quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Liberdade para se deixar exterminar

Em live na última quinta-feira, Jair Bolsonaro declarou que o índio "evoluído" deveria ter "mais liberdade sobre sua terra". Ao seu lado, o destruidor do Meio Ambiente, Ricardo Salles, dava seu aval à ignorância presidencial. Essa fala ecoou uma anterior, de janeiro, em que Bolsonaro disse: "Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Vamos fazer com que o índio se integre à sociedade e seja realmente dono da sua terra indígena, isso é o que a gente quer".

A gente quem, cara-pálida? Nenhum antropólogo digno de seu diploma concordará com uma só de suas palavras. A "evolução" que Bolsonaro atribui ao índio é a de expor-se de vez às mazelas da civilização, como doenças, alcoolismo e mendicância. A "liberdade" que visa conceder-lhe, ao torná-lo "dono da sua terra", é a de deixar-se tapear e exterminar pelos invasores, pecuaristas, madeireiros, garimpeiros, grileiros, jagunços e outras categorias de quem ele, Bolsonaro, é tão próximo.

Atribuir à ignorância a política mortal de Bolsonaro para o índio é quase um gesto de boa vontade. Supõe que ela se deva apenas ao seu bestial desconhecimento do assunto —um dia saberemos. Mas espanta que os generais que sustentam seu governo tenham esquecido os ensinamentos de um homem que, até há pouco, era um de seus modelos: o marechal Candido Rondon.

"Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir nem aproveitar essa gente", disse Rondon em 1912, pela voz de outro grande brasileiro, Edgard Roquette-Pinto. "Não devemos ter a preocupação de fazê-los cidadãos do Brasil. Índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados, dos indigentes e dos enfermos".

Para Bolsonaro, o índio é "cada vez mais" um ser humano "igual a ele". Se isso for verdade, que destino terrível.
Ruy Castro

Tunga na educação

Há um mês o Congresso Nacional aprovou por meio de um amplo consenso a PEC que tornou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica permanente e aumentou o aporte da união para 23%. À época o governo tentou destinar 5% dos novos recursos do fundo para o programa de transferência de renda que pretendia criar, então chamado de Renda Brasil. Havia uma esperteza na manobra arquitetada pela equipe econômica. Como o Fundeb está fora do teto dos gastos, o governo aumentaria suas despesas sem desrespeitar o dispositivo constitucional.

Ao perceber uma derrota acachapante, o governo jogou a toalha. Retirou sua proposta e o novo Fundeb foi aprovado de acordo com o parecer da relatora, deputada Dorinha. Uma vitória importantíssima, com impacto direto na educação. O aporte significativo de novos recursos permitirá, em cinco anos, um acréscimo de 50% nos gastos por aluno ao ano, mais do que países da OCDE investem por aluno ao ano.



Quem pensou que o governo tinha desistido de desviar verbas da educação para outros fins se enganou. Ao redesenhar seu programa de transferência de renda, agora chamado Renda Cidadã, retomou seu plano de desviar 5% dos recursos do Fundeb para seu novo programa social.

É uma marotice dupla.

De um lado, dá uma pedalada para criar novas despesas furando, na prática, o teto de gastos. O expediente de burlar o teto também está no que seria outra fonte de financiamento do Renda Cidadã, verbas do precatório. De outro, cria uma cortina de fumaça para encobrir os danos à educação com a alegação de que os recursos desviados se destinarão a famílias carentes com filhos nas escolas.

Ora, desde os tempos da Comunidade Solidária da saudosa Ruth Cardoso essa é - ou deveria ser – uma condicionante e uma contrapartida de programas sociais como o Bolsa Família. Só assim eles deixariam de ser um mero programa assistencialista, perpetuador da miséria e da dependência do Estado, que faz de seus beneficiários prisioneiros do populismo e da demagogia política.

Transferência de renda e educação são programas distintos. Um é uma resposta emergencial, que, em tese, deveria ser transitória. O outro, é um investimento estruturante, não só para a promoção da equidade mas também para o país alcançar crescimento. Esse foi o caminho seguido pelos países que deram um salto de qualidade na educação e alcançaram o patamar de desenvolvidos.

Ao querer mexer nos recursos da Educação, Jair Bolsonaro descumpre sua promessa de não tirar do pobre para dar ao paupérrimo. A apropriação indébita do Fundeb não tem diferença de quando quis se apropriar do abono salarial ou de recursos dos aposentados. Ou os filhos dos mais miseráveis muitas vezes não têm como única alimentação diária a merenda escolar?

Caso logre sucesso, a medida impactará os municípios mais pobres, onde estudam os mais vulneráveis, e afetará, principalmente, as crianças das creches e das pré-escolas. Segundo o Todos pela Educação, os grandes prejudicados serão 2,7 mil municípios e 17 milhões de alunos.

Ademais, a medida fere flagrantemente a legislação. Como bem observou a deputada Dorinha, ficaram para trás os tempos em que na rubrica educação enfiava-se todo tipo de ação. Se uma rua era asfaltada a dois quilômetros de uma escola, se uma rede de esgoto era construída nas suas proximidades, os investimentos eram enquadrados como educação. Felizmente, a lei já não permite manobras desse tipo.

Uma grande pergunta é saber qual o papel do Ministério da Educação nessa história?

Provavelmente nenhum, assim como não teve papel algum na aprovação da PEC do Fundeb. Teoricamente, caberia ao ministro da Educação articular dentro e fora do governo para que a educação não fosse penalizada com a criação de um programa de transferência de renda. Infelizmente, tanto a pasta como seus titulares viraram peças ornamentais nesses dois anos de um governo que vê a educação apenas como palco de uma guerra cultural.

Não esperem do ministro Milton Ribeiro qualquer protagonismo em favor da Educação. Afinal, se a volta as aulas não é com ele, se a desigualdade social não é da sua conta, é mais do que óbvio que, como Pôncio Pilatos, lavará as mãos, e o Fundeb também não será com ele. Seu foco parece ser outro: violar o caráter laico do ensino por meio da imposição dos valores fundamentalistas de sua religião.
Hubert Alquéres

<p>Não está em questão a necessidade de um programa de renda voltado para os mais necessitados, sobretudo nesses tempos de pandemia. Mas financiá-lo tungando a educação é um crime contra as crianças e os jovens mais necessitados, condenando-os à dependência eterna do Estado, tal qual a vida sem horizonte da maioria de seus pais.</p>

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Bolsonaro prepara terreno para evitar desgaste com fim do auxílio

Jair Bolsonaro tentou chutar para o lado a bomba-relógio em que se transformou o auxílio emergencial da pandemia. Preocupado com o impacto que o fim do pagamento deve ter sobre sua popularidade na virada do ano, o presidente fez uma jogada que pode reduzir parte das pressões sobre o Planalto.

O governo havia conseguido a proeza de apresentar um pacote completo de ideias ruins para bancar o novo programa social que deveria atender a uma parte dos beneficiários do auxílio. Depois que todas foram torpedeadas por parlamentares e investidores, Bolsonaro desempenhou seu papel favorito: posou de vítima e encenou um desabafo.

“O tempo está correndo, está o tique-taque aí correndo, está chegando janeiro de 2021. Precisamos de alternativa para aproximadamente 20 milhões de pessoas que não vão ter o que comer a partir de janeiro do ano que vem”, disse, nesta terça.



