quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Achtung, Brasil!

 


As armadilhas de dentro

A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.

A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.
Mia Couto

Anatomia de um desastre na pós-graduação brasileira

Completados mil dias no Planalto, Jair Bolsonaro não conseguiu fazer o que mais queria: destruir a democracia. No mínimo, seu fracasso dá a esperança de que tenha perdido de vez o bonde que imaginava conduzir pela contramão da história.

Isso não apequena o desastre que seu desgoverno vem provocando com a mistura tóxica de ignorância, incompetência e má-fé. Os exemplos são muitos, nem todos visíveis a olho nu. É o caso do progressivo desmanche da Capes, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Subordinada ao Ministério da Educação, é peça central daquilo que o estudioso americano Jonathan Rauch chama “Constituição do conhecimento” —por fixar as instituições e normas da ciência.


Trata-se de um complexo sistema de criação de procedimentos compartilhados; avaliação e reconhecimento de credenciais acadêmicas; definição de agendas e distribuição de recursos; treinamento de novas gerações de profissionais da ciência.

Fundada há 70 anos, a Capes moldou a pós-graduação brasileira, estabelecendo suas regras, procedimentos de avaliação definidos pela comunidade acadêmica, incentivos na forma de bolsas de estudos e apoio a programas de formação pós-graduada. Hoje é responsável pela elaboração do Plano Nacional de Pós-Graduação e pela avaliação periódica e suporte permanente a 4.600 programas que oferecem 7.000 cursos de mestrado e doutorado em todas as áreas do conhecimento. Em parte graças à Capes, o Brasil dispõe de um respeitável sistema de produção de conhecimentos.

Nada disso, naturalmente, tem algum valor para um governo que despreza a ciência e promove o charlatanismo —vide o vexame da cloroquina. O orçamento da Capes, em queda livre desde 2016, encolheu cerca de 30% a partir de 2019.

A epidemia de mudanças no Ministério da Educação privou a agência de estabilidade e coerência na condução da reforma dos critérios da avaliação dos cursos, ora contestada na Justiça pelo Ministério Público Federal. Seu Conselho Superior, dissolvido no fim do ano passado, ainda não foi refeito. O mesmo ocorreu recentemente com o conselho que preside a avaliação (o CTC).

Mergulhada na sua pior crise, a Capes é hoje chefiada pela doutora Cláudia Toledo, formada em direito por um certo Instituto Toledo de Ensino, do qual foi reitora quando este virou Centro Universitário de Bauru. Também têm diploma Toledo de direito o ministro da Educação, Milton Ribeiro, e seu colega da Justiça, André Mendonça, que Bolsonaro quer emplacar no STF. Em suma, os meandros da crise na Capes podem ser obscuros, mas as suas causas são claras –e o resultado, desastroso para o país.

Energia verde é chance que o Brasil não pode deixar passar

Há dois anos, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é uma espécie de líder mundial dos pecadores ambientais. Isso se deve aos ataques dele contra as autoridades e leis ambientais nacionais, sua tolerância diante do desmatamento da Amazônia e seu ostensivo desinteresse na política climática global.

Por culpa de Bolsonaro, no exterior se ignora que o Brasil é um dos países de produção energética mais sustentável, com a maior parcela (43%) de fontes renováveis em seu consumo final de energia entre os membros do G20. Sua capacidade cumulativa de energias renováveis é de 150 gigawatts, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.


Isso ocorre porque quase dois terços da eletricidade são gerados em usinas hidrelétricas, com baixa emissão de gases-estufa. Ao mesmo tempo, cresceu significativamente a participação do vento na matriz energética nacional. Depois da China e dos EUA, nos últimos sete anos o Brasil foi quem mais investiu na energia eólica, que hoje gera 11% de sua eletricidade. Essa expansão deverá também se registrar com a energia solar.

O Ministério de Minas e Energia conta com que, até 2040, 44% da eletricidade nacional possa ser obtida do vento e do sol.

Mas o país também já produz há décadas combustíveis como o biodiesel da soja e o etanol da cana-de-açúcar, cada vez mais também de segunda geração, em que é também transformado em combustível o restante da planta já utilizada, inclusive sua celulose, de difícil processamento.

O Brasil é o número três mundial da produção de bioeletricidade, sobretudo a partir do bagaço de cana, que é empregado nas usinas como combustível. Ganha igualmente importância na produção de energia o biogás, extraído de subprodutos da agricultura ou de depósitos de lixo urbanos. Com base nessa ampla oferta de eletricidade sustentável, em breve o país poderá oferecer fontes de energia verdes, como hidrogênio ou amoníaco, a preços bastante competitivos.

O hidrogênio "verde" é produzido através da fissão eletrolítica da água, usando eletricidade de fontes renováveis. A Europa e todas as nações que procuram reduzir suas emissões de gases do efeito estufa apostam no hidrogênio verde para alcançar suas metas ambientais, no entanto não podem produzi-lo em quantidades suficientes e terão que importar.
Brasil diante de chance histórica

No entanto o Brasil não deve ser primariamente fornecedor de combustível para as indústrias do mundo: melhor seria se as empresas integrassem o hidrogênio, amoníaco ou metanol verdes em sua própria cadeia de produção em solo brasileiro e elevassem assim a geração de valor nacional.

Um exemplo é o aço "verde", fabricado com hidrogênio de fontes renováveis – a indústria siderúrgica é um dos setores com a maior taxa de emissão de dióxido de carbono e outros gases-estufa. Ou o biometano poderia substituir o gás natural na indústria química, por exemplo, para a produção de fertilizantes.

Além disso, graças a seus biocombustíveis, o Brasil poderia executar com neutralidade carbônica toda a logística de suas indústrias de exportação. No caso do aço, o minério de ferro seria transportado em trens elétricos desde a mina, no interior do país, até a usina siderúrgica alimentada a hidrogênio, no litoral. Aí, navios cargueiros movidos a amoníaco verde levariam o produto final até os portos da Europa.

Assim, o país teria uma chance única de reaquecer sua indústria, que há anos vem minguando. As empresas reconheceram esse potencial, e estão investindo. Basta apenas esperar que o governo não se ponha no caminho dessa transformação da economia, pois isso significaria deixar passar uma chance histórica.
Alexander Busch

O que diz o vento

Para o Brasil chegar afinal ao Primeiro Mundo só falta vulcão. Uns abalozinhos já têm havido por aí, e cada vez mais frequentes. Agora passa por Itu esse vendaval, com tantas vítimas e tantos prejuízos a lastimar. Alguns jornais não tiveram dúvida: ciclone. Ou tornado, quem sabe. Deve ser coisa do el niño, um fenômeno que vem pelo mar lá do Pacífico, bate nos Andes, provoca o degelo e uma sequela de cataclismos que passam pelo Brasil.

Não sei o que é pior, se furacão ou vulcão. Pior mesmo, porque conheço, é tremor de terra. Estava em Lisboa com o Vinicius de Moraes quando aconteceu o terremoto de 1968. Palavra que achei que era contra mim pessoalmente. Veio até com dois tt. Assim: terremOtto. Quando estive no Japão com o Cláudio Mello e Souza fomos perseguidos por um tufão. Mas japonês dá jeito em tudo. O voo atrasou e voltamos a Tóquio numa boa.

Shelley que me desculpe, mas vento me dá nos nervos. Desarruma a gente por dentro. Mas, em matéria de vento, poeta tem imunidades. Manuel Bandeira associou à canção do vento a canção da sua vida. O vento varria as luzes, as músicas, os aromas. E a

sua vida ficava cada vez mais cheia de aromas, de estrelas, de cânticos. O contrário do ventinho ladrão. Sabe como é que se chama vento? Com três assobios. Ou soprando num búzio. Também funciona se você invocar são Lourenço, que é o dono do vento.

