Vida curta, umas 72 horas, a do escândalo de testes da pandemia entulhados em Guarulhos. O retorno das contaminações em massa deve-se, em parte, à baixíssima aplicação pública de testes. À falta de explicação, Bolsonaro recorreu à condição de farsante profissional e mentiu que “todo o material foi enviado aos estados e municípios”. Mas não faltaram crimes contra a saúde pública e de administração perdulária.
Sete milhões de testes PCR seguiam para o fim da validade em janeiro, sem se saber o número dos já perdidos, enquanto o Conselho Nacional de Secretários de Saúde repetia, em ocasiões sucessivas, o alerta ao Ministério da Saúde para a falta de kits do PCR, o mais eficiente, em vários estados. Os comunicados do CNSS derrubam outra mentira, esta do ministério, segundo a qual a distribuição dos kits dependia da requisição para estados e municípios.
A realização dos testes em massa, para identificação dos que contaminam sem se saberem doentes, é tida pelos cientistas como meio determinante para a contenção do número de vítimas e do descontrole de focos. Impedimentos anormais a esse procedimento têm autores que devem ser identificados em inquéritos e submetidos a processo.
Jogaram com vidas e mortes de pais, mães, filhos, com o futuro de famílias em número de precisão impossível, mas pressentido pelo senso comum.
Aqui, a impunidade está assegurada. E protegida pelo esquecimento fácil e rápido. Não à toa, o general-ministro Eduardo Pazuello diz que, se sair do Ministério da Saúde, estará feliz.
Nós também.
É a mesma certeza de impunidade que permite aos Bolsonaro, mais do que desconsiderar os interesses do país, agir contra eles. O ataque do deputado Eduardo Bolsonaro e do Itamaraty à China é um caso típico. Por trás desse e de outros ataques recentes, está o negócio imenso que é a adoção do novo e fantástico sistema de comunicação, chamado 5G.
Os Bolsonaro agem em favor do sistema americano, atrasado na tecnologia e no tempo em comparação com o chinês.
O interesse real do Brasil só pode ser o de possuir o melhor sistema, sendo essa inovação tecnológica vista como capaz de mudar a hierarquia atual dos países, a depender do sistema em uso e da capacidade de explorar seus recursos.
Escolhê-lo com segurança exige estudos rigorosos e uma concorrência perfeita na soberania brasileira, na seriedade e na transparência. Bolsonaro, porém, já avisou: “Quem vai escolher sou eu. Sem palpite aí”. Afinal de contas, ou a iniciá-las, esse negócio não é uma usual rachadinha, é um rachadão.
A derrota de Trump lançou reflexos sombrios no assunto. A menos que haja como apressar alguma providência jurídica que amarre ou, no mínimo, encaminhe a decisão para o sistema americano, cria-se um problema para os propósitos de Bolsonaro. Fazer negócio com os Estados Unidos de Biden não será o mesmo que concretizá-lo com o país de Trump. Daí ser fácil deduzir que Eduardo Bolsonaro não fez aos chineses um ataque extemporâneo, que lhe deu na telha quebrada. Ao acusar a China de fazer do seu sistema um dispositivo de espionagem, precipitou sobre o 5G chinês um conceito corrosivo. E aproximou a escolha.
Manobra essa que agride o interesse do Brasil em preservar relações estáveis com a China, maior parceiro comercial e destino de um terço das exportações brasileiras, com tendência a aumento.
Para retaliar aos ataques constantes, à China bastaria cortar uma parte, uns 10% ou 15%, das importações. Criaria terremotos econômicos por aqui. E os produtores americanos estariam prontos, como estão ansiosos, para aumentar seu fornecimento dos mesmos produtos à China.
Eduardo Bolsonaro deveria ser submetido, no mínimo, a afastamento da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e a processo disciplinar. Fica impune.
Como os que, no atual governo, agem contra os interesses do Brasil e as necessidades dos brasileiros.
Pense em qualquer dos autores e envolvidos nas monstruosidades do governo Bolsonaro, incluídas as do próprio, e tente encontrar, entre eles, um que tenha sofrido as consequências devidas.
É o governo das impunidades.
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Os Bolsonaros
É uma família estranha essa que ocupa o Planalto Central. Tiveram a sorte de receber o governo do Brasil, ocuparam todos os espaços disponíveis, mas abriram mão do dever de governar o país. Não sei se é por preguiça – governar um país deve ser uma trabalheira de louco - ou se é apenas porque ao pegar o leme perceberam que este é um gigante adormecido que lhes é mais útil quietinho em seu canto.
Como o pai é capitão do Exército, acharam que seria uma muito boa ideia distribuir generais, almirantes e brigadeiros pelos espaços da Esplanada dos Ministérios, o que, evidentemente, daria ao capitão o Comando Total da instituição que o expulsou um dia. Seria a segunda vitória, essa sem facada alguma. Só com saliva...
Por exemplo, recentemente o pai garantiu que nunca se referiu ao Covid-19 como “gripezinha”. Esqueceu-se dos diversos registros dele falando em alto e bom som da gripezinha que ele, que não é maricas, venceria num sopro. Como sabemos venceu, já que teve fôlego para correr atrás das emas, aquelas espertas que recusaram a inútil cloroquina.
São, na realidade, seres cujo DNA deveria se examinado pela ciência. Há de ter ali algum elemento que, substituído, seria de grande auxílio para a família.
Fazem questão de escolher entre os piores o pior de todos para ocupar as pastas essenciais, como a das Relações Exteriores. A impressão que dá é que não conheciam ninguém que algum dia merecesse figurar em nossos livros de história no quesito “grandes figuras”, então foram de Ernesto mesmo. Rapaz simples, simpático, que não se importa de repassar seu título para um dos Bolsonaros, aquele que parece ansioso para romper relações com a China. Sabe como é, para que gastar tutano em manter um diálogo aberto com o antigo Império do Centro?
Inteligentes que são, preferem dar mais valor a este Império do Sul que dominam. Não sei no que isso vai dar, mas tenho a impressão que boa coisa não será. Isso tudo saberemos a partir de 2021. É só aguardar.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa
Como o pai é capitão do Exército, acharam que seria uma muito boa ideia distribuir generais, almirantes e brigadeiros pelos espaços da Esplanada dos Ministérios, o que, evidentemente, daria ao capitão o Comando Total da instituição que o expulsou um dia. Seria a segunda vitória, essa sem facada alguma. Só com saliva...
Mentir é sua segunda natureza. Fazem questão de esconder a verdade. Vai ver acham muito divertido ver a cara de espanto de quem ouve suas mentiras. Parece que não conhecem o velho ditado americano: “Não estou aborrecido porque você mentiu para mim. Estou aborrecido porque de agora em diante não posso mais acreditar em você”. Ou se é que conhecem, pouco se importam de não serem acreditados.
Por exemplo, recentemente o pai garantiu que nunca se referiu ao Covid-19 como “gripezinha”. Esqueceu-se dos diversos registros dele falando em alto e bom som da gripezinha que ele, que não é maricas, venceria num sopro. Como sabemos venceu, já que teve fôlego para correr atrás das emas, aquelas espertas que recusaram a inútil cloroquina.
São, na realidade, seres cujo DNA deveria se examinado pela ciência. Há de ter ali algum elemento que, substituído, seria de grande auxílio para a família.
Fazem questão de escolher entre os piores o pior de todos para ocupar as pastas essenciais, como a das Relações Exteriores. A impressão que dá é que não conheciam ninguém que algum dia merecesse figurar em nossos livros de história no quesito “grandes figuras”, então foram de Ernesto mesmo. Rapaz simples, simpático, que não se importa de repassar seu título para um dos Bolsonaros, aquele que parece ansioso para romper relações com a China. Sabe como é, para que gastar tutano em manter um diálogo aberto com o antigo Império do Centro?
Inteligentes que são, preferem dar mais valor a este Império do Sul que dominam. Não sei no que isso vai dar, mas tenho a impressão que boa coisa não será. Isso tudo saberemos a partir de 2021. É só aguardar.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa
Mentes escontroladas
Eu não tenho controle sobre o imaginário das pessoas. Tem gente que acha que a Terra é plana, que o homem não foi à Lua, que acha que Trump venceu as eleições nos EUALuís Roberto Barroso. presidente do TSE
A tempestade passa
Coragem, o fim da tempestade está próximo. Tenho vontade de escrever isso, sem hesitações. Mas temo parecer muito otimista. No passado, velhos como eu muito otimistas me davam uma ligeira aflição.
Mas vamos aos fatos. Historicamente, costuma haver uma espécie de renascimento depois das grandes epidemias. A vacina está no horizonte. Podemos esperar alguma euforia e otimismo, caso seja eficaz e distribuída adequadamente.
O principal obstáculo é o governo negacionista, que minimiza a Covid-19 e duvida de vacinas. Tradicionalmente, o Brasil tem capacidade de produzir vacinas e realizar grandes campanhas de imunização.
O governo federal falhou nos testes, deixando 6,8 milhões deles esquecidos num galpão em São Paulo. O general Pazuello é considerado um especialista em logística. Fez um bom trabalho em Roraima, na Operação Acolhida, que recebeu os venezuelanos.
Ele vem sofrendo alguns desgastes. Contraiu Covid-19 e foi obrigado a se curvar diante de Bolsonaro. Não sei se o corpo mole é resultado da influência do próprio Bolsonaro, que, aliás, duvida de vacinas e acha melhor encontrar um remédio para o coronavírus.
Mas vamos aos fatos. Historicamente, costuma haver uma espécie de renascimento depois das grandes epidemias. A vacina está no horizonte. Podemos esperar alguma euforia e otimismo, caso seja eficaz e distribuída adequadamente.
O principal obstáculo é o governo negacionista, que minimiza a Covid-19 e duvida de vacinas. Tradicionalmente, o Brasil tem capacidade de produzir vacinas e realizar grandes campanhas de imunização.
O governo federal falhou nos testes, deixando 6,8 milhões deles esquecidos num galpão em São Paulo. O general Pazuello é considerado um especialista em logística. Fez um bom trabalho em Roraima, na Operação Acolhida, que recebeu os venezuelanos.
Ele vem sofrendo alguns desgastes. Contraiu Covid-19 e foi obrigado a se curvar diante de Bolsonaro. Não sei se o corpo mole é resultado da influência do próprio Bolsonaro, que, aliás, duvida de vacinas e acha melhor encontrar um remédio para o coronavírus.
Se conseguirmos ultrapassar a barreira mental de Bolsonaro e de seus subordinados, a vacina pode, sim, representar o fim da pandemia.
Com ela, é possível também pensar numa recuperação econômica, numa retomada das relações presenciais. Sem desprezar os ganhos da imersão no virtual, novas energias vão aflorar.
A política ambiental do Brasil é absurda; a política externa, um disparate inédito em nossa história. Num dia, Bolsonaro ameaça usar pólvora contra Biden; no outro, o filho Eduardo acusa os chineses de potencial espionagem na tecnologia .