O presidente começou a preparar o terreno para se desviar de desgastes políticos caso a proposta de turbinar o Bolsa Família não saia do papel. Ele reclamou de “críticas monstruosas” aos planos para financiar o novo Renda Cidadã e se queixou da falta de alternativas para o programa –como se houvesse algum outro governo operando na praça.

Na prática, Bolsonaro armou uma cilada para o Congresso. O governo prometeu planos para custear o programa. Depois, apresentou uma proposta fajuta, na forma de um calote disfarçado e de um extravio de verbas da educação. Agora, ele lança a imagem de um presidente que se preocupa com os mais pobres, mas sofre com a inação dos políticos.

É Bolsonaro, no entanto, quem se mostra um mestre na arte de tirar vantagem de sua própria inércia. O presidente abriu mão de discutir as regras o jogo e resolveu mandar recados diretos aos segmentos que ajudaram a impulsionar seus índices de aprovação durante a pandemia. Ele sabe que, entre os brasileiros que fazem a contagem regressiva para o fim do benefício, a origem do dinheiro é o menor dos problemas.

Sempre, Quino!


 

O espectador

Uma parábola: naquela noite, sem pandemia, João Carlos, o Bulha, saudoso amigo, acompanhou com o olhar a entrada acintosa de jovens penetras em sua festa de aniversário, no Lago Sul. Com a voz abafada pelo som, batizou-os, às gargalhadas. Os Dezoito do Forte. E abordou o último deles, com a piada pronta. “Isto aqui está uma droga, sabe quem é o dono da casa e onde fica a bebida?” “Não”, respondeu-lhe o invasor, “mas vou saber e te aviso”. E misturou-se, tranquilamente, aos convidados.

Um governo: Jair Bolsonaro é espectador do que se passa em seu governo. Assiste a um espetáculo de palco e picadeiro sem sinais de compromisso. Os ministros se movimentam. Ele aplaude ou critica, desqualifica ou aprova, fecha a cara para um, abre a cara para outro. Aproxima-se de quem julga capaz de modular, afasta-se de quem manifesta opinião própria.

Nada de homogeneidade. Nem de fundamentos teóricos. O governo é uma obra aberta, experimental. O presidente gosta ou não gosta. Para formar opinião, inspira-se nas redes, onde é manobrado por 50 minorias. Daí as incoerências.


Na cena de segunda-feira, viu-se uma performance clássica. A do fiasco técnico sobre como financiar um programa eleitoral de renda mínima com pedalada precatória. Bem como, no mesmo cenário, o adiamento da reforma tributária, que embutia, para ver se colava, aumento de imposto. A ameaça de calote ficou na conta do ministro da Economia; o ônus da reforma, transferido ao Congresso, a quem cabe agora, por decisão do espectador, assumir autoria das maldades fiscais. Bolsonaro, isento de tudo, celebra a popularidade crescente.

Os atores ideológicos continuam seu show. Cenas de quinta categoria. O presidente puxa aplausos aos novos e antigos canastrões. Abraham Weintraub pode exibir contracheques em dólar do Banco Mundial, de onde envia vulgaridades às redes, enquanto o irmão, Arthur, pode acenar aos invejosos com os dois cargos que ganhou da OEA em menos de um mês.

Ficaram para trás o MEC, o quarto ministro e o enredo que salta do drama à tragédia. Descompostura política e impostura administrativa.

Na Saúde, faz-se uma releitura surpreendente da realidade. Com todos os equívocos já produzidos na pandemia, o leigo critica os profissionais ao revelar que a recomendação “fique em casa” não era apelo ao isolamento social, como parecia óbvio. Firmou o absurdo, no discurso de posse, que se tratava de campanha dos seus antecessores para o doente não procurar tratamento. O que, só agora, ele e o novo protocolo aconselham. A todos, a sua dose de cloroquina. Tudo o que o presidente quer.

A Cultura abandonou a cortina nazista do holocausto e o conformismo com a ditadura militar para desembocar num acampamento de extraterrestres aduladores. O presidente, homenageado, não se avexa.

Na penúltima de suas expedições contra a natureza, em que condena à destruição restingas e manguezais, o ministro do Meio Ambiente seguiu seu conhecido destino: um passo em falso após o outro. E, nas Relações Exteriores, prossegue-se na predação da arte do Barão do Rio Branco. Com direito a afagos presidenciais.

O espetáculo não flui, também, fora do eixo ideológico. O conflito do INSS com os peritos expõe a degradante situação dos trabalhadores. Minas e Energia sumiu. Infraestrutura está sem meios. E até o agronegócio, produtivo e eficaz, sofre os efeitos da insanidade diplomática. Nem com a reforma da Previdência, conquista única, o presidente espectador se engajou.

O problema é que não se trata de faz de conta, mas de um país e seus 210 milhões de habitantes. Com efeitos especiais e clima de apoteose, Bolsonaro, indiferente aos resultados, pensa apenas na sua razão de governar o primeiro mandato: a reeleição, para ser espectador do segundo.

Bolsonaro precisa de inimigos

A medida que seu governo comete retrocessos, necessita de mais inimigos. Suas falas, práticas, políticas de Estado precisam de inimigos. Tudo que se refere ou vem dele se baseia na violência. E a violência se alimenta de inimigos. 

A tese sobre violência do discurso fascista e do governo fascista é do psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. "A violência se torna um método, uma forma de vida, precisa de inimigos, necessariamente vai proclamar novos inimigos a medida que o mundo avança". 

Feroz, Bolsonaro vai aos poucos desmontando o Estado, inutilizando avanços sociais e econômicos conquistados a duras penas por milhões de brasileiros. Retrocede. Anda para trás. Desmantelou a cultura, a educação, a ciência. E o que falar do meio ambiente em chamas?

E assim, em menos de três anos, voltamos a conviver com o maior flagelo de todos: a fome. 

Levantamento do respeitado Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), divulgado agora, em setembro, mostrou que a fome voltou como praga no Brasil. Em cinco anos, mais 3 milhões de brasileiros foram jogados nesse fosso. 

Hoje, aponta o IBGE, mais de 10 milhões de brasileiros não tem o que comer. Ainda mais indigno e revoltante: metade das crianças com até 4 anos de idade vive hoje em casas com algum tipo de insegurança alimentar 5,1% com insegurança grave, a fome.

Em 2014, a ONU retirou o Brasil do infame “mapa da fome”. A vergonha nacional começou a ser combatida no governo Lula, com os programas sociais Fome Zero e Bolsa Família. De 2017 até hoje, o quadro se agravou a ponto de atingir, em 2019, antes da pandemia, o menor patamar de pessoas com alimentação plena e regular. 

Deplorável, dolorosa, a fome é assunto velho. Em 1946, o médico e geógrafo pernambucano Josué de Castro lançou "Geografia da Fome", diagnóstico das causas e consequências da fome no Brasil. A obra de Josué escancarou o quadro dramático da desnutrição no País. 

Josué Apolônio de Castro ficou conhecido internacionalmente. Sua obra influenciou políticas de combate à miséria. No Brasil, seu livro foi proibido, e ele foi vergonhosamente perseguido pela ditadura. Morreu no exílio, em Paris, aos 65 anos. 