Fúria dos elementos, símbolo da instabilidade, o vento é ao mesmo tempo sopro de vida. Uma aragem acompanha sempre os anjos. E foi o vento que fez descer sobre os apóstolos as línguas de fogo do Espírito Santo. Destruidor e salvador, com o vento renasce a vida, diz a “Ode to the West Wind”, de Shelley. No inverno só um poeta romântico entrevê o início da primavera. Divindade para os gregos, o vento inquieta porque sacode a apatia e a estagnação.

Com esse poder de levar embora, suponhamos que uma lufada varresse o Brasil, como na canção do Manuel Bandeira. Que é que esse vento benfazejo devia levar embora? Todo mundo sabe o mundo de males que nos oprime nesta hora. Deviam ser varridos para sempre. Se vento leva e traz, se vento é mudança, não custa acreditar que, passada a tempestade, vem a bonança. E com ela, o sopro renovador — garante o poeta. A casa destelhada, a destruição já começou. Vem aí a reconstrução.

Otto Lara Resende, Folha SP 07/10/1991

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Orgulho de ser Brasileiro

Não há do que se orgulhar de um presidente que incita continuamente a quebra da ordem institucional em pleno ambiente de normalidade democrática, sem que haja qualquer ameaça interna ou externa ao país, após o extremo fracasso da política econômica e de suas políticas sociais. O episódio de 7 de setembro e a passagem de Bolsonaro por Nova Iorque com seu discurso na ONU, diametralmente oposto e desconectado da realidade, são vexames mundiais.


Em Pesquisa Nacional da Sensus, 90% apontam os motivos para se ter e não ter orgulho de ser brasileiro. Dentre os motivos positivos, estão as “riquezas naturais” com 26%, as “praias e belezas naturais” com 10%, o “futebol e os esportes” com 6%. Dentre os motivos negativos, estão a “corrupção” com 41%, a “violência” com 17%, e a “pobreza e miséria” com 13%. Ou seja, os motivos de orgulho são os culturais e de nossas belezas naturais, e os motivos para não se orgulhar são os das atitudes e situação social.

Os indicadores econômicos e sociais do Brasil não são muito alentadores. Na economia, a renda per-capita é de US$ 8.900,00 anuais, abaixo da média mundial, de US$ 10.600,00. Na educação secundária, o Brasil ocupa a 59ª colocação no PISA dentre 79 países do mundo. Na segurança pública, o índice anual de homicídios por 100 mil habitantes é de 27, China com 0,5, Europa 1, Estados Unidos 5. Adicione-se o completo descaso para com o meio ambiente.

Adicionalmente, o Brasil apresenta aspectos pouco imagináveis no mundo moderno de hoje. Recentemente, o mais significativo é a esdrúxula e mal fundada discussão sobre o tratamento precoce para o Covid por meio de hidroxicloroquina, medicamento cientificamente comprovado como ineficaz para o vírus, defendido por Bolsonaro na ONU, motivo de galhofa em todos os países do mundo. Adicione-se a desinformação de que a OMS não recomendaria a vacinação para Covid dos adolescentes, agora revogada.

Roberto DaMatta, em sua maestria, sintetiza os símbolos e motivos que agregam o povo brasileiro. Se me permitam fazer uma leitura livre, em Carnavais, Malandros e Heróis, DaMatta discorre sobre os símbolos de nosso povo, o carnaval com a inversão antropológica das classes, o malandro que dá um jeitinho para navegar na sociedade autocrática, e o herói que simboliza a ordem e a hierarquia. Em O que faz o brasil, Brasil?, o primeiro Brasil com b minúsculo, o das dificuldades econômicas na sociedade autocrática, e o segundo Brasil com B maiúsculo, o do ufanismo de nosso país e de nossa gente, no futebol, na comida, na música, da gargalhada fácil em condições adversas, onde a feijoada une os diferentes polos em um amplo congraçamento social, DaMatta em muito resume o que poderíamos livremente chamar de o jeito brasileiro de ser.

Este é o nosso país, bom e ruim ao mesmo tempo. Que Bolsonaro não nos tire a graça, com nada a oferecer, ou a substituir, nem na economia nem na cultura, sem moeda de troca.

Os mil dias da Sodoma e Gomorra bolsonarista

Os mil dias do governo de Jair Bolsonaro foram comemorados com inaugurações de obras pífias e entrevistas a veículos chapa-branca, nas quais o vazio mental do presidente da República não conseguiu ser preenchido por jornalistas que estavam ali dispostos a colaborar para que o inquilino do Planalto tentasse passar a imagem de estadista. Numa das entrevistas, inclusive, diante do deserto de ideias que se estendia a perder de vista, Jair Bolsonaro foi perguntado sobre armas atômicas, uma das questões nacionais mais urgentes, como se sabe. Se bem entendi, queriam saber se, no caso de o Brasil voltar a investir em usinas nucleares, isso poderia levar à fabricação de bombas atômicas. O presidente da República garantiu que não. Fiquei aliviado.

Do governo de Jair Bolsonaro, consigo extrair duas coisas boas até agora, como já disse em outro artigo: a modernização das leis trabalhistas, que será solapada pelos sindicalistas de toga e sem toga, e a sanção do novo Marco Legal do Saneamento, que abre caminho para que empresas privadas possam universalizar a rede de água potável e de tratamento de esgotos até 2033. Para não ser injusto, lembro agora da Reforma da Previdência. Adiou bastante a explosão da bomba-relógio fiscal. Três aspectos bons, portanto. Se Jair Bolsonaro não tivesse feito nada de certo além disso, já teria sido medíocre o suficiente para entrar no panteão das glórias nacionais. O problema é que as coisas erradas suplantaram em muito as corretas.

Eu classificaria os mil dias de governo como os mil dias de Sodoma e Gomorra, nos quais a racionalidade e a estabilidade foram seguidamente violadas, em uma orgia que, iniciada pelo Palácio do Planalto, tomou conta da Praça dos Três Poderes. No livro Me Odeie pelos Motivos Certos, que reúne artigos que escrevi para a Crusoé e para O Antagonista e acaba de ser lançado em versão impressa pela Topbooks, fiz um balanço sucinto do atual governo:


“Uma vez no poder, Jair Bolsonaro açulou as suas hostes contra os poderes constituídos, dando pretexto a que manifestações legítimas de liberdade de expressão fossem misturadas às ilegítimas. Ele também flertou com o autogolpe, tentando cooptar militares. Como escrevi em outro artigo, ‘depois de explodir todas as pontes de tráfego decente com o Congresso — com a ajuda estimável do gabinete do ódio especializado em fake news, equivalente aos blogs sujos do petismo — e inviabilizar um diálogo político minimamente saudável com deputados e senadores, o presidente sem partido estabeleceu uma pinguela com o Centrão, para contornas as dificuldades que ele mesmo criou e, no limite, um processo de impeachment. Sob os aplausos dos seus cúmplices no parlamento (petistas incluídos), Bolsonaro chancelou a destruição da Lava Jato e atingiu o máximo da infâmia ao forçar a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, a fim de mudar o diretor-geral da Polícia Federal e, assim, tentar evitar que investigações conduzidas no Rio de Janeiro alcançassem os seus filhos ou até ele próprio. A demissão de Moro teve ainda outro motivo: o medo de que o ex-ministro da Justiça lhe fizesse sombra em 2022. Bolsonaro, ao contrário do que dizia na campanha, quer ser reeleito. Com a cabeça na reeleição e refém do Centrão, o presidente estoura os cofres públicos. Em meio à urgência sanitária mundial, ele ainda demonstra o mais sociopático desprezo pela perda de milhares de vidas dos seus concidadãos’. Como não poderia deixar de ser, declarou guerra aberta à imprensa independente, que aponta os desvios no seu governo e critica o seu comportamento abjeto e característico de um sociopata no enfrentamento a pandemia. Para tanto, usa da intimidação judicial. Enquanto bate no jornalismo independente, ele beneficia empresários amigos no setor de comunicação, a fim de obter noticiário favorável, quando não francamente propagandístico.