Além das duas potências mundiais, restaram poucos alvos para o insulto bolsonarista. O próprio Bolsonaro fez referências criticas à Alemanha e à Noruega, comentários machistas sobre a primeira-dama francesa e previsões catastróficas sobre o governo argentino.
Os ultrarrealistas dirão: nada disso importa, se houver um pequeno crescimento econômico. A verdade é que o Brasil precisa de um crescimento econômico sustentado, e essa tarefa é mais complexa do que um simples voo de galinha.
Quando passar a tempestade sanitária, as pessoas que compreendem este governo como a grande pedra no caminho terão mais mobilidade. Talvez possam ir para as ruas, sem a preocupação de atrair grandes massas no princípio.
A imprensa brasileira acostumou-se a julgar manifestações de forma apenas quantitativa. É um equívoco. Dentro dessa lógica, se recebesse a notícia de que houve algo com os 18 do Forte, não mandaria ninguém a Copacabana. Ou mesmo com o grupo de intelectuais que protestou contra a ditadura diante do Hotel Glória: eram só oito resistentes diante de um poderoso governo militar.
A multiplicidade de protestos, a fermentação, tudo isso acaba conduzindo a movimentos mais amplos, desses que encantam os contadores de gente na rua e impressionam os políticos míopes.
Num texto anterior, afirmei que Bolsonaro estava derretendo. Baseava-me numa análise que está se confirmando nas pesquisas. Não sou otimista o bastante para supor que Bolsonaro vá se derrotar sozinho. Não basta se sentar na poltrona e acompanhar seus movimentos autodestrutivos.
Será preciso muito movimento, troca de ideias e, em caso de avanço, sensatez política para evitar que, no desespero, ele envolva as Forças Armadas numa trágica aventura.
Essa ideia não se relaciona diretamente com eleições. É possível votar em candidatos diferentes mas, simultaneamente, compreender o conceito de adversário principal.
A esta altura do processo, é possível afirmar que qualquer um representa um perigo menor para o Brasil. Os ultrarrealistas que me perdoem: Bolsonaro nunca mais. Nunca houve na história recente do Brasil uma sucessão de erros tão graves, embora o processo de redemocratização tenha sido marcado por alguns equívocos e escândalos de dimensão continental.
Uma das características de um governo voltado para a destruição ambiental é que pode levar alguns biomas a um ponto de não retorno.
Embora iniba política vitais, a roubalheira desvia o trabalho morto, simbolizado no dinheiro público desviado.
A cegueira ambiental atinge a vida diretamente: Bolsonaro extermina o futuro.
Com ela, é possível também pensar numa recuperação econômica, numa retomada das relações presenciais. Sem desprezar os ganhos da imersão no virtual, novas energias vão aflorar.
A política ambiental do Brasil é absurda; a política externa, um disparate inédito em nossa história. Num dia, Bolsonaro ameaça usar pólvora contra Biden; no outro, o filho Eduardo acusa os chineses de potencial espionagem na tecnologia .
Além das duas potências mundiais, restaram poucos alvos para o insulto bolsonarista. O próprio Bolsonaro fez referências criticas à Alemanha e à Noruega, comentários machistas sobre a primeira-dama francesa e previsões catastróficas sobre o governo argentino.
Os ultrarrealistas dirão: nada disso importa, se houver um pequeno crescimento econômico. A verdade é que o Brasil precisa de um crescimento econômico sustentado, e essa tarefa é mais complexa do que um simples voo de galinha.
Quando passar a tempestade sanitária, as pessoas que compreendem este governo como a grande pedra no caminho terão mais mobilidade. Talvez possam ir para as ruas, sem a preocupação de atrair grandes massas no princípio.
A imprensa brasileira acostumou-se a julgar manifestações de forma apenas quantitativa. É um equívoco. Dentro dessa lógica, se recebesse a notícia de que houve algo com os 18 do Forte, não mandaria ninguém a Copacabana. Ou mesmo com o grupo de intelectuais que protestou contra a ditadura diante do Hotel Glória: eram só oito resistentes diante de um poderoso governo militar.
A multiplicidade de protestos, a fermentação, tudo isso acaba conduzindo a movimentos mais amplos, desses que encantam os contadores de gente na rua e impressionam os políticos míopes.
Num texto anterior, afirmei que Bolsonaro estava derretendo. Baseava-me numa análise que está se confirmando nas pesquisas. Não sou otimista o bastante para supor que Bolsonaro vá se derrotar sozinho. Não basta se sentar na poltrona e acompanhar seus movimentos autodestrutivos.
Será preciso muito movimento, troca de ideias e, em caso de avanço, sensatez política para evitar que, no desespero, ele envolva as Forças Armadas numa trágica aventura.
Essa ideia não se relaciona diretamente com eleições. É possível votar em candidatos diferentes mas, simultaneamente, compreender o conceito de adversário principal.
A esta altura do processo, é possível afirmar que qualquer um representa um perigo menor para o Brasil. Os ultrarrealistas que me perdoem: Bolsonaro nunca mais. Nunca houve na história recente do Brasil uma sucessão de erros tão graves, embora o processo de redemocratização tenha sido marcado por alguns equívocos e escândalos de dimensão continental.
Uma das características de um governo voltado para a destruição ambiental é que pode levar alguns biomas a um ponto de não retorno.
Embora iniba política vitais, a roubalheira desvia o trabalho morto, simbolizado no dinheiro público desviado.
A cegueira ambiental atinge a vida diretamente: Bolsonaro extermina o futuro.
Com o fim da eleição, Brasília volta ao (a)normal
Concluído o segundo turno da disputa pelas prefeituras, o governo de Jair Bolsonaro e o Congresso Nacional serão pressionados a religar as fornalhas de Brasília. Executivo e Legislativo fogem da realidade. Mas presidente, ministros e parlamentares sabem que a realidade é o único lugar onde se pode enfrentar problemas como o desequilíbrio das contas nacionais e o desemprego que mantém no olho da rua 14,1 milhões de brasileiros.
Com as crises sanitária e econômica a pino, a disputa eleitoral servia de pretexto para retardar a votação de reformas tão prioritárias quanto a administrativa e a tributária. Está na gaveta também a proposta que autoriza a suspensão de concursos, redução de jornada e de salários de servidores para evitar o estouro do teto. Às portas do Ano Novo, nem mesmo a comissão que deveria analisar o Orçamento da União para 2021 foi instalada.
É improvável que reformas tidas como prioritárias sejam aprovadas ainda em 2020. Não é negligenciável a hipótese de o país virar o ano sem orçamento. Mas os atores de Brasília terão de arranjar desculpas novas. A campanha eleitoral não serve mais de muleta. Aliás, já não servia antes. A tese segundo a qual congressistas precisam dar atenção às suas bases eleitorais já havia perdido o prazo de validade.
A pandemia introduziu na rotina do Legislativo as sessões por videoconferência. Senadores e deputados não precisariam nem se deslocar até Brasília para deliberar. Não utilizaram as ferramentas tecnológicas por absoluto desinteresse. O Planalto poderia ter tentado mobilizar sua tropa legislativa para obter votações pontuais. Mas Jair Bolsonaro vinculou-se durante o período eleitoral a uma agenda desconexa.
O presidente desperdiçou nacos do seu tempo nas últimas semanas com coisas tão exóticas como a celebração do que imaginava ser o fiasco da vacina CoronaVac —"Mais uma que o Jair Bolsonaro ganha!"—; o convite aos brasileiros para que enfrentem o vírus de peito aberto —"Tem que deixar de ser um país de maricas"—; e a ameaça de pegar em armas para deter uma hipotética invasão de Joe Biden à Amazônia —"Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora".
Joga-se em Brasília um jogo de empurra que não orna com a gravidade do momento. Bolsonaro se finge de morto, abstendo-se de articular privatizações e reformas. O ministro Paulo Guedes (Economia) se diz "frustrado" por não ter vendido nenhuma estatal e transfere para o Congresso a responsabilidade por tirar as reformas do papel. "Quem dá o timing é a política", diz Guedes, esquivando-se de incluir na equação a inércia do Planalto..
Enquanto o Executivo lava as mãos, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, entoa metáforas apocalípticas. Declarou dias atrás que o Brasil caminha para o abismo se não regulamentar os gatilhos que disparam cortes de despesas antes do rompimento do teto de gastos. Manifestou sua preocupação com o aparente isolamento de Paulo Guedes no governo.
Há duas semanas, na virada do primeiro para o segundo turno das eleições municipais, Maia disse ter pressa para retomar as votações na Câmara. Vaticinou que o Brasil deve enfrentar uma turbulência porque há muita "dúvida sobre qual é a posição do governo" em relação à agenda de reformas. "O governo não é só a equipe econômica", declarou Maia. "Não sabemos qual vai ser a posição do governo em questões muito difíceis e polêmicas.".
Embora não mencione o nome de Bolsonaro, Maia como que joga a batata quente no colo do presidente, atribuindo-lhe a responsabilidade por arregimentar a tropa no centrão no Legislativo. O Planalto mantém com as legendas do centrão um relacionamento improdutivo. Cedeu cargos e verbas orçamentárias. Entretanto, afora a blindagem política oferecida ao presidente, a rendição ao fisiologismo ainda não produziu vitórias legislativas para o governo.
O país assiste a uma encenação sem mocinhos. O comando do Congresso e os mandachuvas dos partidos concordaram em empurrar a agenda legislativa com a barriga até depois da eleição. Paulo Guedes se queixa do Legislativo, mas esquece que seu chefe não arregaça as mangas.
Diante da deterioração dos indicadores econômicos, Bolsonaro lança mão de um álibi que começou a construir em março, quando se eximiu de assumir a coordenação nacional da pandemia. Na última segunda-feira, ele declarou: "O pessoal tem reclamado do preço dos alimentos. Tem subido, sim, para além do normal, a gente lamenta isso daí. Também é uma consequência do 'fica em casa'. Quase quebraram a economia."
Bolsonaro revela-se capaz de quase tudo, só não consegue enxergar no espelho a imagem de um corresponsável pela administração da crise. Pior: o presidente emite sinais de que pode ajudar a agravar o problema. Teme-se que ele mande às favas o teto de gastos para engordar o Bolsa Família ou colocar em pé um programa de renda mínima para substituir o auxílio emergencial da pandemia, que acaba em 31 de dezembro.
Sabe-se que não há nos cofres do Tesouro dinheiro para aventuras populistas. Mas o desejo de Bolsonaro é compartilhado pelo centrão. O que faz com que, terminado o processo eleitoral, Brasília volte à (a)normalidade. Uma anormalidade que inclui a circulação de ideias como estender o Orçamento de Guerra da pandemia até 2021, renovar o auxílio emergencial ou lançar um novo programa social capaz de ladrilhar o caminho para as urnas de 2022. Tudo isso sem responder a uma indagação singela: de onde virá o dinheiro?