Mais de 70 anos depois, assistimos, sem a voz de Josué de Castro, o atraso tomar conta do país e trazer de volta um tema tão relevante quanto canalha. E o problema, senhores, não está no primeiro mandato de Bolsonaro. Christian Dunker aponta o segundo mandato como tragédia mais que anunciada.

Até que Bolsonaro declare o IBGE como inimigo, vamos encarando os números da dura realidade do País. Subordinado ao Ministério da Economia, o IBGE não
mente. Ainda. 

Censo demográfico


Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha
tinha, por exemplo, umas quinze mil almas...
Almas? Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas,
Loucas de fome!
Mario Quintana

A natureza contra-ataca

A notícia de que grupos de orcas estariam atacando iates e veleiros ao largo das costas de Portugal e de Espanha, aparentemente de forma coordenada, trouxe-me à memória o best-seller do escritor alemão Frank Schatzing, “O cardume”, publicado no Brasil pela Record, em 2006. O volumoso romance de Schatzing começa com um ataque de orcas e baleias contra navios de recreio. A seguir, tudo se complica, até se tornar evidente que alguma inteligência capaz de controlar os seres que habitam os oceanos decidiu declarar guerra contra a humanidade. “É a vingança da natureza!” — proclama durante o ataque das baleias um militante ecologista. 



Estou terminando de ler um outro romance premonitório: “Fever” (Febre), do romancista sul-africano Deon Meyer, publicado em 2016 e que, tanto quanto sei, não foi ainda traduzido para a nossa língua. No romance de Meyer, 95 por cento da humanidade morre infetada por uma nova estirpe de coronavírus. O enredo é narrado por um dos sobreviventes, um rapaz chamado Nico Storm, que segue o pai, Willem, através de um país em ruínas, em busca de um novo começo para a humanidade. 

Ambos os livros privilegiam a ação, e podem ser lidos como simples romances de aventura (o tipo de livros ótimo para ler no avião, durante viagens longas — quando ainda voávamos de avião). Ao mesmo tempo, ambos se esforçam por assegurar alguma ligação à realidade, o que fica explícito nas páginas de agradecimentos, com Schatzing e Meyer mencionando uma mão cheia de cientistas que os terão ajudado a preparar os respetivos livros. 

Meyer, aliás, tem confessado em entrevistas recentes que não foi ele a prever a atual pandemia de coronavírus — terão sido os cientistas sul-africanos com quem conversou que lhe deram essa ideia. 

Já no caso das orcas, erradamente chamadas de baleias assassinas, pois não são baleias, e sim parentes dos golfinhos, Schatzing pode ficar com todo o mérito pela previsão. Os ataques estão surpreendendo até os cientistas. Na história da marinharia são raríssimos os relatos de ataques a navios por baleias ou orcas, muito menos em grupo e de forma coordenada. Uma das vítimas dos ataques recentes, Victória Morris, declarou que as orcas comunicavam umas com as outras, aos assobios, enquanto atacavam a embarcação. Finalmente, conseguiram quebrar o leme, deixando o barco à deriva. Esperemos que a realidade não insista em imitar a ficção, pois o livro de Schatzing, embora menos catastrofista do que o de Meyer, é infinitamente mais bizarro. 

Após a pandemia de Covid-19, temos de enfrentar agora a ira (justíssima) das baleias. A realidade parece estar lendo muito e somando distopias. Não sei qual será o próximo romance a prever o futuro. Receio que o Brasil esteja a caminho do “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. “1984”, de Orwell, também já pareceu mais distante. Ou será talvez “O planeta dos macacos”, de Pierre Boulle, publicado em 1963, e que deu depois origem a uma infinidade de adaptações cinematográficas. 

Em qualquer caso, parece certo que para conhecer o futuro é melhor consultar os escritores do que os astrólogos. 

Pensamento do Dia

 


Brasileiro no espeto

Se a gente esquecer o controle de gasto e aumentar a carga tributária, não vai crescer muito. É um caminho que me assusta. Eu espero que a gente não vá por aí. 
Se o debate político nos levar a adotar medidas populistas, já que os benefícios de curto prazo são maiores do que os danos – que vão aparecer aos poucos –, o custo será muito alto. Os juros vão aumentar, a inflação vai voltar, os desequilíbrios setoriais vão se acentuar e o investimento vai cair.
Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional 

Que objeto representaria, num museu, o que restou dos EUA?

Uma visita ao Metropolitan Museu de Nova York é sempre intensa. Em algumas dezenas de salões, facilmente explorados no curso de um dia, está basicamente toda a História da civilização. Separados por passos estão a ponta de uma flecha talhada há 200 mil anos e o retrato de Marilyn Monroe pintado por Andy Warhol. O MET é uma espécie de gigantesco álbum de figurinhas da Humanidade, dois milhões de peças exibidas em molduras, pedestais e vitrines, e que ilustram a criatividade, as habilidades, as crenças e os costumes humanos. 

Existe também uma outra forma de entender o museu. É assimilar o acervo não como exemplo das maravilhas criadas pelo homem, mas como o pouco que restou de civilizações destruídas. Sala após sala, o que vemos são os resquícios de culturas que um dia se pensaram invencíveis. O que ficou dos etruscos, que por dois mil anos prosperaram nas terras da Itália? Um vaso de barro lascado. E dos persas, que no auge do império dominaram quase metade da população mundial? Uma cumbuca amassada de cobre. O acervo do MET prova que a História é feita de fracassos e de pilhagens, de silêncios irreversíveis e de aprendizados perdidos. Ele mostra que os homens são especialistas, principalmente, em retroceder e destruir. 



Neste extraordinário ano de 2020 nos Estados Unidos, tempo e lugar que no passado todos veriam como exemplo do ápice da cultura ocidental, a sensação de retrocesso é avassaladora. 

Morreu Ruth Ginsburg, a juíza da Suprema Corte que mais avançou na causa das mulheres no país. Desrespeitando a regra de que nenhum presidente deve indicar alguém para a Suprema Corte em ano eleitoral, Trump escolheu Amy Coney Barrett. Juíza conservadora, que já se posicionou contra a manutenção do plano de saúde criado por Obama, pelo direito ao aborto, e que pode dar a Trump uma vitória tardia, caso uma disputa eleitoral vá parar nas cortes. O pior presidente dos Estados Unidos, que chamou os veteranos de fracassados, sabia desde fevereiro como o vírus era mortal e nada fez, tem 28 acusações de assédio sexual e pagou apenas US$ 750 de impostos nos últimos dois anos, está tramando um golpe de estado. 

Há duas formas de se acabar com uma civilização. A primeira é através das espadas e dos canhões, das metralhadoras e dos tanques de guerra usados num ataque externo. A segunda é a corrosão interna do sistema, devido à corrupção, incompetência administrativa e disparidade crescente entre ricos e pobres. Se Trump for reeleito, o maior sistema democrático do mundo (em número de pessoas) pode estar caminhando para um fim. 

Isso me faz pensar na cumbuca dos persas. Nada impede que, daqui a alguns séculos — e se a Terra não derreter até lá —, o pouco que reste da sociedade americana esteja na vitrine de museu. Um tubo de batata Pringles sabor churrasco. Uma camiseta da Abercrombie & Fitch. Meia cabeça da Estátua da Liberdade. 

