quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Uma nação sem noção

O Brasil em geral, e a política em particular, são pródigos em desvios como cara de pau, hipocrisia, cinismo, deboche. É bom não confundir.

Quando Temer diz e repete que o governo “não mente”: é cara de pau.

Quando os deputados do PT votam a favor da denúncia contra Temer referindo-se a “essa quadrilha que está no poder”: é hipocrisia.

Quando Maluf tira onda de que não está na Lava-Jato: é cinismo.

Quando um deputado faz uma tatuagem de henna com a palavra “Temer” em seu ombro e profere um discurso de amor eterno ao presidente: é deboche.


Às vezes, a cara de pau, a hipocrisia, o cinismo e o deboche ocorrem simultaneamente, e se unem ao fator “não-estou-nem-aí-para-vocês”. Os nobres deputados afirmam que a democracia é cara (hipocrisia), que é preciso substituir os bilhões que recebiam do caixa dois de empresas privadas (cinismo) e aprovam, além dos R$ 800 milhões que já têm, mais R$ 3,6 bilhões de fundo eleitoral (cara de pau), e ainda o “distritão”, que aumenta suas chances de se reeleger (deboche). O país está na maior pindaíba de sua História e a reputação dos políticos está mais suja do que pau de galinheiro, mas... eles não estão nem aí pra nós.

Nem sempre fica totalmente claro. Agnaldo Timóteo, que já foi brizolista e malufista, e passou por meia dúzia de partidos, quer ser deputado pelo PT para ser “soldado de Lula”: é deboche, claro. Mas que dizer de Emídio de Souza, presidente do diretório paulista do partido, que, a respeito da filiação de Timóteo, afirmou: “Vamos avaliar. O PT tem um processo de filiação e um filtro para escolher quem vai ser candidato a deputado federal”. Pode ser hipocrisia ou deboche. Ou Emídio é simplesmente sem noção.

A falta de noção, aliás, campeia. Vejamos.

O governador Pezão lançou edital para contratar um serviço de jatinho ao módico preço de R$ 2,5 milhões por ano. O governador considera normal, porque, afinal, está negociando o resgate do Rio com o governo federal e precisa ir muito a Brasília. Com esse dinheiro, dá para comprar três passagens para Brasília por dia (incluindo fins de semana e feriados), na tarifa mais cara, durante um ano inteiro. Os servidores estão sem salário há três meses, até hoje não receberam o 13º, mas Pezão acha que tudo bem.

Semanas atrás, o Ministério Público tentou aumentar seus próprios salários em 16,7%. O MP está há tempos pedindo aumento no orçamento, alegando falta de recursos para suas diligências, em particular a Lava-Jato. Como não obteve o que pedia, o MP realocou suas despesas, de modo que o aumento de salário coubesse dentro do orçamento. Ou seja, propôs reduzir ainda mais os mesmos recursos que, até anteontem, considerava insuficientes. Um procurador é indemissível, ganha 13 vezes a média salarial nacional, e o país está quebrado, mas todos os conselheiros do MP, incluindo a futura procuradora-geral, Raquel Dodge, acham que tudo bem.

Por falar em Dodge, ela reuniu-se com Temer em sua casa, às 10h da noite, fora da agenda. Três meses atrás, o país escandalizou-se ao saber que Joesley fizera a mesma coisa, e o atual procurador-geral afirma que encontro em casa, de noite, fora da agenda, é altamente irregular, e suspeito. Dodge acha que tudo bem.

Já o Temer teve aquele encontro escalafobético com Joesley, disse aquelas barbaridades, autorizou-o a dar ordens ao ministro da Fazenda e o orientou a procurar Rocha Loures em seu nome. Rocha Loures topou cometer um crime novo, e Aécio propôs um crime novo. A Lava-Jato estava no auge, mas todo mundo achou que tudo bem.

E o atual procurador-geral, Rodrigo Janot, que fez um acordo de delação premiada com os Batista que lhes deu impunidade total? Segundo Janot, os Batista “aceitavam negociar qualquer coisa, menos a impunidade total”. Ora, existe alguma coisa que interesse além da impunidade? Janot achou que não precisava periciar a prova, e considerou normal seu auxiliar deixar o Ministério Público e ir advogar para o criminoso, negociando com... ele mesmo, Janot. Achou que tudo bem.

Janot bate boca com Gilmar, e Gilmar, que vive se encontrando com Temer em circunstâncias esquisitas, bate boca com Fux, Barroso, Lewandowski, Marco Aurélio. Já Marco Aurélio se pronuncia publicamente sobre rigorosamente todas as causas em curso no STF.

Pezão, os procuradores, Dodge, Temer, Rocha Loures, Aécio, Janot, Gilmar, Marco Aurélio... todo mundo sem noção. E não só eles.

Todos os brasileiros, sem exceção, querem um país sem privilégios. No entanto, quase todo mundo — funcionários públicos, sindicalistas, estudantes, idosos, professores, clérigos, empresários, ricos, a classe média etc. etc. — tem algum tipo de privilégio, e cada um tem uma historinha torta para justificá-lo. Não são caras de pau, nem hipócritas, nem cínicos, nem debochados. São sinceros e bem-intencionados. E sem noção.

Brasil, nação sem noção.
Ricardo Rangel

Nenhum comentário:

Postar um comentário