Com as crises sanitária e econômica a pino, a disputa eleitoral servia de pretexto para retardar a votação de reformas tão prioritárias quanto a administrativa e a tributária. Está na gaveta também a proposta que autoriza a suspensão de concursos, redução de jornada e de salários de servidores para evitar o estouro do teto. Às portas do Ano Novo, nem mesmo a comissão que deveria analisar o Orçamento da União para 2021 foi instalada.
É improvável que reformas tidas como prioritárias sejam aprovadas ainda em 2020. Não é negligenciável a hipótese de o país virar o ano sem orçamento. Mas os atores de Brasília terão de arranjar desculpas novas. A campanha eleitoral não serve mais de muleta. Aliás, já não servia antes. A tese segundo a qual congressistas precisam dar atenção às suas bases eleitorais já havia perdido o prazo de validade.
A pandemia introduziu na rotina do Legislativo as sessões por videoconferência. Senadores e deputados não precisariam nem se deslocar até Brasília para deliberar. Não utilizaram as ferramentas tecnológicas por absoluto desinteresse. O Planalto poderia ter tentado mobilizar sua tropa legislativa para obter votações pontuais. Mas Jair Bolsonaro vinculou-se durante o período eleitoral a uma agenda desconexa.
O presidente desperdiçou nacos do seu tempo nas últimas semanas com coisas tão exóticas como a celebração do que imaginava ser o fiasco da vacina CoronaVac —"Mais uma que o Jair Bolsonaro ganha!"—; o convite aos brasileiros para que enfrentem o vírus de peito aberto —"Tem que deixar de ser um país de maricas"—; e a ameaça de pegar em armas para deter uma hipotética invasão de Joe Biden à Amazônia —"Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora".
Joga-se em Brasília um jogo de empurra que não orna com a gravidade do momento. Bolsonaro se finge de morto, abstendo-se de articular privatizações e reformas. O ministro Paulo Guedes (Economia) se diz "frustrado" por não ter vendido nenhuma estatal e transfere para o Congresso a responsabilidade por tirar as reformas do papel. "Quem dá o timing é a política", diz Guedes, esquivando-se de incluir na equação a inércia do Planalto..
Enquanto o Executivo lava as mãos, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, entoa metáforas apocalípticas. Declarou dias atrás que o Brasil caminha para o abismo se não regulamentar os gatilhos que disparam cortes de despesas antes do rompimento do teto de gastos. Manifestou sua preocupação com o aparente isolamento de Paulo Guedes no governo.
Há duas semanas, na virada do primeiro para o segundo turno das eleições municipais, Maia disse ter pressa para retomar as votações na Câmara. Vaticinou que o Brasil deve enfrentar uma turbulência porque há muita "dúvida sobre qual é a posição do governo" em relação à agenda de reformas. "O governo não é só a equipe econômica", declarou Maia. "Não sabemos qual vai ser a posição do governo em questões muito difíceis e polêmicas.".
Embora não mencione o nome de Bolsonaro, Maia como que joga a batata quente no colo do presidente, atribuindo-lhe a responsabilidade por arregimentar a tropa no centrão no Legislativo. O Planalto mantém com as legendas do centrão um relacionamento improdutivo. Cedeu cargos e verbas orçamentárias. Entretanto, afora a blindagem política oferecida ao presidente, a rendição ao fisiologismo ainda não produziu vitórias legislativas para o governo.
O país assiste a uma encenação sem mocinhos. O comando do Congresso e os mandachuvas dos partidos concordaram em empurrar a agenda legislativa com a barriga até depois da eleição. Paulo Guedes se queixa do Legislativo, mas esquece que seu chefe não arregaça as mangas.
Diante da deterioração dos indicadores econômicos, Bolsonaro lança mão de um álibi que começou a construir em março, quando se eximiu de assumir a coordenação nacional da pandemia. Na última segunda-feira, ele declarou: "O pessoal tem reclamado do preço dos alimentos. Tem subido, sim, para além do normal, a gente lamenta isso daí. Também é uma consequência do 'fica em casa'. Quase quebraram a economia."
Bolsonaro revela-se capaz de quase tudo, só não consegue enxergar no espelho a imagem de um corresponsável pela administração da crise. Pior: o presidente emite sinais de que pode ajudar a agravar o problema. Teme-se que ele mande às favas o teto de gastos para engordar o Bolsa Família ou colocar em pé um programa de renda mínima para substituir o auxílio emergencial da pandemia, que acaba em 31 de dezembro.
Sabe-se que não há nos cofres do Tesouro dinheiro para aventuras populistas. Mas o desejo de Bolsonaro é compartilhado pelo centrão. O que faz com que, terminado o processo eleitoral, Brasília volte à (a)normalidade. Uma anormalidade que inclui a circulação de ideias como estender o Orçamento de Guerra da pandemia até 2021, renovar o auxílio emergencial ou lançar um novo programa social capaz de ladrilhar o caminho para as urnas de 2022. Tudo isso sem responder a uma indagação singela: de onde virá o dinheiro?
A democracia vai autodestruir-se em 3, 2…
Bernard Bouton |
Não é só Trump e o espetáculo decadente de um homem sem qualidades a recusar-se a aceitar a sua derrota. Não são só as mentiras e as manobras sórdidas, o egoísmo no seu expoente máximo no poder. Tudo isso acabará, felizmente, em breve. É o legado que Trump deixa, as caixas de Pandora que abriu, o indizível que pronunciou, as covas fundas que cavou, os exemplos que inspirou. Há 73 milhões de americanos que depositaram a sua confiança num ser humano desprezível, que se deixaram enlear em loucas teorias da conspiração, que são incapazes de distinguir factos de alucinações, e para quem os valores da igualdade, da justiça social, da compaixão, não importam nada. Há 70% de republicanos que não acreditam que estas eleições foram livres e justas. A semente está lançada. Onde houver um populista no mundo, as eleições a partir de agora nunca mais serão iguais. Acusações de fraude infundadas, desrespeito pelas instituições e pelo mais nobre ato de expressão da vontade popular serão constantes mesmo em democracias sólidas.
Trump não é a causa de todos os males do mundo, naturalmente. É apenas fruto podre de uma época e das suas condições, expressão máxima de uma tempestade perfeita de forças que confluem para aquela que é a maior ameaça para a ordem mundial e para o valor da liberdade desde a Segunda Guerra Mundial. A causa está na tecnologia que libertou novamente os piores fantasmas da natureza humana, que o Homem pensava ter enterrado com a civilidade e a democracia. Os homens são capazes do melhor, mas também do pior quando entregues a si próprios, aos seus medos e angústias, ao seu inato egoísmo. Sobretudo quando a vida não lhes corre bem, quando a crise agudiza, quando as soluções que lhes apresentam são gastas e pouco convincentes, quando a sua saúde e o seu conforto estão ameaçados. O Homem tanto quer, que se arrisca a tudo perder. Já vimos isto acontecer antes, e não foi bonito de se ver. Parece que estou a imaginar Thomas Hobbes, com o seu Leviatã debaixo do braço, a dizer “Eu bem avisei!” ao crente e bem-intencionado Jean-Jacques Rousseau. Acreditar na natureza intrinsecamente boa do ser humano é uma tarefa cada vez mais difícil quando mergulhamos no submundo de ódio e mentiras em que se transformaram as redes sociais. Quando percebemos que há tanta gente que prefere acreditar em qualquer coisa, menos na ciência, nos médicos e nos jornalistas. E quando olhamos para as forças políticas que crescem banhadas neste caldo de ressentimento, angústia e ignorância.
Se olharmos para a democracia como um grande ecossistema natural que se autorregula, podemos tentar acreditar que, depois de as pessoas provarem a água e não gostarem, o bem, a decência e a civilidade acabarão sempre por vencer. O problema é que os humanos são peritos a destruir ecossistemas antes considerados indestrutíveis, como se vê pelo que fizemos ao nosso planeta. Anne Applebaum explicou bem o fracasso da política e o apelo sedutor dos totalitarismos no livro O Crepúsculo da Democracia, em que, tomando os maus exemplos da História, do estalinismo à Alemanha nazi, analisa os movimentos populistas atuais pelo mundo, passando por Boris Johnson ao desmantelar do Estado de Direito na Polónia, na Hungria ou no Brasil. Não chegou a Portugal, mas teria bom material para se entreter. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como Morrem as Democracias, também mostraram como, no século XXI, elas não finam com uma revolução armada: morrem devagarinho, com pezinhos de lã, avanço aqui, cedência acoli, fechar de olhos acolá.
Estarei enganada, a ser pessimista? Nunca desejei tão ardentemente que sim. Não me saem da cabeça as palavras de Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, com quem falei há três semanas: “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.” Eu sei, tenho a certeza, de que lado vou estar. Sou bastante pragmática, mas estarei sempre do lado do humanismo, dos valores e dos princípios que tenho por inegociáveis e inalienáveis. Só é pena que cada vez mais gente, sobretudo gente com responsabilidades políticas, não saiba.
sábado, 28 de novembro de 2020
Uma sociedade à beira de alguma coisa
Não é só pelos fatos que, dia sim, outro também, causam asco e indignação, como o brutal assassinato do negro João Alberto em Porto Alegre, em 19/11. Há também as grosserias e asneiras dos principais mandatários do País, que insuflam o ódio, o racismo e a bestialidade entre os brasileiros. As mortes da pandemia doem, assustam e devoram parte das esperanças, que já não são muitas. Incluam-se, ainda, as polarizações artificiais, as ofensas e o clima inflamado das disputas eleitorais que se encerram amanhã.
Isso precisa ser conectado ao estado de desgoverno, que prolonga os estragos da pandemia e da crise econômica, misturando-os com apagões irresponsáveis, queimadas, isolamento internacional, declarações impatrióticas, alucinadas, do presidente da República, de seus filhos, ministros e assessores.
Tudo somado, o conjunto é deprimente.
Não se está conseguindo nem sequer assimilar o repúdio popular aos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno. Assimilar, aqui, significa criar condições para que se avance um pouco mais. Porque houve só uma batalha, a guerra ainda será travada, as forças autoritárias estão vivas, não se saíram mal nas eleições. Os partidos do Centrão, por exemplo, mostraram capilaridade. Foram os que mais avançaram, entre tantos fracassos. Eles formam um compósito heterogêneo, sibilino, em que cabe muita coisa e que deveria ser tratado com cuidado, separado em partes, sob pena de não ser compreendido e terminar empurrado apressadamente para o outro lado.