Se a plaquinha com a explicação for sincera, dirá serem aqueles os restos de uma civilização extraordinária, que decaiu com a erosão da democracia. Um sistema confuso, barulhento e que dá trabalho, mas que ainda assim era o melhor. Ainda outra civilização defunta, que ali jaz porque há milhares de anos os homens cometem o mesmo erro de novo e de novo, de relegar o bem comum ao segundo plano. 
Martha Batalha

Brasil: um país sadomasoquista

Em recente (e polêmica) declaração, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil é um país conservador e cristão, o que explicaria os índices de aprovação do modo bolsonarista de conduzir a nação. Não é verdade.

Em um país marcado por índices de desigualdade, violência, exploração e insegurança elevadíssimos, “não há muito o que conservar”, diria um verdadeiro conservador. De igual sorte, os valores historicamente associados à imagem de Cristo, que segundo a narrativa bíblica foi um líder perseguido, torturado e morto pelos detentores do poder político, dificilmente se mostram hegemônicos em um país que aplaude e vota massivamente em defensores da tortura e da violência estatal.

Se o conservador autêntico defende o capitalismo, limitado por valores legais, éticos e religiosos, inclusive adotando algumas posturas anti-repressivas, recatadas e não necessariamente egoístas, o pseudo-conservador se caracteriza tanto pela apropriação fundamentalista dos valores hegemônicos da classe média (sejam democráticos ou não) quanto pela distorção dos valores liberais e religiosos, em clara adesão ao modelo neoliberal de capitalismo, que se caracteriza pela desconsideração de qualquer tipo de limite na busca por lucros ou vantagens pessoais. Mas, não é só.

O Cristo que aparece no discurso bolsonarista é uma figura limitada à concepção de religião como um contrato que visa negociar a fé na busca por bens materiais e vantagens pessoais. A religação entre o indivíduo e Deus adota a forma de um negócio que mira no lucro. E, esse mesmo Cristo, esvaziado de valores como a solidariedade e o amor ao outro, passa a ser usado como um instrumento de legitimação tanto de uma espécie de “vale-tudo” dos “verdadeiros cristãos” contra as forças demoníacas quanto da demonização do “comum”. Demoniza-se a esfera do inegociável e, em certo sentido, toda uma tradição cristã que parte da opção preferencial pelos pobres. Pode-se, portanto, falar na construção de um (anti)Cristo que torna o egoísmo uma virtude, defende a violência/tortura e faz da solidariedade uma fraqueza.

A terra da perversão? Gozar ao violar limites

O bolsonarismo pode ser pensado como o efeito da aproximação de dois fenômenos: a dessimbolização capitalista e a tradição autoritária em que o brasileiro se encontra lançado. O empobrecimento da linguagem, o desaparecimento dos limites (éticos, jurídicos, estéticos, civilizacionais etc.), o anti-intectualismo e a crença tanto na hierarquização entre as pessoas quanto no uso da violência para resolver os mais variados problemas sociais compõem um quadro que aponta não só a ruptura do laço social (as pessoas não se relacionam mais com outras pessoas, mas apenas com objetos) como também um funcionamento perverso da sociedade e dos indivíduos. A violação dos limites torna-se um fenômeno naturalizado.

Por um lado, o capitalismo leva à percepção de que tudo e todos são objetos negociáveis (por vezes, descartáveis) em meio a cálculos de interesses na busca por lucro e vantagens pessoais. Instaura-se uma espécie de “vale-tudo”. No Brasil governado por Bolsonaro, não há, portanto, a defesa de valores tradicionais e percebidos como positivos, mas o desaparecimento de todo valor, princípio ou regra que possa ser tido como obstáculo aos interesses dos detentores do poder político e/ou econômico.

De outro, a ausência de rupturas democráticas fez com que práticas autoritárias tenham se tornado aceitáveis e percebidas como inevitáveis. No Brasil, fomos incapazes de elaborar satisfatoriamente fenômenos como a escravidão e a ditadura militar, o que faz com que se naturalize a hierarquização entre as pessoas e se idealize o regime militar instaurado em 1964, produzindo uma espécie de “retrotopia” (Bauman), na qual parcela da população deseja o retorno a um regime de segurança, tranquilidade e honestidade que nunca existiu.



Como em todo período autoritário, o governo de Bolsonaro busca uma aderência aos “valores” da classe média, percebida pelos ideólogos do governo como racista, sexista, preconceituosa e muito ignorante. “Valores” que acabam prestigiados, porque não só são inofensivos como também ajudam à manutenção do projeto neoliberal. Não por acaso, práticas discriminatórias, violências policiais e violações das normas de cuidado com o outro, que são objetos de aplausos de uma considerável parcela da população, passam a ser naturalizadas e até incentivadas pelos detentores do poder político. Ao mesmo tempo, o governo demonstra uma oposição a tudo o que é da esfera do criativo e sensível. Demoniza-se a compaixão e a empatia enquanto se percebe a preocupação em reforçar a dimensão domínio-submissão, ao afirmar desproporcionalmente os valores “força” e “dureza”.

É a junção entre a racionalidade neoliberal, um modo de pensar e atuar que se tornou hegemônico no atual estágio do capitalismo, e a natureza autoritária de ampla parcela da população brasileira que permite excluir a hipótese de que o Brasil é um país “conservador e cristão” e substituí-la pela constatação que ele se torna cada dia mais um país sadomasoquista (e nisso não há qualquer relação à curiosidade presidencial pela prática do “golden shower”).

Para considerável parcela da população brasileira, correlata à atitude submissa e acrítica diante daqueles a quem considera “superiores”, há uma tendência a posturas intolerantes e agressivas direcionadas contra todos aqueles a quem considera “inferiores” ou “diferentes”. São pessoas que foram formatadas para naturalizar e até sentir prazer com o sofrimento e a dor, tanto alheia quanto própria. Assim, aplaudem medidas que são flagrantemente contrárias aos seus interesses e direitos, bem como reproduzem condutas que identifica no “grupo moral” que o despreza e ao qual gostaria de pertencer.

O indivíduo sadomasoquista se submete acriticamente à autoridade idealizada e deseja um líder forte capaz de decidir por ele, limitando os riscos e desafios inerentes ao pleno exercício da liberdade. Vale dizer que se trata de uma postura que ultrapassa o respeito realista e equilibrado relacionado à autoridade legítima, mas que se aproxima de uma necessidade pulsional de se submeter e, por vezes, se humilhar. Ao mesmo tempo, verifica-se em grande parte da população um desejo de sacrificar seus prazeres, seus direitos e suas garantias fundamentais se isso significar a vingança e a punição dos “inimigos” (ainda que imaginários) ou, ainda, a manutenção da distância social em relação àqueles a que considera inferiores.

Diante desse quadro, pode-se falar em uma perversão baseada em um modo de satisfação individual ligado ao sofrimento do outro ou ao que se origina do sujeito humilhado. Como já percebia Freud (1905), “o sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista”. Tem-se, aqui, uma inter-relação de duas posições (componente sádico e componente masoquista) que se fazem presentes nos conflitos intersubjetivos (dominação-submissão) e na própria estruturação psíquica das pessoas.

