segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Triste fim de Jair Messias Bolsonaro

Jair acordou a meio da noite. Mandara colocar uma cama dentro do closet e era ali que dormia. Durante o dia tirava a cama, instalava uma secretária e recebia os filhos, os ministros e os assessores militares mais próximos. Alguns estranhavam. Entravam tensos e desconfiados no armário, esforçando-se para que os seus gestos não traíssem nenhum nervosismo. Interrogado a respeito pela Folha de São Paulo, o deputado Major Olímpio, que chegou a ser muito próximo de Jair, tentou brincar: – Não estou sabendo, mas não vou entrar em armário nenhum. Isso não é hétero.

Michelle, que também se recusava a entrar no armário, fosse de dia ou de noite, optou por dormir num outro quarto do Palácio da Alvorada. Aliás, o edifício já não se chamava mais Palácio da Alvorada. Jair oficializara a mudança de nome: – Alvorada é coisa de comunista! — esbracejara: – Certamente foi ideia desse Niemeyer, um esquerdopata sem vergonha.

O edifício passara então a chamar-se Palácio do Crepúsculo. O Presidente tinha certa dificuldade em pronunciar a palavra, umas vezes saía-lhe grupúsculo, outras prepúcio, mas achava-a sólida, máscula, marcial. Ninguém se opôs.

Naquela noite, pois, Jair Messias Bolsonaro despertou dentro de um closet, no Palácio do Crepúsculo, com uma gargalhada escura rompendo das sombras. Sentou-se na cama e com as mãos trémulas procurou a Glock 19 que sempre deixava sob o travesseiro.

– Largue a pistola, não vale a pena!

A voz era rouca, trocista, com um leve sotaque baiano. Jair segurou a Glock com ambas as mãos, apontando-a para o intenso abismo à sua frente:

– Quem está aí?

Susa Monteiro

Viu então surgir um imenso veado albino, com uma armação incandescente e uns largos olhos vermelhos, que se fixaram nos dele como uma condenação. Jair fechou os olhos. Malditos pesadelos. Vinha tendo pesadelos há meses, embora fosse a primeira vez que lhe aparecia um veado com os cornos em brasa. Voltou a abrir os olhos. O veado desaparecera. Agora estava um índio velho à sua frente, com os mesmos olhos vermelhos e acusadores:

– Porra! Quem é você?

– Tenho muitos nomes – disse o velho. – Mas pode me chamar Anhangá.

– Você não é real!

– Não?

– Não! É a porra de um sonho! Um sonho mau!

O índio sorriu. Era um sorriso bonito, porém nada tranquilizador. Havia tristeza nele, mas também ira. Uma luz escura escapava-lhe pelas comissuras dos lábios:

– Em todo o caso, sou o seu sonho mau. Vim para levar você.

– Levar para onde, ó paraíba? Não saio daqui, não vou para lugar nenhum.

– Vou levar você para a floresta.

– Já entendi. Michelle me explicou esse negócio dos pesadelos. Você é meu inconsciente querendo me sacanear. Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio. Você sabe o que é nióbio? Não sabe porque você é índio, e índio é burro, é preguiçoso. O pessoal faz cordãozinho de nióbio. As vantagens em relação ao ouro são as cores e não tem reação alérgica. Nióbio é muito mais valioso do que o ouro...

O índio sacudiu a cabeça, e agora já não era um índio, não era um veado – era uma onça enfurecida, lançando-se contra o Presidente:

– Acabou!

Anhangá colocou um laço no pescoço de Jair, e no instante seguinte estavam ambos sobre uma pedra larga, cercados pelo alto clamor da floresta em chamas. Jair ergueu-se, aterrorizado, os piscos olhos incrédulos, enquanto o incêndio avançava sobre a pedra:

– Você não pode me deixar aqui. Sou o Presidente do Brasil!

– Era – rugiu Anhangá, e foi-se embora.

Na manhã seguinte, o ajudante de ordens entrou no closet e não encontrou o Presidente. Não havia sinais dele.

– Cheira a onça – assegurou um capitão, que nascera e crescera numa fazenda do Pantanal. Ninguém o levou a sério. Ao saber do misterioso desaparecimento do marido, Michelle soltou um fundo suspiro de alívio.

Os generais soltaram um fundo suspiro de alívio. Os políticos (quase todos) soltaram um fundo suspiro de alívio. Os artistas e escritores soltaram um fundo suspiro de alívio.

Os gramáticos e outros zeladores do idioma, na solidão dos respetivos escritórios, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os cientistas soltaram um fundo suspiro de alívio. Os grandes fazendeiros soltaram um fundo suspiro de alívio. Os pobres, nos morros do Rio de Janeiro, nas ruas cruéis de São Paulo, nas palafitas do Recife, soltaram um fundo suspiro de alívio. As mães de santo, nos terreiros, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os gays, em toda a parte, soltaram um fundo suspiro de alívio. Os índios, nas florestas, soltaram um fundo suspiro de alívio. As aves, nas matas, e os peixes, nos rios e no mar, soltaram um fundo suspiro de alívio. O Brasil, enfim, soltou um fundo suspiro de alívio – e a vida recomeçou, como se nunca, à superfície do planeta Terra, tivesse existido uma doença chamada Jair Messias Bolsonaro.

Pensamento do Dia

Parlamento dos macacos, Banks

Desdém com miséria alheia

Endinheirados de Brasília, ociosos, resolveram desdenhar da pobreza, vestindo-se de favelados e portando réplicas de armas usadas pelos traficantes nos morros cariocas, durante festa que fizeram para se divertir semana passada, no Lago Sul.

De periguete a chefe da boca, a mansão do evento ficou lotada de seres nunca dantes vistos no bairro mais rico da Capital da República. Uns bombados, outros buchudos, mulheres com os beiços inchados de fios de ouro e botox, bundas compradas a peso de ouro, peitos postiços de quilo e meio, vestidos com a moda da periferia lançada pela TV Globo nas novelas mas que já existia, desde anos 90, na Feira da Sulanca, em Caruaru.


Embora alguns vivam só de aparências, comprando carros de luxo em 96 prestações mensais, com os carnês fazendo os carros andarem tortos para um lado, a maioria leva vida confortável. Como crianças, ficam procurando ocupar o tempo com brincadeiras novas, vestindo-se de bruxas, de travesti, de Jeca Tatu, de super-heróis e agora de favelados.

Alguns encomendaram dentes de ouro, ostentaram braceletes e correntões e esvaziaram as lojas de armas air soft, para disparar tiros de tinta durante a festa.

Dizem as más línguas que uma das mesas da festa estava repleta de sarapatel e buchada de bode, costurada com fios de ouro. Quando já estava amanhecendo o dia, os ricaços foram para o quintal e tomaram banheiro de mangueira. Alguns soltaram pipocos, porém com som mais fraco e diferente daqueles que se ouvem cotidianamente no morro, onde se amontoa o Brasil real.

 Miguel Lucena

Acordar é preciso

Esse povo sofrido, que sonha com um lugar melhor para viver. Sonha, mas é preciso acordar, minha gente! Lutar! Gritar, ir para as ruas, aprender a votar! Nós não sabemos. Vamos para as ruas, vamos buscar os nossos direitos
Elza Soares, no Rock in Rio

Witzel encontra paz e amor na matança

Para que policiais do Rio de Janeiro ganhassem bônus semestrais, um dos fatores levados em conta era a redução do número de mortes causadas pelas forças de segurança. Não é assim desde a terça 24. Como informou naquele dia o colunista de ÉPOCA Guilherme Amado, o governador Wilson Witzel retirou o indicador do cálculo.

Na prática, ele criou novo incentivo para que se mate mais. De janeiro a agosto deste ano, 1.249 pessoas perderam a vida em confrontos com a polícia, aumento de 16,2% em relação ao mesmo período de 2018.

E não entram na soma as “balas perdidas” que fazem vítimas fatais durante operações. Cinco crianças morreram de fevereiro para cá. A quinta foi Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão.

Parentes e testemunhas sustentam que saiu da arma de um policial a bala que a atingiu. Apenas três dias após a morte da menina, Witzel mandou publicar no Diário Oficial a mudança no cálculo dos bônus. Acaso ou sadismo?


O governador já levara mais de 48 horas para comentar o que ocorrera com Ágatha. Quando o fez, na segunda 23, foi para dizer que sua “política de segurança é exitosa”, que está reduzindo o número de homicídios no Estado a “patamares civilizatórios” (2.717 de janeiro a agosto) e que “é indecente usar um caixão como palanque” – exatamente o que ele fez ao comemorar na Ponte Rio-Niterói a morte do sequestrador de um ônibus, em 20 de agosto.

No Brasil de 2019, está difícil se espantar com gente que saliva ao falar em morte. Banalizou. Mas é preciso perseverar.

No sábado 28, o Globo publicou em seu site uma entrevista com Witzel, dada na Área VIP do Rock in Rio. Vale comentar cinco trechos.

“Os grandes eventos trazem visibilidade para o Rio e trazem turistas que passam a ver os efeitos de nossa política pública de segurança. Eles começam a enxergar como o Rio de Janeiro está sendo pacificado, com a polícia na rua, as pessoas mais felizes, o clima mudando no Rio de Janeiro. E, como a gente diz, virando o jogo.”

Pacificado? Ao menos dez pessoas são assassinadas diariamente no Estado, e a polícia mata mais cinco. Se alguém está mais feliz, talvez sejam ele e sua mulher, que aparecem sorridentes na foto de divulgação.

“Eu sou uma pessoa que não fica intimidada diante de desafios. Quero um Rio de Janeiro pujante o ano todo.”

Pujança é igual a matança?

