Corona, empresário; Otávio Fakhoury, empresário; Edson Salomão, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Rodrigo Barbosa Ribeiro, assessor do deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia; Bernardo Küster, blogueiro; Allan dos Santos, blogueiro; Winston Rodrigues Lima, militar da reserva; Reynaldo Bianchi Júnior, humorista; Enzo Leonardo Momenti, youtuber; Marcos Dominguez Bellizia, porta-voz do movimento Nas Ruas; Sara Giromini; Eduardo Fabris Portella; Marcelo Stachin e Rafael Moreno.

Morais também investiga parlamentares governistas, que tiveram os sigilos fiscal e bancários quebrados: Beatriz Kicis (PSL-DF), Carla Zambelli (PSL-SP), Daniel Silveira (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR), Junio Amaral (PSL-MG), Luiz Phillipe de Orleans e Bragança (PSL-SP), deputados federais, e Douglas Garcia (PSL) e Gil Diniz (PSL), deputados estaduais paulistas. A investigação é polêmica, porque envolve a liberdade de expressão e a quebra da imunidade parlamentar. Mas esse debate sobre fake news, no Congresso, deve resultar num novo marco legal sobre o tema.

Recentemente, antevendo a mudança, o Facebook cancelou 35 contas, 14 páginas e um grupo na sua rede social; no Instagram, eliminou 38 contas. O grupo reunia, aproximadamente, 350 pessoas, que eram seguidas por 883 mil bolsonaristas no Facebook e 917 mil no Instagram. As contas canceladas estavam envolvidas com a criação de perfis falsos e “comportamento inautêntico”. Segundo a empresa, foi possível identificar as ligações dessas pessoas com funcionários dos gabinetes do presidente Jair Bolsonaro, do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e também dos deputados estaduais Anderson Moraes e Alana Passos, do PSL no Rio de Janeiro. Tudo junto e misturado.

Pensamento do Dia

Yuri Kosobukin

Bolsonaro e a receita húngara para acabar com a imprensa crítica

“Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção.”
A frase de Jair Bolsonaro ainda pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem filtros.

Outro dia, num raro acesso de bom humor com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.

Bolsonaro segue à risca o manual húngaro “Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e filantropo George Soros.

Por mídia independente, entenda-se jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.

A primeira lição do manual de combate à imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli, “os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.



Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3 bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos, Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita publicitária on-line.

No Brasil, números sobre a divisão do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7% e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e rádio se manteve estável, com 4,6%.

A queda da circulação dos grandes jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo, Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).

Acrescente-se a essa fragilidade estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.

Na Hungria, Orbán baixou uma série de leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não alinhada ao partido no poder.

No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são líderes de audiência.

Embora detentora do maior ibope do país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e, em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para 16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora, 42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.

Também foram adotadas na Hungria várias medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.

Bolsonaro baixou medidas tendo em vista se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.

A publicação de balanços é fonte importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até 31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de 2019.

O presidente brasileiro não deixou dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.

Ameaçou o Valor Econômico em especial, dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E, logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era uma boa ideia.

Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes, do STF, em outubro.

O Congresso e o Supremo Tribunal Federal têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do governo.

Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final. E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32 [E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”, afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”
Patricia Campos Mello, autora de "A Máquina do Ódio"

Sucesso bolsonarista

O Brasil é o atual epicentro da pandemia, mas muitos líderes atuais continuam a demonstrar descaso, irresponsabilidade com a população, indo na contramão das recomendações dos principais órgãos de controle e especialistas
Carolina Lucas, brasileira integrante integra de grupo de pesquisadores da Universidade de Yale

No governo Bolsonaro, servidor público antifascista inspira cuidados

A Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça admitiu que monitora 579 funcionários públicos federais que se declararam antifascistas nas redes sociais. A intenção da medida, segundo a Secretaria, é “prevenir práticas ilegais” e garantir a segurança. Não especificou que “práticas ilegais” os antifascistas costumam cometer. E por que elas ameaçam a segurança.

Por sinal, segurança de quem? Das autoridades constituídas em geral? Do presidente da República em particular? Do Estado como um todo? Quem sabe do planeta, uma vez que as redes sociais aproximam as pessoas e é possível que existam antifascistas em toda parte? Por que ser antifascista é algo perigoso? Aos olhos de quem? Está escrito em que lei, norma ou portaria?

Providência similar não foi tomada pela mesma Secretaria contra funcionários públicos que se declararam fascistas nas redes sociais. É de supor-se, portanto, que esses não representam uma ameaça, quando nada ao governo do presidente Jair Bolsonaro. Ou vai ver que o serviço público está livre de fascistas. Ou que fascistas sejam mais prudentes e prefiram não se assumir como tal.

Resta outra hipótese: por razões ainda não suficientemente estudadas, os fascistas do serviço público e o governo Bolsonaro descobriram surpresos que compartilham os mesmos propósitos. Assim não haveria por que o Ministério da Justiça despender tempo e dinheiro vigiando-os. Para quê? Falam a mesma língua. Entendem-se bem. Os antifascistas é que devem se cuidar.

Nada de usarem as redes sociais para dizerem que são contra o fascismo, uma “ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e forte arregimentação da sociedade e da economia”. Nada de assinarem manifestos condenando outras ideologias que guardem alguma semelhança com o fascismo.

Os celulares já não inspiram confiança e a escuta se faz, hoje, a longas distâncias. Seu melhor amigo pode delatá-lo amanhã. Evitem estranhos. Evitem jogar conversa fora. Conversas cifradas podem facilmente ser decifradas. Vejam se não estão sendo seguidos. Aproveitem esses tempos de pandemia e usem máscara até que tudo isso passe. Com fé em Deus e no voto, vai passar.

Imperialismo High-Tech

Muitas palavras já foram escritas para definir o megaempresário Elon Musk, cujos negócios vão de carros elétricos e trens ultrarrápidos a viagens espaciais. Ele precisou de apenas nove para definir a sua visão de mundo: “We will coup whoever we want! Deal with it”. Alguma coisa como “vamos derrubar quem quisermos, lide com isso”, em tradução livre.

Foi sua maneira de responder, no Twitter, a uma crítica à suposta participação norte-americana no movimento que levou à queda do então presidente Evo Morales, na Bolívia, em novembro do ano passado. Segundo o autor da crítica, o golpe teria como objetivo garantir o acesso do empresário às reservas de lítio no país vizinho.

A Tesla, que integra o império empresarial de Musk, fabrica os mais lindos e desejados carros elétricos dos Estados Unidos. Os carros fazem parte dos sonhos de consumo de quem tem uma boa conta no banco e preocupações ambientais.

O que poderia haver de mais moderno? Além de atraírem olhares por onde passam, os veículos não produzem ruído nem emitem gás carbônico. Garantem um selo de ambientalista consciente a quem se senta ao volante.

Para colocar os carros elétricos nas ruas, porém, os fabricantes precisam ter acesso a minerais como o lítio – e em grande escala. Essa dependência já levou alguns críticos a estabelecer um paralelo entre a atual dependência por petróleo e a futura dependência por lítio. A relação não é tão direta, mas aponta para um novo eixo geopolítico.


