Celso de Mello em mensagem aos outros ministros do STF
domingo, 31 de maio de 2020
Mensagem de alerta
“GUARDADAS as devidas proporções, O “OVO DA SERPENTE”, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933) , PARECE estar prestes a eclodir NO BRASIL ! É PRECISO RESISTIR À DESTRUIÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA, PARA EVITAR O QUE OCORREU NA REPÚBLICA DE WEIMAR QUANDO HITLER, após eleito por voto popular e posteriormente nomeado pelo Presidente Paul von Hindenburg , em 30/01/1933 , COMO CHANCELER (Primeiro Ministro) DA ALEMANHA (“REICHSKANZLER”), NÃO HESITOU EM ROMPER E EM NULIFICAR A PROGRESSISTA , DEMOCRÁTICA E INOVADORA CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR, de 11/08/1919 , impondo ao País um sistema totalitário de poder viabilizado pela edição , em março de 1933 , da LEI (nazista) DE CONCESSÃO DE PLENOS PODERES (ou LEI HABILITANTE) que lhe permitiu legislar SEM a intervenção do Parlamento germânico!!!! “INTERVENÇÃO MILITAR”, como pretendida por bolsonaristas e outras lideranças autocráticas que desprezam a liberdade e odeiam a democracia, NADA MAIS SIGNIFICA, na NOVILÍNGUA bolsonarista, SENÃO A INSTAURAÇÃO , no Brasil, DE UMA DESPREZÍVEL E ABJETA DITADURA MILITAR !!!!”
‘Os erros terão cor verde-oliva’
Ele não está falando, nem se pensa, em um golpe como o de 1964, que aconteceu em outro contexto histórico, mas acha que o artigo 142 da Constituição tem um “caminho aberto para interpretações conflitantes”. Dos muitos sinais dos últimos dias dados por militares que estão no governo, ele acha que o mais grave foi o episódio do general Augusto Heleno, até porque foi respaldado pelo ministro da Defesa:
— A posição do general Heleno é sem dúvida a que mais preocupa, por deixar a entender uma ameaça de intervenção. Pode, em parte, ser atribuída a seu temperamento, mas a nota que distribuiu no dia 22 de maio é ameaçadora. Pode ser interpretada como referência ao que a Constituição diz sobre o papel das Forças Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, isto é, como superpoder, como corte supremíssima.
A Constituição, explica, diz que as Forças Armadas estão sujeitas à autoridade do presidente da República e acrescenta que elas se destinam “à garantia dos poderes constitucionais”.
— Há aí uma enorme dificuldade: como estar sujeitas a um poder e, ao mesmo tempo, garantir os três? É caminho aberto para interpretações conflitantes e dá margem a declarações ameaçadoras como a do general Heleno. Ele faria a mesma ameaça se fosse para defender o Congresso e o STF contra os ataques do chefe do Executivo? — pergunta o professor.
Ele lembra que na história recente esse é o segundo episódio que tem o Supremo como alvo:
— É irônico. O general Villas Boas fez ameaça na véspera do julgamento de Lula no Supremo. Agora, o general Heleno ameaça o mesmo Supremo por, supostamente, perseguir o presidente.
Esses riscos extemporâneos que aparecem no país lembram uma máquina do tempo que nos tenha levado para mais de meio século atrás. Até porque quem presta atenção nas falas bolsonaristas fica com a impressão que ainda estamos naquele mundo. Para um bolsonarista raiz, qualquer pessoa que discorde do presidente é um “comunista”. O professor trata de pôr o passado onde ele deve ficar, no passado.
— Certamente nada como em 1964. Não temos um dos principais condicionantes de então, a Guerra Fria. O comunismo era na época uma realidade no mundo, com adesões no Brasil, inclusive nas Forças Armadas. Hoje é conto de carochinha. A esquerda, se podemos chamar o PT de esquerda, está desarvorada. Grupos civis armados, como os de Brizola em 1964, hoje despontam entre os apoiadores radicais do presidente. Seria curioso se, para garantir a lei e a ordem, e de acordo com a Constituição, o Supremo convocasse as Forças Armadas para combatê-los.
Se por “ruptura” o deputado Eduardo Bolsonaro está falando em endurecimento do regime, como aconteceu em alguns países como a Hungria, por exemplo, isso teria o apoio dos militares?
— Minha aposta é que não. Marinha e Aeronáutica dificilmente apoiariam tal decisão. São forças mais profissionalizadas. Mesmo o Exército hesitaria. O artigo do general Santos Cruz deve representar a posição da maioria do oficialato. O mais crucial é a posição dos generais que permanecem no governo.
O historiador lembra que no início a presença dos generais não significava que o governo fosse militar:
— Mas a constante alegação do presidente de ter apoio militar está deixando esses generais em posição delicada. Eles são corresponsáveis pelas trapalhadas do governo e agora não haverá mais como evitar que a imagem das Forças seja afetada. Os erros terão cor verde-oliva.
Essa situação de temer pela estabilidade democrática foi criada pela retórica belicosa do presidente nesses 17 meses de governo. A saída seria, segundo ele, “o impedimento”, mas acha que ele está protegido pela pandemia:
— Com a quarentena não há rua, sem a rua não há impedimento.
O país se vê às voltas com velhos fantasmas que o governo Bolsonaro mesmo retirou do armário.Míriam Leitão
Bem-vindo aos 80
Quando fiz 80 anos, há algum tempo, pois tudo passa, meu amigo, o professor Dick Moneygrand, foi impiedoso: “Como você está escrevendo os capítulos finais de sua vida?”
A penosa interrogação não pareceu apropriada, pois tanto para mim quanto para o Brasil visto como sociedade e cultura, a idade eleva e nos transforma em “velhinhos” modelados no Papai Noel, com o branco dos cabelos e da barba sinalizando pureza, paciência e bondade, num desdobramento da nossa autoridade. Ademais, os 80 exprimem um ponto fixo: a “velhice” vista com nitidez nos nossos álbuns de fotografia, pois ali nos enxergamos tanto como estados fixos (meninos, rapazes, homens feitos e velhos) quanto como perturbadoras figuras mutantes e instáveis.
Os 80 englobam tudo o que fomos e interrogam rigorosamente o que ainda podemos ser.
Os 80 englobam tudo o que fomos e interrogam rigorosamente o que ainda podemos ser.
O problema dos 80 é o seu esplendor para quem dá os parabéns, mas nem tanto para quem os recebe. A chegada nessa década é radicalmente (repito: radicalmente!) diversa de entrar nos 20, 30 e 40 — na “força da idade”, como diz Simone de Beauvoir —, pois nessa estação antevemos, como remarca o realismo do meu amigo americano, uma progressão para, digamos gentilmente, a saída do palco (e do teatro...).
Em sociedades que se imaginam permanentes e, por isso mesmo, estão sempre se revolucionando, basta olhar o mármore e o bronze das suas estátuas, o aço dos seus prédios, as suas constituições e estatutos, para se ter noção da nossa ambivalência relativamente ao diálogo entre o permanente e o episódico. O Ocidente reproduz pessoas e cenas em objetos, o que não é realizado em muitos sistemas e culturas.
Aos 80, observamos a metamorfose das idades ou a idade como metamorfose. Demora um pouco a chegar aos degraus que apagam receios e tentam instalar projetos, amores definitivos, determinações e destinos.
As festas de aniversário — pouco ou nada vistas nas sociologias; esses rituais de passagem, fabricação e estabilização de corpos e almas — dramatizam essas dimensões. Em todas as sociedades há consciência do que se pode ou não fazer dos 10 aos 80 anos. Esses ritos de passagem focalizam esses aspectos. Cada restrição e permissão (elas são interdependentes) demarca uma fase que vai do nascimento até a morte. Não há passagem sem uma demarcação, conforme ensinou Arnold van Gennep.
No nosso caso, o bolo — fabricado com ovos, leite e farinha, devidamente vestido de açúcar e ornado pelas velinhas que anunciam a idade do aniversariante — é uma entidade central. Colocado numa mesa — esse móvel metafísico dotado de alma e igualmente vestido com uma bela toalha —, ele remete a outro móvel igualmente transcendente: a cama na qual os presentes eram postos e na qual o festejado foi fabricado. Na mesa — essa cama de pernas altas onde os mortos eram velados — todos se deleitam com “comidas” marginais — “docinhos” e “salgadinhos” que não podem competir com o “bolo”. Bolo que exprime, entre muita coisa, confusão mas que, naquele contexto, é o aniversariante transubstanciado, pois deve ser obrigatória e devidamente comido, num inocente festim canibal.
No nosso caso, o bolo — fabricado com ovos, leite e farinha, devidamente vestido de açúcar e ornado pelas velinhas que anunciam a idade do aniversariante — é uma entidade central. Colocado numa mesa — esse móvel metafísico dotado de alma e igualmente vestido com uma bela toalha —, ele remete a outro móvel igualmente transcendente: a cama na qual os presentes eram postos e na qual o festejado foi fabricado. Na mesa — essa cama de pernas altas onde os mortos eram velados — todos se deleitam com “comidas” marginais — “docinhos” e “salgadinhos” que não podem competir com o “bolo”. Bolo que exprime, entre muita coisa, confusão mas que, naquele contexto, é o aniversariante transubstanciado, pois deve ser obrigatória e devidamente comido, num inocente festim canibal.
Não fosse mamãe, eu não adoraria chocolate — a massa elementar do bolo do meu aniversário de 10 anos.
Tudo isso para exprimir minha admiração e meu afeto aos 80 anos do imortal e diretor referência do cinema nacional Cacá Diegues. Numa deliciosa entrevista concedida ao GLOBO, o aniversariante — com a serenidade que o distingue — remarca que ainda tem planos, pois deseja filmar uma sequência do seu “Deus é brasileiro”, com um título mais condizente (e esperançoso) com o obscuro momento que vivemos. Assim, o “Deus é brasileiro” seria mudado para “Deus 'ainda' é brasileiro” pois, apesar de todos os descalabros, mesmo aos 80, Cacá não desistiu do Brasil.
