Começaria meu discurso mandando meus confrades do mundo inteiro aprenderem logo o português para lerem “Escravidão”, o livro do professor Laurentino Gomes. Ele nos conta como subjugamos com eficiência, desde o primeiro leilão dos cativos em 1444, uma outra etnia que trouxemos para cá, atravessando com eles um oceano, para que nos servissem e inventassem o país que agora os despreza e discrimina.
Eu também citaria a Bíblia, mas um outro versículo mais apropriado. Podia ser, por exemplo, o que está no Livro Sagrado em Lucas 12, 1-3, que aprendi com Frei Betto: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.
Em meu discurso, talvez fosse o caso de lembrar o que muita gente tenta esquecer ou negar: a ditadura no Brasil, de 1964 a 85. Ela está nas primeiras páginas dos jornais da época, mesmo dos que a apoiavam. Como na manchete de 26 de março de 1969, onde o presidente-general afirma: “O governo já cuida da volta à democracia”. (Ora, o que volta é porque já foi). Ou, em 19 de agosto do mesmo ano, a declaração de membro do triunvirato militar no poder: “Nosso objetivo é restaurar a democracia”. (Ora, só se restaura o que não é mais). O mesmo jornal dizia, três dias depois, que “o Exército está decidindo a sucessão”. Pode ser mais claro?
E, para quem não acredita na crise do clima, sugiro outras manchetes de exatos 50 anos atrás, reproduzidas em colunas de jornais de hoje: “Veneno no ar, a maior densidade mundial de poluição está no Rio”. Ou, num outro dia: “Envenenamento do ar ameaça de extermínio a vida sobre a terra”.
Diria, na tribuna da ONU, que é burrice reduzir a vida hoje a uma disputa polarizada e besta entre direita e esquerda. Ou até mesmo entre socialismo e capitalismo. Citaria o Piketty ou qualquer um dos anarco-capitalistas contemporâneos, para explicar que nada é mais tão separado assim. Como, aliás, John Maynard Keynes já tinha sacado um pouco, desde 1936. Essa luta mortal (ou imortal?) entre direita e esquerda é coisa de quando a assembleia da Revolução Francesa se reunia, com os conservadores no lado direito do plenário e os radicais no esquerdo. Que diferença libertária havia, no século passado, entre a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin? De que lado se encontra a China no nosso século, o de seu liberalismo econômico ou o de seu autoritarismo político? A democracia só é um estorvo, Carlos, quando perdemos a paciência com ela, por razões vagas, tolas ou inconfessáveis.
Uma pessoa se suicida no mundo a cada 40 segundos, sendo o suicídio a segunda maior causa da morte de adolescentes e jovens no Brasil. Foi sempre assim? E o tiro que o procurador-geral ia dar no Gilmar Mendes, hein? E o homem do governo que falou mal de nossa maior atriz, uma glória do país, e nenhum superior chamou sua atenção? O que está hoje em discussão, senhores representantes de todas as nações do mundo, não é o assanhamento entre a direita e a esquerda tão parecidas. E sim uma opção entre barbárie e civilização.
O passado já passou. Mas qual dessas duas alternativas, a barbárie ou a civilização, cada um de nossos países deve escolher para o presente e o futuro de seu povo? Quem sabe ele será mais feliz e vai se descontrair para viver em paz a vida como quiser levá-la.
E vejam só, senhores, o exemplo de nosso cinema sem carinho e sem apreço dos que mandam. Apesar da disposição adversa do presidente e de alguns de seus ministros, como os da Cidadania (?) e da Educação (aquele que escreve “suspenção”, assim com cedilha), que não querem saber de nós, estamos sobrevivendo com muita honra. Este ano, com nove filmes no Festival de Berlim e prêmios por aí. Como em Cannes (dois) e em Veneza (mais dois).
Porque decidimos combater o “macartismo cultural”, vamos deixar que todos se manifestem, em nome da diversidade natural do país. Porque nós escolhemos a civilização.
Cacá Diegues
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