As eleições municipais revelaram dinâmicas e rostos novos, forças com vontade de mudar ou de impedir que as coisas piorem. Isso precisa ser articulado, para que amanhã não se assista a formas renovadas de fragmentação, excitadas pela dualidade esquerda versus direita, pelo protagonismo, hostis ao centro-esquerda, ao centro-direita, à ideia de tornar viável uma composição que dê um “basta!” aos horrores que se reproduzem dia após dia. Se o campo democrático não se integrar e não melhorar seu desempenho, o autoritarismo continuará a nos infernizar. Porque o autoritarismo não é sinônimo de Bolsonaro, vai além dele, nasce das condições concretas em que vivemos.
Isso precisa ser conectado ao estado de desgoverno, que prolonga os estragos da pandemia e da crise econômica, misturando-os com apagões irresponsáveis, queimadas, isolamento internacional, declarações impatrióticas, alucinadas, do presidente da República, de seus filhos, ministros e assessores.
Tudo somado, o conjunto é deprimente.
Não se está conseguindo nem sequer assimilar o repúdio popular aos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno. Assimilar, aqui, significa criar condições para que se avance um pouco mais. Porque houve só uma batalha, a guerra ainda será travada, as forças autoritárias estão vivas, não se saíram mal nas eleições. Os partidos do Centrão, por exemplo, mostraram capilaridade. Foram os que mais avançaram, entre tantos fracassos. Eles formam um compósito heterogêneo, sibilino, em que cabe muita coisa e que deveria ser tratado com cuidado, separado em partes, sob pena de não ser compreendido e terminar empurrado apressadamente para o outro lado.
As eleições municipais revelaram dinâmicas e rostos novos, forças com vontade de mudar ou de impedir que as coisas piorem. Isso precisa ser articulado, para que amanhã não se assista a formas renovadas de fragmentação, excitadas pela dualidade esquerda versus direita, pelo protagonismo, hostis ao centro-esquerda, ao centro-direita, à ideia de tornar viável uma composição que dê um “basta!” aos horrores que se reproduzem dia após dia. Se o campo democrático não se integrar e não melhorar seu desempenho, o autoritarismo continuará a nos infernizar. Porque o autoritarismo não é sinônimo de Bolsonaro, vai além dele, nasce das condições concretas em que vivemos.
Ainda não há no País maioria consistente para que avancem unilateralmente as correntes de esquerda, socialistas, social-desenvolvimentistas, o que seja. É ilusório achar que as lideranças desse universo (PT, PSB, PDT, Rede, PSOl, PCdoB) já tenham acumulado gordura suficiente para impor, no curto prazo (isto é, em 2022), um avanço eleitoral categórico. Precisam dos segmentos menos “progressistas”, mas que são democratas.
Muita água ainda correrá e fatos novos podem alterar o que se vê hoje. Justamente por isso não se deveria abrir mais feridas, estigmatizar adversários ou demarcar com fúria os territórios políticos.
A política não existe só para que se conquiste o poder. Seu sentido principal é criar vida comunitária – civitas –, corrigir injustiças, cuidar do que é público, pavimentar o futuro. Construir é sempre mais difícil que destruir. Brigar agora para saber quem foi mais responsável pela vitória de Bolsonaro em 2018, por exemplo, é uma falha de visão estratégica, é trocar a análise política pelo furor passional, o cérebro pelo coração. Sob o pretexto da legítima competição eleitoral, é insensato desgastar adversários que precisarão ser amigos amanhã, afastá-los, sangrá-los sem necessidade. Fazer isso significa transformar uma batalha em guerra final sem que os campos de forças estejam organizados.
A sociedade está sob pressão: da realidade social implacável, da vida dura, da violência, das discriminações, do racismo, da desigualdade, do desemprego, da pandemia, da corrupção. Está sem direção, correndo para todos os lados, armazenando raiva e frustração, pronta para dar um passo a mais.
Um passo a mais para onde?
Poderá despencar no abismo que aprofunda as desgraças acumuladas. No limite, uma “guerra civil” às cegas, menos silenciosa do que a que já temos instalada. Algo não desejável, mas nem por isso impossível.
Mas poderá também encontrar uma tradução política democrática, que aponte rumos, apazigue, solidarize, abra perspectivas coletivas ampliadas, generosas, que deem tempo ao tempo, mas façam o que precisa ser feito no curtíssimo prazo.
Ainda que os agentes políticos permaneçam paralisados e inoperantes, algo há de acontecer. Porque a vida é fluxo, avanços e retrocessos, ambiguidade e ambivalência, ordem e desordem, tensões e contradições. É ilusão achar que as coisas ficarão suspensas no ar, imóveis como um colibri, à espera do néctar que alguém fornecerá. É ilusão pensar que os cidadãos vão marchar, em ordem unida, para um destino estabelecido de antemão por algum chefe ou alguma doutrina.
Se há uma saída luminosa mais à frente, e quero crer que haja, ela precisa ser apontada com lucidez, empenho e equilíbrio, o que só os democratas sinceros poderão fazer. O momento é de diálogo e construção.
Muita água ainda correrá e fatos novos podem alterar o que se vê hoje. Justamente por isso não se deveria abrir mais feridas, estigmatizar adversários ou demarcar com fúria os territórios políticos.
A política não existe só para que se conquiste o poder. Seu sentido principal é criar vida comunitária – civitas –, corrigir injustiças, cuidar do que é público, pavimentar o futuro. Construir é sempre mais difícil que destruir. Brigar agora para saber quem foi mais responsável pela vitória de Bolsonaro em 2018, por exemplo, é uma falha de visão estratégica, é trocar a análise política pelo furor passional, o cérebro pelo coração. Sob o pretexto da legítima competição eleitoral, é insensato desgastar adversários que precisarão ser amigos amanhã, afastá-los, sangrá-los sem necessidade. Fazer isso significa transformar uma batalha em guerra final sem que os campos de forças estejam organizados.
A sociedade está sob pressão: da realidade social implacável, da vida dura, da violência, das discriminações, do racismo, da desigualdade, do desemprego, da pandemia, da corrupção. Está sem direção, correndo para todos os lados, armazenando raiva e frustração, pronta para dar um passo a mais.
Um passo a mais para onde?
Poderá despencar no abismo que aprofunda as desgraças acumuladas. No limite, uma “guerra civil” às cegas, menos silenciosa do que a que já temos instalada. Algo não desejável, mas nem por isso impossível.
Mas poderá também encontrar uma tradução política democrática, que aponte rumos, apazigue, solidarize, abra perspectivas coletivas ampliadas, generosas, que deem tempo ao tempo, mas façam o que precisa ser feito no curtíssimo prazo.
Ainda que os agentes políticos permaneçam paralisados e inoperantes, algo há de acontecer. Porque a vida é fluxo, avanços e retrocessos, ambiguidade e ambivalência, ordem e desordem, tensões e contradições. É ilusão achar que as coisas ficarão suspensas no ar, imóveis como um colibri, à espera do néctar que alguém fornecerá. É ilusão pensar que os cidadãos vão marchar, em ordem unida, para um destino estabelecido de antemão por algum chefe ou alguma doutrina.
Se há uma saída luminosa mais à frente, e quero crer que haja, ela precisa ser apontada com lucidez, empenho e equilíbrio, o que só os democratas sinceros poderão fazer. O momento é de diálogo e construção.
Está sendo criada uma frente ampla da sociedade contra os delírios kafkianos de Bolsonaro?
Os partidos políticos já falam abertamente em começar a criar uma frente ampla contra o bolsonarismo. Não será fácil porque cada partido irá querer seu candidato próprio em um baile de egos. Talvez o mais importante seja que está se organizando ao mesmo tempo essa frente plural por parte da sociedade que pede a saída de um presidente que a cada dia atenta contra as essências deste país. “Saia, já!”, é uma das frases mais escutadas sempre que Bolsonaro lança uma de suas barbaridades kafkianas, destrutivas e alimentadoras de ódio entre os brasileiros. A última foi a negação descarada de que no Brasil existe racismo. Como nos tempos da ditadura militar, Bolsonaro defende hoje que o racismo brasileiro é “importado” do exterior para prejudicar o país, algo típico de todos os ditadores de direita e esquerda.
O Brasil dos sonhos autoritários e negacionistas de Bolsonaro é capaz de negar que aqui existem o sol e as praias. Para ele não existe a pandemia apesar de que, com os Estados Unidos, o Brasil seja o país do mundo com mais números de mortos e infectados. Para ele não existe racismo, não existe fome, não existe destruição da Amazônia, não existe homofobia e o desprezo pela mulher, não houve ditadura militar. Seu negacionismo da realidade que está diante dos olhos de todos é patológico.
Em um discurso na primeira viagem aos Estados Unidos, o recém-eleito Jair Bolsonaro, cercado de extremistas de direita, anunciou que havia chegado para “desconstruir” o Brasil. E está sendo fiel a sua promessa. Dia a dia, frase a frase, discurso a discurso, o novo presidente vai quebrando os vidros dos edifícios des
O último exemplo foi seu desastroso discurso ao G20, a reunião dos países mais importantes do mundo economicamente. Enquanto o país chorava pela brutal execução do negro João Alberto Silvério de Freitas, de 40 anos, pelos seguranças brancos de um Carrefour, Bolsonaro, sem uma palavra de repúdio ao crime cometido à luz do dia diante dos clientes atônitos, negou que exista racismo no Brasil e que o problema é que existem “brasileiros bons e brasileiros maus”. Uma afirmação de um simplismo que espanta.
Fernando Gabeira, que não é nenhum extremista, acaba de afirmar que tem a sensação de que “Bolsonaro está se dissipando no ar”. É possível, mas o problema é que deixará o ar infestado com o vírus de sua insensatez política. O Brasil, de fato, está lutando com duas epidemias ao mesmo tempo, a do coronavírus e a tóxica de uma política que desfigura cada dia mais o rosto deste país.
É que o Brasil imaginário que Bolsonaro desenha quando fala está deixando incrédulos os outros países que já tiveram uma imagem melhor do Brasil. Bolsonaro e suas hostes mais extremistas estão tentando criar uma mistura do realismo mágico de Gabriel García Márquez, do teatro do absurdo e do mundo kafkiano do grande poeta austro-húngaro.
O Brasil dos sonhos autoritários e negacionistas de Bolsonaro é capaz de negar que aqui existem o sol e as praias. Para ele não existe a pandemia apesar de que, com os Estados Unidos, o Brasil seja o país do mundo com mais números de mortos e infectados. Para ele não existe racismo, não existe fome, não existe destruição da Amazônia, não existe homofobia e o desprezo pela mulher, não houve ditadura militar. Seu negacionismo da realidade que está diante dos olhos de todos é patológico.
É notório que no Brasil sempre existiu o realismo mágico até em sua faceta de corrupção. Que melhor exemplo do que o ilustre senador com quem a polícia semanas atrás encontrou dinheiro escondido entre as nádegas? Na política brasileira sempre houve exemplos do teatro do absurdo, mas nunca houve um presidente com uma política tão kafkiana. É uma política, de fato, que se funda no negativo. O kafkiano, que abunda na política de Bolsonaro, como bem explicou em um ensaio o médico, psiquiatra e psicanalista argentino, radicado na Espanha, Eduardo Braier, está estreitamente ligado “ao funesto”, a “elementos persecutórios”, à “angustiosa negatividade”, ao “desassossego e ao desespero”.