Pegando a deixa e guardando as óbvias proporções, eu também imagino reescrever o meu “Carnavais, malandros e heróis”— de 1979 (quando o publiquei) para cá, os graves e importantes sermões do politicamente correto suprimiram o riso carnavalesco; os ladrões suplantaram os malandros; e o Brasil, como enxergamos entre a vergonha e o horror, continua precisando de heróis ou, quem sabe, de super-heróis, esses deuses inventados pela sofrida solidão pós-moderna.
Roberto DaMatta
Pegando a deixa e guardando as óbvias proporções, eu também imagino reescrever o meu “Carnavais, malandros e heróis”— de 1979 (quando o publiquei) para cá, os graves e importantes sermões do politicamente correto suprimiram o riso carnavalesco; os ladrões suplantaram os malandros; e o Brasil, como enxergamos entre a vergonha e o horror, continua precisando de heróis ou, quem sabe, de super-heróis, esses deuses inventados pela sofrida solidão pós-moderna.
Roberto DaMatta
Salve-se quem puder
Salvem-se os suicidados da sociedade, como o louco que passa berrando na avenida, entrando pelas janelas do bairro com seu grito, atravessando as paredes, os muros, as portarias. Salvem-se os loucos, os que foram enlouquecidos, e sua loucura fique ainda mais incômoda, mais lúcida, de estigmatizar quem os vê e ouve todo dia.
Salvem-se as crianças em suas alegrias repentinas, por pouco ou nenhum motivo, em sua inocência de casca de ovo, em seus veredictos de anjo, em seus dons de brincar sem brinquedo e fazer de um monte de cascalho um tesouro. Salvem-se as crianças com pais e mães nem sempre sãos, nem sempre bons, nem sempre dignos de um filho.
Esses de outro mundo possível, clandestinos neste mundo, que se salvem se puderem, e quantos puderem, como aqueles que, inacreditavelmente, num último instante se salvam de um afogamento. Os selvagens sem pistola, os últimos inocentes, os sem governo.
Mariana Ianelli
A boa notícia
O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.
E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?
O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.
As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.
No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.
O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.
Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.
Hermenêutica da hemorroida
Como milhões de pessoas ao redor do globo, o discurso do senhor Jair Bolsonaro perante os seus ministros provocou em mim violenta comoção. Considero-o uma das mais extraordinárias peças de retórica jamais produzidas por um chefe de estado — sóbrio ou totalmente embriagado.
A bem dizer aquilo nem foi um discurso: foi um atentado. Jair Bolsonaro fez-se explodir, em meio a todas as excelências do seu governo, detonando com ele as convenções burguesas, a moral cristã e, de caminho, o sólido prestígio da instituição militar.
A bem dizer aquilo nem foi um discurso: foi um atentado. Jair Bolsonaro fez-se explodir, em meio a todas as excelências do seu governo, detonando com ele as convenções burguesas, a moral cristã e, de caminho, o sólido prestígio da instituição militar.
Bolsonaro é, afinal, um revolucionário anarquista infiltrado na ultradireita cristã. Não acredito que os partidos representantes da direita brasileira, as igrejas neopentecostais e o exército se recomponham alguma vez dos estragos causados pela explosão sacrificial do camarada Bolsonaro.
Ao institucionalizar a obscenidade, Bolsonaro corrompe a instituição, num genial gesto anarquista, que Proudhon, onde quer que esteja, deve estar aplaudindo de pé. A eficácia desta subversão revolucionária pode avaliar-se pela condescendência com que pastores e generais aceitaram o discurso de Bolsonaro, e pela tímida tentativa de alguns ministros ao tentarem acompanhá-lo na produção de palavrões, semeando o cupim da desordem nos instáveis alicerces da democracia burguesa. Bolsonaro, portanto, é o messias que os anarquistas radicais há tanto tempo aguardavam.
Contudo, o que mais me surpreendeu e vem inquietando é aquela misteriosa referência às hemorroidas: “O que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade”, afirmou Bolsonaro, firme e enfático. Até hoje, ninguém havia ainda conseguido juntar numa mesma frase, com um mínimo de coerência, os conceitos de liberdade, verdade e hemorroidas.
Cuidado com o ódio
Coimbra, 31 de outubro de 1957 - O ódio não cansa - diz o rifão. E realmente. Mas cega. (...) condenado à realidade de investir instintivamente, sem lógica e sem medida comete erros sobre erros Acumula torpezas, dá foros de evidência ao absurdo, apresenta como verosímil o inverosímil. Na ânsia de demonstrar o que não tem demonstração possível, por ser apenas um movimento sentimental agressivo, excede-se em falsidades. E essa abundância de marradas intempestivas e tolas acaba por gerar nos mais desinteressados a desconfiança e o desejo de tirar a limpo a verdade. E volta-se, nessa altura, o feitiço contra o feiticeiro. Passa o odiento então a ser julgado, não pela aversão subjectiva dum só, mas pela isenção objectiva de todos.
Miguel Torga, "Diário"
Miguel Torga, "Diário"
Está tudo bem
Nunca estivemos tão bem. É tudo muito bom – quase ótimo, eu diria. Já me explico.
2.
Para Georges Perec, o que nos fala é sempre o acontecimento, o insólito, o extraordinário: "Os trens só começam a existir quando descarrilham, e quanto mais passageiros mortos, mais existem." Não por acaso, hoje parecemos intoxicados de realidade.
No entanto, em certas alturas do equador, algumas sociedades desenvolveram ferramentas sofisticadas para ocultar e mesmo normalizar certos desastres. As classes médias brasileiras, por exemplo, sempre conviveram pacificamente com campos de concentração (neste país são chamados de penitenciárias) para negros e pobres, vitimados também fora deles pelo mesmo terrorismo de Estado.
No Brasil, há uma vasta (e, para muitos, invisível) malha ferroviária rumo ao abismo. E na raiz desta invisibilidade está a desumanização do outro – como em todo fascismo, toda escravidão, todo regime opressor.
Nosso tão caro Estado Democrático de Direito jamais foi democratizado nas favelas e quebradas após a Constituição Cidadã de 1988 – e só agora, sob um governo que também ameaça brancos ideológicos com vozes na imprensa, esse massacre parece (um pouco) mais visível.
3.
A pandemia de covid-19 não interrompeu o apetite genocida do Estado. No Brasil, as ditaduras militares sempre só acabam para os brancos.
Na semana retrasada, veio a público o caso de João Pedro Martins, de 14 anos, assassinado pela polícia enquanto brincava com os primos – os agentes do Brasil jogaram duas granadas e atiraram 72 vezes com fuzis na casa da família em São Gonçalo. No dia seguinte, João Vitor da Rocha, 18 anos, foi baleado pela PM enquanto voluntários entregavam cestas básicas a famílias na Cidade de Deus.
Há um vídeo de um desses líderes comunitários dizendo, logo depois do assassinato: "A gente nasceu alvo. João Pedro foi ontem! Eles são genocidas, e nós somos alvo do Estado, mano! Nós é preto, mano."
4.
Ainda que frágeis e recentes políticas identitárias tenham tentado mitigar a exclusão social dos negros no Brasil, o último país do Ocidente a abolir a escravidão manteve o racismo estrutural desde sua Lei Áurea.
Os traços dessa desigualdade não se encontram apenas em diferenças na renda e acesso à educação e saúde, mas em índices ainda mais trágicos. As mulheres negras têm 71% mais chances de morrer assassinadas que as mulheres brancas. Seus filhos também correm mais risco: dos 30 mil jovens assassinados por ano no país onde mais se mata no mundo, 77% são negros.
5.
O genocídio era o mesmo, mas pouco causava comoção durante a social-democracia demofóbica de FHC e o ciclo de esquerda reformista dos anos PT. O cotidiano extermínio do jovem negro e a ausência de direitos civis básicos para essas populações, indígenas e povos ribeirinhos inclusos, jamais foram tratados com a urgência necessária. Por todos os governos da Nova República. Sem exceção.
Como o tal bolo do Delfim, que precisava crescer para depois ser dividido, os direitos básicos de milhões de brasileiros criminalizados por uma política genocida de guerra às drogas ou expulsos de suas terras pelo avanço criminoso de aberrações como a usina hidrelétrica de Belo Monte também puderam ser deixados para depois.
6.
Nas mesas do Rio de Janeiro pré-olímpico, surfando na mui virtuosa aliança entre governo federal, estadual, prefeitura, PT, PMDB e TV Globo, levantar esses assuntos, como qualquer coisa que ameaçasse a boquinha dos muitos envolvidos, era profundamente antipático.
Sei porque escrevo sobre isso em jornais desde 2004, e ataquei as contradições desse projeto ao vivo na televisão por anos, com reações quase sempre estapafúrdias.
Minhas primeiras ameaças de morte? Em 2007, quando publiquei no jornal O Globo uma coluna sobre Tropa de Elite, aquela antologia de memes necrofílicos em formato de longa-metragem. Vírus cultural que pavimentou caminho para o bolsonarismo, o filme logrou normalizar um discurso neofascista pela primeira vez desde a redemocratização.
Poucos meses depois da sua estreia, o deputado Flávio Bolsonaro propôs que o símbolo da força de operações da PM retratada no filme, o Bope, uma caveira atravessada por pistolas, se tornasse patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Na campanha presidencial uma década depois, seu pai discursaria em quartéis gritando o slogan do batalhão: caveira.
7.
Na época, eu escrevi que o longa parecia (e servia como) um nauseabundo institucional do Bope, caso exemplar de obra travestida de denúncia, feita à revelia do discurso de seu diretor. Na coluna, eu relacionava a aderência do filme na sociedade brasileira à bronzeada aposentadoria de milicos torturadores da última ditadura, que após pilhar o Estado e assassinar opositores, foram agraciados com a dura rotina de jogar peteca na praia de Copacabana.
Alguns desses fascistas me escreveram dizendo saber meu endereço, que tinham armas e iriam me procurar. Publiquei algumas das ameaças, com seus nomes completos, na coluna da semana seguinte.
E digo algumas porque todas não caberiam.
8.
Dois anos depois desses eventos, aterrissei numa festa da Adidas numa mansão da Gávea, no Rio de Janeiro, a menos de um quilômetro dos muros que separam o alto do bairro da favela da Rocinha.