Desesperado com as consequências políticas e criminais do relatório da CPI da Covid, além da possibilidade cada vez maior de perder a eleição em 2022, passou a atacar com virulência o STF e o TSE, com xingamentos a ministros do Supremo, e a divulgar notícias falsas sobre a falta de segurança das urnas eletrônicas. O seu alvo principal é o ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou a abertura da CPI no Senado, em obediência à Constituição e ao regimento da casa, e preside neste momento o TSE. O ministro é forte opositor da adoção do voto impresso, que virou cavalo de batalha de Bolsonaro, apesar de ter sido fonte de inúmeras fraudes em eleições em todos os níveis, o contrário do que o presidente apregoa. Qualquer discussão racional sobre o tema foi anulada pelo destempero do presidente e as suas ameaças de intervenção militar. Em reação inédita na história da República, o STF e o TSE abriram investigações sobre a conduta de Jair Bolsonaro, atribuindo-lhe a suposta prática de diversos crimes. Na economia, o seu discurso de campanha, em prol de uma agenda liberal, deu lugar ao fisiologismo, à perpetuação do inchaço da máquina estatal, ao assistencialismo eleitoreiro e à intervenção federal em estatais que eram para ser privatizadas. A política populista de juros baixos resultou em aumento exponencial do preço do dólar e, consequentemente, em aumento de inflação. Hoje é possível dizer que Jair Bolsonaro e Lula se equivalem como ameaças à democracia, cada um a seu modo. E as recidivas de ambos podem ser ainda piores para o país.”

O balanço foi feito antes de Jair Bolsonaro ser relativamente domesticado pelo ex-presidente da República Michel Temer, que visou a manter tudo isso aí, viu, e o ministro Alexandre de Moraes, a cujos ímpetos autoritários o presidente da República deu vazão, com seus ataques desmiolados ao STF. Mas se algo mudou, foi para não mudar.

Quando foi eleito, Jair Bolsonaro disse que governaria pelo exemplo. Faltou dizer que era pelo péssimo exemplo.

Dá pena ao mundo

O mundo já invejou, já amou, já desejou o Brasil. Nunca sentiu pena. Agora sente
Paulo Coelho

A tática nazista da Prevent Senior

Já pode chamar Bolsonaro de genocida? Denúncias que vieram à tona na segunda-feira (27/9) acrescentaram elementos ainda mais tenebrosos às práticas da Prevent Senior. Acusada de promover ensaios usando medicamentos com ineficácia cientificamente comprovada para o tratamento contra a Covid-19, a rede hospitalar é agora suspeita de homicídio. “Eutanásia disfarçada”, responsabilizou o senador Otto Alencar.

A Prevent Senior tratou doentes como cobaias, nas barbas do Ministério da Saúde e do presidente Bolsonaro. O capitão e seus filhos replicaram, nas redes sociais, a “pesquisa” com cloroquina e outros bichos. E tinham intermediários como fontes. Dra. Nise Yamagushi, frequentadora da Prevent, era conselheira de Bolsonaro, entre outros negacionistas.


O que dirá agora o presidente da República diante de provas – literalmente – vivas dos expedientes desumanos utilizados pela rede hospitalar e por seu quadro profissional? Bolsonaro poderá alegar desconhecimento. Difícil acreditar. Impossível crer em qualquer palavra desse ser baixo e ignorante.

A GloboNews trouxe o chocante depoimento de Tadeu Frederico de Andrade, 65 anos, literalmente sobrevivente da Prevent Senior. No laboratório da morte, após um mês internado e intubado, Tadeu foi considerado caso perdido. Os médicos notificaram à família: Tadeu teria tratamento “paliativo para que morresse com dignidade”.

Seus filhos reagiram, contrataram um médico de outro hospital, e viram o pai reagir. O caso foi levado pelo próprio paciente à CPI da Covid e ao Ministério Público de São Paulo. Ontem mesmo, a Assembleia Legislativa de São Paulo anunciou a instalação da CPI da Prevent. Em Brasília, o caso ainda vai render. As graves denúncias tornam ainda mais necessárias novas investigações.

Senadores da CPI da Covid veem relação entre a Prevent Senior e o governo Bolsonaro. Suspeita-se que o Ministério da Saúde tenha usado protocolo da operadora para estimular a utilização de medicamentos sem comprovação científica por médicos e pacientes contra a doença. Não é pouca coisa. O chamado kit Covid pode ter causado milhares de mortes.

Nesta quarta-feira (29/9), estará na CPI o farofeiro Luciano Hang. Já autodenominado “Véio da Havan”, Hang é dono de muitas mentiras e confia na impunidade que reina nesse país – à exceção de uns poucos. Pode entregar alguns quilates à CPI. Ele fala. Provoca. Ficou seis meses suspenso das redes sociais e voltou mais atrevido.

Com fortuna de R$ 15 bilhões e quase 150 lojas físicas pelo Brasil afora, Luciano Hang chega mal na foto. Mensagens revelaram à CPI como esse empresário bilionário e bolsonarista de primeira hora financiou a disseminação de fake news e o funcionamento do “gabinete do ódio”. A intermediação foi do deputado Eduardo Bolsonaro.

Há quem ache um exagero a convocação de Hang. Senadores e alguns comentaristas políticos alegam que um dos assuntos é extremamente delicado: a morte de sua mãe por Covid-19. Estranho duvidar de seu poder de fogo. O próprio internou a mãe com Covid-19 num hospital da Prevent Senior e o atestado de óbito não traz a doença como causa da morte.

Hang vai render uma sessão interessante. Fanfarrão e loroteiro, o Véio da Havan lançou desafio ontem nas redes sociais. Postou um vídeo com algemas e debochou da CPI. “Terei todo o tempo do mundo para falar e, se não ficarem satisfeitos, me prendam.”

De onde menos se espera…

Um brasileiro em Nova York


1.Nascido no gigante adormecido, Jair Bolsonaro foi à cidade que jamais dorme para fazer um discurso na ONU.

O resultado foi um discurso pífio e um patético flagrante do Supremo Mandatário e de sua comitiva desamparados, comendo pizza numa calçada. É claro, como já mencionei aqui, Bolsonaro se acha acima das normas e da biologia, embora tenha contraído a doença. Superiores não se vacinam e, irresponsavelmente, esquecem o caráter exemplar de seus cargos. Você pode ser individualista, mas o vírus é coletivista.

Bolsonaro é uma extremada ambivalência ambulante, essa marca dos poderosos nacionais. Pois — com raríssimas exceções — ter poder no Brasil é “ter a faca e o queijo nas mãos”, é ignorar normas. Seja porque os “superiores” não lhes obedecem; ou porque estão convencidos de que são seus donos. Afinal, eles as inventam e, se têm esse poder, não precisam segui-las. Elas são feitas para o “povo”. As elites legislativas (que estão em todo lugar) relativizam tudo com o “você sabe com quem está falando?”.

Só que, em Nova York, as regras valem para todos. Um presidente pode declarar uma guerra, mas não acaba com o ataque viral... Recusando fazer em Roma como os romanos, Bolsonaro viu sua teimosia virar pizza.

2. Seus defensores dizem que a implicância com a vacinação é um exercício de liberdade. Ignorantes, não sabem que o mais importante papel público da República restringe a vida pessoal. O preço do comando é a paradoxal submissão do comandante a seu papel. Poderes excepcionais roubam o prazer dos papéis comuns. O capitão de um navio tem medo da tempestade como passageiro, mas, como capitão, ele a enfrenta. É o preço do papel cerimonioso e sagrado, porque pertence ao povo, tem exigências.

