1.Nascido no gigante adormecido, Jair Bolsonaro foi à cidade que jamais dorme para fazer um discurso na ONU.
O resultado foi um discurso pífio e um patético flagrante do Supremo Mandatário e de sua comitiva desamparados, comendo pizza numa calçada. É claro, como já mencionei aqui, Bolsonaro se acha acima das normas e da biologia, embora tenha contraído a doença. Superiores não se vacinam e, irresponsavelmente, esquecem o caráter exemplar de seus cargos. Você pode ser individualista, mas o vírus é coletivista.
Bolsonaro é uma extremada ambivalência ambulante, essa marca dos poderosos nacionais. Pois — com raríssimas exceções — ter poder no Brasil é “ter a faca e o queijo nas mãos”, é ignorar normas. Seja porque os “superiores” não lhes obedecem; ou porque estão convencidos de que são seus donos. Afinal, eles as inventam e, se têm esse poder, não precisam segui-las. Elas são feitas para o “povo”. As elites legislativas (que estão em todo lugar) relativizam tudo com o “você sabe com quem está falando?”.
Só que, em Nova York, as regras valem para todos. Um presidente pode declarar uma guerra, mas não acaba com o ataque viral... Recusando fazer em Roma como os romanos, Bolsonaro viu sua teimosia virar pizza.
2. Seus defensores dizem que a implicância com a vacinação é um exercício de liberdade. Ignorantes, não sabem que o mais importante papel público da República restringe a vida pessoal. O preço do comando é a paradoxal submissão do comandante a seu papel. Poderes excepcionais roubam o prazer dos papéis comuns. O capitão de um navio tem medo da tempestade como passageiro, mas, como capitão, ele a enfrenta. É o preço do papel cerimonioso e sagrado, porque pertence ao povo, tem exigências.
Nosso “esquecido” viés aristocrático acentua os privilégios, ignorando suas responsabilidades. É nesse espaço que germinam a corrupção e a destruição institucional da má-fé golpista.
3. Então o presidente não tem direitos? Eis uma grave questão. Claro que ele decide sobre sua vida pessoal, mas com uma aguda consciência dos papéis que desempenha. Pode o Supremo Mandatário da nação fazer campanha contra a vacina tomando o partido da pandemia e da morte? Pode convocar o povo a apoiá-lo no desmonte dos Poderes da República?
4. É óbvio que — como cidadão — ele pode ser o que bem entender, desde que perceba que seu lugar como pessoa comum foi englobado pelo cargo para o qual foi eleito e que dele exigiu um juramento de lealdade. O juramento solene de lealdade ao papel torna o papel mais importante que o ator.
Numa democracia, talvez o mais espinhoso seja a exigência de que ele é um ocupante temporário do cargo — um cargo, aliás, interligado a outros poderes. Algo obviamente difícil para mandões, numa sociedade em que o “mandonismo” — como dizia a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz — é parte inconsciente do poder no Brasil. Aliás, com esse viés absolutista, como resistir aos parentes, comadres, amigos, bem como às seduções do sicofantismo e, sem dúvida, da burrice teimosa que faz parte de todo papel de direção e é uma característica do governo Bolsonaro?
5. Numa Nova York pandêmica, essa consciência do papel foi aguçada. Um representante de um país tem o dever de exibir o bom senso desse país. Coisa ignorada pelo presidente, que, diante de uma pandemia, entende ser contra a vacina e se expõe ao ridículo de verbalizar isso numa cidade que impôs a regra sanitária da vacinação em lugares reservados.
O direito de não se vacinar é moralmente equivalente ao direito de pular de um abismo. Alguns direitos — os de matar, de cometer incesto ou de procurar adoecer — são interditos. Verbalizados, eles denunciariam a penúria ética da sociedade. É exatamente isso que está em jogo com as vacinas. Não é a liberdade do idiota que não se vacina, mas a ameaça que ele representa aos que com ele convivem.
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