A primeira coisa que vi quando cheguei à boca-livre übercool foram balões da Adidas flutuando sobre uma piscina adornada com suásticas nazistas nos ladrilhos. No bar, os copos de cerveja estavam empilhados ao lado de um retrato do Almirante Karl Dönitz, que Hitler nomeou em seu testamento ao fim da guerra como chefe de Estado do Reich alemão e comandante-chefe da Wehrmacht.
O que já seria ultrajante virou um caso internacional: a Adidas, como tantas corporações alemãs, foi fundada por engajados membros do partido nazista e chegou a produzir para a mesma Wehrmacht o "Panzerschreck", um lançador de foguetes antitanque. Ainda que a empresa tenha gastado bilhões de dólares nas últimas décadas num esforço de relações públicas para ocultar seu passado, os produtores brasileiros da festa pareceram não se importar com os símbolos presentes na casa que alugaram de um suposto colecionador.
Quando denunciei a história no jornal e na televisão, e comecei a responder entrevistas para a mídia alemã, promoters da cena carioca me escreveram dizendo que não me chamariam nunca mais para nenhuma festa.
9.
Em 1998, em discurso proferido na Câmara dos Deputados em Brasília, Jair Bolsonaro defendeu estudantes de uma turma do Colégio Militar de Porto Alegre por terem eleito Adolf Hitler como personalidade histórica mais admirada: "Eles têm que eleger aqueles que souberam, de uma forma ou de outra, impor ordem e disciplina." Quatro anos depois, em entrevista a um dos programas que o normalizaram durante décadas, afirmou que "profissionalmente Hitler foi um grande estrategista".
O slogan de campanha de Bolsonaro em 2018 foi "Brasil acima de tudo", ecoando o "Deutschland über alles" (Alemanha acima de tudo) hitlerista. Já no governo, segue apropriando-se de lemas nazistas. Sua Secretaria de Comunicação divulgou neste mês a campanha "O trabalho, a união e a verdade vos libertará" – o "Arbeit macht frei" (O trabalho liberta) bolsonarista em tempos de covid-19.
Se o secretário da Cultura Ricardo Alvim emulou Joseph Goebbels em janeiro de 2020, menos de um mês antes, com menor repercussão, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, um tal Filipe Martins, cumprimentou um dos filhotes do presidente no Twitter com um "Ya hemos pasao!", saudação histórica do franquismo.
Trata-se de uma equipe afinada. Recentemente, fomos presenteados com o vídeo de uma reunião ministerial na qual o ministro Paulo Guedes citou nominalmente Hjalmar Schacht, ministro da Economia nazista, como um exemplo ao se referir a um plano de reconstrução econômica que inclui mão de obra servil e militarizada.
Pinochet? Ustra? Para o bolsonarismo não basta resgatar nomes do fascismo latino-americano, é preciso ir às suas origens. E nada disso deveria ser surpresa: Bolsonaro nunca enganou ninguém. Se há algo a ser admirado nesse espécime infra-humano é sua coerência e sinceridade. Ao longo dos anos ele e sua família de milicianos nunca esconderam quem eram.
E boa parte dos seus 57 milhões de eleitores sabia exatamente em quem estava votando.
10.
Hoje, passados mais de dez anos desses primeiros contatos com o escancarado fascismo brasileiro, não consigo ver muita diferença entre os sujeitos que, protegendo seu conforto, editais e contracheques, se calaram por tanto tempo sobre as injustiças, as remoções, a criminalização e o massacre contínuo de negros e indígenas no Brasil; os políticos que tiveram a chance histórica de enfrentar esses problemas e escolheram não fazê-lo; os editores que ajudaram a normalizar o candidato fascista (nem sequer de "extrema direita" ele foi chamado no Brasil); os articulistas do chefinho que insistiram numa falsa equivalência entre um candidato democrata e o candidato fascista; os eleitores do candidato fascista; os que seguem defendendo o presidente fascista; e, finalmente, os que conviveram com aquelas suásticas e ficaram na festa bebendo de graça – as únicas pessoas que se negaram a continuar ali foram eu e os dois amigos que me levaram, uma mulher negra e um homem judeu.
E talvez seja por isso que agora esteja tudo bem. Muito melhor do que jamais esteve. Porque, pela primeira vez em sua história, o Brasil exibe, sem recalque, eleito por ampla maioria de votos, seu coraçãozinho fascista, etnocida, racista, misógino. Um reflexo fiel da nação, finalmente. É feio? É real.
E isso é uma coisa boa. Uma coisa mesmo muito boa. Afinal, temos diante de nós uma chance única para que os brancos ideológicos desta geração – e, vá lá, das anteriores – entendam que o produto da sua brutal indiferença ao racismo nosso de cada dia, ao fascismo nosso de cada dia, ao genocídio normalizado de cada dia, ao terrorismo de Estado brasileiro de cada dia, só pode resultar em mais fascismo, cada vez mais fascismo – dessa vez escancarado, sem pudor.
Está tudo bem, tudo ótimo. Muito melhor do que jamais esteve: ainda falta, mas nunca estivemos tão acordados.
J.P. Cuenca
A legitimidade do Governo Bolsonaro acabou mundo afora
No campo das relações internacionais, há ainda um amplo debate sobre a legitimidade externa de um governo, com repercussões sobre seu assentos nas instituições multilaterais e sua capacidade de ser reconhecido como um interlocutor genuíno.
Em muitos sentidos, o Brasil atravessa esse debate.
Internamente, decisões e comportamentos revelaram que o governo não está interessado em assegurar a proteção de seus cidadãos. Seja na Amazônia, seja na periferia das grandes cidades.
A cada cova cavada, a legitimidade original obtida nas urnas é desmanchada. A cada ataque contra a imprensa, ela é diluída. A cada proposta de intervenção nas forças de polícia, tal direito adquirido é suspenso. A cada perdão de multas ambientais, sua autoridade é transformada em abuso de poder.
Ao colocar seus generais para ameaçar a lei, ao declarar abertamente que sua família está acima do direito, ao gargalhar ao ouvir de seu ministro que cada cidadão terá de se apanhar para sobreviver ou ao disparar mentiras nas redes sociais, o governo vê refletido no chão sua sombra: a silhueta do cadáver da democracia.
No plano internacional, a atual resposta do governo Bolsonaro à pandemia se soma a uma série de desastres em sua política externa. O país já havia sido colocado no centro do debate ao adotar uma postura negacionista em relação ao clima. A deterioração da imagem se aprofundou quando o presidente passou a ofender líderes estrangeiros e fazer apologia a ditadores acusados de crimes contra a humanidade.
Em diversas ocasiões, ele foi preterido por outros presidentes sul-americanos em reuniões internacionais, inclusive no G-7. O resultado passou a ser um país dependente dos mestres em Washington e, em relação ao restante do mundo, isolado.
Mas Bolsonaro —e sua rejeição em aceitar a gravidade da pandemia— transformou o país em algo mais sério que pária internacional: um risco sanitário.
Uma a uma, suas principais teses estão sendo rejeitadas pela ciência. Depois da queda de dois ministros da Saúde, o governo trocou o protocolo para incluir a cloroquina em suas recomendações. Na mesma semana, um estudo da revista científica The Lancet chegou à conclusão de que os riscos para a saúde superam as evidências positivas.
A OMS (Organização Mundial de Saúde), dias depois, optou por suspender temporariamente todos os testes com o remédio, medida que foi seguida pela França.
O distanciamento social também foi chancelado pela agência, indicando que não há prova de que um país com intensa transmissão simplesmente verá o desaparecimento do vírus. A única saída para um país que não tem ampla capacidade de testas, segundo a Organização Mundial de Saúde, é a adoção de medidas sociais, como quarentenas ou lockdown.
Em termos políticos, o cenário é consequência do que o governo semeou. Em abril, o Itamaraty ficou de fora de uma aliança mundial criada para desenvolver uma vacina. Constrangidos em Brasília, os diplomatas sequer sabiam que tal mecanismo estava sendo criado.
Semanas depois, os protagonistas na reunião anual da OMS em meados de maio passaram a ser os presidentes da Colômbia e Paraguai, todos comprometidos em lutar contra o vírus. A diplomacia brasileira se recusa a informar sequer se houve um convite a Bolsonaro para ser um dos participantes.
Foi apenas no final do mês, quando o Brasil já tinha se transformado no novo epicentro da doença, que o Itamaraty sinalizou que faria parte da iniciativa da OMS para o compartilhamento de informações e desenvolvimento da vacina. Ainda assim, a adesão foi feita como coadjuvante, deixando países como a Costa Rica e Equador como protagonistas na liderança do projeto e assumindo uma posição que tradicionalmente era do Brasil.
Também chamou a atenção nos bastidores da diplomacia o fato de que o Brasil não fez parte dos líderes internacionais que, nesta semana, iniciaram os trabalhos para redesenhar a economia mundial. A iniciativa lançada na ONU com mais de 50 países contou ainda com um recado por parte do secretário-geral da entidade, Antonio Guterres, contra presidentes que se recusem a aceitar a gravidade da crise: abandonem a “arrogância”.
Mas essa exclusão não ocorreu por acaso. Ela foi resultado de semanas de ataques por parte do governo brasileiro contra a OMS, sugerindo que a entidade fizesse parte de um “plano comunista” para permitir uma maior influência da China num mundo pós-pandemia.
Em reuniões fechadas ou mesmo em público, o chanceler Ernesto Araújo vem defendendo a tese de que o vírus do comunismo precisa ser enfrentado, o que lhe valeu chacotas de seus próprios embaixadores espalhados pelo mundo.
No fim de semana, mais um golpe. E desta vez por parte do principal aliado: os EUA. O governo de Donald Trump anunciou a proibição de voos de brasileiros para os aeroportos americanos. Ainda que a medida tenha sido vendida pelo governo de Bolsonaro como uma questão “técnica”, a decisão desmontou a tese do Planalto de que existiria uma relação privilegiada entre Washington e Brasília.
A medida, aos olhos do restante do mundo, também foi interpretada como um sinal de que a pandemia, no Brasil, está hoje fora de controle.
Bolsonaro ainda terá de se explicar diante da ONU. O relator das Nações Unidas, Baskut Tuncak, decidiu ampliar suas investigações sobre o Brasil e incluir as respostas do governo à covid-19 em seu informe que apontará para as violações de direitos humanos cometidas pelo governo ao não proteger sua população.