A China tem grandes reservas, embora ainda importe muito lítio da Austrália para alimentar as suas próprias fábricas de carros elétricos e outros produtos industriais de alta tecnologia. Os interesses estratégicos dessa indústria, porém, tendem a se deslocar nos próximos anos do Pacífico para a América do Sul, especialmente para o trio Argentina-Bolívia-Chile.

O Chile é atualmente o segundo maior produtor, e suas reservas no deserto de Atacama são apontadas como as maiores do mundo. A Argentina ocupa a posição de terceiro maior produtor, enquanto suas reservas estariam na quinta posição mundial.

E a Bolívia? Ali podem estar jazidas de lítio ainda maiores, calculadas hoje em nove milhões de toneladas, mas que podem vir a alcançar 21 milhões segundo informa a publicação Foreign Policy, baseada em informações a serem divulgadas pelo U.S. Geological Survey.

As jazidas estão localizadas no Salar de Uyuni, até hoje uma grande atração turística, a 3600 metros de altitude. Sua exploração poderia ajudar o governo boliviano a retirar milhões de pessoas da pobreza. Assim como atrair a cobiça de grandes empresas mundiais, como a Tesla de Elon Musk.

Logo depois da provocação feita pelo empresário pelo Twitter, o ex-presidente Evo Morales apressou-se a usar o fato para fortalecer seu argumento de que teria sido vítima de um golpe de Estado, promovido por interesses econômicos. “Outra prova a mais de que o golpe foi pelo lítio boliviano”, escreveu Morales nas redes sociais.

Musk logo respondeu que compra lítio da Austrália, e não da Bolívia. Nem poderia. A produção comercial boliviana está apenas começando, com a ajuda de investimentos chineses. Na verdade, o projeto do governo anterior era o de fabricar baterias para carros elétricos ali mesmo, em solo boliviano, e não apenas exportar o mineral.

Morales indicava ser menos amigável aos interesses norte-americanos que Chile e Argentina. Pretendia usar o lítio como um passaporte para tirar seu país da condição de um dos mais pobres do mundo.

Por tudo isso, a sua renúncia em novembro, após forte pressão das Forças Armadas, fortaleceu a hipótese de um golpe motivado pelo interesse em minério. Um golpe que seria como um neto do que derrubou Salvador Allende, em 1973, no Chile que então era estratégico pela produção de cobre – assim como será pela de lítio.

Em seu recente artigo para a Foreign Policy, “O Lítio da Bolívia não é o novo petróleo”, o especialista em Geoeconomia Keith Johnson e o editor James Palmer refutam o argumento de que a queda de Morales estaria ligada a interesses estrangeiros contrariados.

Segundo os articulistas, o ex-presidente boliviano assinou contratos no valor de US$ 3 bilhões para a exploração de lítio com uma empresa da China e outra da Alemanha. Sua queda ocorreu semanas depois do cancelamento do contrato com a empresa alemã.

Ele estaria às voltas, nesse período, exatamente com um protesto de habitantes da região de Potosí que não se sentiam convencidos dos benefícios que poderiam vir a ter com o investimento alemão. Para os autores, a atuação de mineradoras chinesas na Mongólia “tem reputação tão pobre como a de multinacionais ocidentais no respeito às necessidades locais”.

Por sua vez, Morales admitiu ao jornal alemão Zeit que errou ao se candidatar a um quarto mandato consecutivo, apesar de uma decisão em contrário do Tribunal Constitucional da Bolívia. Mas contestou as acusações de fraude na sua eleição. As novas eleições no país acabam de ser adiadas mais uma vez, desta vez para 18 de outubro.

Ainda é cedo para dizer como e por quem serão exploradas as jazidas de “ouro branco”, nos salares brancos da Bolívia, cuja beleza atrai visitantes de todo o mundo e onde um dia houve um mar. Os sais de lítio seriam remanescentes dos tempos em que a região era um grande reservatório de água.

As nove palavras de Elon Musk, porém, indicam que a exploração do mineral que alimentará as baterias dos carros do século 21 precisa ser acompanhada de práticas igualmente contemporâneas.

Não cabe neste novo século o mesmo comportamento intervencionista que grandes países ocidentais adotaram no passado para exploração mineral. Nem pode ser aceita a mineração que não leva em conta o bem-estar das comunidades locais.

O argumento vale para a exploração mineral em terras indígenas, que o presidente Jair Bolsonaro quer ver regulamentada pelo Congresso Nacional.
Marcos Magalhães

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Gente não é nada

O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos
Eduardo Galeano

Sinais dos tempos

Em uma carta Ao Povo de Deus, 152 bispos católicos dispararam críticas acerbas ao governo, alertando para uma “tempestade perfeita” que combina “uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente”.

Os bispos declaram-se estarrecidos com o “apelo a ideias obscurantistas”; os “grosseiros erros” na educação e meio ambiente; a repugnância “pela liberdade de pensamento e de imprensa”; a “desqualificação das relações diplomáticas com vários países”; a insensibilidade “para com os familiares dos mortos”; e especialmente a “omissão, apatia e rechaço” a populações vulneráveis, como as indígenas. Eles reprovam ainda a associação “perniciosa” entre religião e poder no Estado laico, e em particular os grupos fundamentalistas e autoritários empenhados em “manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, e criar tensões entre igrejas e seus líderes”.


A carta, a bem da verdade, não representa oficialmente a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Por sinal, o fato de ela ter sido “vazada” antes do foro adequado para esta manifestação, a assembleia anual, sugere que os signatários talvez não estivessem seguros de obter a maioria de seus mais de 400 membros. É de notar também que ela não foi assinada pelos representantes de importantes dioceses. Com efeito, os manifestos da Igreja costumam se voltar antes à exortação ao bem do que à agressão particularizada a agentes do mal – a odiar o pecado e amar o pecador.

Os signatários afirmam não ter interesses “político-partidários” ou “ideológicos”. Mas é de perguntar até que ponto lograram seu intento de promover um “amplo diálogo” entre “humanistas” comprometidos com a democracia. As vituperações genéricas e descontextualizadas contra o “neoliberalismo” ou as reformas previdenciária ou trabalhista não ajudam. Até porque, para o bem ou para o mal, o governo nunca se comprometeu com uma agenda liberal e as reformas foram antes uma consecução do Congresso após um amplo escrutínio democrático. Chama a atenção ainda a omissão dos bispos em criticar a omissão do governo no combate à corrupção – que paradoxalmente foi uma de suas alavancas eleitorais. A pauta, como se sabe, é sensível a parte da militância de esquerda – notadamente a petista – que vê na indignação popular com a corrupção um movimento orquestrado pelas elites “neoliberais”.

Mas, apesar de seus indisfarçáveis matizes partidários, as principais críticas da carta são consensuais entre os setores mais moderados e esclarecidos da sociedade brasileira e internacional. A própria CNBB já criticou as políticas do governo na área ambiental e indígena e acompanhou outras instituições nas denúncias do movimento Pacto Pela Vida à participação do governo nas crises sanitária, social e política. No todo, a carta é um importante sinal de que as instâncias religiosas, após tentarem se manter neutras em tantas controvérsias políticas, estão chegando a um ponto de saturação, sugerindo um possível esvaziamento do que há de apoio ao governo na comunidade católica.