“Estou em contato com o prefeito de Miami para me aproximar da Disney. O Rio pode ter uma visibilidade maior lá para trazer o turista para cá. Tem a conversa para trazer um parque da Disney aqui. Em Guaratiba há uma área que pertence à Igreja. São cinco milhões de metros quadrados.”

O governador sabe bastante bem que Guaratiba é dominada por uma milícia. Ele vai oferecer esse modelo de segurança à Disney? O parque da Disney movimentará ainda mais os negócios da milícia? Assim como na Copa e na Olimpíada, o cidadão fluminense vai pagar o pato e ficar com cara de pateta?

“O sambódromo pode ter um carnaval fora de época, que pode ser outubro, para aproveitar a criançada. Podemos fazer um carnaval junino, com as quadrilhas. O Rio de Janeiro já teve 800 quadrilhas e hoje tem 80.”

Ágatha e outras crianças que estão morrendo por causa da política de segurança “exitosa” de Witzel não vão poder brincar o carnaval fora de época. Já quadrilhas nunca faltarão no Rio. Se o número caiu é porque a riqueza nesse ramo está mais concentrada.

“Também penso em fazer um grande evento das polícias, uma demonstração das forças operacionais da polícia, com aeronaves, com o corpo de bombeiros. A população gosta de participar.”

Esses eventos têm sido diários, com policiais disparando de helicópteros sobre favelas. A população, inclusive crianças, participa tentando se proteger das balas. Já não é suficiente?

Como reportagem publicada pelo Globo neste domingo explica, o que Witzel está conseguindo, com seu governo anticivilizatório, é ganhar projeção nacional. Sonha ser presidente para, quem sabe, federalizar as Ágathas.

Meu discurso na ONU

Se a mim coubesse discursar na abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU, se eu tivesse essa honra por causa de nossos antepassados políticos que a mereceram por suas ideias, elegância e dignidade, evitaria levar comigo uma pobre moça com cara de indígena que serviria apenas para me filmar encantada, com seu celular progressista de homem branco. Eu não teria coragem de dizer que a menina representa os índios do meu país. Apenas uns poucos, já que o resto a gente massacrou devidamente no passado.

Começaria meu discurso mandando meus confrades do mundo inteiro aprenderem logo o português para lerem “Escravidão”, o livro do professor Laurentino Gomes. Ele nos conta como subjugamos com eficiência, desde o primeiro leilão dos cativos em 1444, uma outra etnia que trouxemos para cá, atravessando com eles um oceano, para que nos servissem e inventassem o país que agora os despreza e discrimina.

Eu também citaria a Bíblia, mas um outro versículo mais apropriado. Podia ser, por exemplo, o que está no Livro Sagrado em Lucas 12, 1-3, que aprendi com Frei Betto: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.


Em meu discurso, talvez fosse o caso de lembrar o que muita gente tenta esquecer ou negar: a ditadura no Brasil, de 1964 a 85. Ela está nas primeiras páginas dos jornais da época, mesmo dos que a apoiavam. Como na manchete de 26 de março de 1969, onde o presidente-general afirma: “O governo já cuida da volta à democracia”. (Ora, o que volta é porque já foi). Ou, em 19 de agosto do mesmo ano, a declaração de membro do triunvirato militar no poder: “Nosso objetivo é restaurar a democracia”. (Ora, só se restaura o que não é mais). O mesmo jornal dizia, três dias depois, que “o Exército está decidindo a sucessão”. Pode ser mais claro?

E, para quem não acredita na crise do clima, sugiro outras manchetes de exatos 50 anos atrás, reproduzidas em colunas de jornais de hoje: “Veneno no ar, a maior densidade mundial de poluição está no Rio”. Ou, num outro dia: “Envenenamento do ar ameaça de extermínio a vida sobre a terra”.

Diria, na tribuna da ONU, que é burrice reduzir a vida hoje a uma disputa polarizada e besta entre direita e esquerda. Ou até mesmo entre socialismo e capitalismo. Citaria o Piketty ou qualquer um dos anarco-capitalistas contemporâneos, para explicar que nada é mais tão separado assim. Como, aliás, John Maynard Keynes já tinha sacado um pouco, desde 1936. Essa luta mortal (ou imortal?) entre direita e esquerda é coisa de quando a assembleia da Revolução Francesa se reunia, com os conservadores no lado direito do plenário e os radicais no esquerdo. Que diferença libertária havia, no século passado, entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin? De que lado se encontra a China no nosso século, o de seu liberalismo econômico ou o de seu autoritarismo político? A democracia só é um estorvo, Carlos, quando perdemos a paciência com ela, por razões vagas, tolas ou inconfessáveis.

Uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, sendo o suicídio a segunda maior causa da morte de adolescentes e jovens no Brasil. Foi sempre assim? E o tiro que o procurador-geral ia dar no Gilmar Mendes, hein? E o homem do governo que falou mal de nossa maior atriz, uma glória do país, e nenhum superior chamou sua atenção? O que está hoje em discussão, senhores representantes de todas as nações do mundo, não é o assanhamento entre a direita e a esquerda tão parecidas. E sim uma opção entre barbárie e civilização.

O passado já passou. Mas qual dessas duas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada um de nossos países deve escolher para o presente e o futuro de seu povo? Quem sabe ele será mais feliz e vai se descontrair para viver em paz a vida como quiser levá-la.

E vejam só, senhores, o exemplo de nosso cinema sem carinho e sem apreço dos que mandam. Apesar da disposição adversa do presidente e de alguns de seus ministros, como os da Cidadania (?) e da Educação (aquele que escreve “suspenção”, assim com cedilha), que não querem saber de nós, estamos sobrevivendo com muita honra. Este ano, com nove filmes no Festival de Berlim e prêmios por aí. Como em Cannes (dois) e em Veneza (mais dois).

Porque decidimos combater o “macartismo cultural”, vamos deixar que todos se manifestem, em nome da diversidade natural do país. Porque nós escolhemos a civilização.
Cacá Diegues

Imagem do Dia

Steve  McCurry 

Ambiguidade torna-se principal marca da administração Bolsonaro aos 9 meses

A Presidência de Jair Bolsonaro faz aniversário de nove meses nesta terça-feira. Nesse curto período, o retrato que o capitão pintava de si mesmo mudou. Tomando-se como parâmetro sua autoimagem, o Bolsonaro que está no Planalto é indigno de Bolsonaro. Trata-se de um Bolsonaro que se debate no pântano das ambiguidades, perdendo-se na manobra de ser e não ser ao mesmo tempo. Onde está o Bolsonaro de 2018 que não socorre este outro?, eis a pergunta que até os bolsonaristas começam a se fazer.

Em política, o "novo" às vezes é algo muito antigo. Tome-se o exemplo do relacionamento do capitão Bolsonaro com o coronel da política pernambucana Fernando Bezerra. Um, após permanecer na Câmara como um obscuro deputado por 28 anos, chegou ao Planalto cavalgando a fome de limpeza da sociedade. Outro, depois de apoiar Lula, ser ministro de Dilma e virar freguês da Lava Jato, era parte do entulho. Súbito, o detergente transforma a sujeira em representante do governo no Senado.

Havia na Esplanada dois ministros portadores de cartas brancas: Sergio Moro e Paulo Guedes. O ex-juiz da Lava Jato descobre da pior maneira que pedestal não tem elevador. Convive com a suspeição ao redor (do Zero Um aos ministros investigados, denunciados e condenados). Assiste à inércia do capitão diante do naufrágio do pacote anticrime, que sonhava aprovar no Congresso em seis meses. Começa a ver pus no fim do túnel.

O Posto Ipiranga, neófito em serviço público, constata que o inferno existe, mas não funciona. Nele, o lero-lero é o caminho mais longo entre um projeto econômico e sua realização. Uma previsão de crescimento anual de 2,5% pode virar uma decepção de 0,8%. Antes de ser silenciado, o tambor da CPMF mostrou que o governo tem poucas ideias. Algumas são ruins. E, aliás, nem são dele. E o diabo, já meio impaciente, começa a questionar o teto orçamentário, imaginando que todos os gastos são pardos.

A conjuntura parece conspirar contra o otimismo. Na política, o governo Bolsonaro começa a ficar parecido com o cadáver dos anteriores. Vê-se pelos microorganismos. Na economia, muitos brasileiros, depois de ouvir os discursos do presidente sobre os novos tempos, podem pedir para ir viver no país que ele descreve, seja ele onde for.

A coisa talvez fosse mais simples para os bolsonaristas se os nove meses de Presidência tivessem transformado Bolsonaro num político igual a todos os outros. Mas foi pior do que isso. A movimentação errática faz de Bolsonaro um personagem muito diferente de si mesmo — ou da grande novidade que ele dizia ser.

Governo de bijuteria

O país está derretendo, com desemprego, e eles estão preocupados com bijuteria. O Ministério da Economia não tem projeto para acabar com desemprego, para abrir o mercado, nada
José Nelto, líder do Podemos na Câmara

As várias faces da mesma crise

Os dois indicadores de emprego divulgados esta semana reafirmam que a recuperação do mercado de trabalho é muito lenta. Os sinais são mistos, há criação de vagas, mas a desestruturação do mercado de trabalho atinge, em maior ou menor grau, cerca de 58 milhões de brasileiros. A recuperação é demorada porque o crescimento da economia nos últimos trimestres foi baixo e as projeções para o PIB do ano que vem estão encolhendo. O Banco Central já espera apenas 1,8% de alta em 2020. No acumulado do ano, o país criou menos emprego formal do que no auge da crise em 2009. A boa notícia é a oferta de vagas na construção civil, especialmente no mês de agosto.

O governo, a cada notícia boa, comemora, achando que assim consegue estimular o otimismo. Essa técnica é velha e nunca resolveu coisa alguma. Os fatos são os fatos. A crise foi herdada, mas ainda não foi enfrentada adequadamente. Quando o tema é emprego, não diz muita coisa afirmar que os números são os maiores dos últimos anos porque a base de comparação é muito baixa.