Ao tomar o outro ou a si próprio como objeto, bem de acordo com a racionalidade neoliberal, o sujeito exprime uma agressividade prazerosa. A dor do outro e próprio fracasso passam a ser vistos como positividades, bem de acordo com a lógica das mercadorias que passa a reger a percepção de todos os fenômenos. Mais do que melhorar de vida, o indivíduo neoliberal-autoritário se contenta em ver os mais pobres fracassarem no projeto de reduzirem a distância social entre as classes. Mais do que o fim dos preconceitos que o atingem, o indivíduo neoliberal-autoritário deseja ver a manutenção dos poucos privilégios que mantém (por vezes, o “privilégio” de ser homem ou branco).

O que o presidente chama de “conservador e cristão”, saiba ele ou não, são indivíduos perversos que por medo da liberdade, por força da crença na violência, do ódio ao saber ou da manutenção dos preconceitos de gênero, de raça, de classe e de plasticidade apoiam (ou, ao menos, aceitam) o desmatamento criminoso da Amazônia, o aumento da violência doméstica, a redução dos direitos trabalhistas e previdenciários, a violência policial, o crescimento dos grupos paramilitares, o desmonte da educação pública, as mortes evitáveis diante da pandemia em razão do Covid 19, dentre outras ações que causam sofrimento. Sem recorrer ao conceito de sadomasoquismo fica difícil explicar o Brasil.

Calote e desvio de finalidade

A proposta de Renda Cidadã, anunciada ontem pelo governo, não teve boa aceitação no Congresso, nem no mercado financeiro. O projeto foi embarcado na chamada PEC Emergencial pelo seu relator, o senador Marcio Bittar (MDB-AC), com o propósito de obter de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões a mais que os recursos destinados ao Bolsa Família, que será extinto pelo presidente Jair Bolsonaro porque é a cara do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A intenção do governo é conceder um auxilio de até R$ 300 para cada beneficiado, ampliando a base do programa para um número maior de pessoas, mas esses recursos não estão disponíveis no Orçamento da União de 2021.

Os parlamentares são a favor da transferência de renda para as parcelas mais carentes da população, mas não quanto à origem dos recursos, que muitos interpretam como uma maneira de burlar o teto de gastos (o aumento das despesas do governo não pode ultrapassar a taxa de inflação) e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Esse dinheiro sairia dos recursos destinados aos precatórios, que são as dívidas judiciais do governo já transitadas em julgado, uma espécie de calote temporário, e de uma parcela do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que levaria uma mordida de 5%, a pretexto de que o dinheiro seria vinculado à obrigação de as crianças das famílias beneficiadas frequentarem a escola.



Segundo Bittar, o valor do benefício ainda não foi fixado, devendo ficar entre R$ 200 e R$ 300 (o Bolsa Família chega até R$ 205 para cinco beneficiados). Especialistas em contas públicas avaliam que a proposta adia indefinidamente o pagamento de dívidas da União, além de mascarar a ultrapassagem do teto de gastos ao destinar recursos do Fundeb para o Renda Cidadã, o que muitos interpretam como um desvio de finalidade. A reação do mercado foi péssima: a Bovespa desabou e o Banco Central (BC) teve de vender dólares para evitar que subisse muito.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes negociaram a proposta com Bittar e os líderes do governo no Congresso, mas ainda não existe massa crítica no Senado nem na Câmara para aprovação do novo programa. A construção dessa maioria não será fácil, mas não é impossível, porque muitos parlamentares, nas duas Casas, defendem uma política de transferência de renda para as pessoas que ficaram desempregadas ou sem seus pequenos negócios durante a pandemia. Entretanto, aprovar um calote nos precatórios e tirar recursos do Fundeb é outra história. Os lobbies dos advogados e da Educação são muito ativos e fortes. A inclusão da proposta na PEC Emergencial dificulta muito a aprovação, porque exige quorum elevado, mas, em contrapartida, reduz as possibilidades de judicialização do Renda Cidadã.

A grande questão é que o governo está sendo pressionado pela recessão a adotar medidas que compensem o desemprego, que deverá chegar a 18% da População Economicamente Ativa (PEA). A prorrogação do auxílio emergencial, até dezembro, no valor de R$ 300, mitigou a recessão e o desemprego, mas é preciso pôr alguma coisa no lugar a partir de janeiro.

A grande aposta de Guedes para viabilizar o programa continua sendo a reforma tributária, na qual pretende criar um imposto digital, que está sendo chamado de nova CPMF, a pretexto de compensar a desoneração da folha de pagamentos. Ocorre que o Congresso não é nada simpático à criação de um novo imposto às vésperas das eleições municipais. Bittar anunciou também a criação de gatilhos para manter o teto de gastos e a redução em até 25% dos salários dos servidores. As duas propostas também terão dificuldades para aprovação, mas o Palácio do Planalto está mais confiante na capacidade de articulação de seus líderes no Congresso e na força do chamado Centrão.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Nem mercado nem Estado substituem a ética

O processo de mercado —pessoas e empresas buscando seu autointeresse por meio do sistema de preços livremente acordados— é a ferramenta mais poderosa que conhecemos para mobilizar a ambição de cada um em prol dos desejos de todos em um mundo de recursos escassos e informação imperfeita.

No mercado, para satisfazer seus próprios desejos, você tem que criar valor para os outros, e lucros e prejuízos indicam se você tem sido capaz de gerar, com os recursos disponíveis, mais ou menos valor do que seus concorrentes.

Como todo e qualquer mecanismo social, contudo, o mercado tem falhas e limitações. Sozinho, ele não dá conta, por exemplo, do problema das externalidades: nossas transações livres impactam terceiros que nunca aceitaram participar delas, inclusive as gerações futuras. Meu carro polui o ar, impondo um custo à cidade que não é pago nem por mim nem pelo fabricante. A sustentabilidade ao longo do tempo exige algum nível de autocontenção dos desejos no presente.


Regras e leis jamais serão capazes de, sozinhas, refrear o desejo humano. Primeiro porque não se pode tomar como garantido que qualquer agente social siga a lei. Se a polícia não está olhando, por que me abster de roubar? E se a lei tiver várias interpretações possíveis, ele tentará se safar seguindo a interpretação mais conveniente. É o que este outro representante perfeito do autointeresse desenfreado, Donald Trump, fez em sua declaração de imposto de renda. Os US$ 70 mil anuais gastos em cortes de cabelo são computados como gastos da empresa. Cada dólar que ele não pagou será custeado pelos demais.

Em segundo lugar, quem tem muito dinheiro ou influência pode deturpar a criação das leis. As empresas que se beneficiarão da "passagem da boiada" do ministro Salles na regulamentação ambiental empurram o país para o colapso ambiental. Não estão nem aí.

O Estado está sujeito à mesma dinâmica: seus membros também precisam ser capazes de refrear, em algum medida, seu autointeresse. Bolsonaro é exemplo perfeito do autointeresse desenfreado na política. Todas as suas ações buscam a popularidade imediata. Como líder, é incapaz de se indispor com o eleitorado em nome de um bem maior futuro. Vimos isso na pandemia: em um momento fingia que o problema não existia; depois, que havia solução mágica e indolor.

Quando o governo, para poder gastar mais agora, anuncia que adiará o pagamento de precatórios e que criará brecha para burlar o teto de gastos, ele está empurrando para o futuro o custo de gastar mais no presente. Quebrou alguma regra? Não necessariamente: só as alterou para se beneficiar.