O gesto promete aprofundar uma imagem já desgastada e levantar questões sobre a responsabilidade legal do governo diante das mortes.
Outros dois relatores também já criticaram o governo, deixando o Itamaraty irritado com a nova onda de pressão internacional. Até mesmo a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, alertou que, se a postura negacionista do governo tivesse sido evitada, vidas teriam sido salvas. No Tribunal Penal Internacional, queixas também foram submetidas.
Enquanto isso, no Parlamento Europeu, deputados têm proliferado cartas à Comissão Europeia pedindo que o bloco reveja suas relações com o Brasil. Na Alemanha, deputados deixam claro que não há, hoje, como ratificar o acordo comercial entre UE e o Mercosul.
Numa sociedade que começa a abrir suas portas, a Europa se depara nas prateleiras de jornais com fotos de Bolsonaro são acompanhadas por palavras como “caos”, “catástrofe”, “morte” e “populismo”. Não faltaram ainda protestos, como o que um artista organizou na fachada da embaixada do Brasil em Paris, sede justamente de um dos diplomatas mais vocais na defesa do bolsonarismo.
E, assim, o governo perdeu sua legitimidade. Interna, ao romper o contrato social com uma parcela enorme da população. E, externa, ao violar deliberadamente acordos costurados para proteger o planeta.
A placa com o nome “Brazil” continuará a ser ocupada nas mesas da ONU por embaixadores que representam o governo Bolsonaro pelo mundo. E, internamente, o presidente continua em seu palácio.
Mas sua legitimidade acabou. Jamil Chade
sábado, 30 de maio de 2020
E daí?
A proximidade excessiva, quase obscena, com o presidente Bolsonaro, a quem cabe a Aras julgar no caso da interferência na Polícia Federal, traz o descrédito ao corpo de procuradores. Não é por acaso que surgiu o abaixo-assinado, com assinaturas de mais da metade dos componentes do Ministério Público, para tornar lei a praxe de o presidente da República ter que escolher de uma lista tríplice o ocupante do cargo.
Aras colocou-se à margem da corporação, não participando da disputa, atitude que agradou a Bolsonaro. Mesmo assim, a revolta interna o atinge, a ponto de ter havido uma reação branca dos procuradores, que se recusaram a ajudá-lo a escrever a manifestação da PGR contra o inquérito das fake news.
Em Brasília, já há quem o chame de procurador-geral do Bolsonaro. Ou quem diga que o governo tem hoje três pessoas exercendo o cargo de advogado-geral da União: o próprio, José Levi, o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Os dois últimos, por sinal, disputando vagas no Supremo Tribunal Federal, a cenoura com que Bolsonaro lhes acena para conseguir que assumam tarefas incompatíveis com os cargos que ocupam. Por isso, há no Congresso uma movimentação para aprovar uma lei que impediria que o procurador-geral da República fosse reconduzido ao cargo, e também exigiria uma quarentena para que pudesse assumir cargo no governo depois de terminar seu mandato.
Mendonça, por exemplo, não seria o mais indicado para assinar a petição do habeas corpus para o ministro da Educação, Abraham Weintraub, no Supremo Tribunal Federal. Seria tarefa de José Levi, mas Bolsonaro queria que o ato tivesse uma demonstração política de repúdio à convocação de seu ministro e de todos os que foram alvo da ação da Polícia Federal na quarta-feira. É esse tipo de solidariedade política que Bolsonaro exigia, e nunca obteve, de Sergio Moro.
Aliás, este governo é tão disfuncional que, na fatídica reunião ministerial, Bolsonaro estranhou que ministros fossem elogiados enquanto ele recebia críticas da imprensa. Criou-se até uma campanha nas mídias sociais estimulando elogios ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, para que fosse demitido por ciúmes de Bolsonaro.
O humor tem sua razão de ser, mas, de repente, Weintraub, que estava sob críticas de alas do Planalto que o consideram, além de incompetente, um gerador de atritos com a sociedade, passou a ser um símbolo dos extremistas após ter dito na reunião que colocaria “os vagabundos do Supremo” na cadeia.
Temeu ser preso, exigiu uma proteção oficial, gerando o tal habeas corpus. Chamado a depor, ficou em silêncio, numa atitude de protesto, embora legal. Ganhou alguns meses de vida. Ontem, foi condecorado pelo presidente Bolsonaro com a Ordem do Mérito Naval, ao lado do procurador-geral da República (do Bolsonaro?), Augusto Aras.
A desenvoltura com que o presidente utiliza-se dos instrumentos institucionais para fazer política é surpreendente. Usa condecorações oficiais para mandar recados, vai a posse de procuradores sem ser convidado para elogiá-los numa tentativa de constrangê-los, coloca Augusto Aras oficialmente numa lista de nomes para o Supremo Tribunal Federal, humilhando-o publicamente. Distribui cargos a rodo para o centrão, sem o menor pudor.
Talvez esteja indo com muita sede ao pote, temendo que os inquéritos em andamento o peguem desprevenido no meio do caminho. Tal qual o governador do Rio, Wilson Witzel, seu antigo amigo e hoje inimigo figadal, Bolsonaro e seus filhos foram apanhados muito cedo pela Justiça. Como Michel Temer, terá que dedicar o resto do mandato a salvar a sua pele e a dos seus. E daí?
Substitua-se na bandeira o lema 'Ordem e Progresso' por 'Não repara a bagunça'
Um presidente negacionista decidiu que a Covid é “uma gripezinha”, recusou-se a organizar o respaldo econômico à emergência sanitária, fechou o Ministério da Saúde, engajou-se em atos de sabotagem das regras de distanciamento social.
O STF reagiu transformando o país numa confederação de 27 entidades territoriais mais ou menos independentes. Na ausência de coordenação nacional, governadores, prefeitos e até juízes intrometidos costuraram uma colcha de retalhos de medidas sanitárias incongruentes.
A bagunça esvaziou menos as ruas que o sentido das palavras. Do Maranhão ao Ceará, quarentenas parciais ganharam o nome de “lockdown”.
O governo paulista anunciou uma “quarentena inteligente”, confessando involuntariamente que experimentamos dez semanas de quarentena burra. Na etapa da burrice, fechou-se às pressas a economia de centenas de cidades do interior quase livres da epidemia. Na da inteligência, essas áreas serão desconfinadas, justamente na hora da chegada do vírus.
A bagunça é, às vezes, cálculo eleitoral. O prefeito paulistano, um administrador que executa antes para depois planejar, o gênio de bloqueios viários e megarrodízios, clamou por um “lockdown” imposto pelo governador, sobre quem recairia o peso do fracasso, antes de girar 180 graus, temendo a paralisação de obras de apelo eleitoral.
Na capital paulista, ninguém pode andar em parques, atividade saudável e segura, mas todos já podem visitar os shoppings. No Rio, cidade que declina sem elegância, as praias continuam proibidas, mas o prefeito puro e santo excetuou as igrejas, permitindo aglomerações nos templos. Há jornalistas que culpam o povo pela dissolução das quarentenas.
Às vezes, a bagunça é método. No estado do Rio, sob um governador-juiz que prega a eliminação extrajudicial de suspeitos, a corrupção adaptou-se celeremente ao cenário epidemiológico. Seguindo a clássica receita de autoajuda dos investidores, de converter crises em oportunidades, firmaram-se contratos fraudulentos para a construção de hospitais de campanha.
Saúde antes de tudo. O extinto Ministério da Saúde, reduzido à condição de acampamento militar, foi colonizado por curandeiros charlatães. Curvado às ordens presidenciais, ele recomenda o uso indiscriminado da cloroquina em pacientes de Covid, contrariando as conclusões de investigações científicas abrangentes. Às vezes, a bagunça é crime.
Não damos sopa para o azar. Os países europeus, bagunceiros, só exigem o uso de máscara em lugares fechados. No Brasil, somos ordeiros, rígidos, implacáveis: a Câmara estendeu a obrigação aos espaços abertos. Obedientes, as pessoas percorrem as calçadas com o apetrecho na testa ou no pescoço, manuseando-o irrestritamente, enquanto as máscaras dos motoqueiros se cobrem de películas de fuligem. Fazemos leis para chinês ver.
Nunca relaxamos. O fechamento geral de escolas é medida de eficácia improvável no combate ao coronavírus, concluiu um estudo publicado pela Lancet, revista médica de referência.
Na Europa, a reabertura escolar figura entre as medidas pioneiras da flexibilização, pois a longa interrupção atinge devastadoramente famílias e alunos pobres. Mas, por aqui, isso foi relegado ao epílogo do cronograma das autoridades. “Vire-se, povinho!” —eis a mensagem de governantes tementes a Deus ou à “Ciência”.
Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página. Temos tempo para substituir o lema que atravessa a esfera azul celeste da bandeira tão amada.Demétrio Magnoli
O risco do novo pretorianismo
Quanto menos popular, mais um governo tende a recorrer à força e a aparelhos de repressão do Estado. É assim numa ditadura. Pode ser assim numa democracia que vai sendo paulatinamente desgastada, erodida, envergonhada, como a brasileira. Esse é o assunto do momento, em que o país se vê perplexo com a tentativa de controle do Planalto sobre a Polícia Federal e as renovadas pressões das Forças Armadas sobre o sistema político. O Executivo ataca, o Supremo Tribunal Federal (STF) busca reagir - como na operação desta quarta-feira que acossou a suposta associação criminosa que dissemina “fakenews” - e o fragmentado Congresso leva tudo no banho-maria. Mas antes há o quadro geral.
Eleito pelo voto da maioria, Jair Bolsonaro não a tem mais. Os simpatizantes que consegue mobilizar nas manifestações dominicais em frente ao Planalto expõem um pequeno rebanho, embora cada vez mais radical, já denominado pelo decano do Supremo, Celso de Mello, de “bolsonaristas fascistóides”.
Pesquisas indicam queda de popularidade e aumento de rejeição após a resposta dada à pandemia do novo coronavírus. Sem qualquer coordenação nacional para enfrentar a crise, o Brasil se tornou, com o descaso propagado por Bolsonaro, o novo epicentro de disseminação e de mortes pela covid-19, que já ceifou mais de 25 mil vidas.