Os desempregados são 12,5 milhões, e os desalentados, 4,7 milhões. Entre quem trabalha, há quase 12 milhões sem carteira no setor privado, e outros 4,4 milhões de domésticos também sem formalização. Mais de dois milhões têm emprego familiar, muitas vezes sem remuneração, e os empregados por conta própria sem CNPJ são quase 20 milhões. No setor público, ainda há 2 milhões sem carteira e quase 1 milhão é empregador não formalizado. Somando tudo, apesar das diferenças de situação, são 58 milhões de brasileiros, mais de metade da população economicamente ativa.

A melhora este ano é tímida. O país gerou 593 mil empregos formais, de janeiro a agosto. No mesmo período do ano passado, com toda a incerteza eleitoral, foram 568 mil. Em 2009, quando o reflexo da crise internacional estava no auge, foram criados 680 mil empregos com carteira. Na comparação entre 2018 e 2019, a abertura de vagas foi praticamente a mesma na indústria. No setor de serviços, houve queda, e a surpresa positiva ficou na construção civil, que aumentou de 65 mil para 96 mil os empregos criados. Quando a análise é apenas para o mês de agosto, que seria um dado melhor “na margem”, como dizem os economistas, pegando o número na ponta, os resultados são semelhantes. Em 2018, 110 mil empregos criados, no mesmo mês deste ano, 121 mil. Cresceu, mas não muito.

O economista Bruno Ottoni, pesquisador do Idados e especialista em mercado de trabalho pelo Ibre/FGV, explica que a geração de vagas é gradual e está sendo puxada pela informalidade, que, como disse o IBGE, bateu recorde em agosto. Ottoni explica que nem sempre informal é sinônimo de precarização. Em alguns casos, pode-se ganhar mais trabalhando sem a carteira assinada. Mas não é isso que tem acontecido na maioria dos casos no país.

— O que vemos é que há recorde da informalidade, e o rendimento médio do informal está abaixo do formal. O mercado de trabalho responde sempre por último, e o fato é que a economia como um todo ainda está em um processo muito lento de recuperação — explicou.

De todos os empregados do país, 41% estão na informalidade, o maior percentual desde 2016. No mês de agosto, nove em cada 10 vagas criadas foram informais (87%). Nesse grupo estão pessoas que trabalham sem carteira, sem CNPJ ou até mesmo sem remuneração, em trabalhos para a família.

O país tem 2 milhões de empregos formais a menos do que em relação ao melhor momento de 2014. Pelas projeções de Bruno Ottoni, se a economia crescer 2% no ano que vem, como estima o mercado financeiro, haverá geração entre 700 mil e 800 mil. Ou seja, nem em 2020 haverá plena recuperação do emprego.

Para quem está desempregado, o tempo de espera para voltar ao mercado pesa muito. As contas não param de chegar, os sonhos de famílias inteiras são adiados. Investimentos em capacitação e educação são suspensos, e as despesas com saúde, tratamentos e remédios ficam mais pesadas em relação ao orçamento. O drama é vivenciado dia após dia. E quanto maior o tempo fora do mercado de trabalho mais difícil é a recolocação. O tempo corre contra o desempregado. O país está gerando vagas, mas o ritmo é lento e não é hora para comemorações, principalmente dentro do governo.

Um banho de decência

O brasileiro está insatisfeito com os serviços públicos. Segurança? Um desastre  tanta morte por bala perdida, como no Rio. Educação? Piada. Weintraub, aliás, gosta de chiste. Mobilidade urbana? Um atraso as massas se comprimem nos transportes públicos. Saúde? Um caos nos corredores de hospitais superlotados.

Difícil apontar algo de boa qualidade. O país precisa de um gigantesco choque de gestão. Governadores, prefeitos, a hora é essa: ponham sua administração na UTI. Convoquem secretários, cobrem mudanças, deem carta branca para novos métodos, exijam resultados. O eleitor está de olho: ou reelege ou bota para fora.


Sigam o exemplo de Zaratustra, o protagonista que Nietzsche criou para dar unidade moral ao cosmo. O profeta vivia angustiado à procura de novos caminhos e recitava em seus solilóquios: “Não quer mais, o meu espírito, caminhar com solas gastas.” Decifrador de enigmas, arrumou a receita para as grandes aflições: “Juntar e compor em uni­dade o que é fragmento, redimir os passados e transformar o que foi naquilo que poderá vir a ser”.

A imagem do filósofo alemão, na fábula em que apresenta o conceito do eterno retorno, cai bem na atual administração pública.

A orquestra institucional pede novos arranjos para preparar o amanhã, resgatar a esperança perdida. É a bandeira a ser desfraldada, pois a sociedade recusa a velha política.

A tarefa requer arrojo para enfrentar dissabores e pressões políticas. Muitos não queimam gorduras, preferem remendar cacos de vaso quebrado. O velho Brasil não consegue enxergar novos horizontes.

O que pode mudar, ser desobstruído ou melhorado? Se Vossas Excelências fecharem os olhos, a descrença só aumentará.

O fato é que os Poderes da República têm um apreciável PIB de compadrio político sob o cobertor público e resvalando no Custo-Brasil. As políticas, inclusive as sa­lariais, são disformes e ineficientes.  

A gestão de resultados é um resquício quase imperceptível nas plani­lhas de um Estado caro e paquidérmico. Junte-se à pasmaceira o colchão social do distributivismo para se flagrar a cara de um País atrasado. A administração pública parece uma árvore sem frutos.

A sociedade exige uma virada de mesa. O cardápio está pronto: viagens de servidores, participação de empresas estatais em eventos, gastos publicitários, cartões corporativos, nepotismo. Todo centavo gasto em grandes avenidas e pequenas veredas merece uma varre­dura.

A palavra de ordem do momento: transparência total.

Parafraseando Luiz Inácio, “nunca antes na história desse País” se percebeu tanta irritação com políticos e governantes. Se é falácia dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo, como denunciou Jair Bolsonaro na ONU, é também falácia dizer que as instituições estão sólidas. Ora, as tensões entre os Poderes subiram ao pico da montanha.

Senhores governantes, tenham coragem para ousar. Cirurgia profun­da na gestão pública. Sob pena de a esfera privada (oikos, em grego) continuar a invadir a esfera pública (koinon). Não permitam que a fome particular conti­nue a devorar o cardápio do povo.

Gaudêncio Torquato

domingo, 29 de setembro de 2019

Viva o velho Brasil!

Até os eleitores mais fiéis de Bolsonaro devem estar com uma pulga atrás da orelha depois de todos os desdobramentos políticos e jurídicos que atingem com artilharia pesada a Lava-Jato, a mais importante e famosa operação anticorrupção do mundo, depois da Mani Pulite, a Mãos Limpas italiana. Os outros brasileiros, os infiéis ao presidente e todos os que nunca votaram e jamais votariam nele também devem estar abismados com a reviravolta que vai se consumando no Brasil. A grande lavagem da corrupção dentro da política brasileira está desaparecendo porque aos poucos vão sendo dela subtraídos sabão e água.

A mudança do clima em torno da Lava-Jato, outrora intocável, é mais do que visível. Os torpedos que vão sendo disparados do Congresso, do Supremo e até do Palácio do Planalto causam danos importantes à força tarefa, alguns insuperáveis. A situação chegou a esse ponto porque, primeiro, Sergio Moro aceitou o convite e virou ministro de Bolsonaro. Depois, as trocas de mensagens entre Moro e a turma do Ministério Público publicadas pelo Intercept conferiram a coragem que faltava a muitos dos homens que hoje manejam a artilharia e os torpedeiros.


O Congresso dispara contra a Lava-Jato de modo a se proteger. É de uma desfaçatez monumental. O STF a ataca muitas vezes incomodado com o seu sucesso e com a sombra que ela projeta sobre a casa suprema. Claro que os argumentos sempre são outros e fazem todo sentido jurídico. Limita-se a Lava-Jato atendendo a premissa constitucional de se oferecer ampla defesa a qualquer acusado. No caso dessa semana, o STF entendeu que a defesa é cerceada se o delator for julgado depois do delatado. É controverso, mas faz sentido em razão do atendimento ao processo legal. O que parece incabível mas pode acontecer é que a decisão coloque em liberdade diversos condenados. A decisão vai alcançar 150 condenados, segundo O GLOBO, entre eles o ex-presidente Lula.

No Palácio, ao indicar Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, o presidente escolheu uma pessoa que não esconde sua vontade de impor limites à Lava-Jato, propondo trocar jovens procuradores por outros de cabelos brancos. Foi o que ele disse na sabatina do Senado onde sua indicação foi aprovada por expressiva maioria de 68 votos a dez. Claro, tanto os partidos que apoiam o governo quanto os da oposição querem que a força-tarefa se exploda. Os primeiros procuram blindagem contra possíveis ações a eles dirigidas. Os demais, buscam tirar da cadeia seus companheiros mais ilustres.

E assim o país caminha para trás. Ainda este ano, o Supremo deve votar pela terceira vez a prisão após condenação em segunda instância. E tudo indica que vai derrubar o princípio que o mesmo plenário já havia consagrado em votação anterior. Mas antes a Lava-Jato era forte e tinha prestígio popular. O presidente do STF, Dias Toffoli, defende que a prisão se dê após a condenação pelo STJ, para que o réu tenha toda chance de se defender. Ocorre nesse caso o mesmo problema da prisão na segunda instância, os advogados vão alegar que ainda falta o recurso final ao próprio Supremo.