Em uma passagem do Evangelho de Lucas, Jesus, instado a solucionar uma disputa patrimonial entre dois irmãos, responde: “Quem me designou juiz de vocês?”. Então ele adverte contra os perigos das ambições terrenas, e acusa a hipocrisia daqueles que leem com exatidão os sinais meteorológicos no céu, mas negligenciam os sinais do tempo presente. “Quando algum de vocês estiver indo com seu adversário para o magistrado, faça tudo para se reconciliar com ele no caminho; para que ele não o arraste ao juiz, o juiz o entregue ao oficial de justiça, e o oficial de justiça o jogue na prisão.”

Embora os bispos não tenham sido exímios nesta arte da reconciliação – longe disso –, a sua carta é mais um sério alerta de que o governo caminha na direção do abismo. Já passou da hora de o presidente aprender a ler os sinais.

Brasil: 'Que venham os turistas!'

Maarten Wolterink (Holanda)

Uma história de capivara

Tenho uma capivara linda e enorme na sala, em frente a uma janela. Ela é recortada em madeira, no tamanho natural de uma capivara de médio porte, e é vermelha com flores amarelas num dos lados, e branca com listras azuis do outro. É completamente desproporcional ao espaço que ocupa, mas quem liga? Ela é uma das marcas da casa, junto com um triceratops verde e igualmente desengonçado que também não faz muito sentido. A vida é assim, vai juntando pessoas e coisas desconexas que, com o passar dos anos, se afeiçoam umas às outras.


Ganhei a capivara do Mário Maluco, dono do Palaphita Kitch, que tinha uma coleção delas para enfeitar o gramado em frente ao quiosque. Há muitos e muitos anos — quando ele tinha acabado de inventar essas capivaras — passamos uma tarde jogando conversa fora, enquanto esperávamos a verdadeira capivara aparecer. Ela vinha jantar umas plantinhas ali ao lado com certa regularidade e, naqueles primeiros tempos, cada visita sua era saudada com estardalhaço, porque a sua presença garantia para os clientes uma rodada de “capivodka” por conta da casa.

Pois nesse dia específico ela não veio, e ficamos frustrados; mas o Mario, perfeito gentleman, arrancou uma das capivaras que enfeitavam a área, como se colhesse uma flor, e meu deu.

Desde então, ela se incorporou à casa.

Algum tempo depois, quando a Bia fez anos, nós a espetamos em frente ao prédio para avisar aos amigos onde era a festa. No meio da noite e da confusão, o Mario me ligou: a capivara estava de volta ao Palaphita, e ele queria saber se era isso mesmo.

— Não quer mais a capivara?

— Ela está aqui na minha frente.

Larguei a festa e fui lá ver do que se tratava; era só atravessar a rua e andar cem metros. Cheguei e, de fato, lá estava ela, a própria, com suas flores e listras. Pergunta daqui, pergunta dali, logo descobrimos o que havia acontecido: quando viram a capivara espetada em frente ao meu prédio, os guardas noturnos acharam que tinha sido vítima de algum bêbado cheio de ideias, e a levaram “de volta”.

Nunca mais ela saiu de casa.

As capivaras irmãs da minha ficaram gastas e foram substituídas por outras (não tão bonitas); o tempo passou. Anteontem, depois de 16 anos de bons e belos serviços, o Palaphita que tanto amamos foi demolido pelos fiscais da prefeitura do bispo Crivella. A Secretaria de Fazenda teve a cara dura de afirmar que o quiosque — com uma personalidade única, perfeitamente integrado à paisagem — “estava ilegal”. Imaginem: 16 anos de “ilegalidade”. Há uma briga judicial sórdida pelo espaço.

Soube pela Lu Lacerda que Mário Maluco foi para Portugal, onde pretende abrir um novo negócio (e para onde vai levar as suas ararinhas Waiwai e Mura). Mais um 7 x 1. Uma empresa chamada Fine Food's (!) pretende ocupar o lugar com mais um naco de terra de ninguém, um daqueles não-espaços sem caráter, que existem aos montes em todos os shoppings, de Dubai a Kuala Lumpur.

Assim morre um bairro, assim morre uma cidade, assim morre um país que não faz por onde conservar e estimular os seus cidadãos mais criativos.

Boa sorte, Mário meu amigo. A capivara manda lembranças.

A volta do 'mais do mesmo'

O governo Bolsonaro perdeu o ímpeto das reformas. É normal, mas após o segundo ano de governo. Entretanto, a pandemia antecipou a inércia. E, se levarmos em conta o papel coadjuvante que representou na reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro nunca teve muita motivação para protagonizar as reformas econômicas. Sua agenda prioritária sempre foi outra, o conservadorismo nos costumes, que também anda encalhado no Congresso, e o fortalecimento do Executivo em relação aos demais Poderes, como fato consumado na política. Se ainda houver alguma reforma este ano, será a tributária, na qual as propostas em discussão na Câmara e no Senado são mais ambiciosas do que o projeto apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para embrulhar a recriação do imposto sobre operações financeiras. Uma solução simples para um problema muito mais complexo, que seria modernizar o nosso sistema tributário para torná-lo mais eficiente, equilibrado para os entes federados e mais justo, socialmente.

Entre os economistas, há uma compreensão quase unânime de que a dívida pública, se nada for feito, trará de volta a inflação no próximo ano (o termômetro é o câmbio), que somente não está acontecendo por causa da recessão e do desemprego. Mesmo economistas como Samuel Pessoa e Armínio Fraga, que defendem políticas de austeridade fiscal, já admitem a criação de um novo imposto para evitar o colapso do governo federal no próximo ano. A alternativa que está se discutindo, a partir da proposta de Guedes, é a volta da CPMF. A tese é ampliar a base de arrecadação para ter a menor alíquota do imposto. Com isso, o governo espera resolver seu problema de caixa e evitar a insolvência.


Como aconteceu na reforma da Previdência, uma reforma tributária depende muito mais da Câmara e do Senado do que do empenho do Palácio do Planalto. O projeto encaminhado por Paulo Guedes não tem nada a ver como isso: seu foco é a falta de caixa. Por causa da pandemia, o governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Na pauta da Câmara e do Senado, respectivamente, as PECs 44 e 110 são outra coisa: uma reforma tributária de verdade.

A PEC 45/2019, elaborada por Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, tem como relator o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. É defendida também pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que pretende aprovar a reforma tributária antes de deixar o comando da Casa. O ponto central do projeto é a substituição de cinco tributos por um único imposto, que seria chamado de imposto sobre bens e serviços (IBS). O modelo é inspirado em sistemas utilizados em outros países, que reúnem em um único imposto sobre valor adicionado (IVA) toda a tributação sobre o consumo, com uma alíquota uniforme. Economistas como Samuel Pessoa defendem a proposta.

A PEC 110/2019, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, em discussão no Senado, porém, tem a preferência dos tributaristas, porque promove uma simplificação tributária mais ampla, unificando nove impostos. A PEC, porém, facilita a concessão de incentivos fiscais a alguns setores produtivos e atividades econômicas específicas — como de alimentação básica, saneamento básico, educação infantil, o que não é bem-visto pelos fiscalistas, porque gera subsídios cruzados e guerra fiscal.