Com o sexto maior número de habitantes do planeta, o país avança em ritmo acelerado para alcançar o segundo lugar no ranking de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos, que têm população 55% superior. Ou seja, seremos o “campeão imoral” da pandemia.
As ideias do presidente não correspondem aos fatos nem à ciência. O mundo vê o brasileiro como uma massa doente de párias, obtusos e obscurantistas que precisam ser mantidos à distância. Mesmo pelo bajulado Donald Trump, que proibiu a entrada de viajantes com passagem pelo Brasil nos aeroportos americanos. O nível de investimento direto no país é o menor em 25 anos. O real é a moeda que mais se desvaloriza em relação ao dólar. Brasil, em tudo, abaixo de todos.
Quanto mais explícita a incapacidade de gestão e de liderança de Bolsonaro, mais o presidente e seu entorno precisam falar mais alto. O vídeo constrangedor da reunião ministerial de 22 de abril foi só amostra vulgar. Nos últimos anos o decoro, a civilidade, a cordialidade, o bom senso, a racionalidade saíram de moda. O movimento desaguou em projeto de índole revolucionária da extrema-direita.
Seu estilo de governo é hierárquico e autoritário. Quanto mais perde a ligação direta com a população, porém, mais se apoia em estruturas contraditórias. Deixou de criticar o toma-lá-dá-cá e abraçou o fisiologismo do Centrão. Fala em suposta democracia, mas sempre defendeu a ditadura militar e procura jogar a opinião pública contra o Congresso, o STF e a imprensa livre. O contínuo ataque às instituições, contudo, ganhou novos contornos com os últimos acontecimentos que dão conta do suposto apoio de Bolsonaro nas Forças Armadas.
Já se sabe que o sonho de Bolsonaro seria governar uma espécie de Coreia do Norte de direita, sem oposição, e com os militares subordinados aos caprichos de uma fonte de poder familiar - do pai, dos filhos e inspirada pelo espírito do guru Olavo de Carvalho.
O que não está - ou estava - tão claro era a disposição das Forças Armadas em se engajar de corpo e alma no projeto. No mínimo, arrisca a credibilidade da corporação. No limite, arrebenta com a democracia. Não foi trivial o episódio da nota do ministro Augusto Heleno, em que o general afirmou que poderia haver “consequências imprevisíveis” se a Justiça decidisse apreender o telefone do presidente, no âmbito da investigação que apura a denúncia de interferência de Bolsonaro na PF, feita pelo ex-ministro Sérgio Moro.
Ao contar com o aval do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e de quase uma centena de generais da reserva, o texto reforçou as suspeitas da cada vez maior atuação das Forças Armadas como uma instituição de governo, e não de Estado.
Nos bastidores, militares acenam com a possibilidade de uma “guerra civil” quando, na verdade, a população só vê como inimigo imediato um vírus invisível, e quando só um lado faz apologia da violência ou da desobediência civil. Dois ex-presidentes, Lula e Dilma, tiveram conversas telefônicas grampeadas e vazadas, mas Bolsonaro antecipadamente afirma que descumpriria decisão que lhe obrigasse a entregar o celular. Ontem, mesmo num dia de investigação a pleno vapor contra o chamado “gabinete do ódio”, o grupo bolsonarista “300 do Brasil”, que defende uma revolução e foi classificado como “milícia” pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), montava acampamento em frente ao Supremo.
Tão ciosas com a preservação da ordem, não se ouviu das Forças Armadas uma condenação à organização paramilitar. Ou à proposta de Bolsonaro de armar a população para defender o governo dele. Ou à declaração, também exposta na reunião ministerial, em que o presidente afirmou ter um sistema paralelo de inteligência, o que seria ilegal.
A história do militarismo remonta à fase embrionária das guardas pretorianas dos imperadores romanos, passou pela profissionalização do Exército na Prússia e encontrou, sobretudo no Brasil, sua forma contemporânea como um “novo pretorianismo”. Aqui, a alternância no poder de presidentes-generais elevou o que poderia ter sido uma cirúrgica intervenção, em 1964, ao patamar de um regime.
A prevalência dos militares - o que ocorre com Bolsonaro em grau maior do que durante a ditadura militar - é geralmente explicada quando o Exército é a parte mais moderna da sociedade ou quando a estrutura política procura por legitimidade.
Há cem anos, quando o Brasil deixava de ser agrário e começava seu processo de modernização, o tenentismo até dava sentido à primeira hipótese. Com a forte adesão das Forças Armadas a teses olavistas e mistificações como “guerra cultural”, em meio à longa crise política, nova submissão do governo federal à caserna só leva a outra definição usual como denominador comum do militarismo: degeneração da sociedade civil.
Cristian Klein
Eleito pelo voto da maioria, Jair Bolsonaro não a tem mais. Os simpatizantes que consegue mobilizar nas manifestações dominicais em frente ao Planalto expõem um pequeno rebanho, embora cada vez mais radical, já denominado pelo decano do Supremo, Celso de Mello, de “bolsonaristas fascistóides”.
Pesquisas indicam queda de popularidade e aumento de rejeição após a resposta dada à pandemia do novo coronavírus. Sem qualquer coordenação nacional para enfrentar a crise, o Brasil se tornou, com o descaso propagado por Bolsonaro, o novo epicentro de disseminação e de mortes pela covid-19, que já ceifou mais de 25 mil vidas.
Com o sexto maior número de habitantes do planeta, o país avança em ritmo acelerado para alcançar o segundo lugar no ranking de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos, que têm população 55% superior. Ou seja, seremos o “campeão imoral” da pandemia.
As ideias do presidente não correspondem aos fatos nem à ciência. O mundo vê o brasileiro como uma massa doente de párias, obtusos e obscurantistas que precisam ser mantidos à distância. Mesmo pelo bajulado Donald Trump, que proibiu a entrada de viajantes com passagem pelo Brasil nos aeroportos americanos. O nível de investimento direto no país é o menor em 25 anos. O real é a moeda que mais se desvaloriza em relação ao dólar. Brasil, em tudo, abaixo de todos.
Quanto mais explícita a incapacidade de gestão e de liderança de Bolsonaro, mais o presidente e seu entorno precisam falar mais alto. O vídeo constrangedor da reunião ministerial de 22 de abril foi só amostra vulgar. Nos últimos anos o decoro, a civilidade, a cordialidade, o bom senso, a racionalidade saíram de moda. O movimento desaguou em projeto de índole revolucionária da extrema-direita.
Seu estilo de governo é hierárquico e autoritário. Quanto mais perde a ligação direta com a população, porém, mais se apoia em estruturas contraditórias. Deixou de criticar o toma-lá-dá-cá e abraçou o fisiologismo do Centrão. Fala em suposta democracia, mas sempre defendeu a ditadura militar e procura jogar a opinião pública contra o Congresso, o STF e a imprensa livre. O contínuo ataque às instituições, contudo, ganhou novos contornos com os últimos acontecimentos que dão conta do suposto apoio de Bolsonaro nas Forças Armadas.
Já se sabe que o sonho de Bolsonaro seria governar uma espécie de Coreia do Norte de direita, sem oposição, e com os militares subordinados aos caprichos de uma fonte de poder familiar - do pai, dos filhos e inspirada pelo espírito do guru Olavo de Carvalho.
O que não está - ou estava - tão claro era a disposição das Forças Armadas em se engajar de corpo e alma no projeto. No mínimo, arrisca a credibilidade da corporação. No limite, arrebenta com a democracia. Não foi trivial o episódio da nota do ministro Augusto Heleno, em que o general afirmou que poderia haver “consequências imprevisíveis” se a Justiça decidisse apreender o telefone do presidente, no âmbito da investigação que apura a denúncia de interferência de Bolsonaro na PF, feita pelo ex-ministro Sérgio Moro.
Ao contar com o aval do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e de quase uma centena de generais da reserva, o texto reforçou as suspeitas da cada vez maior atuação das Forças Armadas como uma instituição de governo, e não de Estado.
Nos bastidores, militares acenam com a possibilidade de uma “guerra civil” quando, na verdade, a população só vê como inimigo imediato um vírus invisível, e quando só um lado faz apologia da violência ou da desobediência civil. Dois ex-presidentes, Lula e Dilma, tiveram conversas telefônicas grampeadas e vazadas, mas Bolsonaro antecipadamente afirma que descumpriria decisão que lhe obrigasse a entregar o celular. Ontem, mesmo num dia de investigação a pleno vapor contra o chamado “gabinete do ódio”, o grupo bolsonarista “300 do Brasil”, que defende uma revolução e foi classificado como “milícia” pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), montava acampamento em frente ao Supremo.
Tão ciosas com a preservação da ordem, não se ouviu das Forças Armadas uma condenação à organização paramilitar. Ou à proposta de Bolsonaro de armar a população para defender o governo dele. Ou à declaração, também exposta na reunião ministerial, em que o presidente afirmou ter um sistema paralelo de inteligência, o que seria ilegal.
A história do militarismo remonta à fase embrionária das guardas pretorianas dos imperadores romanos, passou pela profissionalização do Exército na Prússia e encontrou, sobretudo no Brasil, sua forma contemporânea como um “novo pretorianismo”. Aqui, a alternância no poder de presidentes-generais elevou o que poderia ter sido uma cirúrgica intervenção, em 1964, ao patamar de um regime.
A prevalência dos militares - o que ocorre com Bolsonaro em grau maior do que durante a ditadura militar - é geralmente explicada quando o Exército é a parte mais moderna da sociedade ou quando a estrutura política procura por legitimidade.
Há cem anos, quando o Brasil deixava de ser agrário e começava seu processo de modernização, o tenentismo até dava sentido à primeira hipótese. Com a forte adesão das Forças Armadas a teses olavistas e mistificações como “guerra cultural”, em meio à longa crise política, nova submissão do governo federal à caserna só leva a outra definição usual como denominador comum do militarismo: degeneração da sociedade civil.
Cristian Klein
Comunicado
Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Miguel Torga
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Miguel Torga
Cenas de desgoverno
É impossível ver o vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril sem ser tomado por avassaladora apreensão com a forma com que o país vem sendo governado. Calam fundo não só os gritos como os silêncios. Entre muitas outras barbaridades, o presidente da República confessou aos brados, com todas as letras, para quem quisesse ouvir, que está ostensivamente empenhado em levar adiante um projeto com o objetivo deliberado de “armar o povo” para que possa confrontar autoridades constituídas dos governos subnacionais.
