sábado, 6 de abril de 2019

Sabemos que estamos numa ditadura quando o povo receia as autoridades

Escrevo esta coluna em Luanda, onde cheguei há alguns dias. Numa roda de amigos, discutia-se a trágica situação das cheias em Moçambique. Em determinada altura alguém comentou que Angola, país afortunado, nunca sofreu graves desastres naturais. Um outro sujeito, ainda mais entusiasmado, acrescentou que não só a natureza nunca ataca Angola, como, ainda por cima, tende a beneficiar o país em todos as suas manifestações: “Temos os eclipses mais lindos do mundo!”

Tomei nota da frase para a usar um dia como título de um romance. Ela traduz a elevada autoestima do angolano comum. A mesma autoestima que os estrangeiros costumam confundir com arrogância. Ou talvez seja o contrário, e sejamos nós, angolanos, quem confunde arrogância com autoestima. Em todo o caso é um sentimento que sempre surpreende quem, desembarcando no imenso caos que é a capital de Angola, espera encontrar lágrimas e ranger de dentes e, ao invés, dá de caras com um povo muito mais afeito ao riso do que ao choro e que até nas piores derrotas vê possibilidades de vitória.

Na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha, a seleção angolana estreou-se jogando contra Portugal, um dos times favoritos, perdendo por um a zero. Quem assistiu ao jogo nunca mais esquecerá a festa angolana. Lembro-me de ter ligado para um amigo, jornalista, que acompanhava a seleção: “Os portugueses já estão convencidos de que perderam. Se vocês continuarem a festejar com esse entusiasmo por mais quinze minutos o mundo inteiro vai acreditar que ganhamos. Não parem!”

É assim Angola. Fica difícil vencer quem nunca se sente derrotado.


No último ano, desde que João Lourenço assumiu a presidência da República, houve três ou quatro mudanças importantes. A primeira tem a ver com o medo. Sabemos que estamos numa ditadura quando o povo receia as autoridades. Em Angola, o medo deslocou-se da população tão sofrida para membros importantes do partido no poder, pessoas que enriqueceram de forma ilícita ao longo das últimas décadas. Ou seja, os inocentes perderam o medo, ao passo que os criminosos (ao menos alguns criminosos), perderam a tranquilidade.

Pode parecer pouco, mas é imenso. Um dos filhos do anterior presidente, José Eduardo dos Santos, foi recentemente libertado, após seis meses em prisão preventiva, enfrentando agora uma série de acusações por peculato e má gestão de empresas públicas. Outros filhos de José Eduardo, antigos ministros e figuras relevantes da vida política e econômica de Angola estão igualmente em apuros.

Infelizmente, a situação econômica e social não melhorou. Na opinião de muitos, tem vindo até a piorar. Dirigentes políticos da oposição colocam em dúvida as convicções democráticas do novo presidente, desde logo porque João Lourenço resiste em alterar a atual constituição, confeccionada à medida das exigências e ambições do antigo ditador. São dúvidas legítimas. A minha esperança reside sobretudo na sociedade civil, que nos últimos anos se fortaleceu e sofisticou, e nessa alegria indomável de um povo que acredita ter o universo aos pés, produzindo, para seu benefício exclusivo, os mais lindos eclipses do mundo.

José Eduardo Agualusa

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