Voltando ao ponto de partida. O governo não aposta em nenhuma dos dois projetos já em tramitação. Fatiou a sua proposta de reforma tributária, porque o interesse maior de Guedes é sair do sufoco orçamentário. O problema é que essa estratégia mexe com os nervos da equipe econômica, recrutada entre economistas liberais, cuja motivação para participar do governo está longe de ser apenas financeira, é ideológica. Se Guedes jogar a toalha e aderir ao “mais do mesmo”, a equipe implode.

É muito difícil ser bolsonaista

Inegáveis a devoção, a energia e a habilidade que os apoiadores do governo demonstram. A capacidade infinita de enxergar seus ídolos com filtros coloridos não é estranha a nenhum militante, mas a vida do bolsonarista é um malabarismo permanente.

A começar pela exaltação da cloroquina. Todos virados em direção ao Palácio da Alvorada, a meca dos "patriotas", para louvar um remédio que inúmeras pesquisas apontam como ineficaz contra o coronavírus.

Rejeitar a ciência, porém, é nada perto do contorcionismo para apoiar Madonna, que, de feminista de carteirinha e defensora do aborto legal, e portanto inimiga, passou a correligionária após defender o uso do medicamento.


E o que dizer dessa massa que passou a eleição falando em combate à corrupção e à velha política, fim de privilégios e bandido morto e hoje aplaude Bolsonaro de mãos dadas com o centrão, exalta o ex-presidiário Roberto Jefferson, defende o foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a prisão domiciliar de Queiroz?

Um dia o bolsonarista pede a volta da ditadura, desconjura militar frouxo, diz que a mídia mente. No outro, reclama que vive sob uma ditadura, clama pelo direito de ir e vir e de desrespeitar medidas sanitárias de combate à pandemia, defende fake news e liberdade de expressão (a deles).

Eles ainda encontram tempo para, entre uma novela e outra da Globo, seguir os perfis da "extrema imprensa" só para poder cravar seus slogans, #globolixo, #folhalixo, #acabouamamata. Menos, claro, a mamata oficial. O interino da Saúde nomeou uma amiga, sem experiência, para chefiar o ministério em Pernambuco. E daí? O que pega mesmo os bolsonaristas é a propaganda de Dia dos Pais com o transexual Thammy Gretchen.

Sem falar nas reclamações rotineiras contra o establishment, que partem inclusive de integrantes do governo e de filhos do presidente. O contorcionismo é admirável. Pense no susto se descobrirem que o establishment são eles.

A boiada de Ricardo Salles passou sobre a política ambiental

Resta comprovado que o presidente Jair Bolsonaro seguiu o conselho de Ricardo Salles, seu ministro do Meio Ambiente, e aproveitou os meses iniciais da pandemia do coronavírus para reforçar os maus tratos à natureza, marca do seu governo até aqui.

Um levantamento feito pelo jornal Folha de S. Paulo em parceria com o Instituto Talanoa mostra que, entre março e maio deste ano, o governo publicou 195 atos no Diário Oficial, todos ligados ao tema ambiental. Nos mesmos meses de 2019, foram apenas 16.


Na reunião ministerial de 22 de abril último, Salles sugeriu a Bolsonaro que aproveitasse o momento em que a imprensa estava ocupada com a pandemia para “passar a boiada”, mudando “todo o regramento e simplificando normas"; na área do meio ambiente.

E foi isso o que Bolsonaro autorizou que se fizesse como aponta a análise inicial das principais portarias, instruções normativas, decretos e outras normas baixadas ou alteradas. O processo de desmonte das políticas ambientais ganhou celeridade.

A instrução normativa 4/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA), por exemplo, que trata da priorização de indenização para populações tradicionais em reservas ambientais, criou uma brecha para facilitar a expulsão de índios e quilombolas dessas áreas.

A portaria 432/2020 permitiu ao ICMBio centralizar a gestão de duas unidades de conservação em Roraima, cancelando a criação de mais duas bases avançadas. Ali, há registros recentes de invasão de garimpeiros e de aumento da derrubada de árvores.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Brasil no bambolê do capitão


Por que só Bolsonaro?

O Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, recebeu as acusações contra Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade no contexto da pandemia. Foram levadas por entidades brasileiras que representam mais de um milhão de profissionais da saúde, responsabilizando-o pela morte de milhares no país por sua ação ou omissão. Matar não se limita a um tiro à queima-roupa.


Pode-se escolher entre as práticas de Bolsonaro desde a chegada da Covid: piadas com o vírus, minimização de seu perigo, desinformação deliberada sobre ações de prevenção, desprezo por medidas nacionais que amenizassem a quebra da economia, recusa em aceitar as orientações dos órgãos internacionais, instigação à desobediência dessas orientações, desmoralização dos encarregados por ele próprio de dirigir a saúde e sua substituição por estranhos à matéria, fazer propaganda falsa de remédio, debochar das vítimas da doença, indiferença quanto ao destino da população que jurou proteger. Com tudo isso ao alcance de seu poder, quem precisa de arminha?

Mas não nos iludamos. Os trâmites do tribunal são lentos e talvez só cheguem a uma conclusão quando um dos dois já tiver acabado, o mandato de Bolsonaro ou o Brasil --o que vier primeiro. Mas seria um consolo ver no banco dos réus, nem que fosse por uma sentada, os responsáveis pela maior calamidade pública na história deste país.

O que, como aconteceu em outros tribunais internacionais, deveria reservar lugar também a executores de sua política. Isso incluiria o general Eduardo Pazuello, que pôs a farda a serviço da farsa, estimulando o uso de medicamento impróprio e arriscado, sonegando informações sobre a evolução da crise, recusando-se a prestar contas diárias à sociedade e cercando-se de colegas de quartel, talvez para dividir sua responsabilidade.

Mas, você sabe, Haia é uma cidade pacata, com seu ritmo próprio.
Ruy Castro

As mil e uma 'democracias'

É um sentimento quase universal quando dizemos que um país é democrático, nós o estamos elogiando, em consequência, os defensores de todo tipo de regime alegam que ele é democrático e temem que tenham de deixar de usar a palavra se esta for atrelada a algum significado.
 
As palavras desse tipo são muitas vezes usadas de maneira conscientemente desonesta. Ou seja, a pessoa que as utiliza tem sua própria definição particular, mas permite que o ouvinte pense que ela quer dizer algo bem distinto George Orwell, "Como morrem os pobres e outros ensaios"

'Isso não é gente'

Áudios e mensagens de texto com ataques a indígenas do município de General Carneiro, no interior de Mato Grosso, se tornaram alvos do Ministério Público Federal (MPF). Os comentários ofensivos foram compartilhados nas últimas semanas em um grupo de WhatsApp destinado aos moradores da cidade.

Nos áudios e nas mensagens de texto, os indígenas são apontados por alguns moradores como os principais responsáveis por propagar a covid-19 no município mato-grossense.

Os comentários ofensivos começaram, principalmente, após os moradores notarem que a maioria dos casos de covid-19 na cidade, até o momento, tinham sido registrados nas aldeias da região.

"Ô, companheiro, isso daí só é índio, rapaz... não é gente, não (...). Dentro de General mesmo, o número de infectados é muito pouquinho, graças a Deus. Agora os índios... esse povo aí é sem cultura, sem religião, quem dá conta desse povo aí?", disse um homem em um dos áudios compartilhados no grupo.