Já houve tempo — e não me refiro às duas décadas de regime militar — em que tal confissão faria soar todos os alarmes nas Forças Armadas. Não foi o que se viu. Nenhum dos muitos oficiais-generais presentes na reunião sequer piscou. Mas o que de fato importa, no caso, é o que o Supremo e a PGR terão a dizer sobre tão desafortunada confissão. Acuado como está, o presidente não perde oportunidade de se encalacrar cada vez mais.
Já houve tempo — e não me refiro às duas décadas de regime militar — em que tal confissão faria soar todos os alarmes nas Forças Armadas. Não foi o que se viu. Nenhum dos muitos oficiais-generais presentes na reunião sequer piscou. Mas o que de fato importa, no caso, é o que o Supremo e a PGR terão a dizer sobre tão desafortunada confissão. Acuado como está, o presidente não perde oportunidade de se encalacrar cada vez mais.
Teria sido menos deprimente se os participantes da reunião tivessem se limitado a não contestar os acessos de primitivismo de Bolsonaro. Mas o que se viu foi um torneio de capachismo, em que ministros e outras autoridades presentes se revezavam em louvores aos despropósitos vociferados pelo presidente, sem descuidar do estilo primitivo que parecia ser de uso protocolar na reunião.
Afora uma intervenção curta e anódina do ministro 02 da Saúde, pouco se ouviu sobre a pandemia, a não ser diatribes impublicáveis contra governadores e prefeitos, trovejadas por um presidente inconformado com as limitações que lhe são impostas pelos preceitos constitucionais de uma república federativa.
Nesse ambiente carregado, o ministro da Economia fez o que pôde para tentar dar seu recado, com amplo uso da cota de excessos verbais que lhe cabia na reunião. Arguiu que, por abalado que tenha sido pela crise, o governo não tinha perdido a bússola. E que se souber retomar o trilho da política econômica, tão logo a pandemia esteja sob controle, o país surpreenderá o mundo. E a reeleição do presidente estará assegurada.
O problema é que, na bússola de Bolsonaro, o único rumo a seguir passou a ser o da resistência ao impeachment. E, como bem mostrou a reunião, boa parte do governo e de seus novos aliados no Congresso anda fascinada com a possibilidade de acelerar a recuperação da economia com a adoção de políticas nacional-desenvolvimentistas.
O problema é que, na bússola de Bolsonaro, o único rumo a seguir passou a ser o da resistência ao impeachment. E, como bem mostrou a reunião, boa parte do governo e de seus novos aliados no Congresso anda fascinada com a possibilidade de acelerar a recuperação da economia com a adoção de políticas nacional-desenvolvimentistas.
Não há auto-engano que resolva. É impossível não perceber quão gritante é a desproporção entre a enormidade dos desafios com que o país se defronta e as acanhadas possibilidades de atuação eficaz da cúpula do governo, cruamente desnudadas pelo vídeo da reunião de 22 de abril, em Brasília.
Questão de múltipla escolha
Imagine que você esteja entre os 210 passageiros de um voo intercontinental e, em plena travessia do Atlântico, o avião seja colhido por uma tempestade perfeita. A maior em 100 anos, surgida do nada, para grande surpresa dos meteorologistas. Atribulada com o enfrentamento da tempestade e a tranquilização dos passageiros, a tripulação começa a se dar conta de que o comandante parece estar fora de si, gritando frases desconexas, alheio à gravidade da situação e, o que é pior, insistindo em manobrar o avião com alarmante imprudência, ao arrepio do que, em circunstâncias tão adversas, sugerem regras elementares de condução da aeronave.
Responda para você mesmo: o que deveria fazer a tripulação?
(a) Nada, porque é ao comandante e só a ele que cabe a escolha da melhor forma de enfrentar a tempestade;
(b) Esperar que o avião atravesse a tempestade e reavaliar a situação;
(c) Esperar que o avião chegue a seu destino e avaliar se seria o caso de relatar o ocorrido à ouvidoria da empresa, com a discrição cabível;
(d) Afastar o comandante da cabine de comando, tão logo quanto possível, para que o copiloto possa assumir pleno controle da aeronave em situação tão crítica;
(e) Prefiro não responder, nem para mim mesmo;
(f) Não tenho tempo a perder com questão tão idiota.
A politização da morte
O primeiro é a boa e velha estratégia da “cortina de fumaça”. Com uma economia já estagnada em 2019, o impacto econômico da pandemia ameaçaria os planos de reeleição. A solução? Politizar a Covid-19. De um lado, colocam-se os que “querem trabalhar”, os “defensores da economia” e dos que “prescrevem” a cloroquina; do outro, os que “querem ficar em casa”, os “defensores da vida” e até os “céticos”, que não prescrevem cloroquina. Uma polarização perfeita que coloca a crise como responsabilidade dos outros.
Tudo isso se resume à estratégia de ampliação dos poderes do presidente em face das outras instâncias. A eleição de Bolsonaro explica-se pela polarização, e assim é o seu governo, empenhado em manter suas tropas em permanente estado de mobilização “contra o sistema”, ou seja, contra todos aqueles que discordam das posições do “chefe supremo”.
A estratégia do bolsonarismo é tudo politizar: do combate à pandemia ao desmatamento, passando pela data do Enem. Ao politizar as mortes, Bolsonaro as retira de seus ombros (“e daí?”, “não sou coveiro”).
O governo Bolsonaro não é feito para governar; é feito para implementar um programa conservador de um movimento populista autoritário, cuja lógica é o confronto. Como na anedota do sapo e do escorpião, essa é a sua natureza. Não vai mudar.
Tanques e likes empurram Bolsonaro ara o tudo ou nada
O governo nasceu sob a expectativa positiva de 65% dos brasileiros, segundo uma pesquisa feita antes da posse. Bolsonaro rapidamente jogou fora essa boa vontade e se acomodou sobre uma divisão dos brasileiros em três terços, que consideravam o governo bom, regular e ruim.
O arranjo estava longe de ser confortável para qualquer político, mas deu alguma estabilidade a um presidente que cometeu barbaridades diárias e se mostrou incapaz de apresentar um programa minimamente coerente para o país.
Os números da última pesquisa Datafolha, realizada nos últimos dias, mostraram que esse panorama mudou. As crises sanitária, política e econômica empurraram uma fatia razoável de brasileiros para o campo crítico a Bolsonaro. A proporção de entrevistados que rejeitam o governo subiu para 43%, enquanto sua parcela de apoiadores se manteve em 33%. A diferença entre os dois percentuais representa cerca de 20 milhões de pessoas.
Bolsonaro recorreu a outros métodos para preservar seu poder. Passou a fazer acenos ainda mais frequentes às Forças Armadas e lançou ameaças abertas de intervenção militar. Nesta quinta (28), o presidente divulgou um discurso favorável a uma ação fardada sobre o STF. Nenhum comandante o contestou.
O atrevimento golpista serve para demonstrar força, intimidar autoridades e energizar uma base crescentemente identificada com seu líder. A maioria do núcleo bolsonarista concorda com a ideia de armar a população, apoia a participação de militares no governo e acha que o presidente só queria melhorar sua segurança pessoal —e não interferir na Polícia Federal. Esse grupo empurra Bolsonaro para o tudo ou nada.
Palavrões do presidente revelam homem que só interage agredindo
A reunião dos ministros, de 22 de abril, agora acessível a todos, foi convocada pelo general Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, para o estabelecimento de um pacto em favor do Plano Pró-Brasil, de retomada do crescimento econômico. Um Plano Marshall brasileiro, explicou, aludindo equivocadamente ao plano americano que, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assegurou o dinheiro para a recuperação e o progresso econômico dos países derrotados.
Braga Netto se referia à política do New Deal, que o presidente Franklin Roosevelt pôs em prática para recuperar a economia americana da grande crise econômica de 1929.
Seu plano é, no fundo, um plano de investimentos estatais em infraestrutura, para criar emprego e renda e seus multiplicadores. Um plano de desenvolvimento econômico com efeitos sociais diretos em oposição ao plano neoliberal de Paulo Guedes, que é um plano só de crescimento econômico, com efeitos sociais indiretos. E o objetivo político de eleger Bolsonaro em 2022, proclamou ele.
O plano de Braga Netto não parece limitado a tentar salvar o PIB e os lucros do grande capital, como é o de Guedes. O é, porém, de forma indireta. Induz a interiorização dos centros de decisão do desenvolvimento econômico. Há aí, em germe, um potencial neonacionalismo, oposto à geopolítica bolsonarista de satelização do Brasil em relação aos EUA.
A proposta de Braga Netto talvez se inspire, por ouvir dizer, na “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, livro de John Maynard Keynes, economista da Universidade de Cambridge, influente no pós-guerra. No Brasil, ideias que seriam reconhecidas mais tarde como antecipações do keynesianismo já haviam sido aplicadas, com grande êxito, pelo banqueiro brasileiro José Maria Whitaker, ministro da Fazenda do governo provisório de Getúlio Vargas, em 1930-1931.
A compra e queima dos estoques de café, sem mercado em decorrência da crise de 1929, manteve o fluxo de renda, e com ele os fazendeiros seriam pagos pelo café encalhado, e com o dinheiro pagariam os colonos pela colheita pendente. O que manteve a vitalidade do mercado e da indústria brasileira, já estabelecida desde o final do século XIX, com grande capacidade ociosa para substituir importações.
Braga Netto se referia à política do New Deal, que o presidente Franklin Roosevelt pôs em prática para recuperar a economia americana da grande crise econômica de 1929.
Seu plano é, no fundo, um plano de investimentos estatais em infraestrutura, para criar emprego e renda e seus multiplicadores. Um plano de desenvolvimento econômico com efeitos sociais diretos em oposição ao plano neoliberal de Paulo Guedes, que é um plano só de crescimento econômico, com efeitos sociais indiretos. E o objetivo político de eleger Bolsonaro em 2022, proclamou ele.
