Quanto menos popular, mais um governo tende a recorrer à força e a aparelhos de repressão do Estado. É assim numa ditadura. Pode ser assim numa democracia que vai sendo paulatinamente desgastada, erodida, envergonhada, como a brasileira. Esse é o assunto do momento, em que o país se vê perplexo com a tentativa de controle do Planalto sobre a Polícia Federal e as renovadas pressões das Forças Armadas sobre o sistema político. O Executivo ataca, o Supremo Tribunal Federal (STF) busca reagir - como na operação desta quarta-feira que acossou a suposta associação criminosa que dissemina “fakenews” - e o fragmentado Congresso leva tudo no banho-maria. Mas antes há o quadro geral.
Eleito pelo voto da maioria, Jair Bolsonaro não a tem mais. Os simpatizantes que consegue mobilizar nas manifestações dominicais em frente ao Planalto expõem um pequeno rebanho, embora cada vez mais radical, já denominado pelo decano do Supremo, Celso de Mello, de “bolsonaristas fascistóides”.
Pesquisas indicam queda de popularidade e aumento de rejeição após a resposta dada à pandemia do novo coronavírus. Sem qualquer coordenação nacional para enfrentar a crise, o Brasil se tornou, com o descaso propagado por Bolsonaro, o novo epicentro de disseminação e de mortes pela covid-19, que já ceifou mais de 25 mil vidas.
Com o sexto maior número de habitantes do planeta, o país avança em ritmo acelerado para alcançar o segundo lugar no ranking de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos, que têm população 55% superior. Ou seja, seremos o “campeão imoral” da pandemia.
As ideias do presidente não correspondem aos fatos nem à ciência. O mundo vê o brasileiro como uma massa doente de párias, obtusos e obscurantistas que precisam ser mantidos à distância. Mesmo pelo bajulado Donald Trump, que proibiu a entrada de viajantes com passagem pelo Brasil nos aeroportos americanos. O nível de investimento direto no país é o menor em 25 anos. O real é a moeda que mais se desvaloriza em relação ao dólar. Brasil, em tudo, abaixo de todos.
Quanto mais explícita a incapacidade de gestão e de liderança de Bolsonaro, mais o presidente e seu entorno precisam falar mais alto. O vídeo constrangedor da reunião ministerial de 22 de abril foi só amostra vulgar. Nos últimos anos o decoro, a civilidade, a cordialidade, o bom senso, a racionalidade saíram de moda. O movimento desaguou em projeto de índole revolucionária da extrema-direita.
Seu estilo de governo é hierárquico e autoritário. Quanto mais perde a ligação direta com a população, porém, mais se apoia em estruturas contraditórias. Deixou de criticar o toma-lá-dá-cá e abraçou o fisiologismo do Centrão. Fala em suposta democracia, mas sempre defendeu a ditadura militar e procura jogar a opinião pública contra o Congresso, o STF e a imprensa livre. O contínuo ataque às instituições, contudo, ganhou novos contornos com os últimos acontecimentos que dão conta do suposto apoio de Bolsonaro nas Forças Armadas.
Já se sabe que o sonho de Bolsonaro seria governar uma espécie de Coreia do Norte de direita, sem oposição, e com os militares subordinados aos caprichos de uma fonte de poder familiar - do pai, dos filhos e inspirada pelo espírito do guru Olavo de Carvalho.
O que não está - ou estava - tão claro era a disposição das Forças Armadas em se engajar de corpo e alma no projeto. No mínimo, arrisca a credibilidade da corporação. No limite, arrebenta com a democracia. Não foi trivial o episódio da nota do ministro Augusto Heleno, em que o general afirmou que poderia haver “consequências imprevisíveis” se a Justiça decidisse apreender o telefone do presidente, no âmbito da investigação que apura a denúncia de interferência de Bolsonaro na PF, feita pelo ex-ministro Sérgio Moro.
Ao contar com o aval do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e de quase uma centena de generais da reserva, o texto reforçou as suspeitas da cada vez maior atuação das Forças Armadas como uma instituição de governo, e não de Estado.
Nos bastidores, militares acenam com a possibilidade de uma “guerra civil” quando, na verdade, a população só vê como inimigo imediato um vírus invisível, e quando só um lado faz apologia da violência ou da desobediência civil. Dois ex-presidentes, Lula e Dilma, tiveram conversas telefônicas grampeadas e vazadas, mas Bolsonaro antecipadamente afirma que descumpriria decisão que lhe obrigasse a entregar o celular. Ontem, mesmo num dia de investigação a pleno vapor contra o chamado “gabinete do ódio”, o grupo bolsonarista “300 do Brasil”, que defende uma revolução e foi classificado como “milícia” pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), montava acampamento em frente ao Supremo.
Tão ciosas com a preservação da ordem, não se ouviu das Forças Armadas uma condenação à organização paramilitar. Ou à proposta de Bolsonaro de armar a população para defender o governo dele. Ou à declaração, também exposta na reunião ministerial, em que o presidente afirmou ter um sistema paralelo de inteligência, o que seria ilegal.
A história do militarismo remonta à fase embrionária das guardas pretorianas dos imperadores romanos, passou pela profissionalização do Exército na Prússia e encontrou, sobretudo no Brasil, sua forma contemporânea como um “novo pretorianismo”. Aqui, a alternância no poder de presidentes-generais elevou o que poderia ter sido uma cirúrgica intervenção, em 1964, ao patamar de um regime.
A prevalência dos militares - o que ocorre com Bolsonaro em grau maior do que durante a ditadura militar - é geralmente explicada quando o Exército é a parte mais moderna da sociedade ou quando a estrutura política procura por legitimidade.
Há cem anos, quando o Brasil deixava de ser agrário e começava seu processo de modernização, o tenentismo até dava sentido à primeira hipótese. Com a forte adesão das Forças Armadas a teses olavistas e mistificações como “guerra cultural”, em meio à longa crise política, nova submissão do governo federal à caserna só leva a outra definição usual como denominador comum do militarismo: degeneração da sociedade civil.
Cristian Klein
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