Passados 15 anos e três gestões e meia do PT, sendo que a metade da quarta está sendo tocada pelo vice que o mesmo Lula escolheu para compor a chapa de Dilma Rousseff duas vezes, o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF) e a Operação Lava Jato da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, sob a égide do juiz Sérgio Moro, em Curitiba, ensinou à Nação que não foi tudo como se esperava naquele tempo. Na decisão unânime da Segunda Turma do STF que aceitou o despacho de Teori Zavascki, relator da Lava Jato à época, mandando prender o então líder do governo Dilma Rousseff no Senado, Delcídio Amaral, a ministra Cármen Lúcia deu uma lição que se tornou histórica.
“Na história recente de nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós brasileiros acreditou no mote de que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 (mensalão) e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça. A decepção não pode vencer a vontade de acertar no espaço público. Não se confunde imunidade com impunidade. A Constituição não permite a impunidade a quem quer que seja”, ela disse.
A primeira metade da sentença é irretocável. A segunda, nem tanto. A Nação acompanhava então, entre perplexa e indignada, investigações que desvendavam o maior escândalo de corrupção da História, praticado nos governos em que Lula, que havia cunhado o belo lema, e seus acólitos, que o apregoavam, mandavam na República. O cinismo continua sendo soberano na reação dos acusados de terem esvaziado todos os cofres disponíveis do País sob a indiferença e depois, conforme tem sido revelado, a cumplicidade dos mandatários máximos, eleitos para executarem um projeto de socialismo real nos trópicos. Agora o escárnio atingiu o ápice, quando, pilhados, os mandatários políticos do governo e da oposição, dos municípios, Estados e União, resolveram intervir para encontrar um meio e um método de se manterem livres de pena e, de preferência, com mandatos à sua disposição para continuarem vivendo à tripa forra por conta de propinas bilionárias distribuídas por contratantes de obras públicas, dispostos a corromper e ser corrompidos. A conspiração pela impunidade.
Por enquanto, a promiscuidade social vigente na capital federal, erguida no cerrado distante para proteger os donos da lei – que a aprovam, executam e julgam tal execução – da ordem institucional vigente, tem protegido os sócios do club privé dos mandatários. O prestígio popular massivo da Ação Penal 470 tornou inevitável que maganões do ofício político fossem conduzidos às barras dos tribunais e às celas do inferno presidiário. Mas, com o passar do tempo, os maiorais escorregaram pelas frestas da permissividade. Dos condenados do dito mensalão restam presos alguns gatos-pingados sem partidos para escondê-los nem padrinhos para acobertá-los. Do topo do mandato dado pelo voto popular, Dilma perdoou companheiros de partido e de ofício e contou com a complacência da mesma Corte que os apenou. Zé Dirceu, o capitão do time de gatunos, Genoíno, ex-guerrilheiro que presidiu o partido no poder, e todos os seus comparsas voltaram para o conforto do lar, doce lar, com tornozeleiras. Ficaram na prisão os sem-mandato Marcos Valério, Kátia Rabello e outras figuras sem relevância na briga pesada pela ocupação dos palácios.
À exceção de gatos pingados que podem ser contados nos dedos de uma mão só, os companheiros de luta pelo poder não conheceram o mesmo destino de quem os corrompeu, caso de empreiteiros que comandavam o propinoduto, destacando-se o príncipe Marcelo Odebrecht.
Os políticos, mandantes dos crimes praticados, compartilham o conforto do foro privilegiado de que gozam 36 mil nobres patrícios que foram eleitos ou nomeados para cargos de prestígio na burocracia da politicagem. Agora, no entanto, paira no ar seco do Planalto uma ameaça real: as eleições para Presidência, governos estaduais e Casas legislativas federais e estaduais, que podem desalojá-los do foro e entregá-los a Moro. Tal ameaça se concretiza na manchete de primeira página e no noticiário da editoria política do Estado do domingo 13 de agosto, mês da efeméride do martírio político do suicídio do caudilho Getúlio Dornelles Vargas. O noticiário reproduziu pesquisa de um instituto insuspeito de se imiscuir em política paroquial brasileira, o Ipsos. Segundo o levantamento, como enfatiza o redator que escreveu a linha fina da página A4 do jornal, a um ano da eleição, “94% dos eleitores não se veem representados por políticos”, como ressoa a manchete abaixo apenas do título do jornal. Quem convive com o cidadão brasileiro em casa, nas ruas, no trabalho e nos botecos só estranha uma informação da pesquisa publicada: onde se escondem os 6% de entrevistados que não negam peremptoriamente a expressão “democracia representativa”, tal como se define a nossa.
O desencanto da cidadania ainda não atingiu em cheio o prestígio da boa e velha democracia das ágoras gregas, dos burgueses europeus ou dos pais fundadores da Revolução Americana. Metade (50%) dos eleitores brasileiros ainda considera o Estado de Direito o melhor a ser praticado no País, contra a opinião de 33%, aos quais se somam 17% que não sabem o que dizer a respeito. Mas é quase igual (47%) a porcentagem dos cidadãos destes nossos tristes trópicos sul-americanos que não consideram nosso tipo de democracia o mais adequado. Os que deles discrepam e concordam com nossa “democracia” chegam a 38% e os que dizem não saber, a 15%.
Toda a pesquisa é acachapante e está bem resumida nas páginas do Estado ou nos arquivos deste portal. Não me resta mais espaço aqui para expô-los e facilitar sua busca. Falta-me ainda dizer que os políticos que não nos representam, se não sabiam disso, pelo menos desconfiavam desde antes da publicação da pesquisa. E é por isso que tentam agora o tiro de misericórdia na cabeça da democracia para continuarem com seus desmandos – entre os quais a corrupção é apenas mais um.
Por isso o deputado Vicente (nada) Cândido, relator de um mostrengo falsamente apelidado de reforma política, apresentou à comissão especial encarregada de realizá-lo e que o apoiou, deu nomes de santos aos demônios que soltou em nossa vida comum. Além da reforma política, o “distritão”. E para driblar a decisão judicial que mantém interditada a doação empresarial para campanhas, o por fora bela viola, por dentro pão bolorento Fundo para o Financiamento da Democracia, na verdade, um “passe aí sua carteira com o que ela contiver, seu idiota batizado”.
Quando basbaques como o autor destas linhas ou bem-intencionados ingênuos – como Modesto Carvalhosa, José Carlos Dias e Flávio Bierrembach – passaram a divulgar ideias como não votar em nenhum mandatário de qualquer poder e de convocar uma Constituinte independente, eles já tinham o veneno que anularia tais antídotos. Como detêm o apito do jogo na mão e a toga do juiz a seu favor e, perdidos por um, perdidos por mil, resolveram se antecipar às providências da cidadania para providenciarem o próprio e privilegiado salve-se quem poder.
Emulam o coronel Chico Heráclio do Rego, que Chico Anysio imortalizou como Coronel Limoeiro. Na final do campeonato pernambucano das seleções municipais, tendo o árbitro da contenda marcado pênalti a favor de Arcoverde e contra Limoeiro no último minuto da porfia, impressionado com a turba revoltada, o coronel questionou o capanga sobre a causa da confusão. Informado da importância da decisão, desceu à área adversária, apontou o 45 para a cabeça do apitador e mandou que invertesse área e campo. E o pênalti foi batido contra a meta do visitante. Essa boutade é a metáfora perfeita para este benefício para o infrator praticado na Brasília de costas para o Brasil. E para a civilização.
José Nêumanne
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