O plano de Braga Netto não parece limitado a tentar salvar o PIB e os lucros do grande capital, como é o de Guedes. O é, porém, de forma indireta. Induz a interiorização dos centros de decisão do desenvolvimento econômico. Há aí, em germe, um potencial neonacionalismo, oposto à geopolítica bolsonarista de satelização do Brasil em relação aos EUA.
A proposta de Braga Netto talvez se inspire, por ouvir dizer, na “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, livro de John Maynard Keynes, economista da Universidade de Cambridge, influente no pós-guerra. No Brasil, ideias que seriam reconhecidas mais tarde como antecipações do keynesianismo já haviam sido aplicadas, com grande êxito, pelo banqueiro brasileiro José Maria Whitaker, ministro da Fazenda do governo provisório de Getúlio Vargas, em 1930-1931.
A compra e queima dos estoques de café, sem mercado em decorrência da crise de 1929, manteve o fluxo de renda, e com ele os fazendeiros seriam pagos pelo café encalhado, e com o dinheiro pagariam os colonos pela colheita pendente. O que manteve a vitalidade do mercado e da indústria brasileira, já estabelecida desde o final do século XIX, com grande capacidade ociosa para substituir importações.
O que parecia ser uma reunião de bajuladores do presidente da República foi, na verdade, um questionamento da política econômica do ministro Paulo Guedes.
Guedes percebeu e pulou na hora. Repreendeu o general e disse que a alusão ao Plano Marshall revelava um despreparo enorme. A recuperação da economia deveria se basear em investimentos privados, e não em investimentos estatais. Impugnou Keynes. O general gaguejou e concordou. Não estava preparado para compreender o alcance e as implicações da proposta que fazia.
Dada a palavra aos presentes, houve algumas vozes na linha de questionamento de Guedes. A mais explícita foi a do ministro Rogério Marinho, economista: “Não podemos começar uma discussão com verdades absolutas e com dogmas...”.
Falou em favor de uma política de obras de infraestrutura, com inversão de recursos públicos. Questionou a preocupação de Guedes e de outros membros do governo de que, com a pandemia, “as coisas continuam como eram antes”. “Não são como eram antes, aqui e no mundo inteiro”, afirmou Marinho. E com razão. Uma nova ordem econômica terá que surgir inspirada em valores econômicos, mas também sociais, antineoliberais.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, alertou Guedes: “Vamos ter que fazer algumas revisões de políticas públicas no Brasil (...), coloque aí a questão dos valores” (sociais), ordenou. Citou números de quilombolas, idosos, crianças e mulheres em abrigos. Aqueles que, em certa época, as esquerdas definiam como excluídos.
As intervenções de Bolsonaro ficaram desconectadas das outras falas. Pegava deixas no que os outros diziam e via em tudo prova de conspiração contra sua pessoa. Confessou medo. Antes da Presidência, quando ia ao médico, pedia que seu nome não constasse das receitas, para não ser envenenado. Vê inimigos por trás de tudo. “Tem gente deles plantada aqui dentro”, enfatizou.
Os palavrões pronunciados por ele na reunião são irrelevantes para a compreensão do que está se passando no escurinho do poder. Os palavrões de cunho fecal e sexual revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem um nome, que ele mencionou duas vezes: Jaguapoca.
Socializado na cultura caipira, no dialeto caipira encontrou nos remanescentes tupi que nele há a palavra que indica o que pensa desse temido inimigo:
Jaguapoca, a onça que é menos onça do que deve ser. Daí depreciar todos os que com ele não se alinham, onças que esturram, mas que são apenas m. e estrume.José de Souza Martins
Guedes percebeu e pulou na hora. Repreendeu o general e disse que a alusão ao Plano Marshall revelava um despreparo enorme. A recuperação da economia deveria se basear em investimentos privados, e não em investimentos estatais. Impugnou Keynes. O general gaguejou e concordou. Não estava preparado para compreender o alcance e as implicações da proposta que fazia.
Dada a palavra aos presentes, houve algumas vozes na linha de questionamento de Guedes. A mais explícita foi a do ministro Rogério Marinho, economista: “Não podemos começar uma discussão com verdades absolutas e com dogmas...”.
Falou em favor de uma política de obras de infraestrutura, com inversão de recursos públicos. Questionou a preocupação de Guedes e de outros membros do governo de que, com a pandemia, “as coisas continuam como eram antes”. “Não são como eram antes, aqui e no mundo inteiro”, afirmou Marinho. E com razão. Uma nova ordem econômica terá que surgir inspirada em valores econômicos, mas também sociais, antineoliberais.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, alertou Guedes: “Vamos ter que fazer algumas revisões de políticas públicas no Brasil (...), coloque aí a questão dos valores” (sociais), ordenou. Citou números de quilombolas, idosos, crianças e mulheres em abrigos. Aqueles que, em certa época, as esquerdas definiam como excluídos.
As intervenções de Bolsonaro ficaram desconectadas das outras falas. Pegava deixas no que os outros diziam e via em tudo prova de conspiração contra sua pessoa. Confessou medo. Antes da Presidência, quando ia ao médico, pedia que seu nome não constasse das receitas, para não ser envenenado. Vê inimigos por trás de tudo. “Tem gente deles plantada aqui dentro”, enfatizou.
Os palavrões pronunciados por ele na reunião são irrelevantes para a compreensão do que está se passando no escurinho do poder. Os palavrões de cunho fecal e sexual revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem um nome, que ele mencionou duas vezes: Jaguapoca.
Socializado na cultura caipira, no dialeto caipira encontrou nos remanescentes tupi que nele há a palavra que indica o que pensa desse temido inimigo:
Jaguapoca, a onça que é menos onça do que deve ser. Daí depreciar todos os que com ele não se alinham, onças que esturram, mas que são apenas m. e estrume.José de Souza Martins
Covardes na pandemia
Você pode me destratar do que jeito que você quiser, mas você tem nome, sobrenome e assinatura. Então, eu tenho o direito de te processar. O que é feito de modo imoral, indecente (sem identificação) é um ato de covarde. A internet criou uma nova era: a era do covarde.
Esse negócio de fake é nojento, tem que acabar definitivamente no Brasil, tem que ser regulamentado de forma enérgica
Alexandre Kalil (PSD), prefeito de Belo Horizonte
O que podemos diante dos perversos?
Freud apresenta a diferença entre o que ele denomina de consciência de culpa e o que chama de consciência moral.
A consciência de culpa, que compartilhamos, por exemplo, com animais de estimação, diz da determinação ou da inibição de certos comportamentos apenas por temor de sermos punidos ou de perdermos a atenção e o cuidado dos outros. Usaremos atualmente uma máscara facial para inibir o contágio pelo coronavírus ou não jogaremos um papel no chão ou, ainda, não atravessaremos o farol vermelho, apenas porque tomaremos uma multa ou, no extremo, seremos presos, assim como o cachorro sabe que tomará uma bronca ou receberá uma palmada se urinar no local inapropriado.
Já a consciência moral, diferentemente, diz da interiorização da lei e da consequente assunção do sentido de coletividade, da percepção, portanto, de que sou um dentre tantos outros, de que não estou acima da Lei, de que todos somos iguais perante a justiça e ao pacto social. Ou seja, utilizarei corretamente a máscara facial (e não fingirei que a estou utilizando, deixando-a pendurada na orelha ou abaixo do nariz), não jogarei um papel na rua ou atravessarei o sinal vermelho, pois antecipo minhas responsabilidades, pois penso nas consequências de meus atos para além do meu mero prazer momentâneo, pois sou capaz de presumir que posso me contaminar ou contaminar outros com um vírus de potência letal, pois posso imaginar que os rios ficariam poluídos com o lixo descartado em lugar impróprio, que poderia levar a um futuro de enchentes e de doenças, e que atrapalharia o trânsito e também a vida de tantas pessoas com meus atos descabidos.
Tudo isso é quase o óbvio, ou deveria ser assim.
Mas, e quando vivemos num contexto autoritário em que aqueles que deveriam zelar pelo bem comum se colocam como se estivessem acima da lei, ou melhor, como sendo a lei? Essa versão torpe de Luís XIV, que corporifica a lei de Gerson, em que nos vangloriamos de tirar vantagem de tudo e de todos, demonstra que nós brasileiros, com nossa triste história, colocamos no cargo de presidente da República um narciso autoritário que desdenha a lei, ou pior, que supõe ser ele próprio a lei.
E isso, sem esquecer que esse ser abjeto foi colocado lá por mais 50 milhões de habitantes, o que evidencia um conluio perverso que nos atravessa e nos estrutura.
Esse Estado somos nós.
Confundimos autoridade com autoritarismo.
No lugar da lei comum, da Constituição que juntos elaboramos, estabelecemos e nos recolhemos dentro de leis particulares. Cada qual resolve por conta própria, pelo jeitinho, pela força, poder ou influência, definir suas leis particulares, o que é certo ou errado, atacando a lógica da convivência, desdenhando de um código de ética, da cidadania, da Constituição, dos Direitos Humanos.
Dos colonizadores que fizeram terra arrasada dos povos originais, nós, seus descendentes que nos tornamos o último país a abolir a escravidão, e que ainda a toleramos nas residências, fazendas e fábricas de trabalho escravo e no trato às empregadas domésticas; um país marcado pela desigualdade ultrajante, que não oferece à grande maioria de sua população a infraestrutura básica para usufruto de água, luz, esgoto, que não oferece educação, saúde, transporte e segurança; um país que desdenha da justiça, que detém recordes em índices de violência contra crianças, adolescentes e idosos, que abusa reiteradamente da mulher, que humilha a comunidade LGBT+, que desrespeita as regras de trânsito, que explora sem limites a natureza; um país autoritário em sua força de segurança e que ainda se provém de milícias armadas e de um poder paralelo do tráfico que faz conluio com o poder público; um país de ruas sujas por dejetos diversos; um lugar em que há ao menos duas formas de resolver problemas: o oficial e o oficioso.....
Esse Estado perverso, injusto, violento e intolerante, somos nós.
Nós, que misturamos o público com privado, nós, que corrompemos o Estado e que determinamos que a Polícia Federal deveria servir à família do presidente, nós, que desvirtuamos a Justiça, que mostramos, adulteramos ou escondemos provas de delitos, que julgamos e aplicamos sentenças conforme nossos interesses arbitrários. Nós, nós, nós.