Nosso “esquecido” viés aristocrático acentua os privilégios, ignorando suas responsabilidades. É nesse espaço que germinam a corrupção e a destruição institucional da má-fé golpista.

3. Então o presidente não tem direitos? Eis uma grave questão. Claro que ele decide sobre sua vida pessoal, mas com uma aguda consciência dos papéis que desempenha. Pode o Supremo Mandatário da nação fazer campanha contra a vacina tomando o partido da pandemia e da morte? Pode convocar o povo a apoiá-lo no desmonte dos Poderes da República?

4. É óbvio que — como cidadão — ele pode ser o que bem entender, desde que perceba que seu lugar como pessoa comum foi englobado pelo cargo para o qual foi eleito e que dele exigiu um juramento de lealdade. O juramento solene de lealdade ao papel torna o papel mais importante que o ator.

Numa democracia, talvez o mais espinhoso seja a exigência de que ele é um ocupante temporário do cargo — um cargo, aliás, interligado a outros poderes. Algo obviamente difícil para mandões, numa sociedade em que o “mandonismo” — como dizia a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz — é parte inconsciente do poder no Brasil. Aliás, com esse viés absolutista, como resistir aos parentes, comadres, amigos, bem como às seduções do sicofantismo e, sem dúvida, da burrice teimosa que faz parte de todo papel de direção e é uma característica do governo Bolsonaro?

5. Numa Nova York pandêmica, essa consciência do papel foi aguçada. Um representante de um país tem o dever de exibir o bom senso desse país. Coisa ignorada pelo presidente, que, diante de uma pandemia, entende ser contra a vacina e se expõe ao ridículo de verbalizar isso numa cidade que impôs a regra sanitária da vacinação em lugares reservados.

O direito de não se vacinar é moralmente equivalente ao direito de pular de um abismo. Alguns direitos — os de matar, de cometer incesto ou de procurar adoecer — são interditos. Verbalizados, eles denunciariam a penúria ética da sociedade. É exatamente isso que está em jogo com as vacinas. Não é a liberdade do idiota que não se vacina, mas a ameaça que ele representa aos que com ele convivem.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Antítese de Bolsonaro, primeira-ministra cita Bob Marley e chacoalha a ONU

Se Jair Bolsonaro causou constrangimento e indignação em sua participação na ONU, coube a uma mulher despontar como a antítese do presidente negacionista. Num discurso no mesmo púlpito que foi usado pelo brasileiro, a primeira-ministra de Barbados abandonou o texto que havia sido preparado por seu serviço diplomático e chacoalhou a Assembleia-Geral das Nações Unidas.

Mia Amor Mottley subiu ao pódio, na sexta-feira, determinada a dizer o que líderes queriam evitar escutar. E imediatamente foi elevada a uma espécie de celebridade diplomática, com comentários de que, finalmente, o mundo tinha uma líder.

Quando seu microfone foi ligado em Nova Iorque, ela foi clara: não iria repetir discursos. E lançou: “quantas vezes mais teremos então uma situação em que dizemos a mesma coisa repetidas vezes, para não chegarmos a nada?”. “Meus amigos, não podemos mais fazer isso”.

No lugar de um discurso robótico, ela evocou Bob Marley: “Who will get up and stand up?”. Em um português claro: “Quem se levantará?”.

“As palavras de Robert Nesta Marley. Quem se levantará e defenderá os direitos de nosso povo?”, questionou.

Ela também alertou: não tomaria muito o tempo daqueles que a escutavam, na mesma sala ocupada por Bolsonaro. Mas sua voz ecoou para além daquelas paredes. No lugar de certezas, ela levou perguntas impertinentes.

“Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram durante esta terrível pandemia? São milhões. Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram por causa da crise climática?”, questionou.

“Quantas mais variantes do covid-19 devem chegar, quantas mais, antes que um plano de ação mundial de vacinação seja implementado”? disse Mottley. “Quantas mais mortes devem ocorrer antes que 1,7 bilhão de vacinas em excesso na posse dos países avançados do mundo sejam compartilhadas com aqueles que simplesmente não têm acesso?”

“Temos os meios para dar a cada criança deste planeta um comprimido. E temos os meios para dar a cada adulto uma vacina”. E temos os meios para investir na proteção dos mais vulneráveis em nosso planeta contra uma mudança no clima. Mas optamos por não fazê-lo”, disse a primeira-ministra. “Não é porque não temos o suficiente, é porque não temos a vontade de distribuir o que temos”.

A primeira-ministra ainda atacou líderes que usam da mentira como instrumento de poder. Segundo ela, se o mundo ataca as plataformas para garantir o pagamento de impostos, é inconcebível que não se toque na questão da fake news.

A primeira-ministra também alertou para a falta de ação no campo ambiental. “Quantos mais aumentos globais de temperatura devem ocorrer antes de acabarmos com a queima de combustíveis fósseis? E quanto mais o nível do mar deve subir em pequenos estados insulares antes que aqueles que lucraram com o armazenamento de gases de efeito estufa contribuam para as perdas e danos que ocasionaram, em vez de nos pedir que excluamos o espaço fiscal que temos para o desenvolvimento para curar os danos causados pela ganância de outros”?

Ela ainda completou: “se conseguirmos encontrar a vontade de enviar pessoas à lua e resolver a calvície masculina, poderemos resolver problemas simples como deixar nosso povo comer a preços acessíveis”.

Governo do atraso

Os 1000 dias de Bolsonaro representam um atraso absurdo em todas as áreas, mas uma em particular exige atenção: quem se elegeu para ‘mudar tudo isso aí’ se juntou ao PT e o Centrão para acabar com a Lava Jato e atrasar todo o trabalho de combate à corrupção.
Alessandro Vieira, senador (Cidadania-SE)

O reino da mentira

Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.

Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário liber­tário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Te­mos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.

Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cida­dãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade so­bre a virtude.


No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus cor­redores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.

Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.

Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, po­luindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.

A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas pro­messas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas res­ponsabilidades. Nos desmentidos”.

Quando os demônios não gostavam de gritos

Houve um tempo em que os demônios não gostavam que ninguém gritasse. Foi o que me contou há vários anos, quando eu era correspondente deste jornal na Itália, o então exorcista oficial do Vaticano, monsenhor Corrado Balducci, já falecido, que era chamado para tratar os casos mais graves de possessão diabólica.

Consegui uma entrevista com ele depois de uma série de peripécias. Encontrei-o em seu gabinete dentro do pequeno e poderoso Estado do Vaticano. Recebeu-me cordialmente, mas me advertiu em seguida que procurasse falar em voz baixa, já que, segundo ele, “os demônios não gostam que gritem”.”Como sabe?”, perguntei-lhe. Respondeu-me, sem mais detalhes, que “por experiência própria”. E assim a entrevista foi feita aos sussurros.

Lembro ainda hoje alguns detalhes curiosos que consegui arrancar dele, embora tenha me pedido depois que não os incluísse na entrevista publicada. Por exemplo, também os animais podem ser possuídos pelo demônio. E me deu o exemplo do seu cavalo, que às vezes amanhecia possuído. Perguntei-lhe como sabia, e me explicou que nesses casos o animal “ficava com todos os pelos do rabo arrepiados”.

Essa afirmação do exorcista vaticano de que os demônios não gostam de gritos me levou a pensar que hoje, entre os políticos, os demônios também evoluíram, já que boa parte deles parece só falar aos brados e fazendo muito barulho, enquanto lhes falta reflexão e compostura.


Também relembrei aquela afirmação do exorcista por conta da gritaria e da confusão que o presidente Jair Bolsonaro e sua comitiva criaram durante sua recente estadia em Nova York para participar da Assembleia Geral da ONU. A imprensa brasileira e internacional já relataram todas as peripécias ocorridas – do fato de que o presidente brasileiro precisou comer uma pizza de pé na rua, porque não o deixaram entrar em um restaurante sem estar vacinado, até o gesto obsceno oferecido pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga contra os manifestantes.