Além de tudo isso é preciso acrescentar a idiossincrasia do capitão Bolsonaro, um certo sarcasmo como quando zomba do racismo que assola milhões de pessoas, e faz brincadeira como a de que é daltônico e só consegue ver as cores verde e amarela da bandeira brasileira. E quando afirma que os negros dos quilombos “não servem nem para procriar”. E que este é um país de maricas e de covardes cheios de ódio.
A sociedade brasileira começa a se cansar das loucuras calculadas e negativistas de Bolsonaro e se sente cada vez mais envergonhada de que a nação esteja nas mãos de um presidente que, apesar dos freios colocados pelos generais de seu Governo, é como um cavalo descontrolado cujas limitações, como ensina a psicologia, o levam a superar-se dia após dia em seus julgamentos arrogantes e negativos sobre este país que começa a perder a paciência e a se sentir humilhado dentro e fora do país. “Aqui quem manda sou eu”, repete como um mantra dos complexados.
O despertar do melhor e mais saudável da sociedade sem diferença de cores políticas e religiosas é como uma revolução silenciosa, mas real. A única que será capaz de fazer frente nas urnas ao pesadelo que o país está vivendo.
O Brasil voltará a ter a fé perdida nos que deveriam velar para engrandecê-lo em vez de humilhá-lo, enquanto a parte sã da sociedade não renuncia aos valores da democracia e quer paz, segurança uma economia que não negue o pão a ninguém e que seja respeitada e valorizada pelo peso real que tem no mundo.
Já há quem comece, cansado de uma política que está desconstruindo o país, a pensar se será possível aguentar mais dois anos de descalabro político e social ao que o bolsonarismo está submetendo o país enquanto a educação está sendo atacada e humilhada, a cultura envergonhada e as relações internacionais prostituídas.
A solução e a responsabilidade também são das instituições democráticas do Estado que, em vez de flertar com Bolsonaro em conciliábulos noturnos, deveriam usar o poder que lhes é concedido pela Constituição para colocar um ponto final, conectadas com o melhor da sociedade democrática, a um poder que pisoteou todas as promessas de esperança de um Brasil mais limpo politicamente, o que o presidente havia prometido e depois traiu, na sacralidade das urnas.
Desculpas pelo atraso
No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
A competência à prova
Desde a criação do Dasp, em 1938, no Estado Novo, por Getúlio Vargas, no auge de seu período ditatorial, houve um grande esforço no Brasil para a criação e a manutenção de uma burocracia capaz de garantir a “racionalidade” e neutralizar a “irracionalidade” da política na administração federal. A ideia era formar um quadro de servidores civis capazes de operar uma máquina pública moderna, num país que iniciava a sua transição do agrarismo para a industrialização e que, consequentemente, ingressava num processo de urbanização acelerada.
Mesmo durante o regime militar, essa preocupação foi mantida, consolidando alguns centros de excelência que se formaram ao longo dos anos, como o Itamaraty, a Receita Federal, o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e alguns órgãos de pesquisas científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de empresas estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil. Sem desconsiderar outras áreas técnicas do governo, esses exemplos ilustram o raciocínio.
Mesmo durante o regime militar, essa preocupação foi mantida, consolidando alguns centros de excelência que se formaram ao longo dos anos, como o Itamaraty, a Receita Federal, o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e alguns órgãos de pesquisas científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de empresas estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil. Sem desconsiderar outras áreas técnicas do governo, esses exemplos ilustram o raciocínio.
Obviamente, as Forças Armadas fazem parte desse universo dos centros de excelência, sobretudo após o governo do general Ernesto Geisel, que acabou com a bagunça na hierarquia militar, implantando efetivamente regras que haviam sido concebidas já no governo do general Castelo Branco, o que possibilitou a efetiva profissionalização e renovação da carreira militar. Foi o desfecho de uma disputa com seu ministro do Exército, Sílvio Frota, exonerado do cargo por liderar a “linha dura” contrária à “abertura política” e tentar impor sua candidatura à Presidência, como o fizera o general Costa e Silva com Castelo Branco.
Esses setores radicais viriam, mais tarde, a praticar atentados terroristas contra civis, no governo do general João Batista Figueiredo, como foram os casos dos atentados contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou a secretária da instituição, Lida Monteiro da Silva, e o frustrado atentado do Rio Centro, cuja bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu, e feriu gravemente o capitão Wilson Luís Chaves Machado, lotados no DOI-Code do I Exército. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi afastado da tropa por indisciplina, suspeito de planejar atentados contra quartéis na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), em 1987.
Para profissionalizar as Forças Armadas e entregar o poder de volta aos civis, era fundamental a existência de uma burocracia concursada, capacitada e eficiente. Com a redemocratização, as regras do jogo foram estabelecidas pela Constituição de 1988: os militares voltaram para os quartéis, dedicando-se às suas atribuições constitucionais; os políticos voltaram a exercer o poder; e a burocracia de carreira ficou encarregada de zelar pela legitimidade dos meios por eles utilizados para alcançar seus fins. Quando o trem descarrilou no Executivo, o Congresso entrou em ação (impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff) e o Judiciário acionou os órgãos de controle do Estado (Mensalão e Lava-Jato).
De certa forma, a eleição do presidente Jair Bolsonaro fez parte desse processo de correção de rumos, pelo voto popular, mas não exatamente na direção em que está indo na Presidência. Político sem compromisso partidário nem quadros técnicos para ocupar o poder, recorreu aos militares para administrar o país, nomeando-os para postos-chave no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e em dezenas de órgãos federais e nas estatais. Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis. Despreparados para as novas funções que exercem, mesmo assim trocaram as rodas da administração federal com o carro em movimento; porém, não entendem de mecânica para resolver os problemas quando a engrenagem administrativa enguiça.
Também não estão livres das disfunções da burocracia: “incapacidade treinada”, a transposição mecânica de rotinas; “psicose ocupacional”, as preferências e antipatias pessoais; e “deformação profissional”, a obediência incondicional, em detrimento da ética da responsabilidade. Trocando em miúdos, a competência dos militares está sendo posta à prova num governo errático, como nos ministérios da Saúde, onde milhões de testes da covid-19 estocados estão em vias de serem jogados fora, por vencimento do prazo de validade; e de Minas e Energia, devido ao espantoso “apagão” no Amapá, que já vai para a terceira semana. São pastas comandadas, respectivamente, por um especialista em logística, o general de divisão Eduardo Pazuello, e o ex-diretor do audacioso e bem-sucedido programa nuclear da Marinha almirante de esquadra Bento Albuquerque.
Esses setores radicais viriam, mais tarde, a praticar atentados terroristas contra civis, no governo do general João Batista Figueiredo, como foram os casos dos atentados contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou a secretária da instituição, Lida Monteiro da Silva, e o frustrado atentado do Rio Centro, cuja bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu, e feriu gravemente o capitão Wilson Luís Chaves Machado, lotados no DOI-Code do I Exército. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi afastado da tropa por indisciplina, suspeito de planejar atentados contra quartéis na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), em 1987.
Para profissionalizar as Forças Armadas e entregar o poder de volta aos civis, era fundamental a existência de uma burocracia concursada, capacitada e eficiente. Com a redemocratização, as regras do jogo foram estabelecidas pela Constituição de 1988: os militares voltaram para os quartéis, dedicando-se às suas atribuições constitucionais; os políticos voltaram a exercer o poder; e a burocracia de carreira ficou encarregada de zelar pela legitimidade dos meios por eles utilizados para alcançar seus fins. Quando o trem descarrilou no Executivo, o Congresso entrou em ação (impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff) e o Judiciário acionou os órgãos de controle do Estado (Mensalão e Lava-Jato).
De certa forma, a eleição do presidente Jair Bolsonaro fez parte desse processo de correção de rumos, pelo voto popular, mas não exatamente na direção em que está indo na Presidência. Político sem compromisso partidário nem quadros técnicos para ocupar o poder, recorreu aos militares para administrar o país, nomeando-os para postos-chave no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e em dezenas de órgãos federais e nas estatais. Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis. Despreparados para as novas funções que exercem, mesmo assim trocaram as rodas da administração federal com o carro em movimento; porém, não entendem de mecânica para resolver os problemas quando a engrenagem administrativa enguiça.
Também não estão livres das disfunções da burocracia: “incapacidade treinada”, a transposição mecânica de rotinas; “psicose ocupacional”, as preferências e antipatias pessoais; e “deformação profissional”, a obediência incondicional, em detrimento da ética da responsabilidade. Trocando em miúdos, a competência dos militares está sendo posta à prova num governo errático, como nos ministérios da Saúde, onde milhões de testes da covid-19 estocados estão em vias de serem jogados fora, por vencimento do prazo de validade; e de Minas e Energia, devido ao espantoso “apagão” no Amapá, que já vai para a terceira semana. São pastas comandadas, respectivamente, por um especialista em logística, o general de divisão Eduardo Pazuello, e o ex-diretor do audacioso e bem-sucedido programa nuclear da Marinha almirante de esquadra Bento Albuquerque.
A cruel pandemia
Alfredo Martirena(Cuba) |
Ano, 2120. Local, Green Town (citado em outras obras suas). Os oráculos se reuniram num templo conhecido como Nova Delfos – por ter, no alto, uma sentença de Tales de Mileto, “A certeza é precursora da ruína”. E chegaram à conclusão de que jamais houve um vírus tão contagiante, e tão mortal, como aquele. Ainda mais forte que o disseminado, pelo planeta, nos anos de 2019/2020. Provavelmente, mutação do “covid” (sarscov2) com o “ebola” (corobola). Para se diferenciar da anterior, acordaram que seria chamada "Cruel Pandemia". Para preservar vidas, os oráculos decidiram que no segundo S, do minuto M, e na hora H, do dia D, todos deveriam permanecer em suas PODs (unidades habitacionais mínimas). Até quando alguma vacina fosse descoberta. Naquela Nova Democracia, que agora vigorava, todos os homens eram verdadeiramente iguais.
Ocorre que começaram a surgir problemas não previstos, pelos sábios. Antes de irem para suas moradias, os funcionários das companhias de água e energia tiveram a cautela de desligar as matrizes de força. E deixaram de funcionar elevadores, geladeiras, BI2 (Brain Internet Interface), que substituíram TVs e computadores. Até os "housebots" (robôs domésticos) pararam. No campo, a produção de grãos foi interrompida. Fecharam transportes, supermercados e deliverys. Alimentos começaram a apodrecer. E faltar. Água também. Como os policiais estavam se preservando, longe, PODs eram invadidas. E seus ocupantes, mortos. Famintos vagavam, sem destino, pelas ruas. Cadáveres se amontoavam, nas esquinas, sem ter quem os sepultasse. Quílon, mais velho dos oráculos, antes de morrer de sede, anotou em sua caderneta que o modelo adotado, para proteger os habitantes, era só um belo discurso. E que a Nova Democracia fracassou.
