quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Fósseis desfossilizam

Todos deveríamos ter um fóssil em casa, em local de destaque, bem visível, em cima da geladeira por exemplo. Não um fóssil recente, como os preguiças-gigantes que viveram em Minas Gerais há poucos milhares de anos, porém um antigo, um dinossauro. Sei que é pesado e difícil de arranjar, mas valeria a pena. Se não o conseguirmos, vamos nos contentar com um imaginário. Suponhamos um Tyrannosaurusrex, ainda filhotinho, ao lado do pinguim de louça. Par perfeito.

Quando o T. Rex nasceu, os primatas não existiam nem na imaginação, ou melhor, nem imaginação havia. As espécies contavam apenas com a astúcia, as pernas ou as garras para sobreviver. Se algum bicho caísse de quatro e implorasse ajuda aos céus, tadinho. Outro bicho, mais chegado a instinto, logo o devoraria. Eis a primeira ajuda que o fóssil nos pode dar. Ele vem de uma época em que os deuses não existiam, porque, com a necessidade divina de reconhecimento, adoração e sacrifício, estão intimamente ligados à nossa espécie, em simbiose perfeita. Eles nos ajudam, nós os sustentamos. Como são eternos, infere-se que a humanidade também será. Sem o ser humano, quem os adoraria? A serpente?

Nesse ponto, o fóssil pode provocar confusão. Veja só. Todas as espécies, mais cedo ou mais tarde, acabam extintas. Seríamos a exceção? Alguém, com fundamento, argumentaria que os tubarões são anteriores ao tiranossauro, portanto sobrevivem há uma eternidade. Não seria, então, o caso de consultarmos os deuses deles? Têm eficiência comprovada.

O fóssil também nos ajuda em questões mais à terra, questões do dia a dia. Quem nunca sentiu uma dosezinha excessiva de orgulho ou, deprimido, achou que o mundo caiu de vez? Para os acessos mais brandos, não recorrentes, a fossilterapia funciona. Atenção, curandeiros de plantão: a técnica é tão simples que não justifica escrever livros ou ministrar cursos sobre ela, portanto não dá dinheiro. Consiste no seguinte: durante a crise aguda de desânimo ou inchaço de ego, contemple o fóssil por alguns segundos e constate que o animal já teve as mesmas necessidades nossas, do ar à comida à luta pela vida – e veja o que virou: pedra. Pense que ele conseguiu um destino melhor que o da humanidade inteira. Milhões de anos após sua morte, ainda marca a presença no mundo, ainda vemos seu corpo, ainda nos transmite informação. Quem nos garante que, no futuro distante, restarão traços humanos sobre a Terra? Portanto, nesse aspecto, qualquer fóssil jurássico pode ser mais bem sucedido que o Homo sapiens.

Depois da contemplação desfossilizante, faça-se uma pergunta singela: não seria melhor a gente viver sem muita firula, curtir os dias do jeito que vêm, sem ódios e rancores, arrogância ou depressão? Afinal, a vida não dá duas safras nem deixa sequelas.

Muita gente despreza os fósseis, porque são pura pedra, a realidade nua e dura. Como todos carecemos de bengalas fora de nós mesmos, apelamos para a fantasia. O mundo não fica muito melhor com óvnis, superpoderes, milagres, livre comércio? A ficção é vital. Sem ela não estaríamos aqui, os escritores. No entanto, meditar sobre um fóssil de vez em quando faz um bem…

Para dizer a verdade, até fóssil vivo serve, com vantagem extra: é abundante e sai de graça o ano inteiro, com paletó e gravata, na primeira página de revista e jornal. Coleciono o retrato de vários em cima da geladeira. A maioria mora em Brasília.

Luís Giffoni

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