Há um detalhe que, entretanto, passou despercebido e poderia ser uma metáfora da atual política bolsonarista. Na cerimônia de abertura da Assembleia da ONU, inaugurada, conforme a tradição, com o discurso do presidente do Brasil, houve um detalhe pouco conhecido e que foi gravado pela imprensa dos EUA. Assim que o mandatário brasileiro saiu, e antes que fosse a vez do norte-americano Joe Biden discursar, a tribuna onde acabara de falar foi rapidamente higienizada.

Naquele momento já se sabia que o presidente brasileiro não se vacinou contra a covid-19, e havia o temor de que Bolsonaro pudesse contagiar os demais presentes. Talvez por isso tenha voltado ao Brasil sem que pudesse se encontrar com o presidente norte-americano.

Entretanto, a cena da tribuna onde Bolsonaro discursou sendo higienizada às pressas poderia ser lida também como metáfora da periculosidade política que o negacionista de extrema direita representa no país considerado o maior defensor da democracia e das liberdades. É como se aquele ritual de desinfetar o lugar onde o presidente brasileiro discursou fosse visto como um exorcismo contra os demônios da discórdia, da mentira, do ódio, do gosto pelas ditaduras, do culto às armas e à morte.

A higienização do lugar onde Bolsonaro discursou entrará para a história e deveria agora ser uma lição para os poucos brasileiros que continuam a apoiá-lo. Às vezes, há pequenos gestos que podem passar despercebidos, mas que acabam fazendo história.

A cena de desinfetar a tribuna do presidente brasileiro foi mais que uma simples cena de limpeza. Deem vocês o nome que preferirem.

Uma coisa é certa: quem suceder Bolsonaro no Planalto, algo que a grande maioria dos brasileiros deseja, como indicam todas as pesquisas, deverá antes de mais nada desinfetar aquele lugar junto com o cercadinho onde o capitão vomita a cada manhã aos seus seguidores mais fiéis os demônios que lhe fazem lançar anátemas, ameaças e mentiras. “É que ele é assim mesmo”, alegam aqueles que o seguem de perto. É verdade, mas também são assim mesmo os desequilibrados psíquicos, os incapazes de juntar duas frases com sentido, os que falam o que lhes vem à cabeça sem esses filtros dos quais todos necessitamos, como explica a psicanálise. O que ocorre é que personalidades dessa tipologia deveriam ser incapacitadas para presidir e governar uma nação.

Esses políticos que sonham com o poder absoluto são como vulcões sempre em perigo de erupção, que provocam desastres e morte. Quem vier a substituir o capitão na presidência deverá se apressar em desinfetar com essa mesma urgência um pedaço da história deste país que está sendo impedindo de sonhar com dias melhores sem o medo de ser devorado pelo vírus de uma política que preocupa o mundo e gera medo e pobreza nesses milhões de pessoas para quem já ficaram muito distantes os tempos em que se acreditava que Deus era brasileiro. Talvez nunca tenha sido, pois a história do país ainda arrasta muitas injustiças, violências e segregação social, mas o perigo de hoje é que esse “Deus acima de tudo”, lema do presidente, tenha se metamorfoseado em um demônio da discórdia e da ruptura existencial.

Não sou dos que minimizam a periculosidade dos medíocres na política que acreditam ser deuses encarnados e acabam agindo como os novos demônios da discórdia. A História está cheia de ditadores que eram insignificantes quando entraram no poder e acabaram arrastando seus países para o inferno. Nada pior, de fato, que um despreparado que acredite ser enviado pelos deuses, enquanto aparece mais como a encarnação dos novos demônios do fascismo e da intolerância que hoje parecem ressuscitar no mundo e dos quais eles gostariam que o Brasil fosse seu epicentro político.

É possível que os demônios de hoje em dia gostem de gritar e mentir, mas o que continua sendo verdade é que os deuses preferem o silêncio, a reflexão, os valores que enaltecem, a compaixão que cura, e não o gosto pela violência, a discórdia, a mentira e a morte.

Alguém será capaz de higienizar a política brasileira para impedir que o vírus da intolerância e do fascismo continuem a contaminá-la, deixando rastros da dor e da desesperança engendradas por quem governa o país?

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Só Deus me tira daqui

- Chamou, chamou?

O presidente se assustou com a aparição repentina. A figura que surgiu na sala do Palácio do Planalto não convenceu muito. Era um tipo alto, moreno, bronzeado, vestindo uma camisa florida em tons azuis, uma bermuda branca e sandálias. A barba era longa, mas bem aparada e os óculos escuros comprados certamente numa ótica parisiense.

- Mas quem é você? perguntou o presidente.

- Ué, você não me chamou? Estava esperando faz tempo esse chamado. Sou deus, mas sou democrático. Preciso atender à maioria da população e eles vivem me pedindo a mesma coisa. Quando você pediu achei que estava na hora.

- Na hora de quê?

- De tirar você daqui. Levar pra outro lugar. Tem gente querendo botar você em cana. Eu espero a justiça dos homens decidir antes aí eu entro.


- Mas a justiça divina não está comigo?

- Não sei o que lhe faz acreditar nisso. Aliás vocês vivem usando meu santo nome em vão. Já estou meio cansado disso. Andei conversando com o Alexandre de Moraes...

- Com o Alexandre, não!!! Ele quer ver minha caveira.

- Justamente. Precisava falar com ele porque essa história de caveira, defunto, etc tem que passar por mim. É minha administração.

- Eu não usei seu santo nome em vão. Achei que eu tinha prerrogativas. Estou fazendo um governo todo família, tradição e propriedade. Achei que seria do seu agrado.

- Quem falou? Quem anda falando em meu nome?

- Quem acredita no senhor.

- Quem acredita em mim ou que acredita no meu poder de persuasão, minha força de marketing, ...?

-Achei que a gente podia escolher. Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.

- Eu estou acima de tudo, seu idiota. Não percebeu que essa frase é um equívoco só? Imagina se o Brasil vai estar acima de mim? Deus é deus e basta. E falando nisso lhe proíbo de continuar falando em meu nome. Vamos indo. Tá ficando tarde e sou uma pessoa muito solicitada.

- É...quer dizer. Eu falei no sentido figurado. Queria dizer que ninguém me tira daqui, só o senhor.

-Pois é. Estou tirando. Ou você acha que eu estou satisfeito com o seu governo? Ninguém está. Vamos indo, anda. Chama a Michelle, os meninos e vamos embora. Estou com um ônibus aí fora da viação Celeste para levar vocês pra casa.

- Mas nós não queremos...

- Eu decido e vai por mim. Melhor sair sob a minha proteção do que esperar que a PF baixe por aqui na operação Familícia.

- Jura? Eles estão vindo?

- Eu não juro por mim mesmo, meu filho. Só digo a verdade.

-Não sei o que é isso.

-Pois é. Se até hoje você não aprendeu não vai ser agora. Vamos indo. O tempo urge.

- Mas eu estava gostando tanto de brincar de presidente.

- O povo não estava gostando nada de você ser presidente.

- Posso fazer uma última pergunta, antes de ir, já que estou na frente de deus?

- Diga.

- Qual é o significado da vida?

- Ora, meu filho, piada velha numa hora dessas? Vamos embora antes que a casa caia.

E no meio dos escombros do palácio, deus foi saindo levando pelos braços o JMB que olhava para os lados com olhar saudoso. Uma lágrima rolou, mas ele logo desmentiu

- Homem não chora.

A economia dos pobres

A pandemia virótica escancarou a pandemia da pobreza e o aumento da desigualdade. Ao lado emergência climática, são os maiores desafios da humanidade no século XXI.