P.S. Claro que a história da Arca é falsa. Mas devemos refletir, com mais calma, sobre essa história. Porque a tese de mandar a classe média se trancar nos apartamentos só funciona se o Brasil real estiver nas ruas, se expondo e assumindo riscos, na luta para sobreviver.
José Paulo Cavalcanti Filho
José Paulo Cavalcanti Filho
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Gigante solitário
Ainda muito jovem, estagiário, lembro-me de uma tarefa jornalística no Itamaraty. Com a ajuda do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Juscelino acabara de lançar a Operação Pan-Americana. Era uma iniciativa regional, mas partia do Brasil e, de certa forma, expressava o otimismo dos anos 1950.
No mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam de celebrar importante acordo sob a liderança da China.
No meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente desarmados, como diria o poeta.
Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.
No mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam de celebrar importante acordo sob a liderança da China.
No meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente desarmados, como diria o poeta.
Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.
Essa escaramuça amazônica serviu de ensaio para os tropeços posteriores, troca de farpas sobre incêndios e desmatamento – todo um processo que poria em risco o acordo União Europeia-Mercosul. Alguns estadistas, como Angela Merkel, são pragmáticos e têm grande boa vontade com o acordo. Mas a sucessão de erros e o próprio processo destrutivo na Amazônia acabaram repercutindo nos Parlamentos nacionais. E o acordo “subiu no telhado” enquanto Bolsonaro mantiver essa política desafiadora e agressiva com a Europa.
Num encontro do Brics, ele ameaçou denunciar países europeus que importam madeira ilegal. Países não importam madeira, e sim empresas. Ele recuou, mas o tiro no pé já estava dado, até porque ficou bastante evidente que as medidas que afrouxaram as regras de exportação partiram do seu governo.
O próprio Biden fez um aceno durante a campanha prometendo mobilizar US$ 20 bilhões para a Amazônia. Foi contestado por Bolsonaro, ironizado por Salles. Bolsonaro ameaçou usar pólvora quando a saliva faltasse. Todos sabemos que não há pólvora para isso no Brasil, os gastos maiores da Defesa são para manter o pessoal, aposentados incluídos. Mesmo que houvesse mamonas como pólvora alternativa, a verdade é que a ameaça foi ignorada diplomaticamente por Obama quando instado a falar no assunto.
Da mesma maneira, os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, procuram navegar ao longo das provocações como se não existissem. Eles têm projetos de décadas, a julgar pelo que Kissinger descreve sobre a política chinesa. Devem considerar Bolsonaro apenas um rápido acidente na relação bilateral. Ainda assim, há temas que vão mobilizar.
No apagar das luzes, Bolsonaro assinou o documento Clean Network, que teoricamente deixa de fora os chinese na implantação da tecnologia 5G no Brasil. É o único tema que irrita os chineses, pela maneira como a família Bolsonaro o trata, classificando-os de espiões.
É uma decisão que representa custos e assusta alguns parceiros nacionais. Suponho que interesse também ao governo Biden. Mas Bolsonaro pensava em Trump quando assinou. E ainda nem reconheceu o presidente eleito americano.
Ninguém se assusta com isso porque, afinal, Bolsonaro nega a covid-19, a ciência, o racismo, a corrupção nos gabinetes familiares, os incêndios na floresta. Ele é um negacionista e de tanto negar acabará duvidando da sua própria existência. O problema é como se comportar nesse vácuo, que pode durar dois anos.
Os governadores da Amazônia uniram-se e podem representar uma alternativa de negociação não apenas com a Europa, mas com os EUA, que agora têm um representante específico para mudanças climáticas. Dificilmente deixará de pôr a Amazônia em sua agenda. Outras iniciativas são possíveis. Cidades como as capitais do Sudeste podem estabelecer também seus vínculos com o exterior, sobretudo num momento em que a articulação das metrópoles do planeta tem muito a contribuir para o combate ao aquecimento global.
É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro. Nele, por afinidades ideológicas, cabem apenas a Hungria e a Polônia. Muito distantes e até modestas para nossas pretensões internacionais. No momento em que se discute tanto o racismo estrutural no Brasil, uma revisão histórica em nossa relação com a África abriria novas e inexploradas possibilidades.
Nos anos 50 o otimismo nos abria para as Américas e para o mundo. Com o fim da pandemia e a chegada da vacina, creio que esse movimento será de novo irresistível e arrastará com ele os destroços do negacionismo, o rancor paranoico de quem só vê perigo no mundo.
Num encontro do Brics, ele ameaçou denunciar países europeus que importam madeira ilegal. Países não importam madeira, e sim empresas. Ele recuou, mas o tiro no pé já estava dado, até porque ficou bastante evidente que as medidas que afrouxaram as regras de exportação partiram do seu governo.
O próprio Biden fez um aceno durante a campanha prometendo mobilizar US$ 20 bilhões para a Amazônia. Foi contestado por Bolsonaro, ironizado por Salles. Bolsonaro ameaçou usar pólvora quando a saliva faltasse. Todos sabemos que não há pólvora para isso no Brasil, os gastos maiores da Defesa são para manter o pessoal, aposentados incluídos. Mesmo que houvesse mamonas como pólvora alternativa, a verdade é que a ameaça foi ignorada diplomaticamente por Obama quando instado a falar no assunto.
Da mesma maneira, os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, procuram navegar ao longo das provocações como se não existissem. Eles têm projetos de décadas, a julgar pelo que Kissinger descreve sobre a política chinesa. Devem considerar Bolsonaro apenas um rápido acidente na relação bilateral. Ainda assim, há temas que vão mobilizar.
No apagar das luzes, Bolsonaro assinou o documento Clean Network, que teoricamente deixa de fora os chinese na implantação da tecnologia 5G no Brasil. É o único tema que irrita os chineses, pela maneira como a família Bolsonaro o trata, classificando-os de espiões.
É uma decisão que representa custos e assusta alguns parceiros nacionais. Suponho que interesse também ao governo Biden. Mas Bolsonaro pensava em Trump quando assinou. E ainda nem reconheceu o presidente eleito americano.
Ninguém se assusta com isso porque, afinal, Bolsonaro nega a covid-19, a ciência, o racismo, a corrupção nos gabinetes familiares, os incêndios na floresta. Ele é um negacionista e de tanto negar acabará duvidando da sua própria existência. O problema é como se comportar nesse vácuo, que pode durar dois anos.
Os governadores da Amazônia uniram-se e podem representar uma alternativa de negociação não apenas com a Europa, mas com os EUA, que agora têm um representante específico para mudanças climáticas. Dificilmente deixará de pôr a Amazônia em sua agenda. Outras iniciativas são possíveis. Cidades como as capitais do Sudeste podem estabelecer também seus vínculos com o exterior, sobretudo num momento em que a articulação das metrópoles do planeta tem muito a contribuir para o combate ao aquecimento global.
É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro. Nele, por afinidades ideológicas, cabem apenas a Hungria e a Polônia. Muito distantes e até modestas para nossas pretensões internacionais. No momento em que se discute tanto o racismo estrutural no Brasil, uma revisão histórica em nossa relação com a África abriria novas e inexploradas possibilidades.
Nos anos 50 o otimismo nos abria para as Américas e para o mundo. Com o fim da pandemia e a chegada da vacina, creio que esse movimento será de novo irresistível e arrastará com ele os destroços do negacionismo, o rancor paranoico de quem só vê perigo no mundo.
Nação e Exército
Em 1948, a Escola de Estado Maior do Exército (denominação da época) convidou o sociólogo Gilberto Freyre para participar do seu tradicional e plural ciclo de palestras.
Nessas ocasiões, as personalidades se apresentam diante de uma plateia harmoniosamente crítica, como devem ser oficiais superiores matriculados no curso de mais alto nível acadêmico do Exército Brasileiro, com o propósito de clarificar suas visões sobre diversos temas.
Gilberto Freyre era uma estrela de primeira grandeza.
O desempenho do ilustre pernambucano permitiu que a palestra com o título “Nação e Exército” (republicada recentemente pela Biblioteca do Exército) fosse por muito tempo uma referência para análise da postura do Exército Brasileiro no relacionamento com a parcela civil da sociedade.
Diversos foram os caminhos trilhados pelo professor que mereceriam destaques nestas breves linhas, mas me permito abordar dois aspectos.
O primeiro, foi a afirmação do caráter unitário na formação dos integrantes do Exército de Caxias. Comentava ele: “sem pertencer a uma classe, a um grupo, a qualquer espécie de casta, o Exército pode ser, desde que constituído, uma súmula nacional, recebendo gente de todos os quadrantes, e servindo em todos os quadrantes, e levando a cada um as normas habituais de sua vida, de seu funcionamento, de seus padrões de instituição nacional coesa.”
Não asseveraria que hoje tenhamos uma estrutura desorganizada nas instituições, organizações públicas e privadas, ou quaisquer setores da vida nacional. Ao contrário, vejo-as fortalecidas e dinâmicas. São novos tempos.
Entretanto, parte da população mantém-se cativa daquela percepção e por vezes somos chamados, pela liderança política de momento, a atuar em inúmeras atividades que nem sempre se mostram adequadas ao preparo e emprego das Forças.
Na conferência, sobre o uso indiscriminado das Forças Armadas, criticava Freyre: “Tudo por comodidade. Tudo por uma renúncia a responsabilidades, a deveres, a obrigações morais, intelectuais, educativas, cívicas que está se acentuando alarmantemente no Brasil entre homens de governo, entre legisladores, entre pais, entre mestres, entre educadores, entre sacerdotes, entre diretores de jornais, de empresas industriais e comerciais e de escolas.”
Deter tamanha confiança da população, até mesmo após o governo militar, que foi e ainda é tão escrutinado por nossa sociedade, nos impõe (Forças Armadas) severas posturas morais e profissionais. Nos impõe sermos cada vez mais reconhecidos como Instituição de Estado e como tal apolítica.
Ao concluir, destaco que Gilberto Freyre instigou a plateia naquele momento, e sua mensagem ainda instiga em nossos dias, para a necessidade de maior harmonia entre civis e militares, sem preponderância de qualquer um desses, comprometimento e responsabilidade com as coisas públicas e, por fim, o sacrifício do pessoal ao nacional, ao social, ao comum.
É bem isso que queremos, ao menos os homens e mulheres de bem. “Tolerância entre contrários e equilíbrio de antagonismos.
Nessas ocasiões, as personalidades se apresentam diante de uma plateia harmoniosamente crítica, como devem ser oficiais superiores matriculados no curso de mais alto nível acadêmico do Exército Brasileiro, com o propósito de clarificar suas visões sobre diversos temas.