Regras escritas jamais suplantarão a necessidade de ética e responsabilidade pessoais: a capacidade de frear o próprio autointeresse em benefício dos demais. No mundo empresarial e nas finanças essas virtudes se traduzem em iniciativas como fundos ESG, que investem em empresas com governança social, ambiental e corporativa. Na política, líderes dispostos a respeitar as regras do jogo mesmo que eles percam a partida. A sustentabilidade econômica, social e ambiental de nossa sociedade depende disso.

A ausência de qualquer preocupação ética produz, na economia, a predação desenfreada da natureza e a exploração de outras pessoas. Na política, nos traz à definição clássica da tirania: o poder absoluto exercido em benefício próprio, e não da sociedade. Tiranos, oligarcas, pensando apenas em si, degradam a vida em sociedade, prejudicando a todos no longo prazo. Não há mercado ou Estado que possa subsistir sem valores.

Boiada tóxica

Ninguém pode acusar Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, de descumprir a missão recebida do presidente Jair Bolsonaro: solapar o sistema de proteção de recursos naturais no país. Para repetir a frase cínica usada pelo titular da pasta em abril, trata-se de “passar a boiada”, como o golpe aplicado na reunião de segunda-feira do Conama, conselho nacional da área.

Caíram de uma só vez três resoluções do órgão. Na manobra mais grave, revogou-se a proteção garantida a manguezais e restingas. Outra desfez a obrigação de manter vegetação no entorno de reservatórios de água. A terceira suspendeu a necessidade de licenciamento ambiental para projetos de irrigação.

Antes que a reunião terminasse, Salles também fez autorizar a queima de certos poluentes, como alguns defensivos agrícolas, em fornos para produção de cimento — resíduos problemáticos, assim, chegarão ao ar que respiramos.


Manguezais constituem um sistema de grande produtividade e relevância ecológica. A vegetação adaptada às marés e à salinidade não só protege a linha de costa da erosão como serve de refúgio para reprodução de espécies marinhas.

Facilitar sua ocupação favorece a carcinicultura, indústria da criação de camarões que gera raros empregos e muita poluição. Não se entende por que o Conama põe o interesse de poucos à frente do geral e do sustento de milhares de caiçaras que exploram os mangues, nem por que entrega frágeis áreas de restinga à especulação imobiliária.

Salles aplainou o caminho da boiada ao transformar o Conama num órgão sob controle do ministério. Antes de sua chegada ao governo federal, o conselho contava com maior diversidade: organizações da sociedade civil tinham 23 assentos (hoje são 4), e governos estaduais, um representante cada (o total foi reduzido de 27 para 5).

O ministro quer eliminar qualquer contribuição de ONGs e da academia na definição de políticas ambientais. Desregulamentar, quando há excesso de exigências, e rever normas problemáticas ou mal definidas não é pecado, mas o aperfeiçoamento tem de se fundamentar em discussão transparente e calcada em estudos técnicos.

O atropelo capitaneado por Salles a mando de Bolsonaro pode revelar-se uma vitória de Pirro, pois redundará em prolongada judicialização. Seu método implica aumentar a insegurança jurídica, o que aventureiros tomarão como carta branca para aumentar a devastação.​

Pensamento do Dia

 


A enésima morte da nova política

A ideia da necessidade de uma política de tipo inteiramente novo não é novidade na política nacional. Basta lembrar do “Brasil novo” prometido pelo então candidato a presidente Fernando Collor de Mello, três décadas atrás. A tentação é permanente. Quem não gostaria de resolver os próprios problemas e aporrinhações simplesmente apertando o botão de reset?

De tempo em tempos, mais agudamente em crises que esgotam a paciência, o eleitor cai nessa. É arrastado pela promessa de que a ponte para superar os impasses é trocar as pessoas erradas pelas certas. E nunca faltam candidatos a preencher a necessidade. E acabam chegando ao poder carregados da esperança de que vão finalmente passar o sistema a limpo.

Mas tão previsível quanto o apelo cíclico das promessas de renovação é o poderoso efeito permanente da inércia. Se até nas rupturas dignas do nome ela opera com impacto decisivo nas políticas pós-revolucionárias, quanto mais em transições de superfície, como às que nosso país está habituado na sua já relativamente longa história.

O Brasil é quase um laboratório permanente de experimentação da teoria que adverte sobre o peso opressor das ideias mortas sobre as ações dos seres vivos que se imaginam como o novo. Nada é mais previsível por aqui que a alternância entre a euforia diante da novidade e o conformismo quando o velho finalmente volta a se impor.

O surto mais recente de ansiedade por uma nova política vem de 2014, impulsionado pela explosão de junho de 2013, o embrião do momento por que o país passa hoje. Mas se ao longo destes anos você fosse perguntando às pessoas “afinal, o que é a nova política”, provavelmente constataria, surpreso, que ninguém tinha a menor ideia da resposta.

Ao final, a nova política acabou se vestindo de algo bastante velho, o clássico bonapartismo. O culto ao poder unipessoal exercido em ligação direta com o desejo difuso das massas. O obstáculo? Este projeto unipessoal precisaria impor-se na prática aos bolsões de poder estabelecido.

No Brasil isso é praticamente impossível, ou muito difícil, por várias razões. Uma singela: o sistema está organizado para impedir qualquer presidente de eleger com ele a maioria parlamentar. Presidente, governadores e prefeitos. O problema está nos três níveis da federação. Na teoria, trata-se de um sistema de freios e contrapesos. Na prática, a garantia de que nada vai mudar.

Neste final da metade do (primeiro?) governo Jair Bolsonaro, assistimos ao enésimo enterro de um ensaio da possibilidade de uma política inteiramente nova. Mas, a exemplo de Luiz Inácio Lula da Silva, o atual presidente teve a inteligência, e a prudência, de mandar a coisa toda do "novo" às favas enquanto ainda tinha força suficiente para dissuadir “a velha política” de tentar derrubá-lo.

Pois a coisa anda perigosa. Invocar questiúnculas para derrubar governantes que perderam a (ou nunca tiveram a) maioria parlamentar parece estar virando, como se diz, carne de vaca. Comprova-se, de maneira ineditamente disseminada, que governos “técnicos” estão sempre a caminho de cair. Ainda mais com a atual exuberância de um Judiciário inebriado de poder.

E de Legislativos que perceberam que podem derrubar quem for sem enfrentar reação ponderável.

Memórias de um mau brasileiro

A tese da conspiração internacional contra o Brasil foi ressuscitada pelo discurso de Bolsonaro na ONU. Ela vem acompanhada de um lamento pela ajuda de maus brasileiros aos que conspiram contra o país.

Modestamente, tenho sido um desses maus brasileiros, ao longo de meio século. Relato algumas memórias, comemorando bodas de ouro.

Na década de 70, a conspiração contra o Brasil consistia em divulgar notícias sobre torturas e assassinatos sob o governo militar. Usávamos lembranças pessoais, relatos dos presídios e até documentos levados ao exterior por abnegados diplomatas.

Com esse material, construímos uma teia na qual a ditadura se enredou, caiu no isolamento e foi estigmatizada. O ponto alto desse trabalho foi o Tribunal Bertrand Russell, em Roma, onde foram denunciadas as agressões aos direitos humanos no Brasil.

Contamos com notáveis conspiradores sul-americanos: o colombiano Gabriel García Márquez e o argentino Julio Cortázar.