A cidade mato-grossense tem 5,5 mil habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parte da população é composta por indígenas pertencentes aos povos bororo e xavante.

Dados atuais da covid-19 no município apontam que General Carneiro registrou 160 casos de covid-19, sendo 117 deles em indígenas. Na cidade, sete pessoas morreram em decorrência do novo coronavírus, seis delas eram indígenas — três da etnia xavante e três da bororo.

As mensagens no grupo da cidade no WhatsApp causaram apreensão em indígenas, que passaram a temer que as acusações contra eles motivassem ataques às aldeias. Em razão disso, encaminharam o caso ao MPF e irão levá-lo para a Fundação Nacional dos Índios (Funai).

No grupo, intitulado "General Notícias Regiões", alguns moradores utilizaram termos ofensivos ao se referir aos indígenas. "Palhaçada esse tanto de casos positivos (de covid-19) em General. Estou vendo que essa 'porra' desse lugar vai fechar por causa desses índios (...). Não estou aguentando esses capetas desses índios na porta de casa pedindo comida 24 horas", disse uma moradora do município.


A mulher ainda defendeu, no áudio, que os indígenas sejam "trancados" nas aldeias para que não tenham contato com os demais moradores da cidade.

Em outro áudio, um homem chamou os indígenas da região de "bichos" e disse que eles precisam ser isolados, para proteger os outros moradores. "Tem que fechar as aldeias, né? Chegar lá, colocar a polícia lá e travar tudo. Teriam que fechar as aldeias para esses 'bichos'", afirmou.

Essas foram algumas das ofensas propagadas no grupo. A reportagem apurou que foram, ao menos, cinco áudios ofensivos nas últimas semanas, além de diversas mensagens de texto.

As ofensas preocuparam os indígenas da cidade. Os bororo, que vivem na Terra Meruri, consideraram as declarações como "violência moral, psíquica, ética e cultural" e afirmaram que a situação representa um caso de "preconceito, injúria racial e racismo".

Eles classificaram os áudios como "extremamente preocupantes e com teor criminoso, inadmissível em nossa sociedade e no regime jurídico brasileiro". Em documento assinado por lideranças da região, relatam que os ataques ocorrem desde junho, "por conta do perambulo e permanência na cidade, onde os moradores estão atribuindo a disseminação da pandemia ao trânsito de indígenas".
No documento, os indígenas afirmam que temem que os áudios culminem em agressões físicas contra o povo, "tendo em vista a quantidade de casos de violências graves a indígenas registrados no país".

Ainda no documento, eles argumentam que a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas destaca que deve haver respeito à liberdade e igualdade a todos.

O documento, que será encaminhado à Funai e ao MPF, pede que as mensagens compartilhadas no grupo de WhatsApp sejam investigadas e que os responsáveis pelas declarações sejam responsabilizados na Justiça.

Os bororo pedem também que sejam feitas ações de conscientização na cidade sobre a questão indígena, para combater o preconceito e o racismo.

"Com o avanço da tecnologia e dos meios de transporte, nós, povos indígenas, temos participado mais da rotina das cidades e no município de General Carneiro. Temos fortalecido o comércio local, somos ativos na economia e também devemos ser valorizados (...). Não buscamos atrito com os moradores, mas sim que os indivíduos envolvidos sejam julgados de acordo com a lei e que daqui pra frente possamos construir uma nova história", conclui o documento.
Medo de invasões

Um dos representantes dos bororo, o indígena Liberio Uiagumeareu, afirma que as declarações não podem ficar impunes. "A princípio, quando escutamos um áudio, ignoramos. Mas depois vimos que essa situação aumentou muito e outras pessoas falavam coisas parecidas. São falas preocupantes. Há muitas acusações falsas", diz ele, que é formado em Direito e atualmente vive com a família em Cuiabá (MT).

Também do povo bororo, Kleiton Rodrigues ressalta que as críticas e o preconceito contra indígenas na região são uma situação histórica. "Mas, ainda bem, não são todos que têm essa visão de ódio contra a gente", diz o indígena, que vive na terra Meruri, em General Carneiro.

Somente na Meruri já foram confirmados mais de 100 casos de covid-19. "A transmissão foi muito rápida", diz Kleiton. Ele não testou positivo para a covid-19 em um exame, mas acredita ter sido infectado pelo coronavírus, pois a esposa e os filhos, que moram com ele, foram diagnosticados com a doença.

"O Brasil todo estava despreparado para essa doença. O nosso povo está desassistido pelo governo", acrescenta Kleiton, que é presidente do Conselho de Saúde Indígena da aldeia.

Há cerca de 1,7 mil habitantes no território bororo, divididos em cinco municípios mato-grossenses. Em General Carneiro, vivem, aproximadamente, 600 deles.

Os comentários no grupo de WhatsApp também incomodaram os xavante. A etnia tem visto a covid-19 se espalhar na terra Sangradouro, que abriga cerca de 1,2 mil habitantes somente na área pertencente a General Carneiro. Ali, os indígenas contabilizam mais de 100 casos.

"Essas ofensas aos indígenas existem há muito tempo. Atualmente, as pessoas têm se sentido mais protegidas pelo governo do Jair Bolsonaro, que não respeita os povos indígenas", declara Hiparidi Toptiro, xavante de Sangradouro e coordenador-geral do movimento Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado.

Os xavante são a etnia mais populosa de Mato Grosso e a quarta do país, com cerca de 23 mil indivíduos espalhados por nove terras indígenas, em mais de 320 aldeias — há centenas de casos do novo coronavírus em diferentes aldeias xavante.

Hiparidi afirma que discursos como os dos moradores de General Carneiro fortalecem ações contra indígenas e gera temor. "Isso favorece, por exemplo, ações daqueles que querem invadir e explorar as nossas terras, que se sentem mais fortes", declara.
Apurações do MPF

Os áudios e mensagens de texto do grupo de WhatsApp foram encaminhados ao MPF por representantes indígenas da região.

O MPF de Mato Grosso instaurou uma notícia de fato — medida inicial para colher informações sobre um caso — para apurar as mensagens. Posteriormente, se o procurador considerar necessário, pode converter o procedimento em inquérito. Depois, o caso pode se tornar um processo judicial.

As mensagens no grupo foram classificadas pelo MPF de Mato Grosso como "manifestações de discriminação, de ódio e de ameaça". Em nota, o Ministério Público Federal ressalta que os povos indígenas são "grupos culturalmente diferenciados", que "não devem sofrer restrições de direitos". A entidade frisa que a Constituição Federal busca a "igualdade material e a efetiva proteção dos direitos" desses povos.

O comunicado do MPF-MT ressalta que crimes de preconceito de raça e cor podem culminar em reclusão de dois a cinco anos "para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, por intermédio de publicação de qualquer natureza".

O fato será apurado pelo procurador Everton Pereira Aguiar Araújo, de Barra do Garças (MT). Segundo o MPF-MT, os envolvidos poderão sofrer "responsabilização civil e criminal".

Um dos responsáveis pelos áudios contra os indígenas, um comerciante de 60 anos, que pediu para não ter a identidade divulgada, afirma estar muito arrependido dos comentários que fez. "Levaram minha declaração para outro lado. Não falei com malícia nenhuma. Fiquei muito chateado", diz à BBC News Brasil.