Gilberto Freyre era uma estrela de primeira grandeza.
O desempenho do ilustre pernambucano permitiu que a palestra com o título “Nação e Exército” (republicada recentemente pela Biblioteca do Exército) fosse por muito tempo uma referência para análise da postura do Exército Brasileiro no relacionamento com a parcela civil da sociedade.
Diversos foram os caminhos trilhados pelo professor que mereceriam destaques nestas breves linhas, mas me permito abordar dois aspectos.
O primeiro, foi a afirmação do caráter unitário na formação dos integrantes do Exército de Caxias. Comentava ele: “sem pertencer a uma classe, a um grupo, a qualquer espécie de casta, o Exército pode ser, desde que constituído, uma súmula nacional, recebendo gente de todos os quadrantes, e servindo em todos os quadrantes, e levando a cada um as normas habituais de sua vida, de seu funcionamento, de seus padrões de instituição nacional coesa.”
Freyre confirmava quão importante já se mostrava, para o bem da Nação, a constituição dos recursos humanos com um caráter abrangente do ponto de vista geográfico, cultural, econômico, social e por que não dizer racial.
Essa característica, nos mais de setenta anos desde a apresentação do autor de Casa Grande e Senzala, não foi modificada, embora a natural caminhada social que o País se promoveu exigiu acomodações para mais amalgamar o soldado
Essa característica, nos mais de setenta anos desde a apresentação do autor de Casa Grande e Senzala, não foi modificada, embora a natural caminhada social que o País se promoveu exigiu acomodações para mais amalgamar o soldado
O segundo aspecto, era a capacidade de organização das Forças Armadas em um Brasil onde tudo se mostrava desorganizado. Nesse contexto propugnava Freyre: “A responsabilidade das Forças Armadas é, no Brasil de hoje, imensa porque, no Brasil de hoje - repita-se - pouco é o que se acha organizado e muita é a desorganização.”
Não asseveraria que hoje tenhamos uma estrutura desorganizada nas instituições, organizações públicas e privadas, ou quaisquer setores da vida nacional. Ao contrário, vejo-as fortalecidas e dinâmicas. São novos tempos.
Entretanto, parte da população mantém-se cativa daquela percepção e por vezes somos chamados, pela liderança política de momento, a atuar em inúmeras atividades que nem sempre se mostram adequadas ao preparo e emprego das Forças.
Na conferência, sobre o uso indiscriminado das Forças Armadas, criticava Freyre: “Tudo por comodidade. Tudo por uma renúncia a responsabilidades, a deveres, a obrigações morais, intelectuais, educativas, cívicas que está se acentuando alarmantemente no Brasil entre homens de governo, entre legisladores, entre pais, entre mestres, entre educadores, entre sacerdotes, entre diretores de jornais, de empresas industriais e comerciais e de escolas.”
Deter tamanha confiança da população, até mesmo após o governo militar, que foi e ainda é tão escrutinado por nossa sociedade, nos impõe (Forças Armadas) severas posturas morais e profissionais. Nos impõe sermos cada vez mais reconhecidos como Instituição de Estado e como tal apolítica.
Ao concluir, destaco que Gilberto Freyre instigou a plateia naquele momento, e sua mensagem ainda instiga em nossos dias, para a necessidade de maior harmonia entre civis e militares, sem preponderância de qualquer um desses, comprometimento e responsabilidade com as coisas públicas e, por fim, o sacrifício do pessoal ao nacional, ao social, ao comum.
É bem isso que queremos, ao menos os homens e mulheres de bem. “Tolerância entre contrários e equilíbrio de antagonismos.
Americanização do Brasil
Quando falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.
A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.
Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.
É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.
Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.
Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.
Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com “O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.
Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.
Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos; menos, é claro, para quem se acha...
Como é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?
E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?
Lá, o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.
P.S.: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão — esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.
A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.
Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.
É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.
Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.
Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.
Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com “O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.
Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.
Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos; menos, é claro, para quem se acha...
Como é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?
E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?
Lá, o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.
P.S.: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão — esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.
Oportunistas acima de todos
Bolsonaro, os filhos, os amiguinhos, essa turma da internet, são um bando de oportunistas que pode acabar criando um sentimento antidireitaGeneral Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo
Jardim
Um inglês plantou um jardim dentro de um garrafão de vidro. Isso foi em 1960. A última rega que o jardim recebeu foi em 1972. De lá pra cá o ecossistema no interior do garrafão equilibrou-se e cresceu autossuficiente, necessitando somente de luz solar.
O feito do britânico demonstra mais uma vez que a natureza sempre encontra um jeito. De fato, quem precisa de muito somos nós. Para a natureza basta o sol e este lindo planeta, tal qual o temos compartilhado desde que inauguramos nosso caminhar ereto. Já a espécie humana se comporta como se um planeta apenas não fosse suficiente. Olha que somos de longe o melhor pouso deste sistema solar. Não é bairrismo, tiro onda porque para além de Marte, por enquanto, nem adianta sonhar.
Há quem nos defenda. Dizem que a humanidade também encontra um jeito, reparando por exemplo em soluções novas para lidar com a enorme quantidade de plástico que polui nossos oceanos. Mas junto da natureza somos mais jovens que bebês. Ela já ditava o ciclo da vida milhões de anos antes de esquecermos um pouco as caçadas e descobrirmos que dava para viver plantando e colhendo num cantinho que pudéssemos chamar de nosso.
Desconfio que foi nessa encruzilhada que começou a treta. Quando passamos a chamar de nosso um lugar que pertence também a bilhões de outras espécies iniciamos a dar prejú. Tem quem não considera absurdo extinguir uma espécie. Tem quem ache normal derrubar uma árvore centenária. A treta tá feia. Não vou entrar no campo minado da alimentação porque vou me enrolar, tenho minhas dificuldades, igual geral. Mas algum consenso creio que já poderíamos ter alcançado.
Adianta pensar em colonizar a Lua? Não sorri por lá nem uma plantinha, um jequitibá, não canta um uirapuru. Teremos que levar a floresta daqui. Por via da dúvidas, por gentileza, seu Latimer, cuide bem do garrafão.
Marco Antonio
O feito do britânico demonstra mais uma vez que a natureza sempre encontra um jeito. De fato, quem precisa de muito somos nós. Para a natureza basta o sol e este lindo planeta, tal qual o temos compartilhado desde que inauguramos nosso caminhar ereto. Já a espécie humana se comporta como se um planeta apenas não fosse suficiente. Olha que somos de longe o melhor pouso deste sistema solar. Não é bairrismo, tiro onda porque para além de Marte, por enquanto, nem adianta sonhar.
Há quem nos defenda. Dizem que a humanidade também encontra um jeito, reparando por exemplo em soluções novas para lidar com a enorme quantidade de plástico que polui nossos oceanos. Mas junto da natureza somos mais jovens que bebês. Ela já ditava o ciclo da vida milhões de anos antes de esquecermos um pouco as caçadas e descobrirmos que dava para viver plantando e colhendo num cantinho que pudéssemos chamar de nosso.
Desconfio que foi nessa encruzilhada que começou a treta. Quando passamos a chamar de nosso um lugar que pertence também a bilhões de outras espécies iniciamos a dar prejú. Tem quem não considera absurdo extinguir uma espécie. Tem quem ache normal derrubar uma árvore centenária. A treta tá feia. Não vou entrar no campo minado da alimentação porque vou me enrolar, tenho minhas dificuldades, igual geral. Mas algum consenso creio que já poderíamos ter alcançado.
Adianta pensar em colonizar a Lua? Não sorri por lá nem uma plantinha, um jequitibá, não canta um uirapuru. Teremos que levar a floresta daqui. Por via da dúvidas, por gentileza, seu Latimer, cuide bem do garrafão.
Marco Antonio
A competência à prova
Desde a criação do Dasp, em 1938, no Estado Novo, por Getúlio Vargas, no auge de seu período ditatorial, houve um grande esforço no Brasil para a criação e a manutenção de uma burocracia capaz de garantir a “racionalidade” e neutralizar a “irracionalidade” da política na administração federal. A ideia era formar um quadro de servidores civis capazes de operar uma máquina pública moderna, num país que iniciava a sua transição do agrarismo para a industrialização e que, consequentemente, ingressava num processo de urbanização acelerada.
Mesmo durante o regime militar, essa preocupação foi mantida, consolidando alguns centros de excelência que se formaram ao longo dos anos, como o Itamaraty, a Receita Federal, o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e alguns órgãos de pesquisas científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de empresas estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil. Sem desconsiderar outras áreas técnicas do governo, esses exemplos ilustram o raciocínio.
Obviamente, as Forças Armadas fazem parte desse universo dos centros de excelência, sobretudo após o governo do general Ernesto Geisel, que acabou com a bagunça na hierarquia militar, implantando efetivamente regras que haviam sido concebidas já no governo do general Castelo Branco, o que possibilitou a efetiva profissionalização e renovação da carreira militar. Foi o desfecho de uma disputa com seu ministro do Exército, Sílvio Frota, exonerado do cargo por liderar a “linha dura” contrária à “abertura política” e tentar impor sua candidatura à Presidência, como o fizera o general Costa e Silva com Castelo Branco.
Esses setores radicais viriam, mais tarde, a praticar atentados terroristas contra civis, no governo do general João Batista Figueiredo, como foram os casos dos atentados contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou a secretária da instituição, Lida Monteiro da Silva, e o frustrado atentado do Rio Centro, cuja bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu, e feriu gravemente o capitão Wilson Luís Chaves Machado, lotados no DOI-Code do I Exército. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi afastado da tropa por indisciplina, suspeito de planejar atentados contra quartéis na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), em 1987.
Para profissionalizar as Forças Armadas e entregar o poder de volta aos civis, era fundamental a existência de uma burocracia concursada, capacitada e eficiente. Com a redemocratização, as regras do jogo foram estabelecidas pela Constituição de 1988: os militares voltaram para os quartéis, dedicando-se às suas atribuições constitucionais; os políticos voltaram a exercer o poder; e a burocracia de carreira ficou encarregada de zelar pela legitimidade dos meios por eles utilizados para alcançar seus fins. Quando o trem descarrilou no Executivo, o Congresso entrou em ação (impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff) e o Judiciário acionou os órgãos de controle do Estado (Mensalão e Lava-Jato).
De certa forma, a eleição do presidente Jair Bolsonaro fez parte desse processo de correção de rumos, pelo voto popular, mas não exatamente na direção em que está indo na Presidência. Político sem compromisso partidário nem quadros técnicos para ocupar o poder, recorreu aos militares para administrar o país, nomeando-os para postos-chave no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e em dezenas de órgãos federais e nas estatais. Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis. Despreparados para as novas funções que exercem, mesmo assim trocaram as rodas da administração federal com o carro em movimento; porém, não entendem de mecânica para resolver os problemas quando a engrenagem administrativa enguiça.