O fato é que o Brasil aos poucos volta a ser o velho Brasil de antes da Lava-Jato. O corrupto, o criminoso, que tiver recursos para contratar bons advogados vai ficar impune dez, 15, 20 anos. Muitos terão seus crimes prescritos, como no passado. E, como no passado, tanto tempo correrá entre a denúncia e a condenação que outros já não poderão mais ser presos por causa da idade, ou porque morreram em liberdade. O Brasil do passado voltou. Viva o velho Brasil.

Dudu faz as malas

A reforma da Previdência vira refém da conveniência de tempo e agenda dos senadores. Vetos são derrubados sem que o presidente que os proferiu nem sequer lamente. O líder do governo no Senado é investigado sob a acusação de ter recebido propina quando era, vejam só, ministro de ninguém menos que Dilma Rousseff.

A sequência de fatos, todos das últimas duas semanas, contraria dois pilares da campanha de Jair Bolsonaro, comprados pelo valor de face pelo eleitorado traumatizado pelo PT: a proposta liberal-reformista na economia e o combate implacável à corrupção e à velha política.

Pouco importa. Essas promessas e a fidelidade a uma parcela do eleitorado foram colocadas em segundo plano diante da prioridade do momento: preparar o terreno no Senado para o envio, mais de dois meses depois do primeiro anúncio, da indicação do terceiro filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, à Embaixada do Brasil em Washington.

Não que seja uma preparação de todo planejada, como nada é na parafernália de conceitos e métodos do bolsonarismo. Ao mesmo tempo em que é necessário fidelizar senadores para a aprovação de Eduardo, seu irmão Carlos fustiga o partido com a segunda maior bancada na Casa, o Podemos – pela primitiva razão de que a sigla cresce em cima do PSL e pode virar morada de algum adversário do pai em 2022, como o temido Sérgio Moro.

O próprio candidato a embaixador, que de diplomático não tem absolutamente nada, postou há algumas semanas em suas redes sociais vídeo de uma youtuber bolsonarista com pesadas críticas a alguns de seus potenciais eleitores.

Mas isso são filigranas. O verdadeiro jogo de bastidores para que Eduardo passe no Senado, a despeito de sua completa falta de qualificação para um dos principais postos da diplomacia do País, passa pelo acordo nos grandes temas, descritos no início deste texto, e é feito em conexão direta entre o Planalto e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Eleito para o comando da Casa por ter fincado o pé como aquele capaz de peitar Renan Calheiros, o até então anônimo Alcolumbre foi comprado pelo alvoroço das redes sociais sem que nenhum dos que torciam por ele nem sequer o conhecessem. Essa tomada de partido imediata, na base da escolha binária, sem nem levar em conta o perfil da Wikipédia dos candidatos, levou à eleição de bancadas inteiras de lavradores de redes sociais e até de governadores, como Wilson Witzel.

Não foi diferente com Alcolumbre, que, agora no comando, vai se mostrando um político das antigas – justiça seja feita, ele nem tentou vestir o figurino de renovador. No seu acerto com Bolsonaro entraram cargos no Cade, a garantia de execução de emendas e a proteção a Bezerra Coelho, outro da velha política, nesse caso inclusive aliado da temida esquerda, assimilado pelo bolsonarismo pragmático.

No jogo em que interesses corporativos do Senado e os familiares dos Bolsonaro são colocados à frente dos compromissos de campanha, a reforma da Previdência vai virando uma pauta secundária, que pode ser ou não votada a partir de conveniências. A previsão de que seja promulgada no dia 10 de outubro já parece otimista diante deste quadro.

Quanto à indicação de Eduardo, parece aguardar o momento em que nada lhe obstrua o caminho, de reformas a CPIs indigestas para os também novos aliados do Judiciário. Davi vai na frente, limpando o trilho para o terceiro filho, enquanto este gasta seu tempo entre conversas ao pé de ouvido com senadores, publicações nonsense no Twitter em que desfila uma bizarra doutrina armamentista a partir de uma escultura na entrada da ONU e viagens turísticas ao país no qual deve vir a morar logo mais, graças a um presentão do papai e do tio Davi.

Toxidade brasileira


A espada de Dâmocles

Trata-se de antiga lenda. Uma "história moral", se algo assim for possível. Aconteceu, primeiro, com Timeu de Tauromênio (356-260 a.C.). Mas acabou famosa, só depois, nas mãos do cônsul romano Cícero (106-43 a.C.), em sua Tusculanae Disputationes. Ao mostrar que todo poder é incerto e transitório. Mais tarde, o próprio Cícero provaria desse fel. Acabou proscrito. Executado. Com mãos e cabeça exibidos nas ruas de Roma. Só, que essa é outra conversa.

Aconteceu, no caso, com Dionísio, O Velho. Que, depois de libertar Siracusa do domínio de Cartago, tornou-se um tirano sanguinário. Invejado por governar a mais rica cidade da Sícilia, ninguém o cortejava mais que Dâmocles. Dionísio, irritado com tanta bajulação, pediu que ocupasse o seu posto ao menos por um dia. Foram então dados, a esse aprendiz de ditador, riquezas muitas e as mais belas mulheres (hoje, esse relato seria politicamente incorreto). E tudo corria bem. Até que Dâmocles percebeu haver, pendurada sobre sua cabeça, uma espada afiadíssima. Presa por frágil fio do rabo de cavalo. Dionísio explicou que assim vivia. Sob o permanente risco de perder tudo. E, com receio de morrer, Dâmocles preferiu devolver ao tirano seu posto.

Espada é palavra que vem do grego. Numa referência a Esparta, cidade conhecida por seus guerreiros ferozes. Muitas outras histórias envolvem espadas. Como a de Excalibur, cravada na pedra. E que só poderia ser removida por homem destinado a ser Rei da Inglaterra. Um conto que talvez seja baseado em fato real, ocorrido no século XII. Quando um cavaleiro, Galgano Guidotti, depois de ter renunciado à nobreza, tornou-se eremita. Devotado às lições da Sagrada Escritura, em seus delírios teria se encontrado com os 12 apóstolos. Junto a uma cruz. E, para marcar o local, fincou sua espada no chão úmido, que alí ficou depois petrificado. Tudo como ainda hoje se pode ver na Capela de São Galgano, na cidade de Montesiepi (Itália).


Indo adiante, e não por acaso, a deusa grega Themis, símbolo do Poder Judiciário, tem na mão uma balança; e, na outra, uma espada. Que representa distinção entre o verdadeiro e o falso. Em desalinho com a visão de Ruy Barbosa ("Discursos e Conferências"), para quem “A espada não é a ordem, mas a opressão”. Em sua homilia desta semana, o padre Sérgio Absalão, na capelinha dos Aflitos, lembrou que o próprio Deus é por vezes apresentado com uma espada. Sendo, sua palavra, uma “espada de dois gumes”. Segundo ele, Santo Agostinho explica essa metáfora dizendo que Deus fala “das realidades temporárias e das realidades eternas”. Seja como for, a lenda parece boa lição para nossos homens públicos em nosso país. A partir da frase atribuída a Shakespeare, “O mal da grandeza é quando ela separa a consciência do poder”.

O Congresso quer mandar em tudo. O Supremo até lei criou, para beneficiar réu condenado (em 3 instâncias) por corrupção. O Executivo, sem qualquer coordenação, se perde numa radicalização insensata. A oposição esquece o interesse coletivo e só pensa em votos para as próximas eleições. Enquanto nós, indeterminados cidadãos comuns do povo, assistimos, incrédulos e perplexos, a um Brasil que sofre. Essa gente parece não perceber que, sobre todos, pesa a opinião pública. Uma Espada de Dâmocles.

Lembro nosso queridíssimo Dom Helder: “Eles pensam que o povo não pensa. Mas o povo pensa”. É isso, meus senhores de Brasília. Não abusem, por favor. Vocês podem até não acreditar, mas o povo pensa mesmo.

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(Inquérito que apura supostas ofensas ao STF) já serviu para buscas nas casas de ativistas, para decreto de medidas protetivas, para censurar Revistas, para afastar funcionários da Receita, para requisitar áudios vazados, agora para apreender armas e celulares de um ex-Procurador da República.
Não é possível que um inquérito misterioso sirva para todo e qualquer fim, conforme o entendimento de qualquer dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A lei também vale para eles!
Janaina Paschoal, deputada (PSL-SP)

País de maus bofes

Não sei bem o que significa perder as estribeiras, mas, seja o que for, o Brasil parece estar perdendo as suas. Pelo que podemos ver no noticiário e em nós mesmos, tornamo-nos 200 e tal milhões de sujeitos que passam o dia chutando baldes, rosnando ameaças e usando toda espécie de canal para destratar os inimigos, os adversários e até os simples desafetos. Ninguém mais tolera ninguém, ninguém admite um pensamento contrário. A continuar assim, vamos passar a nos esbofetearmos ou cuspir uns nos outros à guisa de bom-dia.

O exemplo vem de cima. Num país em que o presidente é o primeiro a não perder uma oportunidade de ejacular desaforos e descompor pessoas, inclusive ao microfone da ONU, como esperar moderação de seus chefiados? E, se esse presidente exerce a política da terra arrasada, da desarmonia entre os poderes e do desmantelamento das instituições, por que seus seguidores, dentro e fora do governo, fariam diferente?


O ministro da Educação, por exemplo, mesmo incapaz de tomar um ditado, não abre mão da arrogância. E dá-lhe de corte de verbas, desamparo a órgãos centenários e desprezo por funções que ele nem é capaz de entender, como a de professor universitário. E é contagioso. Uma autoridade escoiceando à solta estimula a que um esbirro do quarto escalão agrida uma heroína da cultura brasileira e fique por isso mesmo.

Da mesma forma, uma pistola à mostra num cinto, mesmo nos ambientes mais impróprios, pode levar o povo a achar que o país só se resolverá à bala. Mas, nesse caso, os valentões no poder que se cuidem —a massa de maus bofes que eles estão gerando pode se voltar contra eles.