As atividades conspiratórias ressurgiram após o assassinato de Chico Mendes. Outros seringueiros morreram antes dele. Chico Mendes era um líder extraordinário, e sua morte coincidiu com uma crescente consciência ecológica mundial e, dentro dela, o reconhecimento do singular papel da Amazônia.

No embalo desse movimento, houve o encontro dos povos indígenas em Altamira. Inúmeros conspiradores internacionais presentes. Entre eles, Sting e Anita Roddick, dona da Body Shop.

O tema: construção da Usina de Belo Monte, mais tarde concluída por um governo de esquerda, sinal de que a conspiração não respeita os parâmetros ideológicos.



Semana passada, em Nova York, em campanha pela Amazônia, Harrison Ford lembrou que o primeiro grande concerto pela Amazônia foi de Sting, há 30 anos.

Ford não mencionou, mas de lá para cá a floresta perdeu 300 mil quilômetros quadrados de vegetação. Novas vozes surgiram espontaneamente: Brad Pitt visitou a Amazônia, Gisele Bündchen pediu pela floresta.

A novíssima geração é mais poderosa. Greta Thunberg, a jovem sueca, já foi recebida por Angela Merkel para falar do acordo econômico Mercosul-UE.

Apesar da má vontade com que é vista por alguns, é uma das favoritas ao Prêmio Nobel da Paz. Como assim, uma menina? As meninas de hoje vão muito além do que possam imaginar.

A conspiração ganhou ares mais solenes. Fundos de pensão falam na defesa da Amazônia e na proteção dos povos tradicionais. Empresas e bancos aproximam-se do conceito de exploração sustentável.

Não é preciso ser inocente quanto aos outros. Quando surgiu, no Canadá, a falsa notícia de que havia a doença da vaca louca no rebanho brasileiro, imediatamente reagi.

Apesar de vegetariano, integrei a comissão parlamentar destinada a revelar a verdade e defender a carne brasileira. Creio que fomos vitoriosos.

Adiante, discordamos. Era pelo rastreamento do rebanho, transparência na origem e condição do gado. Houve quem achasse isso caro, reduzia a competitividade. Hoje há muitos que compreendem e defendem o rastreamento. A melhor maneira de competir é ter qualidade.

Aí estão a trama da nossa conspiração e o conteúdo de nossa maldade. A ideia da preservação do meio ambiente pode ser também a garantia de nossos mercados — uma visão que abarca o futuro das gerações brasileiras.

O discurso de Bolsonaro é tão mentiroso que talvez nem ele acredite no que fala. As Forças Armadas têm compartilhado seu delírio. É assustador, pois indica uma distância da realidade incompatível com a tarefa de defesa nacional.

Cada vez mais o planeta depende de respostas globais, e é preciso manter a soberania num quadro de cooperação. O general Heleno cogitou boicote nacional aos produtos escandinavos, mas não conseguiu se lembrar de nenhum. Não houve uma alma caridosa para informar que São Paulo é o segundo centro industrial da Suécia. Na ausência de escandinavos, ele se volta para produtos alemães passíveis de boicote. Talvez o Fusca, general.

Será preciso que o mundo nos abandone para que se compreenda que somos governados por fantasmas do passado?

Todos os homens de Bolsonaro

Para quem leu Todos os Homens do Kremlin (Editora Vestígio), de Mikhail Zygar, ex-editor-chefe da única emissora de TV independente da Rússia, a TV Rain (Dozhd), o paralelo com o presidente Jair Bolsonaro e sua atuação no poder é inevitável, resguardadas, é óbvio, as diferenças de contexto histórico e nacional. Como Vladimir Putin, Bolsonaro tornou-se presidente porque soube aproveitar a oportunidade, bafejado pela sorte. Diferentemente do presidente russo, porém, não era um candidato do sistema: o homem certo na hora certa para o então presidente Boris Yeltsin, o político carismático, beberrão e imprevisível, que implodiu a antiga União Soviética, destronando Mikhail Gorbatchev, e liderou a transição selvagem para o capitalismo na Federação Russa. Bolsonaro foi um candidato antisistema, que surfou o tsunami eleitoral de 2018, na onda de insatisfação popular com os políticos gerada pela Operação Lava-Jato.

As semelhanças são maiores quando levamos em conta que Putin não tinha uma estratégia de poder –– foi administrando as circunstâncias para mantê-lo. Ex-chefe da FSB, usou a força do Estado para afastar aliados indesejáveis, proteger os amigos de São Petersburgo e da antiga KGB, seduzir os militares e liquidar os adversários. Os instrumentos de coerção do Estado –– os serviços de inteligência, a polícia, o Ministério Público e o Judiciário –– foram fundamentais para a consolidação de sua longa permanência no poder, depenando oligarcas que se apoderaram das estatais russas, favorecendo os empresários amigos e eliminando possíveis concorrentes eleitorais. Putin acreditou que seria bem recebido pelos líderes das grandes potências ocidentais, mas logo se viu frustrado por Angela Merkel, a primeira-ministra alemã; Nicolas Sarkozy, o presidente francês; e, principalmente, Barack Obama, o presidente negro dos Estados Unidos.

Arreganhou os dentes quando chegou à conclusão de que todos queriam enfraquecer a Federação Russa e afastá-la das antigas repúblicas soviéticas. E de que o menosprezavam, tratando-o como um personagem menor na cena internacional. Esse sentimento de rejeição somente aumentou ao longo dos anos, mas teve como resposta o endurecimento da política externa russa em relação às ex-repúblicas soviéticas da Geórgia e da Ucrânia, e ao Oriente Médio. A decisão estratégica de manter o ditador da Síria, Bashar al-Assad, no poder a qualquer preço, e assim preservar sua base naval no Mediterrâneo, foi uma demonstração de força. Da mesma forma, a divisão da Ucrânia, com a anexação da Criméia como uma república autônoma da Federação Russa, com o propósito de manter a grande base naval da frota do Mar Negro. Por último, o apoio econômico e militar a Nicolás Maduro, na Venezuela.

No terceiro mandato de presidente, a relação de Putin com o ex-presidente liberal Dmitri Medvedev, com quem também se revezou no cargo de primeiro-ministro, hoje é de estranhamento. Na verdade, sempre foi tensa, como a de Bolsonaro com o vice-presidente Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas. Putin afastou todos os aliados com política própria ou a lhe fazer sombra. Bolsonaro fez a mesma coisa. Começou com o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, hoje ocupada pelo general Luiz Ramos, principal articulador político do governo, e o advogado Gustavo Bebiano, secretário-geral da Presidência, já falecido, defenestrado para dar lugar a um ex-assessor parlamentar de inteira confiança, Jorge Oliveira. O ex-deputado Onyx Lorenzoni foi deslocado da Casa Civil para o Ministério da Cidadania, para dar lugar ao general Braga Netto. Os ministros da Justiça, Sergio Moro, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no auge do prestígio, também foram defenestrados, sendo substituídos pelo advogado da União André Mendonça e outro general, Eduardo Pazuello, respectivamente, dois bem-mandados.