No áudio, o comerciante se referiu aos indígenas como "bichos", mas nega que tenha sido uma expressão preconceituosa. "Tenho uma mania besta de falar assim: 'fala, bicho' ou 'e aí, bicho'. Naquela hora falei bicho, mas eles são iguais a nós. Foi uma palavra errada", justifica.

"Me arrependo. Se soubesse que iria virar isso... Pedi desculpas (a líderes indígenas). Foi um erro meu. Foi um momento de burrice. Se fosse para ajoelhar para pedir perdão, eu faria. Mas agora não adianta, já está no Ministério Público e vou ter que arcar com as consequências", acrescenta o comerciante de General Carneiro.

Apesar de negar que tivesse a intenção de ofender, o homem justifica a crítica aos indígenas por um conflito familiar do passado. "O meu pai perdeu uma área de terra (em General Carneiro) para os indígenas em 1976. Era uma área 1,2 mil hectares, que hoje pertence a uma aldeia", diz. Ele afirma que não sabe, porém, detalhes sobre a decisão judicial que obrigou seu pai a deixar a propriedade.

Também entre os responsáveis pelos comentários contra os indígenas está o advogado Fabio Dias, que há mais de 16 anos se mudou de General Carneiro para a capital mato-grossense. No grupo, ele disse que "não é chegado a índio". Em nota à BBC News Brasil, ele afirma que se expressou mal. "O que queria dizer, na verdade, é que não sou chegado às causas indígenas, visto que no grupo havia uma campanha para arrecadação de itens de higiene em favor dos povos indígenas, da qual não participei", argumenta.

"Em relação ao meu ponto de vista, tenho que todos nós, independente de raça, cor, nação, cultura, religião e outras peculiaridades individuais e coletivas, somos todos iguais, e temos direitos a diferenças, e o dever ético/social de respeitá-las", completa o advogado, de 40 anos.

A reportagem tentou contato com outras pessoas que também fizeram comentários contra os indígenas no grupo de WhatsApp, porém não obteve respostas.
O ódio no contexto da pandemia

Antropólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Diógenes Cariaga pontua que o preconceito contra os indígenas é uma situação que perdura há séculos. "Há questões que reforçam a discriminação e o discurso de ódio contra os indígenas, como os problemas fundiários e a disputa política em relação à identificação e demarcação das terras."

Para ele, a pandemia reforçou esse preconceito. "Uma situação como a que vivemos atualmente reacende esse discurso. Ao longo do século, criaram a imagem do indígena como alguém que não trabalha, que é preguiçoso e bêbado. Essa argumentação é recorrente em discursos regionais e é alimentada por uma estrutura tensa de problemas fundiários, como se todos os indígenas fossem assim", diz.

"No Brasil, a pandemia veio pelas pessoas de classe média alta, que viajaram para fora, até chegar aos indígenas. Em Dourados (MS), por exemplo, um dos primeiros casos em aldeias foi o de uma indígena que trabalhava em um frigorífico", relata o especialista. Ele avalia que há uma "construção histórica de preconceito contra os indígenas" que faz com que muitas pessoas associem a disseminação do coronavírus a esses povos.

Ele cita uma situação que ocorreu semanas atrás em Dourados, segunda maior cidade de Mato Grosso do Sul, como exemplo do preconceito sofrido por indígenas no contexto da pandemia do novo coronavírus. Uma academia do município publicou, em seu perfil no Instagram, uma imagem de uma indígena, que estava com duas crianças, andando sem máscara em uma rua da cidade.

"As academias são lugares de proliferação de covid e precisam estar fechadas para que as pessoas fiquem com suas imunidades bem baixas. Porém, essas pessoas (indígenas) podem andar sem máscara e, se não me engano, a aldeia estava cheia de covid. Acordaaa, Dourados!", escreveu um dos responsáveis pela academia — que está fechada em razão da quarentena, para evitar a propagação do coronavírus.

Dourados, que tem cerca de 210 mil habitantes, já registrou mais de 4 mil casos de covid-19. Desses, 200 ocorreram em terras indígenas.

A publicação da academia, apagada minutos depois, causou indignação. Muitos internautas apontaram que se tratou de caso de racismo ao expor os indígenas e apontá-los como responsáveis pela propagação da covid-19 na cidade. "Esse tipo de discriminação tem sido recorrente", diz Diógenes.

"O que me parece é que setores que sempre foram contrários às questões indígenas passaram a manipular o discurso para tornar os indígenas responsáveis pela pandemia. Eles (os indígenas) são os mais vulneráveis a tudo isso e estão sendo duramente impactados. Mas existe uma construção de narrativa para manipular o discurso e colocá-los como culpados", afirma o antropólogo.

O Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul instaurou, em 16 de julho, um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) — que tem início após as primeiras apurações do órgão. Os responsáveis pela academia negam que a publicação tenha sido racista e alegam que o texto teve interpretação diferente da que queriam passar.

O MPF informa que analisa o caso para avaliar se será encerrado ou se poderá culminar em um processo judicial. Responsável pelo procedimento, o procurador do MPF de Dourados, Marco Antônio Delfino de Almeida, afirma à BBC News Brasil que consultará a comunidade indígena sobre o caso. "Obviamente, o sentimento da comunidade terá repercussão para avaliarmos as medidas a serem empreendidas", declara
A covid-19 entre os indígenas

Enquanto aumenta o discurso de ódio, cresce também a precariedade da condição de vida nas aldeias. Os indígenas são considerados especialmente vulneráveis à covid-19 por alguns fatores como o compartilhamento de objetos, a frágil assistência médica em seus territórios e a grande quantidade de pessoas morando em áreas muito próximas.

Situações como a de General Carneiro ilustram a vulnerabilidade dos indígenas em relação à covid-19. "O meu povo está doente e assustado com tudo isso. A nossa terra é também um território vulnerável porque a BR-070 passa por aqui e muitos automóveis transitam diariamente em nosso entorno. Além disso, os produtores de grãos estão nos pressionando para arrendar nossas terras", diz Hiparidi.

Um dos representantes dos xavante de General Carneiro, Hiparidi contraiu a covid-19 recentemente e passou dias internado. "A situação por aqui não está fácil. Os números são muito maiores do que pensamos. E, além disso, ainda há o ódio das pessoas contra a gente", lamenta.

Os representantes dos xavante e dos bororo relatam que foram colocadas barreiras sanitárias nas entradas das aldeias para controlar o fluxo dos moradores. Eles pontuam que o fluxo de indígenas na cidade caiu, porém, muitos deles precisam ir a regiões centrais do município por questões básicas, como comprar mantimentos.

Hiparidi afirma que o discurso de ódio contra os indígenas tem se tornado cada vez mais comum e forte, em razão da conduta do presidente Jair Bolsonaro em relação ao tema.

O líder indígena classifica a postura do presidente Jair Bolsonaro como genocida, pois aponta que não deu o suporte necessário para evitar que o novo coronavírus se espalhasse nas aldeias. No início de julho, o Supremo Tribunal Federal determinou que o Estado tomasse providências para auxiliar a população indígena no combate ao vírus.

"Em todo o Brasil há indígenas morrendo. Está claro o descaso do governo federal com a gente. Tenho certeza de que é uma ação proposital do Bolsonaro contra os indígenas", declara Hiparidi.