Um dia, de um jeito ou de outro, talvez o Brasil volte à sanidade. Só então saberemos quem serão os mais aptos a contar a história de nosso tempo —se os historiadores propriamente ditos, os apresentadores sensacionalistas da televisão ou os humoristas.
Ruy Castro

De vilão a vítima

Estágio avançado de insanidade, loucura aprofundada pelo ostracismo depois de anos de fama, lance de marketing mal avaliado. Tudo, ou nada disso. Seja lá o que for, de caso pensado ou por ironia do destino, a chocante revelação do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de que planejou assassinar o ministro Gilmar Mendes, serviu para que em menos de 24 horas o STF passasse de vilão a vítima. 

A confissão do tiro não disparado e do crime não realizado reorientou os holofotes até então concentrados na decisão tomada no dia anterior pela Corte Suprema, que, com doses de interpretação criativa, alterou o entendimento quanto à equidade dos réus perante a lei e das fases finais do processo penal. 



Mesmo sem o alarmismo dos lavajatistas de plantão, que chegaram a anunciar o risco de nulidade de 143 condenações, o novo entendimento pode até não alterar muitas das penas já proferidas, mas permitirá centenas de recursos, boa parte deles protelatórios. Ao fim e ao cabo retardará ainda mais a já paquidérmica Justiça, em que os processos não apreciados aumentam o rol das prescrições e da impunidade.

O debate sobre a inusitada decisão, que só será finalizado na quarta-feira, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, pretende anunciar o que ele chamou de regramento possivelmente estabelecendo parâmetros que, a rigor, deveriam ser determinados pelo Parlamento -, acabou ofuscado pelas inconfidências de Janot. 

Na sexta-feira, o ativo STF, por meio do ministro Alexandre de Moraes, tratava de determinar uma ordem de busca e apreensão na casa do ex-procurador-geral. Algo impróprio, no mínimo discutível. Pelo ordenamento em vigor não é tarefa de juízes, sejam eles da primeira, segunda ou qualquer instância, determinar investigações. Mais: fazê-lo sem a existência de um crime, apenas a partir do reconhecimento de uma insânia, que, por mais terrível, felizmente não se materializou. 

Goste-se ou não, ninguém pode ser acusado por ter pensado em matar quando não causou prejuízo de espécie alguma a qualquer um. E os ministros do STF têm obrigação de saber disso. 

Mas em um país em que a Lei está quase sempre sujeita à conveniência, a Corte Suprema escolheu o caminho da espetacularização, que ela tanto diz recriminar, desviando as atenções de si. Tem-se então a apreensão pela Polícia Federal, com direito a intensa cobertura televisiva, de uma pistola e um computador de um “suspeito confesso” por um crime não cometido. 

Sem tirar nem por, a Corte usou o tiro não disparado como escudo para os tiros que ela descarrega contra o país. 

O "fatiamento" da punição do impeachment de Dilma Rousseff, acordado e endossado pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que o diga. Ou as decisões monocráticas em série para soltar gente que as instâncias inferiores mandam prender. Ou ainda, entre tantas, a celeridade com que aprovou a delação dos irmãos Batista contra o ex-presidente Michel Temer, um recorde de dias.

Joesley e Wesley Batista, aliás, são provas vivas de que esta não é a primeira vez que o polêmico Janot causa. 

Responsável pelo generosíssimo perdão concedido aos donos da JBS, mais tarde revisto por ele próprio e definitivamente suspenso por sua sucessora, Raquel Dodge, Janot nunca explicou por que correu tanto contra Temer. Muito menos por quais motivos um de seus auxiliares estava metido naquela encrenca. E do outro lado do balcão.

Agora, abre sua metralhadora giratória. E espalha medo. Afinal, se do nada confessou ideias assassinas, imagine o que dirá se acuado. Alvos insones vão correr para ricochetear tiros. Provavelmente, com aval do Supremo.

Imagem do Dia


O dilema shakespeariano de Bolsonaro de 'ser ou não ser'

Tudo indica que o presidente Jair Bolsonaro, aos nove meses de um Governo que seria cheio de audácia, de mão dura contra a corrupção, contra a violência, contra a velha política e a favor da decolagem da economia encolhida, se encontra na verdade desorientado, entre duas águas, ou, para dizê-lo como o grande dramaturgo inglês William Shakespeare, preso entre o “ser ou não ser”.

A frase pronunciada pelo príncipe da Dinamarca, no início do terceiro ato da obra Hamlet, atravessou séculos de literatura e foi aplicada tantas vezes ao campo da política e até nos momentos de crise pessoal, quando, de reis até nós, os súditos, a vida nos obriga a escolher, a ser o que queríamos ser ou a permanecer na mediocridade do não saber escolher.


Recita o príncipe Hamlet: “Qual é a mais digna ação da alma: sofrer os dardos penetrantes da sorte injusta ou opor-se a esta corrente de calamidades e dar-lhes fim com atrevida resistência?”. O príncipe da Dinamarca segurava uma caveira na mão enquanto recitava seu “ser ou não ser, eis a questão”. E essa interrogativa de mais de 400 anos atrás volta a ser atual hoje no mundo da política e das lutas sociais e se coloca com força na política brasileira.

O dilema de saber o que queremos afeta hoje visivelmente quem comanda os destinos do Brasil presidido pelo ex-capitão Jair Bolsonaro, que o colunista Vinicius Torres Freire acaba de descrever na Folha de S. Paulo como o presidente que “além de animar a extrema-direita e de cuidar dos filhos, está sem rumo. Além do circo e da filhocracia, existe uma sensação de vazio no ar”.

E é verdade que o problema de Bolsonaro, que deveria ser aconselhado a reler o Hamlet de Shakespeare, é saber o que realmente quer. Se ser o que prometeu para conquistar os votos ou ser o que agora talvez veja que lhe é impossível, porque a realidade da política acaba por superá-lo.

Bolsonaro começou a perceber que não existem atalhos entre democracia e ditadura se se quer fazer política. E esse é o seu problema, que por um lado abomina a política na que sempre viveu e gostaria de evitar os suores de resolver os problemas sem ferir os valores democráticos, que só se conjugam com a arte do compromisso e do diálogo e não admitem saltos no vazio nem ameaças autoritárias.

Que o presidente ainda não sabe o que quer ser é demonstrado pelo fato de que todos os dias perde consenso entre os que o enalteceram, porque se sentem traídos por ele ao vê-lo flertando com juízes e políticos da velha guarda. Aqueles que aplaudiram quando seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, disse durante a campanha eleitoral que para fechar o Supremo Tribunal Federal “bastava um cabo e dois soldados”, lhes parece uma traição vê-lo hoje com o magistrado Antonio Dias Toffoli, presidente do Supremo, como dois velhos amigos.

Em uma reunião com políticas, deputadas e senadoras, o presidente chegou a dizer-lhes que Toffoli havia sido uma “uma pessoa excepcional” com ele. E acrescentou: “a justiça está do nosso lado”. E Toffoli confidenciou que Bolsonaro era “uma pessoa alegre e de bom humor”. Adulações perigosas, mas que deram frutos, se considerarmos que o presidente viu Toffoli lançar um decreto que permitiu que seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, deixasse de ser investigado sobre suas supostas acusações de corrupção.

Bolsonaro, que havia prometido aos seus que com ele no Planalto “Lula apodreceria na cadeia”, pode, ironia da vida e da política, ver sob seu reinado o petista sair da prisão e até, talvez, ser absolvido de sua primeira condenação. Todos os dias o presidente cheio de audácia se vê mais perdido entre o ser e o não ser. E isso é grave inclusive para a direita liberal e para o centro, pois, com suas loucuras políticas, o presidente parece fazer ver que fora da esquerda, que ele abomina, não existem outras possibilidades políticas na democracia. A extrema-direita —que até ele já não sabe como administrar— está comprometendo o futuro político deste país.

Um sinal de que Bolsonaro parece perdido é que, mesmo antes do primeiro ano de sua presidência, seus filhos já estejam lançando sua candidatura à reeleição em 2022. A dinastia Bolsonaro deve ter detectado que os excessos do pai rearmaram a direita e o centro civilizados e até fazem a esquerda sonhar. Por isso querem começar já uma campanha eleitoral de três anos, quando na realidade Bolsonaro ainda continua em sua campanha anterior, que é o que ele gosta. É na campanha que podem ser lançadas as maiores barbaridades ou promessas celestiais sem medo.

Governar em paz, para todos, com respeito à democracia sem excluir ninguém, sem anátemas e sem ameaças, é outra coisa. Polônio, o velho camareiro-mor do reino, diz ao príncipe, em Hamlet: “a loucura acerta às vezes, quando o juízo e a prudência não dão frutos”. E é o juízo e a prudência que parecem faltar hoje à política brasileira. Será por isso que tantos continuam apostando e se sentem bem na loucura?

O difícil, nestes momentos em que parece não haver fronteiras entre o juízo e a loucura e onde, em meio a uma política e políticos que não sabem decidir entre o ser e o não ser, é encontrar o caminho da sensatez e da defesa de todos aqueles valores humanos e liberdades que nos redimem.

E aí entramos todos os que queremos uma política que fale, que não esconda, que ajude os mais pobres, que não degrade as conquistas sociais e as mantenha vivas. Um dos grandes silêncios de Bolsonaro e suas hostes é justamente o mundo dos excluídos, que estão deslizando abaixo da linha da pobreza. Um mundo que, quando Bolsonaro foi falar na ONU, ficou esquecido no Brasil. Seu silêncio sobre as questões sociais foi ensurdecedor.

Atribui-se a Einstein uma afirmação que quero deixar como esperança: “a crise leva ao melhor da criação e expõe o gênio do ser humano”. Oxalá que a emaranhada crise que o Brasil está vivendo e sofrendo leve, embora hoje possa parecer um sonho difícil, a uma profunda purificação da política e da cultura hoje tão desprezada.