O que dá inteligibilidade a todos esses comportamentos é uma estrutura psicológica precisada por Freud, a perversão. A perversão não é a maldade, como o senso comum indicaria, a perversão para a psicanálise é o desdém, é a recusa da lei.
Não o seu desconhecimento, mas seu desprezo, sua rejeição, sua denegação. Ou seja, o perverso sabe da existência da lei, mas tem certeza de que ela não se aplica a ele. Não! Ele, o perverso, é a Constituição, ele está acima dela, falseia e manipula a carta magna para esconder os seus crimes.
O terrível jeitinho brasileiro.
Fala-se muito em fake news, e a mentira é, sim, um grave problema tanto no âmbito da esfera pública como na esfera privada. Mas o mecanismo da perversão de que a psicanálise fala não é a mentira em si, mas o desmentido, o descompromisso com qualquer verdade. O perverso não se empenha com a palavra e, portanto, pode falar o que lhe vier à boca, depois falar o oposto, acender uma vela a Deus e outra ao Diabo, acusar seus detratores daquilo que ele próprio disse. Uma criança abusada que denuncia a violência experimentada se vê desmentida em seu sofrimento pelo perverso e por suas testemunhas coniventes, até então silenciosas, que responderiam à criança: “Não temos nada a ver com isso. Isso não aconteceu, você não foi abusada, foi tudo fruto da sua imaginação, foi você que nos violou”. A violência é percebida e denegada. A revelação de que o rei está nu cai por terra, não reverbera: não há como denunciar a violência e a ilegalidade. E isso nos enlouquece, nos exaspera, nos tira do eixo, nos rouba a esperança, o horizonte, a confiança no outro. Quando os compromissos com a grande lei e com os outros é desdenhado, somos roubados em nossa crença no projeto comum de futuro. Ou, então, profundamente desamparados aderimos como um exército de zumbis, de vampiros, à nova desordem mundial e passamos a assumir o discurso perverso, amoral, nos identificando-nos com ele, acreditando nele, repetindo sua fala, transformando-nos nele, até empunhar orgulhosa e tresloucadamente a sua bandeira. O terror.
O que vem acontecendo conosco? Que processo assassino é esse, que envenena e depois destrói nossa alma, que extermina nossos corpos, que joga terra em nossos sonhos?
Seria esse o resultado em nós da perversão do ato colonizador e espoliador que fundou nosso país e que se desdobrou em tantas e tão terríveis tragédias? Marchamos, assim, desde nossos tempos iniciais, afiançando o assassinato dos povos originais, com a objetificação naturalizada do outro para a nossa exploração e prazer na escravização do povo africano, com a tortura nos porões da ditadura civil-militar... todos atos de violência extrema e desprezo pela lei e pelo outro que continuam a ser aplicados sem escrúpulos ainda hoje sobre a maior parte da população, nas relações perpetradas tanto na sociedade civil, como também pelo Estado, este que deveria zelar pelo bem comum. Essa nossa história de extrema barbárie, que é reproduzida tantas vezes em nossos lares e que nos configura como bestas covardes e perversas.
E, ainda, a perversão cria testemunhas silenciosas, omissas e coniventes, depois, cúmplices, e, finalmente, iguais. E, por óbvio, não pode existir uma fratria perversa, não há comunidade na perversão. Há, sim, gangues, corjas assassinas. Passamos a ser apenas comparsas, desconfiados um do outro. Ao perpetuarmos a perversão, estamos prontos a ver brechas em que nosso poder, força ou influência seja maior do que o do outro, para nos darmos individualmente “bem”, para levarmos vantagem em tudo. Não existe sociedade, mas um bando atemorizado, cruel e perigoso. Animais acuados, hienas prontas a se defender atacando outros.
Estranho processo esse em que ao não assumirmos em nós a tentação da perversão nos eximimos ou nos omitimos e nos apequenamos diante da desfaçatez da perversão que colocamos na gestão do Estado.
Estranho processo de identificação-negada com o perverso, processo ininteligível que gera ao mesmo tempo culpa e gozo. Estranha identificação com essas raposas vorazes, violentas e desvairadas que escolhemos para cuidar de nós, supostas galinhas.
Mas preferimos nos justificar em nossa apatia, seguir negando que somos todos também perversos, e assim não conseguimos retomar nossa história para estabelecer um projeto diverso do de um passado repleto de perversões. Preferimos afirmar que estamos agindo assim, ou que nos mantemos paralisados diante da perversão, negando para nós mesmos esse sentimento aterrorizante de identificação com o perverso: somos parasitas parasitados, somos Coringas brutalizados e brutais. E essa percepção da perversão em nós, ainda que negada, re-emerge como sentimento de culpa, que por vezes se mistura com sentimentos de persecutoriedade e de punição. Seria para fugir do crime e do castigo que estabeleceríamos novamente um conluio com a perversão e, assim, não reagir à nossa própria perversão? É um sentimento de que nos sabemos perversos em ação ou em potencial. Desconfiamos do outro porque sabemos do nosso potencial destruidor.
Certo, e que tal se reconhecermos essa tentação à perversão como forma de libertação, e não de prisão? Que tal se pudéssemos reconhecer nosso passado coletivo e privado para mudá-lo, transformá-lo em uma consciência moral para não mais repeti-lo? Reconheçamos nossos delitos e nossa omissão para que criemos consciência de nossa potência perversa e escolher ativamente não agir fora ou aquém da lei e, assim, que possamos convocar outros para que ajam também segundo a égide da lei. Devemos reagir. Falar, gritar, brigar, denunciar, procurar parceiros fraternos cujas consciências morais formem uma rede contra esse jogo perverso.
Nossa resposta à perversão só pode ser pela ética. Pela justiça social e pelo bem comum, pela reafirmação do pacto social e pelo enfrentamento daqueles que insistem em se colocar num gozo narcísico, egoísta, individualista, amoral, no qual o projeto coletivo não existe. A cada palavra ou ato, devemos antes pensar: é apenas para meu bel prazer, ou também inclui a coletividade?
Pois se a perversão à brasileira se apoia nesse traço de caráter forjado em nossa história, ou na falta dele, em que as Leis comuns se diluem em uma miríade de leis particulares, devemos reconhecer que nossa perversão se alimenta dia a dia de terríveis hábitos cotidianos públicos e domésticos naturalizados. Nas casas, nas escolas, nas empresas, nos ofícios diversos nos deparamos todos os dias com o pior de nós mesmos, com o torpe, o vil, o infame, espelhamos, assim, instituições públicas, —federais, estaduais, municipais e de bairro—, e privadas, que fazem de tudo para se perpetuar no poder, custe o que custar, custe a quem custar. Nosso perverso e abjeto presidente da República tem seus duplos, seus avatares macabros, nos governadores, prefeitos, ministros, secretários, síndicos, diretores, pais, filhos e amigos milicianos.
E não seria tão difícil reconhecer um perverso: ele fareja e segue o poder como um cão faminto atrás de uma carniça qualquer, mas não tem projeto, não tem futuro. O perverso não sabe falar – e isso não quer dizer conjugar verbos –, mas, sim, manter coerência empática com o interlocutor. Diante do debate, o perverso foge, não sabe dialogar. Diante da pergunta, ele evade. Diante dos fatos, ele nega. Diante da sua própria fala, ele desmente. Ele se acha insuperável, porque a perversão, negando qualquer limite, nega até mesmo a morte. “É só uma gripezinha”. Assim, diante da morte, ou de milhares de mortes, ele é indiferente. “E daí?”
O perverso nos ameaça o tempo todo pela força e pelo ataque ao pensamento. Coloca-nos sob o domínio do medo e da culpa, rompendo os nexos causais habituais, desfazendo de nosso entendimento do mundo, da ciência e da filosofia. Nas suas palavras confusas, quer nos dizer: “Seja como eu, aproveite a oportunidade. Faça o que faço, aproveite as brechas: seduza, ludibrie, fale (se colar colou, se não, que se dane...), não pense, não pondere, não leia, não se informe, não estude, não produza conhecimento.”
Não! Recusaremos essa convocação. É claro que temos todos em nossa complexidade aspectos sombrios, mas faz parte de nosso caminho civilizatório lutar contra eles, lidar com essas forças abjetas em nós, convocá-las para o fortalecimento do pacto civilizatório, e assim podar e moldar nosso narcisismo para que todos possam ser deliberada e conscientemente livres. Medo todos temos. Mas cansados de ter medo, temos também a consciência da raiva e da exaustão de viver num lugar onde só poderiam vencer (e para quê?) os mais fortes ou influentes. Diante das ameaças de perder regalias, diante de quaisquer ameaças, devemos ter a coragem devolver o “E daí?” – sim, temos medo, vamos todos morrer. Mas não vamos morrer de medo.
Cada um, em todos os lugares, com grandes ou pequenos gestos, nas esferas públicas ou privadas, devemos romper com todos os atos e com todas as pessoas que impõem leis particulares, que desdenham a Lei, que se imaginam maiores que elas. Devemos recusar esse chamado na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica, nos Pampas, no Pantanal, devemos nos opor diariamente a esse chamado nos campos e nas cidades, devemos recusar esse chamado em todos os lugares do país até que ele morra de inanição. E assim faremos, ainda que nos leve os privilégios, os bens, o sangue. Mas teremos a vida.
E a todos aqueles que agora concordam ou simplesmente aceitam a perversão, por convicção ou conveniência, com gritos ou silêncio, nada temos a falar com vocês agora. Voltaremos a conversar no tribunal da vida humana ou da história. Esperamos que seus filhos e netos o encontrem no futuro para poder lhes julgar pelo pior dos crimes, o mais corrente entre nós, que é o da omissão. E que eles possam romper com vocês definitivamente, em busca de uma fraternidade.
Terminamos onde começamos, com Freud em seu magistral Mal estar na civilização, já em meio às violências impensáveis do nazismo: “A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso. Daí seu medo. Cabe agora esperar que a outra das duas ‘potências celestiais’, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal.”, e acrescenta um ano depois, com o realismo que lhe é peculiar, “Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace?”
Noemi Moritz Kon e Thiago Majolo, psicanalistas vinculados ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
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