No Brasil e no mundo, não faltaram grandes cientistas sociais, formuladores de políticas que defenderam ideias e participaram de experiências exitosas, porém insuficientes para estabelecer padrões aceitáveis de equidade social.

As dificuldades residem no tamanho e na complexidade do problema. Dimensão: 1bilhão e 100 mil pessoas que dispõem de menos de 1 dólar diário para sobreviver nos Estados Unidos, na Índia, 16 rupias correspondentes a 36 centavos de dólar; anualmente, 11 milhões de crianças morrem antes de completar 5 anos.

No Brasil, em 2019, 51,7 milhões de habitantes estavam abaixo da linha de pobreza (BIRD); entre agosto de 2020 e fevereiro de 2021, 17,7 milhões de pessoas voltaram à condição de pobres (FGV Social).


O panorama atual revela um contraste avassalador e ratifica a percepção de que o mercado pode muito, mas não pode tudo, inclusive, distribuir a riqueza gerada. O capitalismo e a afluência empurram para cume da pirâmide social novos bilionários, ampliando o fosso monumental entre a maioria crescente de excluídos e a ínfima parcela da população que se diverte, investindo no turismo espacial.

Por sua vez, não faltam recursos para financiar guerras e socorrer os trambiques monumentais dos que são “grandes demais para quebrar”.

De outra parte, as políticas públicas de renda são, em grande medida, insuficientes ou ineficazes para ofertar aos cidadãos a possibilidade de emancipação.

O título do artigo “A Economia dos Pobres”, propondo uma nova visão da desigualdade, é o recente livro de autoria do casal Abhijit V. Banergie&Esther Duflo (segunda mulher a receber o Nobel de Economia, 2019).

Durante 15 anos, foram além das formulações acadêmicas e, com “foco nos mais pobres” e procuraram compreender como eles vivem em “becos e aldeias” e a “existência econômica”, privados que são de informações e condições mínimas para tomar decisões sobre o próprio destino.

O livro é extenso: “em última análise – registram ou autores – trata do que a vida e escolhas dos pobres nos dizem sobre como combater a pobreza global”. Destacam o valor do poder comunal e das instâncias locais.

Eles contemplaram a tragédia: “Vi ontem um bicho/Na imundície do pátio/catando comida entre os detritos […] Engolia com velocidade/O bicho não era um cão/Não era um gato/Não era um rato/O bicho, meu Deus, era um homem” (Manoel Bandeira).

Reconstrução de direitos

O atual presidente da República sempre foi contrário aos direitos humanos. Atacou-os repetidamente durante seus vários mandatos como deputado federal e durante a campanha eleitoral para a Presidência. Para além de ações mais visíveis, tais como seus discursos de ódio e suas tentativas de mobilizar apoiadores de um golpe para botar abaixo a democracia constitucional, seu governo promove antipolíticas de direitos humanos.

Estas são implementadas de diversas formas: por meio de mudanças legais, fechamento de órgãos e colegiados, cortes orçamentários, nomeação de dirigentes ineptos com posições hostis ao funcionamento de conselhos onde tem assento a sociedade civil ou pela inação pura e simples. Desse modo, os programas nacionais de direitos humanos em andamento foram esvaziados, inviabilizados ou desviados de seus propósitos, ao mesmo tempo que outras ações tornaram precária a condição dos grupos vulneráveis protegidos por direitos, ao instigar aqueles que os atacam.


O alvo mais claro do desmonte operado pelo atual governo de extrema direita é a política de Estado de direitos humanos institucionalizada na Secretaria de Estado de Direitos Humanos, pasta criada em 1996. Mais tarde, a secretaria foi convertida em ministério e acompanhada da criação de outros ministérios, secretarias e órgãos voltados à proteção dos direitos humanos, à promoção da igualdade racial e da equidade de gênero, ao combate à pobreza e ao trabalho escravo. O Programa Nacional de Direitos Humanos, começando pelo PNDH 1, de 1996, revisado pelo PNDH2, em 2002, ambos nos governos Fernando Henrique, e pelo PNDH 3, em 2009, no governo Lula, condensaram o conjunto de iniciativas em defesa dos direitos humanos promovidas nos níveis federal, estadual e municipal, com efetiva participação da sociedade civil.

As políticas de direitos humanos desde a redemocratização promoveram mudanças nas práticas políticas autoritárias, oligárquicas, clientelistas e na estrutura desigual e racista da nossa sociedade brasileira. Além de defendê-las contra os ataques e o desmantelamento que vêm sofrendo, é preciso divulgá-las publicamente para que possam servir de inspiração a todos os que resistem atualmente e lutam pela democracia, o Estado de Direito e a justiça social no Brasil.

Esse é o objetivo do primeiro manifesto assinado por 11 secretários e secretárias**, ministros e ministras de Direitos Humanos dos governos FH, Lula e Dilma, que será lançado em evento on-line do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) no próximo dia 1° de outubro, a partir das 14h. O manifesto defende a institucionalidade da política de Estado dos direitos humanos, traz a memória daqueles e daquelas que foram responsáveis por sua operacionalidade e clama por sua reconstrução. É uma mensagem forte e precisa para que a política de Estado de direitos humanos seja central nas campanhas de todos os candidatos e candidatas democratas à Presidência no próximo ano.
**José Gregori, Gilberto Vergne Saboia, Paulo Sérgio Pinheiro, Nilmário Miranda, Mário Mamede Filho, Paulo de Tarso Vannuchi, Maria do Rosário, Ideli Salvatti, Pepe Vargas, Nilma Lino Gomes e Rogério Sottili

O Brasil entre o poder do horror e o horror do poder

Há tempos que eu não via Joca, meu velho amigo privilegiado, morador de casarão em trecho exuberante da floresta. Se não fosse apenas pelo prazer de vê-lo e ouvi-lo, não podia recusar seu convite para “tomar uma cerveja e saber como andam as coisas no Brasil”. Fui intrigado.

Joca conduziu o carro para os limites de uma comunidade e parou diante de um botequim, mais bem tratado que a média dos outros na região. Entramos, com ele à frente, e logo ouvi uma voz grossa e cheia de catarro preso gritar, por trás do balcão do boteco: “Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! É ele, minha gente, é o cara!” E puxou o aplauso pela chegada de meu amigo.

Meu amigo agradeceu os aplausos, assobios e gritos excitados de parte considerável dos fregueses, e me apresentou ao senhor bigodudo e gordo da voz de catarro. “Vamos contar aqui pro meu amigo como anda o Brasil, seu Taco!”, disse ele. Imaginei que Taco fosse uma redução popular para, por exemplo, Eustáquio. E arrisquei: “Boa noite, seu Eustáquio.” “É Otávio. Otávio Costa”, me respondeu jogando fora pela boca o que lhe travava a garganta.

O boteco estava lotado de gente, mesmo para uma noite de sábado. Joca pediu sua cerveja geladíssima, me contentei com uma Coca Zero pequena. Um rapaz, do outro lado do bar, perguntou em voz alta a Joca: “Ouviu o discurso do cara, cara?” Por um desses milagres cariocas de entendimento nas nuvens, compreendi que o rapaz se referia ao presidente e seu discurso em Nova York, na ONU. “Uma merda”, respondeu Joca de bate-pronto, “nem pra eleitor burro serviu”. Quase todo mundo no boteco riu. Um outro rapaz, na mesa ao lado da de Joca, afirmou, sem muita convicção, que “burro vota é no Lula, não vota nele”.

O boteco pegou fogo. Em outra mesa, um trio parecia ensaiado: “Quem come na rua e entra pelos fundos...”, “... transmite doença e todos têm vergonha dele...”, “...só pode ser um rato...”, e os três juntaram suas vozes para encerrar o discurso: “...poderosa ratazana!” Antes que o terceiro homem entrasse no coro, todo mundo já caía na risada. Quando disse que o presidente só podia ser um rato, o boteco quase veio abaixo de tanto riso e palmas, de tanto protesto e vaias.