No final, relendo Shakespeare 400 anos depois, vemos que os problemas políticos de então não eram tão diferentes dos que estamos sofrendo na era da inteligência artificial. Hamlet já se queixava de que não era fácil “suportar a lentidão dos tribunais, a insolência dos funcionários e as arbitrariedades que recebe pacífico o mérito dos homens mais indignos”.

Bolsonaro deverá se decidir a ser ou não ser, ou serão as outras forças democráticas que decidirão por ele ou sobre ele.

Tiro certo

O outro não é necessariamente quem se opõe ao governo; é aquele de quem o governo não gosta
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação

A política do extermínio

O presidente das Filipinas empreendeu uma cruzada de extermínio contra traficantes e usuários de drogas. Foram elaboradas, em cada comunidade, listas de indivíduos acusados de consumir ou vender para adverti-los de que, se não cessassem, seriam mortos. Milhares o foram. Num seminário recente sobre as Filipinas foi relatado que um chefe policial notabilizado pelo alto número de pessoas que tinha matado organizou uma festa de Natal e convidou os filhos dos mortos para lhes entregar brinquedos. A imagem me veiou à mente com a notícia de que o governador Witzel, uma vez morto o sequestrador do ônibus da Ponte Rio-Niterói, entrou no ônibus e pediu aos sequestrados para orar pela família do falecido. O ensinamento da cena é que o autoritarismo, na sua fase final, exige inclusive que as vítimas aceitem seu destino.


Os colegas filipinos no seminário explicaram que estavam documentando o que acontecia no seu país não para parar o massacre, algo que consideravam inviável, mas para que um dia as vítimas pudessem ser lembradas, e ações de reparação empreendidas com o intuito de evitara repetição do pesadelo. Infelizmente, o Rio precisa se perguntar até que ponto está na mesma situação.

Desde os tempos do Major Vidigal no século XIX, os casos de excesso policial ou de vítimas inocentes serviram para restringir, mesmo que temporariamente, a violência policial, reiniciando o típico ciclo na política de segurança fluminense, que alterna truculência aberta e contenção relativa. Entretanto, areação do governo atual do Rio à morte da pequena Ágatha confirma que, para eles, a morte de inocentes —claro, os inocentes que moram nos lugares de sempre —é um preço justo a ser pago pela política de extermínio.

Na insanidade que tomou conta do Brasil nos últimos tempos, pessoas que se definem como cristãs apoiam governos que pregam a morte, como se o Quinto Mandamento fosse dispensável. Embora no momento o aumento da letalidade policial coincida coma diminuição das taxas de homicídio, esta dinâmica não continuará indefinidamente. A brutalidade policial acabará mais cedo ou mais tarde estimulando a violência do outro lado. Afinal, não é possível acabar coma violência como se acaba comum a doença transmitida por mosquitos, simplesmente eliminando os mosquitos.
Ignacio Cano

A agonia da esperança

Logo depois de saber que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot pensara em matar o ministro Gilmar Mendes, do STF, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), indagou à plateia de um evento realizado no Rio de Janeiro, ontem: “Quem vai querer investir num país desses?”. Foi a reação típica do que Maia é, um deputado com preocupações humanistas e um liberal convicto na economia. Ao mesmo tempo que se horroriza com a confissão sobre o desejo de matar feita por alguém que ocupou a chefia do Ministério Público, e que, por isso mesmo, jamais deveria admitir algo semelhante, imagina as consequências imediatas de tudo isso na economia.

Se Maia pensou logo que os investidores não vão querer vir para o Brasil ao saber que o procurador da República poderia ter matado um colega do STF, outros tiveram conclusões diferentes. Gilmar Mendes, a potencial vítima, pôs em dúvida a legalidade de todas as decisões, atos, investigações, pareceres, acusações de Janot durante os quatro anos em que esteve à frente da Procuradoria-Geral da República. Terminou por aconselhar o ex-procurador a buscar a ajuda de um psiquiatra. Houve também os que viram na atitude de Janot uma tentativa de impulsionar a curiosidade pelo livro de memórias que pretende lançar daqui uns dias. Tudo seria, portanto, uma jogada de marketing.


O certo é que as pessoas que pensam se viram, de repente, se perguntando: “Mas o que é que está acontecendo no País?”. Como é que o ex-procurador da República diz que se armou, foi para o STF, encontrou Gilmar Mendes, sozinho, na antessala do cafezinho, e só não se tornou um assassino por ter sido contido pela mão de Deus?

Assim como essas perguntas começaram a ser feitas a partir de uma revelação chocante, outras, muitas outras, também estão por aí, no ar, e dizem respeito ao País, ao seu passado recente, ao presente e ao futuro. No caso do ex-procurador, choca o fato de uma alta autoridade da República admitir que pensou em eliminar outra alta autoridade da mesma República pela chamada defesa da honra. Gilmar, segundo Janot, enredara a filha dele, ex-procurador, numa mentira, ao dizer que ela advogava para a empreiteira OAS no Cade.

E as filhas dos que não são autoridade, e que são também envolvidas em calúnias, injúrias e difamações? Já pensou se todo mundo se armasse e fosse resolver a questão da defesa da honra à bala? E as vítimas de balas perdidas, crianças das quais roubam não o futuro, mas a vida, como a menina Ágatha, recentemente, no Rio de Janeiro?

O País vive um misto de desesperança e desespero. Desesperança por ver suas autoridades confessando intenções como as de Rodrigo Janot, por ver que as promessas feitas pelos governantes quase nunca são cumpridas, por não ver algo em que possa se agarrar para buscar um fio de esperança na vida. Desespero pelo desemprego que ainda atinge mais de 12,6 milhões de pessoas, pelo subemprego dos que pedalam de 12 a 14 horas por dia para entregar comida e receber menos de um salário mínimo, pelo gigantesco número de empresas quebradas e de vagas de emprego que se fecharam e que não têm perspectiva de reabertura.

As autoridades do País, todas elas, têm responsabilidade com o futuro dos cidadãos, sua saúde, sua educação, seu bem-estar. Boa parte, no entanto, vira-lhes as costas e vai cuidar de seus próprios interesses, de seus amigos ou familiares.

Janot talvez tenha feito de sua intenção de matar o ministro Gilmar Mendes um marketing para vender o livro de memórias que será lançado em breve. Mas, se o fez de caso pensado, foi um marketing macabro diante da realidade tão dura do povo brasileiro.

Pensamento do Dia


Extrema direita da Alemanha se arma cada vez mais

Há indícios de que a cena de extrema direita da Alemanha esteja se armando de forma crescente: durante a investigação de atos criminosos de motivação ultradireitista em 2018, foram apreendidas muito mais armas de fogo do que no ano anterior. A informação consta de uma reportagem da emissora de TV ARD, com base na resposta do Ministério do Interior a um questionamento da bancada do partido A Esquerda do parlamento.

Segundo o órgão, registraram-se 563 crimes de motivação direitista, entre os quais 235 delitos violentos. No curso das investigações, a polícia recolheu 1.091 armas, o que representa um incremento de 61% em relação às 676 apreensões de 2017. Entre elas encontravam-se revólveres, rifles, armas brancas e de guerra, assim como artefatos explosivos e incendiários, e atiradeiras.

Falando ao site de notícias Tagesschau.de, o especialista em extremismo de direita Matthias Quent, do Instituto de Democracia e Sociedade Civil (IDZ, na sigla em alemão), classificou a tendência como "assustadora", indicando "um maciço armamento e criação de arsenal pela cena radical de direita".

Os utradireitistas estariam possivelmente se preparando para investidas contra minorias, opositores políticos e representantes do Estado: "Seu objetivo é intimidar a sociedade e expulsar grupos humanos. Partes dessa cena querem até mesmo a guerra civil", advertiu Quent.

Também no inquérito sobre o assassinato do governador da Hessen Walter Lübcke, conduzido pela Procuradoria Geral, com sede em Karlsruhe, foi encontrado em posse dos suspeitos um total de 46 armas de fogo.

O Ministério do Interior ressalva que "o exame criminal e classificação legal das armas ainda está em andamento", porém, numa sessão não oficial do Comitê Interno do Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão), no fim de setembro, um representante do Ministério Público Federal confirmou que as armas foram ocultadas de forma muito profissional.

No começo de junho, o então governador de Hessen, Lübcke, foi morto com um tiro na cabeça no terraço de sua residência no município de Kassel, no norte do estado. A Procuradoria Geral alemã parte do princípio que houve motivação extremista de direita. Capturado há cerca de duas semanas, o suspeito Stephan E. inicialmente apresentou uma confissão, porém mais tarde retirou-a. Ele se encontra em prisão cautelar, sob suspeita de assassinato.
Deutsche Welle

Tempestade fascista

Para seu novo e sempre fundamental ciclo de palestras, como de hábito no Sesc, o prof. Adauto Novaes escolheu um dos temas mais relevantes da atualidade: o neofascismo. A “Volta do fascismo” seria um título geral adequado, mas Novaes, influenciado pelo visionário Paul Valéry, optou pelo poético “Ainda Sob a Tempestade”.

Dissipada a tempestade da Primeira Guerra Mundial, Valéry continuou sentindo no ar o mesmo clima de ansiedade de antes, alimentado por desesperançados temores e terríveis incertezas; uma sensação de mal-estar insanável, como se uma nova tempestade estivesse a caminho. Estava, mesmo, e em três etapas desabou, trazendo Mussolini, a Depressão e Hitler.


A procela da vez já cobre nosso céu há algum tempo. A neodepressão veio em 2008. Quanto ao resto, temos aí Trump, Erdogan, Duterte, Orbán, Bolsonaro. Além de Salvini, provisoriamente no freezer. 