No país, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), já foram registrados mais de 14 mil casos de covid-19 entre indígenas e mais de 260 mortes. Organizações que defendem os povos, porém, afirmam que o número é muito maior e que há milhares de casos que não foram contabilizados oficialmente.

Em General Carneiro, por exemplo, os representantes dos bororo e xavante acreditam que há mais de 200 casos de covid-19, mas apenas a metade desse número consta em dados oficiais. A Prefeitura da cidade justifica que os casos são registrados conforme os testes dão resultado positivo.

Em nota, a prefeitura de General Carneiro classifica como "fato isolado" a situação da cidade, na qual a maioria dos casos de covid-19 ocorre entre os indígenas. No comunicado, a prefeitura afirma que repudia qualquer tipo de discriminação, "em especial aos povos indígenas", e diz que tem executado diversas atividades junto com representantes das aldeias para conter o avanço do coronavírus.

A Sesai diz, em nota encaminhada à BBC News Brasil, que tem atuado no enfrentamento à covid-19 em aldeias de todo o país, por meio de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI).

Já a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma, também em nota à BBC News Brasil, que já investiu, aproximadamente, R$ 24 milhões em ações de combate à covid-19. A entidade argumenta que tem feito diferentes ações, como a criação de barreiras sanitárias para impedir a entrada de não indígenas nos territórios e a distribuição de alimentos para "garantir a segurança alimentar dos indígenas, medida que colabora para que eles permaneçam nas aldeias".

Brasil é o terceiro país mais letal do mundo para ativistas ambientais

Depois de cair algumas posições no ranking que aponta os países mais perigosos para ambientalistas no mundo no ano passado, o Brasil voltou a aparecer entre aqueles onde mais defensores do meio ambiente são assassinados. Com 24 mortes registradas em 2019, quatro a mais do que em 2018, o país passou do quarto ao terceiro lugar na lista internacional, segundo relatório da ONG Global Witness publicado nesta quarta-feira.

Desde que a organização, sediada no Reino Unido, passou a sistematizar informações do tipo, em 2012, nunca houve tantos crimes como em 2019, que atingiu a marca de 212 assassinatos. No topo do ranking está outro país sul-americano, a Colômbia, com 64 mortes. Filipinas, o país "líder" do ano passado, aparece agora em segundo lugar, com 43 vítimas.

"Infelizmente, a tendência é que as coisas piorem a cada ano", comenta Ben Leather, da Global Witness, em entrevista à DW Brasil.


Entre os motivos para o aumento dessa violência, analisa Leather, está a crescente demanda pelo consumo. "Para suprir seus negócios, empresas buscam novas áreas, novos territórios, e colocam em ameaça as comunidades que estão lá e defendem suas terras, seus direitos", diz.

A impunidade também é vista como parte da engrenagem que sustenta o cenário. "A cada ano, defensores são mortos, e quase nenhum caso vai parar na Justiça. Quem comete os crimes se sente livre para continuar. Por isso, os governos precisam agir", ressalta Leather.

No Brasil, a grande maioria dos assassinatos de ambientalistas em 2019 ocorreu na Amazônia. Para a Global Witness, é preciso destacar que alguns tipos de ambientalistas brasileiros enfrentam riscos mais específicos e sérios. "São os indígenas os mais expostos à violência", destaca Leather.

Das 24 mortes contabilizadas em território brasileiro pelo relatório, dez delas, ou cerca de 42%, foram de indígenas. "Eles representam apenas 0,4% da população do país, ou seja, estão super-representados entre os ativistas assassinados", lamenta o membro da Global Witness.

Nomes de brasileiros como o de Paulo Paulino Guajajara estão na lista da Global Witness. Conhecido como guardião da floresta, ele foi assassinado na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, em novembro de 2019. Paulino Guajajara fiscalizava e denunciava invasões das terras e roubo de madeira – função que se tornou mortal no país.

Um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) mostrou que esse território indígena na Amazônia tem sofrido com invasões e desmatamento sem precedentes. Para tirar a madeira roubada do local, os criminosos chegam a abrir mais de 100 quilômetros de estradas clandestinas por mês na mata.

"De uns tempos para cá, os ataques se voltaram mais contra os indígenas. No passado, eram os missionários que defendiam a causa que eram assassinados, mas houve esta virada histórica", analisa Christian Ferreira Crevels, antropólogo do Conselho Missionário Indigenista (Cimi).

Um dos casos marcantes foi o de Irmã Cleusa, assassinada em 1985. Como missionária, defendia a terra indígena dos Apurinã às margens do rio Paciá, em Lábrea, estado de Amazonas.

A mudança, segundo Crevels, tem uma explicação clara. "No Brasil da impunidade, as mortes dos indígenas defensores dos territórios, do meio ambiente, repercutem menos. Quantos brasileiros perderam a vida no interior e nunca foram conhecidos...", complementa.

São nomes como o de Dilma Ferreira Silva, líder rural e coordenadora regional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), assassinada em 2019 no Pará, que também consta no relatório da Global Witness.

Segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público Estadual, o fazendeiro Fernando Ferreira Rosa Filho, mandante do crime, encomendou a morte da ativista por ela ameaçar denunciar suas atividades ilegais – como desmatamento ilegal – às autoridades.

"Sabemos que nosso relatório traz só a ponta do iceberg. Só contamos o número de assassinatos. Sabemos que em todo o mundo, inclusive no Brasil, há muitos defensores do meio ambiente e membros de suas famílias que sofrem muita violência: são difamados, censurados, ameaçados, assediados e presos", comenta Leather.

O Brasil nunca foi um território seguro para ativistas do meio ambiente. Crevels, do Cimi, lembra que outros governos tiveram pontos negativos. "Os ataques não são novos. Vale lembrar que a violência da construção da usina de Belo Monte, no governo Dilma Rousseff, também deixou o seu legado de como executar um projeto na Amazônia desrespeitando tudo", pontua o antropólogo.

O governo de Jair Bolsonaro e seu ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, no entanto, agravam o quadro. "Ele [o governo] vocaliza um apoio a situações que geram conflito territorial. As pessoas pensam: 'posso me armar e ir para o conflito que o presidente garante'", analisa Crevels.

Além disso, políticas ambientais que apontam para "perdão" futuro por crimes cometidos são apontadas como estímulo à violência. "Principalmente quando Bolsonaro diz que vai rever terras indígenas já homologadas, por exemplo, é como uma incitação à invasão", diz o antropólogo.

Leather, da Global Witness, tem uma visão semelhante. "O Brasil sempre foi perigoso para ativistas. Mas é claro que este novo governo tem uma política muito clara de priorizar lucro num espaço curto de tempo, sem considerar o meio ambiente. Ele claramente quer abrir a Amazônia para negócios em processos rápidos."

Saio em férias para tentar evitar o fim do mundo

Nos próximos 15 dias desfrutarei de férias. Nada a ver com descanso. Saio em missão especial. Tentarei deter o Apocalipse. Soube de fonte segura que o mundo começou a acabar pelo Brasil. Você talvez não tenha notado, mas já está acontecendo.