Também não estão livres das disfunções da burocracia: “incapacidade treinada”, a transposição mecânica de rotinas; “psicose ocupacional”, as preferências e antipatias pessoais; e “deformação profissional”, a obediência incondicional, em detrimento da ética da responsabilidade. Trocando em miúdos, a competência dos militares está sendo posta à prova num governo errático, como nos ministérios da Saúde, onde milhões de testes da covid-19 estocados estão em vias de serem jogados fora, por vencimento do prazo de validade; e de Minas e Energia, devido ao espantoso “apagão” no Amapá, que já vai para a terceira semana. São pastas comandadas, respectivamente, por um especialista em logística, o general de divisão Eduardo Pazuello, e o ex-diretor do audacioso e bem-sucedido programa nuclear da Marinha almirante de esquadra Bento Albuquerque.
Mesmo durante o regime militar, essa preocupação foi mantida, consolidando alguns centros de excelência que se formaram ao longo dos anos, como o Itamaraty, a Receita Federal, o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e alguns órgãos de pesquisas científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de empresas estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil. Sem desconsiderar outras áreas técnicas do governo, esses exemplos ilustram o raciocínio.
Obviamente, as Forças Armadas fazem parte desse universo dos centros de excelência, sobretudo após o governo do general Ernesto Geisel, que acabou com a bagunça na hierarquia militar, implantando efetivamente regras que haviam sido concebidas já no governo do general Castelo Branco, o que possibilitou a efetiva profissionalização e renovação da carreira militar. Foi o desfecho de uma disputa com seu ministro do Exército, Sílvio Frota, exonerado do cargo por liderar a “linha dura” contrária à “abertura política” e tentar impor sua candidatura à Presidência, como o fizera o general Costa e Silva com Castelo Branco.
Esses setores radicais viriam, mais tarde, a praticar atentados terroristas contra civis, no governo do general João Batista Figueiredo, como foram os casos dos atentados contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou a secretária da instituição, Lida Monteiro da Silva, e o frustrado atentado do Rio Centro, cuja bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu, e feriu gravemente o capitão Wilson Luís Chaves Machado, lotados no DOI-Code do I Exército. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi afastado da tropa por indisciplina, suspeito de planejar atentados contra quartéis na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), em 1987.
Para profissionalizar as Forças Armadas e entregar o poder de volta aos civis, era fundamental a existência de uma burocracia concursada, capacitada e eficiente. Com a redemocratização, as regras do jogo foram estabelecidas pela Constituição de 1988: os militares voltaram para os quartéis, dedicando-se às suas atribuições constitucionais; os políticos voltaram a exercer o poder; e a burocracia de carreira ficou encarregada de zelar pela legitimidade dos meios por eles utilizados para alcançar seus fins. Quando o trem descarrilou no Executivo, o Congresso entrou em ação (impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff) e o Judiciário acionou os órgãos de controle do Estado (Mensalão e Lava-Jato).
De certa forma, a eleição do presidente Jair Bolsonaro fez parte desse processo de correção de rumos, pelo voto popular, mas não exatamente na direção em que está indo na Presidência. Político sem compromisso partidário nem quadros técnicos para ocupar o poder, recorreu aos militares para administrar o país, nomeando-os para postos-chave no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e em dezenas de órgãos federais e nas estatais. Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis. Despreparados para as novas funções que exercem, mesmo assim trocaram as rodas da administração federal com o carro em movimento; porém, não entendem de mecânica para resolver os problemas quando a engrenagem administrativa enguiça.
Também não estão livres das disfunções da burocracia: “incapacidade treinada”, a transposição mecânica de rotinas; “psicose ocupacional”, as preferências e antipatias pessoais; e “deformação profissional”, a obediência incondicional, em detrimento da ética da responsabilidade. Trocando em miúdos, a competência dos militares está sendo posta à prova num governo errático, como nos ministérios da Saúde, onde milhões de testes da covid-19 estocados estão em vias de serem jogados fora, por vencimento do prazo de validade; e de Minas e Energia, devido ao espantoso “apagão” no Amapá, que já vai para a terceira semana. São pastas comandadas, respectivamente, por um especialista em logística, o general de divisão Eduardo Pazuello, e o ex-diretor do audacioso e bem-sucedido programa nuclear da Marinha almirante de esquadra Bento Albuquerque.
No País das Maravilhas
No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.
Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.
Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.
Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.
Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.
No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País,
Também no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.
Na Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo, Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em frangalhos.
No mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.
Assim, aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.
Esse estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição, resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.
Na Shangri-lá exuberante de Bolsonaro, só “moleques” e “maricas” têm medo da pandemia de covid-19, pois afinal bastam algumas doses de cloroquina, o elixir bolsonarista, para derrotar o coronavírus. No começo, Bolsonaro qualificou a doença como “gripezinha”; agora, a ameaça de recrudescimento da pandemia é tratada pelo presidente como “conversinha”. De diminutivo em diminutivo, Bolsonaro – que trocou de ministro da Saúde até que encontrasse um que lhe fizesse todas as vontades, que faz campanha descarada contras as medidas de prevenção e que agora se empenha em desestimular a vacinação – esquiva-se da responsabilidade pela tragédia dos 170 mil mortos e de uma economia em frangalhos.
No mundo encantado de Bolsonaro, ao contrário, a economia do Brasil está sempre prestes a “decolar” e “voltou com muita força”, nas palavras de seu auxiliar Paulo Guedes. A esta altura, porém, quem lida com dinheiro e não gosta nem um pouco de perdê-lo tem demonstrado enorme dificuldade em acreditar nos prognósticos panglossianos do ministro da Economia e de seu chefe a respeito da recuperação do País e do encaminhamento de reformas e privatizações. Os terríveis números sobre inflação, escalada da dívida e desemprego deveriam bastar para desautorizar o otimismo não raro delirante do Palácio do Planalto.
Assim, aparentemente incapaz de encarar o mundo real em toda a sua aspereza, Bolsonaro nada tem a oferecer ao País para mitigar a crise que ele, ao contrário, ajuda a alimentar. Rejeitando todas as soluções que implicam algum grau de desgaste político e eleitoral, pois não pensa em outra coisa a não ser em sua sobrevivência no cargo e em sua reeleição, o presidente parece convencido de que, para resolver os problemas, basta fingir que eles não existem.
Esse estado de negação pode funcionar para os fanáticos que acreditam que Bolsonaro é o taumaturgo cujo toque haverá de curar a escrófula moral do País. Para todos os outros brasileiros, em especial os que não têm como compartilhar da ilusão bolsonarista porque estão concentrados demais em obter a próxima refeição, resta esperar que os demais Poderes, bem como as forças organizadas da sociedade, trabalhem o mais rápido possível para restabelecer a razão.
quinta-feira, 26 de novembro de 2020
Um ministro sem rumo
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem uma vaga ideia de onde está, ignora para onde vai e desconhece, portanto, como chegar lá. Na escuridão, será cobrado ao mesmo tempo para arrumar as contas públicas, ampliar o âmbito da recuperação econômica, aumentar os investimentos e, acima de tudo, cuidar da reeleição do presidente da República. Será complicado combinar os dois primeiros itens, mas pelo menos esse desafio fará sentido. A resposta será possível com um plano bem cuidado, crível e apresentado de forma competente ao mercado. Mas planejamento é algo estranho ao ministro e credibilidade é uma palavra muito longa para seu chefe. Atender a todas as cobranças será impossível. A mera tentativa será desastrosa, como tem sido até agora.
Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.
Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.
Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”
Nos próximos dois anos, prometeu o ministro, o governo vai jogar no ataque, depois de ter jogado na defesa na primeira metade do mandato. Haverá, segundo ele, reformas, privatizações, prosperidade e abertura comercial. As privatizações deveriam ter rendido R$ 1 trilhão em pouco tempo, segundo sua promessa anterior. Mas nada foi vendido, até agora, nem ele explicou por que a história será diferente a partir de agora, com o mesmo presidente e com tanta gente, no governo e em torno dele, interessada em usar as estatais para seus propósitos.
Sem surpresa, o ministro continua reciclando as promessas, jogando-as para a frente e nunca explicando como vai cumpri-las. Com a mesma firmeza, sempre sujeita a uma reconsideração, ele negou a manutenção do auxílio emergencial em 2021 – exceto se houver uma segunda onda de covid-19.
Mas a pandemia, segundo ele, está amainando no Brasil. Não há bom motivo, portanto, para preocupação diante das notícias de recrudescimento. “Parece que está havendo repiques. São ciclos, vamos observar. Fato é que a doença cedeu substancialmente. As pessoas saíram mais, se descuidaram um pouco. Mas tem características sazonais da doença, estamos entrando no verão, vamos observar um pouco.”
Ciclos, características sazonais, chegada do verão – tudo isso compõe um aranzel desconexo e distante dos fatos. A mudança da curva de contágio, o aumento de casos e a ocupação crescente de leitos de hospitais vêm sendo mostrados pelas estatísticas. A taxa de transmissão da covid passou de 1,10 em 16 de novembro para 1,30 no balanço divulgado na terça-feira passada.
Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.
Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.
Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.
O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.
Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2022?
Os números foram coletados e organizados pelo centro de controle de epidemias do Imperial College, de Londres. É a maior taxa desde a semana de 24 de maio, quando foi alcançado o nível de contaminação de 1,31. Nesse patamar, 100 pessoas passavam o vírus a 131. Pela última informação, o contágio é de 100 para 130. Não se pode, portanto, falar de epidemia controlada em nível nacional.
Com a fala sobre a pandemia e sobre a expectativa de atuação econômica, o ministro se mostrou, portanto, amplamente distante dos fatos, tanto quanto esteve, quase sempre, desde o ano passado. Em quase dois anos, só uma reforma, a da Previdência, foi aprovada, graças ao trabalho de parlamentares. Além disso, a discussão já havia avançado no governo do presidente Michel Temer.
Outros projetos importantes para a economia, como a chamada PEC Emergencial, continuam travados. Na mesma condição está a reforma administrativa, pouco mais ambiciosa que uma revisão de critérios do RH. Na área tributária o ministro, além de apresentar uma proposta modesta de fusão de duas contribuições, nada fez além de defender, até agora sem sucesso, a recriação da malfadada CPMF.
O ministro falou ainda sobre abertura comercial, mas sem explicar como se conseguirá, por exemplo, vencer a resistência, muito forte em alguns países da Europa, à confirmação do acordo entre União Europeia e Mercosul. Essa resistência tem sido alimentada pela política antiecológica do governo brasileiro, jamais criticada por Paulo Guedes.
Enfim, para jogar no ataque, o governo precisaria, em primeiro lugar, de um roteiro para 2021. Mas nem o Orçamento do próximo ano está definido. Ficará também para mais tarde, talvez para 2022?
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