sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Americanização do Brasil

Quando falei “americanização”, pensei imediatamente numa correspondente “brasilianização” dos Estados Unidos.

A expressão causou barulho quando, em 1995, Michael Lind publicou o livro “The Next American Nation” (“A próxima nação americana”). Nele, o professor aponta o brutal enriquecimento dos americanos ricos, ancorado em políticas do Partido Democrata.

Esses bilionários não formariam apenas uma “classe dominante”, mas uma “sobre-classe branca”: um segmento dotado de um poder jamais visto. Sua contrapartida seria uma “subclasse pobre-negra-asiática e marrom”. Nesse novo modo de dominação, o ideal não seria mais construir uma bíblica “cidade sobre uma montanha”, mas o egoísmo de possuir uma “mansão atrás de um muro”.

É nesse contexto que Lind alerta para uma “brazilianization” da sociedade americana: “uma anarquia feudal, altamente tecnológica, constituída por um privilegiado arquipélago de brancos em meio a um oceano de pobreza branca, negra e marrom”; uma riqueza sustentada por políticas erradas (porque seriam antiestatais), sobretudo no que diz respeito à imigração.

Eis, numa cápsula, o programa de um Trump que começou a construir o muro, focou nos brancos pobres e adotou o “primeiro a América”. Um programa político que o elegeu e hoje — graças à eleição como um rito de mudança, cujo resultado foi raramente posto em dúvida na América —vai tirá-lo (assim espero) da Casa Branca.

Mas, tanto lá quanto cá, persiste uma curiosa inversão. De fato, uns Estados Unidos “brasilianizados” seriam marcados por uma ruidosa desigualdade e por um desmesurado personalismo populista — uma americanização do nosso “Você sabe com quem está falando?”; ao passo que um Brasil americanizado seria o exato oposto: uma contenção dos impulsos personalistas, fonte e razão de populismos autoritários, ao lado de uma busca de programas públicos responsáveis e factíveis. No fundo, um inesperado e americano “Quem você pensa que é?” — num país em que toneladas de privilégio neutralizam todas as éticas — jamais foi seriamente dirimido.


Todo centralismo repete a realeza e se concretiza na figura de um chefe parecido com “O grande ditador” chapliniano. Um filme, aliás, cujo enredo se funda num engano de pessoa, infelizmente muito mais real do que pensa a nossa vã sociologia.

Não é, pois, difícil encontrar um presidente mandão ou, como diria um puxa-saco, um “presidente forte” — esse eufemismo para estilos absolutistas de exercer um poder que, em repúblicas que se prezam, é periodicamente contido pela eleição. O chocante no caso de Trump não é só o negacionismo ou o uso de argumentos conspiratórios fantasiosos. O que assombra é a tentativa de usar o “Você sabe com quem está falando?” num sistema fundado na igualdade de todos perante a lei.

Conforme revelei há décadas e reitero num novo livro — “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Editora Rocco —, esse brasilianismo é um relativizador agressivo de normas, costumes e leis que valem para todos; menos, é claro, para quem se acha...

Como é possível que tal personalismo —populista e hierarquizador, resíduo da escravidão que estigmatizou o trabalho como valor no Brasil —esteja ocorrendo num sistema obcecado em seguir normas, essa fonte de igualdade, conforme assinalou, em 1835-40, Alexis de Tocqueville?

E, ao inverso, como é possível que nestas eleições estejamos buscando o difícil equilíbrio entre regras e pessoas, programas realizáveis e utopias populistas, gastos públicos responsáveis e corrupção?

Lá, o personalismo é o hospede não convidado. Aqui, a intrusiva novidade é a luta pela eliminação das enormes desigualdades, responsáveis por mazelas como um entranhado racismo e uma tragicômica hipocrisia política. Minha esperança é que a “americanização” do Brasil seja tão bem-sucedida quanto a “brasilianização” dos Estados Unidos.

P.S.: Toda negação da realidade espanta porque é uma manifestação de poder e privilégio real ou imaginário de quem a realiza. Todas as sociedades humanas, como provam crenças e hinos nacionais, contêm sua dose de etnocentrismo. É deplorável que o vice-presidente não saiba que a diversidade de cor (que não pode ser mudada como as fardas, insígnias e roupas) provoque reações que vão — esse é o objeto da antropologia — da total desumanização e de um denso e inconsciente preconceito à segregação física e legal, como foi o caso americano e da África do Sul. Nosso “racismo estrutural” é o resíduo abjeto de um estilo senhorial e escravocrata de vida que, pela chibata, pelo contato pessoal e pelo pelourinho, transformava negros em mercadorias, máquinas e animais. Com a devida vênia, sou — por dever de ofício — obrigado a dizer que o general Mourão não está apenas errado. Está, histórica e culturalmente, míope.

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