Ali estava o Brasil que Joca queria me mostrar, dividido ao meio, entre o poder do horror e o horror do poder.

A partir daí, não se podia ouvir mais nada do que se dizia no boteco. Ninguém tocava em ninguém, era só gritaria, acho que só pelo prazer de gritar. Joca ria vitorioso, como se fosse o feiticeiro sábio responsável pela balbúrdia. E eu acompanhava a discussão política derivar, com naturalidade, para acusações pessoais, protestos originados por acontecimentos do dia a dia. Frases agressivas que acusavam a uns e outros, ponteadas por palavrões inéditos que pareciam inventados na hora de tão gostosos de dizer, a boca cheia.

Claro que ninguém ali pensava em nosso presidente, eram apenas discípulos de seu jeito de ser. Ou, melhor dizendo, haviam encontrado em seu comportamento a chave para se comportar igual. Também não era uma imitação barata, todos ali tinham aquele mesmo jeito, desde sempre. Só não sabiam que podiam ser assim, nosso presidente os libertava do temor de serem inconvenientes, sem projeto e sem ideologia. Apenas violentos e capazes de assumir seus modos e ideias assim, daquele jeito barato, sem preço. Não ficariam devendo nada a ninguém e depois se esqueceriam do presidente, não saberiam nem quem foi. Os bolsonaristas iam durar muito mais que Bolsonaro, iam durar para sempre.

Há tempos não tinha tanto medo. Disfarcei, conversei mais um pouco, acho que aos gritos para poder vencer a barulheira. E pedi para ir embora, não me lembro sob que pretexto. Joca me atendeu rindo muito.
Cacá Diegues 

Pau-de-arara generalizado

Concluímos que em mil dias de governo Bolsonaro os brasileiros estão vivendo sem direitos. As pessoas estão sentindo no bolso, no prato, na pele e no corpo as perdas dos seus direitos mais fundamentais
Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil

A aristocracia refém de si mesma

Nada isenta o capitão genocida. Ele é antidemocrático desde criancinha, e há trinta anos bradava isso aos quatro ventos, para quem quisesse ouvir. Mas era apenas visto como um lunático bravateiro. Até mesmo os grupinhos que iam para a avenida Paulista com faixas pedindo a volta da ditadura eram vistos como excêntricos. Como fomos parar aqui? Com um presidente da República que ameaça o STF e a democracia em comício, sem que lhe aconteça nada de mais grave?

Pois é, após as reações no mínimo covardes dos presidentes da Câmara e do STF, temos que nos perguntar. Será mesmo apenas frouxidão? Medo do Bolsonaro? Será realmente que estão apequenados porque acreditam que o capitão seria capaz de aglutinar apoio para uma sublevação contra a democracia? Quando todos aqueles que circulam nos meios do poder indicam que ele não tem apoio para isso? Será que, como sustentam alguns, estamos menosprezando a força do golpe que Bolsonaro sorrateiramente prepara? Acredito que a resposta não está propriamente no Bolsonaro.


Há uma questão que sempre vale lembrar: quem começou com essa história de destruir a democracia, não foi Bolsonaro. Quem duvidou do resultado da penúltima eleição presidencial, insinuou fraude, lançou ameaças ao governo que recém vencia, não foi Bolsonaro. Foi Aécio Neves. Quem começou a subir, semana sim semana não, mais um degrau no desmonte da democracia, não foi Bolsonaro, mas um juiz que decidiu, à luz do dia e sem reação de ninguém, virar justiceiro e desrespeitar a lei. Quem iniciou um impeachment sem crime não foi Bolsonaro, foi o MDB associado ao PSDB.

Pois bem, há uma aristocracia poderosa e discreta que decide os destinos deste país. A imagem folclórica, embora haja testemunho de gente que presenciou, é que se reúnem de vez em quando em salões aveludados para discutir a conjuntura e os rumos do país. São grandes banqueiros, gigantes da indústria, donos das mídias, ex-mandatários, empresários de peso, e alguns políticos, mas não todos (escrevi este artigo antes do vídeo do jantar do Temer na casa do Naji Nahas, com todos os barões reunidos. Não poderia haver uma ilustração melhor do que essa). Pois desconfio que muito da inépcia das reações aos delírios de Bolsonaro deve ser buscado no meio dessa turma, e não no meio da família de dementes que eles deixaram, por um lapso, chegar ao poder. A explicação está em outro lugar. Está no impasse em que essa gente se meteu, por conta própria.

A questão é a seguinte: a aristocracia que manda cedeu à força democrática ao aceitar engolir Lula, convencidos pela “Carta aos brasileiros”. Deu até mais certo do que eles pensavam, mas, quando o caldo começou a entornar, porque Dilma mostrou-se mais à esquerda do que o desejado, porque enfrentou sem sucesso uma crise econômica que não era mais nenhuma “marola” (como havia prometido Lula), quando Dilma resolveu endurecer com os bancos, e quando viram que a brincadeira democrática podia perpetuar o PT no poder por décadas, resolveram que a brincadeira já não tinha mais graça. Prepararam-se com tudo – com a mídia e todo seu poder econômico – para tirar Dilma do poder nas eleições, mas não conseguiram. Restou-lhes questionar o pleito e iniciar um paulatino, mas seguro, processo de erosão da democracia.

O que não esperavam é que seus potenciais representantes políticos iriam cindir-se e, com mais de um candidato, todos sem nenhum carisma, iriam afundar-se eleitoralmente. Alkmin, Meirelles, Amoedo e, em certa medida, Marina, dividiram os votos do “centro esclarecido”, um eufemismo para uma direita aristocrática montada em seus privilégios, mas que se quer progressista, e se afundaram nas urnas. Seu inimigo naquele momento não era Bolsonaro, vale lembrar. Era o PT, de quem tinham medo que voltasse ao poder e ali ficasse.

Por isso, não se importaram em apostar naquele que havia gritado “Viva Ustra” poucos meses antes. Nem Ciro, nem FHC, ninguém. Todos aceitaram igualar dois candidatos incomparáveis, e ajudaram a parir o monstro, a acordar não um gigante, mas uma massa de brasileiros toscos, individualistas, racistas, xenófobos, machistas, egoístas, intolerantes, violentos, que de repente viram que lhes tinha sido dado espaço para se manifestarem sem vergonha. Pior, com orgulho.

Com Bolsonaro no poder, entraram – ou acharam que entraram – no clubinho dos poderosos novas figuras que na verdade não foram aceitos. Empresários do comércio de varejo, vaqueiros do agrobusiness, gente mais tacanha, focada no seu lucro imediato, habituada às burlas e falcatruas, à sonegação de impostos, às malas de dinheiro. Pastores das igrejas da enganação, tosqueadores do dinheiro dos mais pobres. Essa gente começou a falar alto. Ah, e também, é claro, as milícias.

Jair Bolsonaro vive, ou melhor, sobrevive da sua popularidade com esses setores. E só. Nenhum militar de mais alta patente com algum neurônio (e seria muito simplismo achar que eles não têm nenhum neurônio) iria se embrenhar em uma aventura golpista com um fanfarrão na liderança. As PMs podem até apoiá-lo, mas precisaria de muita coordenação entre forças estaduais desconectadas para que constituíssem uma força armada capaz de sustentar uma aventura militarista. Nenhum empresário, banqueiro, industrial, está interessado em ver o país virar um faroeste dominado por milicianos e aventureiros novos ricos. Sabem que seria o pior cenário para seus lucros. Aliás, nem mesmo o centrão parece disposto, pois sabe que isso seria o fim de sua fonte de clientelismos, seriam rapidamente substituídos por outras forças bem piores, milicianos e afins.