Ao ler, tem pouco tempo, o ensaio Récidive 1938, do filósofo francês Michaël Foessel, Novaes pôde avaliar, com maior riqueza de dados, o quanto a sociedade alemã havia muito estava preparada para aceitar com espantosa naturalidade e bovina tranquilidade o nazismo, oficialmente alçado ao poder em 1933. Na Alemanha de 1938 descrita no livro Novaes deparou com a recidiva bolsonarista.

1938 também foi o ano em que economistas e filósofos se reuniram para recauchutar o liberalismo econômico posto à prova pela tempestuosa Depressão de 1929. Ali nasceu o neoliberalismo redentor, tão historicamente ligado ao fascismo e ao populismo de direita quanto o fascismo à modernidade e ao capitalismo oportunista e predatório.

Pelo menos três dos 25 conferencistas se concentrarão na análise desse embaraçoso conúbio: a filósofa Marilena Chauí, o filósofo e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica, Grégoire Chamayou, que em seu livro mais recente, La Societé Ingovernable, faz uma “genealogia do liberalismo autoritário”, tema de sua palestra; e Eric Fassin, professor de sociologia da Universidade de Paris 8, especialista em populismo, de esquerda e direita.

Chauí irá dissecar o que identifica como “totalitarismo neoliberal”, com sua concepção de sociedade organizada e administrada, cujo sucesso e eficácia se medem em termos de gestão de recursos e estratégias de desempenho e encarniçada competitividade. Para ela, o neoliberalismo “não é apenas uma mutação histórica do capitalismo com a passagem da hegemonia econômica do capital produtivo ao financeiro, mas também uma mutação sociopolítica”.

Esse “momento neofascista do liberalismo” será um dos tópicos de sua conferência, na abertura do ciclo, segunda-feira. A seu ver, e ela não pensa assim sozinha, os populistas de direita, de Trump a Bolsonaro, não são inimigos do neoliberalismo, e sim seus instrumentos. Talvez mencione Paulo Guedes, czar da economia bolsonarista e ex-colaborador da ditadura de Pinochet no Chile, talvez não, por desnecessário.

“Fascismo é uma latência das formas hegemônicas de vida no interior das democracias liberais.” A partir dessa premissa, Vladimir Safatle fará uma análise libidinal do fascismo, inspirada em Georges Bataille, Wilhelm Reich e pela primeira geração da Escola de Frankfurt e seus estudos sobre a personalidade autoritária e patologias sociais. Boa oportunidade para se falar das arminhas gestuais tão caras ao presidente, de seus rompantes sexistas, de suas fixações genitais, e até das tietes do lavajateiro-mor.

Partindo de uma observação de Hannah Arendt sobre a credulidade na política contemporânea, o doutor em filosofia Helton Adverse mostrará como as pessoas, insuladas nos “espaços de credulidade” das redes sociais, “inclinam-se a acreditar em coisas que chocam o bom senso”, como, por exemplo, o terraplanismo, os imaginários complôs comunistas, as fake news e as alucinações religiosas, e deste modo realimentam o fascismo.

A professora Olgária Matos, que prefere qualificar as redes sociais de “espaços de incredulidade”, examinará de que maneira as transformações aceleradas da tecnologia e da economia impossibilitam formar e reconhecer valores, produzindo um mundo no qual o homem se vê coagido a adaptar-se a algoritmos e programas formais de performance, que o automatizam e condenam à passividade, ao isolamento e à desconfiança. A mesma espécie de desconfiança que alguns decepcionados eleitores do Jair exibem ao proclamar, com certa empáfia: “Não votarei mais em ninguém; todos os políticos são iguais”.

A reemergência na cena política internacional do racismo, do antissemitismo e da tortura também será examinada no ciclo, cabendo ao professor Newton Bignotto abordar com mais profundidade a questão da imigração e da recepção hostil de estrangeiros, agora vistos, em diversos países, não mais como intrusos, mas inimigos do Estado.

A banalização da violência praticada pelo aparato repressor do Estado e, de uns tempos para cá, também pela militância foi o tema escolhido pelo cientista político Renato Janine Ribeiro. “O outro não é necessariamente quem se opõe ao governo; é aquele de quem o governo não gosta”, salienta Ribeiro, que, sem se afastar do tema violência, irá tocar no ódio à inteligência, à ciência, à cultura e à arte, tão característico dos regimes fascistas.

“Odiar a criatividade, com apoio popular, é um perigo”, alerta o ex-ministro da Educação do governo Dilma.

A dobradinha fascismo-machismo não podia faltar. “Nem todo machista é fascista, mas a recíproca não é verdadeira”, dirá Maria Rita Kehl na abertura de sua intervenção. O machismo fascina o fascista e os perversos são seus parentes de primeiro grau. Para a psicanalista, tortura e escravidão, sempre praticadas por pessoas que se dizem “de bem”, são duas formas de perversidade. Esta conferência vai bombar.

Estudo indica que queimadas na Amazônica ocorreram em áreas desmatada este ano

As dramáticas fotos de uma Amazônia em chamas que atraíram a atenção mundial em agosto não correspondem à queima de florestas tropicais, e sim a áreas que foram desmatadas ao longo de 2019 e incendiadas em agosto para concluir sua conversão para uso agrícola. É o que revela um relatório divulgado esta semana pelo Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP) ao qual a Mongabay teve acesso exclusivo antes de seu lançamento.

Pelo menos 125.000 hectares (o equivalente a 172.000 campos de futebol) foram desmatados desde o início de 2019 e depois queimados em agosto, segundo o relatório. A maioria das ocorrências foi observada no Amazonas, onde 39.100 hectares foram desmatados e depois queimados, ou cerca de 30% do total. A mesma sobreposição também foi detectada em Rondônia e no Pará, onde houve numerosos focos de incêndio em agosto. Esses foram os últimos números disponíveis pelo estudo antes da publicação desta reportagem.

O MAAP divulgou um mapa inédito que liga o desmatamento de 2019 aos focos de incêndio, além de 16 vídeos em time-lapse de alta resolução como evidências complementares da sobreposição de áreas de desmatamento e queimadas na Amazônia.


O mapa sobrepôs duas camadas de dados principais: alertas de desmatamento coletados em 2019 pelo GLAD, o laboratório de Análise e Descoberta Global de Terras da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e alertas de incêndio da agência espacial americana NASA do mesmo período, revelando uma clara sobreposição entre o desmatamento e as queimadas. Na sequência, pesquisadores do MAAP ampliaram imagens de satélites de alta resolução da empresa americana Planet e da Agência Espacial Europeia (satélite Sentinel-2) de áreas selecionadas e criaram vídeos impressionantes em time-lapse no site da Planet que comprovam focos de incêndios em áreas.

“A questão principal é o desmatamento. Agora faz sentido por que os incêndios tinham tanta fumaça. Parece um incêndio florestal, é fumegante como [seria] um incêndio florestal, mas na verdade são queimadas em áreas desmatadas recentemente. O ponto chave era analisar o arquivo de imagens de satélite coletadas ao longo de 2019. Temos muito mais informações do que uma simples foto”, declarou Matt Finer, pesquisador sênior e diretor do MAAP, uma iniciativa da Associação de Conservação da Amazônia (ACA).

“Não estamos minimizando a importância dos incêndios, mas nossas descobertas estão mostrando que o desmatamento também é uma questão crítica”, disse Finer à Mongabay, que teve acesso exclusivo ao relatório antes de seu lançamento. “O mundo precisa estar tão alerta e incomodado com o desmatamento quanto em relação aos incêndios, porque é com a derrubada da floresta que esse processo, que todo esse sistema, tem início… Precisamos dar ao desmatamento a mesma atenção que estamos dando às queimadas, porque ambos estão conectados.”

Em agosto, dezenas de milhares de focos de incêndio devastaram a região amazônica e provocaram protestos em todo o mundo, com manifestantes no Brasil e em vários países exigindo ações efetivas do presidente Jair Bolsonaro para conter as chamas. Os incêndios na Amazônia tornaram-se destaque depois que um corredor de fumaça repentinamente escureceu o céu de São Paulo na tarde de 19 de agosto, provocando uma onda de consternação nas mídias sociais em todo o mundo sob a hashtag #PrayforAmazonas, que alcançou mais de 300.000 tweets em apenas dois dias.

Bolsonaro reagiu imediatamente, levantando a hipótese, sem qualquer prova, de que ONGs poderiam estar por trás dos incêndios como retaliação contra o Governo por causa da suspensão de um repasse de 33,2 milhões de dólares da Noruega ao Fundo Amazônia.

Especialistas destacaram rapidamente a ligação entre o desmatamento e os incêndios, devido à inexistência de uma estação seca severa deste ano. De acordo com a análise dos especialistas, a estratégia de conversão de floresta em pastagem na Amazônia consiste em cortar árvores da floresta tropical, esperar que a madeira seque e depois incendiá-la para limpar completamente a terra e, com as cinzas, fertilizar o solo onde será plantado o capim para pastagem — um processo que claramente ganhou peso científico com as descobertas do MAAP.

As novas descobertas também parecem sustentar as acusações feitas por críticos de Bolsonaro, de que sua retórica inflamada durante e após as eleições de 2018 encorajou os fazendeiros a derrubaram a floresta amazônica depois que o novo presidente assumiu o cargo em janeiro.

De fato, as autoridades brasileiras estão atualmente investigando um grupo de cerca de 70 agricultores e grileiros no estado do Pará que supostamente organizaram o “Dia do Fogo” em 10 de agosto, em apoio a Bolsonaro e a suas medidas para enfraquecer a ação de fiscalização de órgãos ambientais no país, informou a revista Globo Rural.

Procurado pela Mongabay para comentar o relatório do MAAP, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou.