De acordo com o mapa que obtive com exclusividade, a sala fica numa área erma do Além. Na porta, abaixo do número 2020, lê-se: "DJF - Divisão do Juízo Final". Por alguma razão, o primeiro botão pressionado no painel de descontrole foi o do Brasil. Tudo transcorre como planejado.


Se nada for feito, coisas esquisitas começarão a acontecer dentro de duas semanas. Já se sabe o seguinte:

A escuridão apagará a luz do céu de Brasília. O chão se repartirá sob o Palácio da Alvorada, cuspindo das profundezas um ser estranho. Bolsonaro identificará algo de familiar na aparência do visitante. O Apocalipse do capitão terá a cara do Olavo de Carvalho.

"Elegi você pra virar a mesa, não pra ficar embaixo dela, dizendo amém pros milicos e sorrindo pros vagabundos do STF", dirá o ser de aparência olavista, em timbre cavernoso. "Eu te destituo. Condeno-te a mastigar três vezes por dia a cloroquina que Asmodeu amassou. Por toda a eternidade".

Uma chuva de comprimidos cairá sobre os escombros do palácio residencial. E Bolsonaro começará a deglutição. As pílulas lhe perfurarão o cérebro. Seu inferno será engolir toda a cloroquina que o Exército for capaz de fabricar.

Antes de ser sorvido pelo solo, Bolsonaro gritará por socorro. Dois homens descerão do horizonte cavalgando um par de emas. Por um segundo, o presidente se imaginará salvo. Mas logo notará que um sujeito se parece com Rodrigo Maia. O outro tem a calva do Alexandre de Moraes. O gordinho sorri de modo estranho e balbucia: "Deixa que eu chuto". Uma das emas assume a dianteira: "Só depois que eu bicar."

Mourão se apossará do trono. Informado de que um general assumiu o controle do governo civil mais militar da história, o brasileiro se convencerá de que está mesmo diante do fim dos tempos.

De repente, tudo começará a desandar. Paola Oliveira envelhecerá instantaneamente. Silvio Santos acordará com a voz do Lombardi. Paulo Guedes se converterá ao socialismo. William Bonner apresentará o Jornal Nacional de sunga...

Uma onda de suicídios em massa se seguirá ao pronunciamento em que Mourão anunciará em rede nacional suas primeiras quatro decisões:

1) Transformar o Brasil numa monarquia.

2) Conceder ao Zero Um, ao Zero Dois e ao Zero três o título de príncipes honorários.

3) Reconduzir o Weintraub ao posto de ministro da Educação.

4) Entregar a alma ao centrão.

Se tudo correr conforme o planejado, o Brasil amanhecerá deserto numa determinada segunda-feira. O país terá morrido na véspera. Sobrarão apenas duas pessoas: uma jovem militante petista e um blogueiro bolsonarista de meia-idade.

Ela se esconderá no sítio de um amigo, em Atibaia. Ele, na casa de um advogado, também em Atibaia. Ambos serão salvos para poupar trabalho à Divisão do Juízo Final. Avalia-se na sala 2020 que não haverá risco de o Brasil renascer do cruzamento de uma petista com um bolsonarista. Dá-se de barato que os dois brigarão até a morte no instante em que se encontrarem.

Tentarei abortar o Apocalipse, desapertando o botão no painel de descontrole. Se eu não voltar em 15 dias, é porque não consegui evitar que o fim do mundo começasse pelo Brasil.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Brasil de pária e genocida


O efeito do charlatanismo

Pesquisa da Associação Paulista de Medicina mostra que 48,9% dos quase 2 mil profissionais de saúde entrevistados em todo o País disseram ter sofrido pressão de pacientes ou de parentes de internados para receitar remédios sem comprovação científica contra a covid-19. Os médicos também reclamam de intimidação nas redes sociais quando descartam o uso desses remédios, em especial da cloroquina, cuja eficácia no combate à pandemia já foi amplamente desqualificada. Há quem relate ter sofrido até ameaças de morte, como o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, Clóvis Arns.

Assim, como se não bastasse toda a pressão inerente ao enfrentamento da pandemia, que inclui o risco pessoal de contaminação, os médicos que lidam com milhares de doentes têm sido obrigados a encarar a hostilidade de pacientes e familiares que insistem em tratamentos que, ao contrário de salvar vidas, podem colocá-las em risco.


É compreensível que pacientes e seus familiares tentem se agarrar a qualquer esperança ante a terrível perspectiva de sofrimento trazida pela pandemia – que só no Brasil já deixou quase 90 mil mortos. Ninguém haverá de condenar quem, após o temido diagnóstico, exige dos médicos a aplicação de todos os tratamentos disponíveis, se houver a mais remota possibilidade de um deles salvar o paciente. Quando tudo o mais falta, resta a fé.

O problema é que essa fé está sendo estimulada pelo governo federal, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro, justamente a autoridade que deveria se empenhar mais em orientar a sociedade com dados realistas e cientificamente comprovados para combater a doença. Quando um presidente da República – ouvido com atenção por toda a Nação pelo cargo que ocupa – insiste em fazer propaganda a respeito dos supostos efeitos benéficos da cloroquina contra a covid-19, mesmo depois que esse medicamento foi considerado ineficaz por vários estudos, reina uma perigosa confusão.

Para quem está para entrar em uma UTI ou está angustiado porque um parente acabou de ser internado com covid-19, as palavras do presidente, já naturalmente relevantes, são entendidas como prescrição médica – aos profissionais de saúde, portanto, bastaria assinar a receita. Explica-se assim que um a cada dois médicos ouvidos na pesquisa da Associação Paulista de Medicina relate ameaça ou constrangimento por parte de parentes ou de doentes.

“Sei que é um momento complicado, entendo a agonia e a angústia das pessoas, mas começaram a me chamar de assassina porque eu não tinha usado cloroquina no tratamento”, disse ao Estado a médica intensivista Bruna Lordão, de São Paulo. “As pessoas não querem saber de pesquisa científica. Elas só querem saber o que o Bolsonaro tomou. Foram certamente os piores momentos da minha carreira.” Depois desse episódio, a médica pediu demissão do hospital.

Esse é o resultado da politização da pandemia por parte de Bolsonaro. Preocupado com os efeitos da crise sobre sua popularidade, o presidente agarrou-se à cloroquina como panaceia – e passou a tratar os médicos e as autoridades que questionaram a eficácia da droga como adversários políticos.

Como consequência disso, os médicos e as autoridades que decidem seguir a ciência e não o palpite presidencial são acusados de fazê-lo por oposição ao presidente e, no limite, porque esperam o agravamento da crise para prejudicar Bolsonaro. É o charlatanismo elevado à categoria de política de Estado para a área da saúde, o que complica sobremaneira o trabalho de quem deve lidar com a doença real, na linha de frente da longa batalha contra o coronavírus.

Como bem lembrou a Associação Médica Brasileira em nota, os médicos são autônomos para receitar medicamentos ainda que não haja comprovação de que funcionem no caso, mas, graças ao presidente Bolsonaro, muitos estão sendo constrangidos a fazê-lo, inclusive sob ameaça, no caso da cloroquina – mesmo ante o risco de efeitos colaterais perigosos. Nada disso é ciência, muito menos o pleno exercício da medicina; é, apenas, irresponsabilidade. A cloroquina, é bom que se lembre, provoca efeitos secundários que podem levar à morte.