Mas ai, o que fazer? O problema é esse. Nessa dinâmica toda, essa elite aristocrática perdeu a mão da política. Ela é, no fundo, profundamente antidemocrática. Talvez mais até do que o próprio Bolsonaro, pois o é de maneira mais sofisticada. Sua estratégia é vencer legitimamente nas eleições, desde que ganhe quem eles queiram. Só que, desta vez, eles têm a frente um fanfarrão que tem o poder, e do outro lado, mais forte do que nunca, a possibilidade da volta do PT. Podem dizer o que quiserem, mas Lula é o que é, gostem ou não. Carrega caminhões de apoiadores legítimos. E a expressão mais acabada do modo antidemocrático de ser dessa gente surge quando algum jornalista ou político sugere que Lula deveria renunciar à candidatura, “em nome do país”. Vamos colocar em outras palavras: Lula deveria desistir porque ele impede que tirem o Bolsonaro para por no lugar alguém que eles queiram, “em nome e para o bem do país”.

Eles bem que tentaram: Moro, Huck, Mandetta e até mesmo um idiota como aquele humorista, foram testados para a tarefa. Mas aí que está o problema, ninguém “pega”. Nem mesmo o Ciro, que está disposto a tudo, até a se assumir de vez como representante dessa aristocracia. Eles todos até poderiam tirar o Bolsonaro, mas o problema não é bem esse: não tiram o Lula. E então estão se desesperando em busca de uma “terceira via”, um eufemismo para dizer que não aceitam a vontade democrática se ela confirmar que a escolha popular será Lula.

Então, por ora, aceitam as bravatas. Assim como ocorreu nas eleições, Bolsonaro, um oportunista profissional, aproveita o espaço. E sobe o tom. Se não conseguir um golpe, ao menos sairá atirando com uma base intacta de 25%, assim como Donald Trump. O STF e Artur Lira sustentariam uma reação à altura que as provocações de Bolsonaro merecem? Mas para dar no que? Em um impeachment que colocará Mourão à espera de uma eleição aparentemente já decidida? A solução não serve. O andar de cima deve estar fervendo. Urge achar uma saída, antes que percam de vez o pé da aventura bolsonarista.

Temos que entender que o DNA antidemocrático não é uma exclusividade de um louco que deixou o país à deriva e à morte em nome de seus projetinhos pessoais tacanhos, e que clama por um golpe desde que existe. O DNA está em quem deixa ele agir impunemente porque, do alto das instituições democráticas que deviam servir, não tomam as atitudes que se impõem.

Lembremos que Dias Toffoli, quando presidente do STF, colocou um militar para assessorá-lo, em um gesto para conciliar com Bolsonaro. Disse que a ditadura havia sido um movimento. A alta corte calou-se quando um general a emparedou caso seguissem a lei e soltassem o Lula. Porque tamanha condescendência? Porque estão perdidos, sem achar um caminho que tire o fanfarrão de onde não deveria estar, mas lhes garanta o poder. Se quisessem, têm dinheiro para pôr o centrão no bolso. A questão é que ser democrático, hoje, no Brasil, significa aceitar as eleições. E eles não querem do jeito que está. Então vão empurrando o capitão até algo novo surgir. Não se espantem se esse “algo novo” não venha a ser de novo o Moro: como a Folha já mostrou, a absolvição de Lula e a condenação do ex-juiz no STF não significa nada, para eles são só arranjos. O problema é que, nessa brincadeira, o fanfarrão pode acabar dando-lhes novamente um olé, e conseguir o que quer: um golpe de verdade.

sábado, 25 de setembro de 2021

Pensamento do Dia

 

Alejandro Fajardo (Cuba)


Delírio tropical

A cada episódio do espetáculo de desmoralização da Presidência da República estrelado por Jair Bolsonaro há dois anos e oito meses, as pessoas se perguntam qual é a razão de o presidente insistir na marcha da própria insensatez.

Buscam-se variadas motivações: na vocação ao autoritarismo, numa presumida esperteza bem planejada, em algum déficit no recôndito do cérebro presidencial ou mesmo na sinalização para um golpe de Estado.

Isoladamente, nenhuma delas satisfaz por ausência de razoabilidade fática na execução dos propósitos quaisquer que sejam eles. O conjunto dessas características sem dúvida presentes nos atos e palavras do presidente, e que por isso justificam as suspeitas, dá notícia de uma personalidade dada a delírios.

O maior dos produtos da confusão mental de Bolsonaro é a ideia de que nessa toada chegará à reeleição. O que mais se ouve por aí no rol de tentativas de explicar a série de tiros no pé é que ele fala “para sua bolha”. Assim a maior parte das análises sobre o espantoso discurso na abertura da Assembleia-Geral da ONU qualificou a passagem do presidente por Nova York.


Não é novo o fato de presidentes brasileiros perderem a chance de falar ao mundo e preferirem se dirigir à província. José Sarney, Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff já fizeram isso, mas nenhum deles atraiu críticas nem obteve o destaque internacional alcançado pelo atual presidente, até porque o simples envio de “recados” internos não interessam ao mundo.

Portanto, parece apressado e um tanto equivocado resumir a atuação desastrosa à intenção de fidelizar uma base eleitoral de convertidos, que, inclusive, diminui de tamanho a cada contagem dessa adesão nas pesquisas. Jair Bolsonaro teve o apoio de 55% do eleitorado em 2018. Hoje é aprovado por 22% dos consultados na última apuração do instituto Datafolha, cuja mostra revelou que apenas 11% estão com ele para o que der e vier.

O que, então, poderia pensar o presidente em ganhar com a desastrosa passagem por NYC? E aqui a referência não é apenas ao discurso eivado de mentiras do começo ao fim, todas desmentidas interna e externamente, de A a Z, ponto a ponto. O desastre materializou-se na exibição do manual de estilo ao qual os ministros da Saúde e das Relações Exteriores acrescentaram alguns tópicos com suas chocantes linguagens de sinais.

Voltando ao ponto sobre o que pensa o presidente em ganhar com isso, chego à conclusão: ele não pensa. Tem vocação autoritária, sonha com golpes, é refém de uma expressiva confusão mental, mas não tem estratégia oculta nem é um esperto por natureza.

Bolsonaro simplesmente é assim, um homem inculto, grosseiro, deslumbrado e ao mesmo tempo assustado por ter sido guindado de repente da insignificância à total importância. Não sabe ser diferente e por isso se refugia em delírios, naquilo que se convencionou chamar de realidade paralela bolsonarista, um universo onde a lógica não tem vez.

Os habitantes desse planeta fora do mapa compartilham a euforia à deriva pela atenção recém-adquirida. Sentem-se finalmente relevantes, donos de voz ativa, credores do líder que os levou a essa condição. Decepcionam-se às vezes, mas se recuperam rápido criando razões para renovar a fidelidade, ainda que elas pouco ou nada tenham a ver com os fatos.

Os acontecimentos decorrentes das manifestações do 7 de Setembro foram particularmente expressivos nesse aspecto. Logo após o presidente ter inventado no palanque de Brasília que no dia seguinte haveria uma reunião do Conselho da República, vários deles divulgaram vídeos em que apareciam felizes e aos prantos pela “decretação do estado de sítio”. Também comemoraram a “fuga” do ministro Alexandre de Moraes “para Taiwan”, onde estaria exilado e tão “humilhado” quanto seus pares do Supremo Tribunal Federal.

E a carta do dito pelo não dito escrita por Michel Temer? Um hábil recuo estratégico para obter do STF a garantia de que não haveria punições nem investigações envolvendo o presidente e seus apoiadores. E a fraude eleitoral, e o chip da vacina, e os vacinados transformados em jacarés, e a cura pela cloroquina, e os milhões que foram às ruas na “maior manifestação de toda a história”, e a ameaça comunista?

Tudo isso, e mais um pouco que a memória deixou de fora, pode servir para movimentar os delirantes, mas não é suficiente para ganhar uma eleição.