Embora a análise do MAAP não tenha detectado grandes incêndios florestais no Brasil até o momento, o risco ainda existe à medida que a estação seca se aproxima, dado que muitas ocorrências de incêndios foram detectadas nos limites entre terras agrícolas e áreas florestais, explicou Finer.

“Os incêndios… atingem a linha da floresta e [parecem] apagar-se, mas [ainda] estão impactando sua borda… E esses incêndios que queimam áreas recentemente desmatadas podem facilmente se transformar em incêndios florestais. Ainda não vimos isso acontecer este ano na Amazônia brasileira, mas, à medida que a estação seca continua, ou se houver um ano de [piora] da estiagem, esse processo de queima de terras desmatadas recentemente ficará muito, muito pior. Podemos começar a testemunhar grandes incêndios florestais”, alertou o diretor do MAAP.

Até agora, o MAAP detectou grandes incêndios atingindo a vegetação nativa apenas em ecossistemas menos úmidos, incluindo a floresta seca da Bolívia e o Cerrado brasileiro.

O relatório também inclui vídeos em time-lapse de alta resolução de incêndios ocorridos nos territórios indígenas Kayapó e Munduruku, onde Finer supõe que as queimadas tenham como objetivo regenerar áreas de pastagem para criação de gado. A área queimada nas duas reservas indígenas totalizou 24.000 hectares e 700 hectares, respectivamente. O relatório também detectou incêndios recentes nos limites do território Kayapó, no norte de Roraima, que queimaram cerca de 930 hectares.

“Quando vimos a floresta seca queimando na Bolívia, lá vimos realmente a imagem que todos tinham na cabeça: incêndios fora de controle, queimando ecossistemas naturais. Mas, no Brasil, toda vez que ampliávamos a imagem de um incêndio, o que víamos era o fogo queimando uma área já desmatada. Nunca vimos um incêndio fora de controle varrendo a floresta tropical [em agosto]”, explicou Finer.

Na versão preliminar do relatório, também obtida com exclusividade pela Mongabay, a área desmatada e depois queimada era de 52.500 hectares (o equivalente a 72.000 campos de futebol).

Em março, o MAAP detectou grandes incêndios florestais no norte de Roraima, incluindo queimadas próximas ao território indígena Yanomami. Entre janeiro e agosto, as queimadas em terras indígenas aumentaram 88% em comparação com o mesmo período de 2018, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), citando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

"A narrativa global [é que] a floresta amazônica está queimando; há incêndios devastando a Amazônia”, conclui Finer. Mas, segundo ele, é fundamental que o mundo “compreenda a importância do desmatamento nesse processo. O cenário principal que estamos vendo é o do desmatamento seguido de incêndio. Essa é a mensagem que o público precisa entender: há duas questões juntas — floresta derrubada e floresta queimada, e não apenas incêndios. E para evitar as queimadas, precisamos evitar o desmatamento.

sábado, 28 de setembro de 2019

O lado Chávez de Bolsonaro

Quando a assessora de imprensa anunciou que era sua vez de fazer a pergunta, a repórter dirigiu-se ao microfone. Era uma entrevista coletiva. Apresentou-se, disse o nome do veículo para o qual trabalhava e fez a pergunta. O presidente se irritou. “Estou esperando que vocês me respondam pelas mentiras que vocês transmitem sem nenhuma vergonha. Contam mentira e depois... silêncio! Tenha ética!”, disse, aumentando o constrangimento. “Você conhece a Constituição? Tem certeza? Eu pergunto isso porque vocês gostam de dizer que são jornalistas, mas sua pergunta me mostra que você ignora um monte de coisas. Sua pergunta não tem fundamentação lógica.” Envergonhada, a repórter reclamou do tom do presidente, que retomou a palavra, olhou para os ministros a seu lado e deu uma risada. “Agora se sente ofendida, ela... Não manipule, então!”, disse, em tom sarcástico.


A cena poderia ter se passado em qualquer semana dos nove meses do governo Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada ou em algum evento no Planalto. Mas o episódio ocorreu em setembro de 2010, no Palácio Miraflores, em Caracas, e o presidente em questão era Hugo Chávez. Tendo atrás de si uma pintura de Simón Bolívar e vestindo o vermelho, azul e amarelo da bandeira venezuelana, Chávez repetia com a repórter Andreína Flores, da Rádio França, o mesmo roteiro de humilhação a que, havia anos, os jornalistas venezuelanos eram submetidos.

Chávez também mantinha uma relação de ódio com a imprensa, que, a exemplo da brasileira hoje, desempenhava o papel central do jornalismo: perguntar, fiscalizar, apontar erros, controlar os poderosos. Raras eram as vezes que ele se abria ao escrutínio público. Os ataques aos profissionais, entretanto, foram o começo de um processo que, ao longo de duas décadas de bolivarianismo, se valeu de diferentes métodos, administrativos, econômicos e até tecnológicos, para calar a imprensa venezuelana.

O primeiro grande golpe de Chávez foi a não renovação, em 2007, da concessão da Radio Caracas Televisión, a RCTV, uma rede de televisão privada fundada na capital venezuelana em 1953. Era a maior audiência da Venezuela. Anos mais tarde, o único canal que ainda permanecia com uma cobertura jornalística crítica, a Globovisión, foi vendido para amigos do regime. Mais tarde, já sob Maduro, veio a perseguição judicial e as prisões. Com isso, os jornalistas passaram a se exilar em massa. De 2014 a 2018, 477 jornalistas fugiram do país.

Bolsonaro tinha tintas de autoritarismo com a imprensa antes de vestir a faixa presidencial. Certa vez, o ainda deputado, questionado por um repórter sobre seu processo no Superior Tribunal Militar, chamou-o, aos berros e com dedo em riste, de “escroto” e disse que ele “fazia um trabalho porco”. Ao se referir à tortura sofrida por Miriam Leitão, deixada no escuro com uma cobra, disse: “Coitada da cobra!”. A frase foi repetida por ele ao filho da jornalista, durante uma entrevista.

Com mulheres, aliás, o presidente parece crescer. A uma repórter da Rede TV!, em 2014, depois de chamá-la de “idiota” e “analfabeta”, disse que não a quis ofender, afinal ela era “bonita”. Uma vez empossado, continuou a carga. Uma repórter foi chamada de “qualquer uma”. Outra ouviu que sua pergunta era “idiota”. Quem quiser ver a truculência em vídeo encontra todos os episódios na internet.

O presidente, entretanto, não se limitou à intimidação de profissionais e também parece disposto a usar a caneta contra a imprensa. Em 5 de agosto, Bolsonaro editou uma medida provisória para alterar uma lei que ele mesmo sancionara apenas quatro meses antes. O texto, que tramitou no Congresso por quatro anos, estipulava janeiro de 2022 como o prazo para que as empresas não fossem mais obrigadas a publicar seus balanços em jornais, uma maneira de dar tempo para que os veículos, especialmente os de pequeno porte, conseguissem contornar o revés em suas contas. A medida provisória determinava para já o fim da obrigatoriedade. Bolsonaro foi claro ao falar sobre por que havia editado o texto: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou”, afirmou.

Jair Bolsonaro ataca os jornalistas pelos mesmos motivos que Hugo Chávez no passado: é papel dos repórteres perguntar, fiscalizar e apontar os erros dos poderosos. Foto: Yuri Cortez / AFP

O editor venezuelano Joseph Poliszuk está exilado há dois anos. Viveu em Bogotá e hoje mora na Califórnia. Ele e seus dois sócios, donos do site de jornalismo investigativo Armando.Info, um dos mais premiados do jornalismo latino-americano hoje, tiveram de deixar Caracas às pressas para fugir da possibilidade de prisão em um caso aberto por empresários chavistas. Poliszuk, que viu o jornal em que trabalhava, anos atrás, ser comprado e adotar uma linha editorial de defesa do governo, tem observado com preocupação os primeiros meses do governo Bolsonaro. Vê semelhanças com o começo do chavismo.

“O primeiro sintoma que percebemos foi evitar dar respostas, depois começaram a impedir o acesso de veículos críticos. Chávez submetia a imprensa ao escárnio público. Fazia bullying com os jornalistas. Defendia-se dessa forma”, lembrou, em uma conversa recente por telefone.

Poliszuk, que não sabe quando poderá voltar à Venezuela, considera que a censura chavista foi eficaz. “Somos influentes, mas não temos a estrutura nem os recursos dos meios tradicionais. Isso faz falta para a população toda ser informada”, contou. Existe ainda a censura digital, por meio de bloqueios intermitentes dos sites noticiosos. Em alguns momentos do dia o acesso a alguns portais em determinadas partes do país ou áreas de uma grande cidade é vetado. Outra maneira de controle é a restrição de acesso a dólares para veículos críticos, o que os impede de comprar papel-jornal ou outros insumos importados. Quem critica o governo é castigado.

“Minha impressão é que vocês estão no começo do que nós vivemos. Nós estamos sofrendo com a esquerda, e vocês parecem estar sofrendo com a direita. São duas faces da mesma moeda, a tirania. Governantes que não aceitam ser questionados”, analisou Poliszuk.

O Brasil também teve ameaças autoritárias à esquerda. Sem a mesma agressividade, em diferentes episódios, o petismo também atacou repórteres e criou dificuldades para o trabalho jornalístico. Blogueiros financiados pelo governo expunham jornalistas, na tentativa de desacreditá-los e intimidá-los — novamente, não muito diferente do que os youtubers de direita fazem agora ao servir Bolsonaro. Com graus diferentes, também propunham uma conversa sem intermediários com a população, diretamente via redes sociais, o que não é um problema em si. Mas não aceitar a mediação da imprensa é autoritário. Os mandatários têm de prestar contas. Seja em Caracas, seja em Brasília.