Deputado ligado ao baixo clero durante toda a sua trajetória, para neutralizar qualquer tentativa de impeachment, Bolsonaro montou uma base parlamentar com os partidos do Centrão, cujos líderes — Gilberto Kassab (PSD-SP), Roberto Jefferson (PTB-RJ), Valdemar Costa Neto (PR-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI) — apoiam qualquer governo. Trocou os desastrados deputados de extrema direita, que defendiam o seu governo no Congresso, por raposas moderadas do Parlamento: Ricardo Barros (PP-PR), na Câmara, Fernando Bezerra (MDB-PE), no Senado, e Eduardo Gomes (MDB-TO), no Congresso. E está fritando o ministro da Economia, Paulo Guedes, um economista ultraliberal, cada vez mais isolado no governo.

Qual foi a estratégia de Putin para manter sua popularidade ao longo de duas décadas? Domar o Parlamento, controlar o Judiciário, estreitar a aliança com a Igreja Ortodoxa, estimular o nacionalismo russo e o conservadorismo machista e homofóbico. Putin transformou a jovem democracia russa numa ditadura da maioria, no qual assume um papel cada vez mais autocrático. Mais populista do que nunca, Bolsonaro recuperou a popularidade, apesar da pandemia, e só pensa na reeleição, que parece ao alcance das mãos. O que acontecerá com a democracia brasileira se Bolsonaro controlar o Judiciário e passar o rodo no Congresso, em 2022, como deseja?

Brasil dos diabos

 


Nada como uma teoriazinha da conspiração

Antes de mais não nos deixemos impressionar pelo fenómeno, que não é novo e já foi mais intenso no passado, embora a sua difusão seja hoje muito mais rápida e universal, dados os avanços verificados nas tecnologias de comunicação e informação. Joseph Uscinski e Joseph Parent (American Conspiracy Theories, 2014) analisaram as cartas dos leitores recebidas pelo “The New York Times” e o “Chicago Tribune” durante 121 anos e chegaram à conclusão de que, de facto, actualmente não há mais volume de alusões a teorias da conspiração. Pelo contrário, elas parecem até ter diminuído em finais do século passado, mas sempre existiram. Basta uma simples pesquisa no Google para dar de caras com umas quantas.

Mas a diferença essencial com que o mundo se depara hoje é que Donald Trump tem uma mentalidade conspirativa e utiliza-as não apenas para provocar desinformação geral, mas sobretudo a fim de intoxicar a sua base de apoio eleitoral. Por exemplo, Trump andou a proclamar aos quatro ventos que Barack Obama não tinha nascido nos EUA e que, portanto, estaria a usurpar a Casa Branca, pois nunca poderia ser presidente por não ser cidadão americano. Em 2015, sessenta por cento dos apoiantes do actual presidente não só estavam convencidos disso, como acreditavam no boato de que Obama era muçulmano.

Inconformados com as críticas à catastrófica gestão da epidemia pela administração Trump, Bill Gates tornou-se um dos alvos preferenciais das teorias da conspiração sobre o coronavírus, sendo acusado de ter criado o vírus para ganhar dinheiro e poder controlar digitalmente os seres humanos em todo o mundo. De acordo com a imprensa, só entre Fevereiro e Abril, surgiram 1,2 milhões de referências a tais disparates nas redes sociais (no Facebook: 16 mil) e na televisão. Chegaram a somar 18 mil menções diárias, havendo mesmo quem apele à morte do fundador da Apple.



Outra teoria popular é que as torres 5G estão a propagar a COVID-19. Ou que indivíduos armados entraram numa pizzaria para salvar crianças de um esquema de tráfico sexual organizado por Hillary Clinton. Os movimentos anti-vacinas baseiam-se igualmente neste tipo de teorias conspiratórias, tal como sobre o vírus: “Os técnicos de saúde não percebem nada disto, as estatísticas estão manipuladas, os economistas são ignorantes e os jornalistas escondem as notícias.” Nancy Rosenblum diz mesmo que este fenómeno se insere “especificamente na deslegitimação da democracia, ao atacar as ideias de oposição leal, que é o coração da política democrática, e a necessidade de conhecimento para governar. Os conspiradores não têm interesse em governar. Esse facto precisa de ser sublinhado. O conspiracionismo tem tudo a ver com derrotar os inimigos e é, por vezes, apocalíptico.”

Como é que chegámos aqui? A luta contra o conhecimento foi potenciada pela internet e o crescimento exponencial das redes sociais, abrindo caminho a que qualquer ignorante explane aí ideias estrambólicas e até, eventualmente, delírios desenvolvidos por doentes mentais anónimos. De resto, muitas das ideias disseminadas nas redes parecem saídas da cabeça de indivíduos em situação de ruptura psicótica.

Mas o campo religioso não fica imune ao fenómeno, que também apresenta as suas teorias da conspiração. O próprio Jesus Cristo foi alvo de um fenómeno semelhante por parte dos seus adversários religiosos na época. Acusaram o filho de Deus de estar possesso por um demónio (“A multidão respondeu, e disse: Tens demônio; quem procura matar-te?” João 7:20), e também de ter pactos com Belzebú (“E estava ele expulsando um demônio, o qual era mudo. E aconteceu que, saindo o demônio, o mudo falou; e maravilhou-se a multidão. Mas alguns deles diziam: Ele expulsa os demônios por Belzebu, príncipe dos demónios”, Lucas 11:14,15).

Como o meio religioso constitui também uma representação da sociedade em geral, é compreensível que também aqui surjam comportamentos bizarros e ideias estranhas, potenciados pelo substracto espiritual e transcendental que lhe é peculiar. Por isso este é um campo fértil para as teorias da conspiração, onde qualquer ideia plantada pode assumir dimensões inimagináveis. Veja-se o caso emblemático do terraplanismo.

Nunca houve tanta informação disponível e nunca a ciência esteve tão desenvolvida, mas parece que o mundo está cada vez mais estúpido e intoxicado. Basta olhar para a qualidade dos governantes um pouco por todo o mundo. Talvez por isso, e pela primeira vez em 175 anos de existência, a Scientific American anunciou apoiar uma candidatura à Casa Branca, neste caso o democrata Joe Biden, pelo facto de Trump ter dado uma “resposta desonesta e inepta à pandemia covid-19”, mas também pela sua insistência em negar a realidade, uma vez que “obstruiu os preparativos dos EUA para a mudança climática, alegando falsamente que isso não existe”, retirando-se dos acordos internacionais que procuravam limitar o seu impacto.

A verdade anda a tornar-se um produto cada vez mais caro.

Imbróglio ambiental

A questão ambiental tornou-se uma espécie de faroeste, com mocinhos e bandidos se enfrentando. Os “mocinhos” de ocasião são os ambientalistas, por mais que suas diferenças internas sejam grandes, alguns com históricos esquerdistas, alinhados agora com banqueiros. Os “bandidos” são a agricultura, a pecuária e o agronegócio em geral, como se eles fossem os responsáveis pelo desmatamento, quando são alheios em suas atividades ao que lá acontece, embora haja irresponsáveis nesse campo. A realidade é muito mais multifacetada.

Convém lembrar que o Brasil é um dos países mais preservacionistas do planeta, com cobertura de mata nativa em torno de 64% de seu território. São dados tanto da Embrapa quanto da Nasa, algo que não deveria ser contaminado por discussões ideológicas, expondo um grau de conservação ambiental ímpar em termos mundiais. No caso da Amazônia, os proprietários rurais são obrigados, por conta própria, a preservar 80% de sua área, graças ao instituto da reserva legal, exemplo único no mundo. Qual dos países europeus, que tanto criticam o Brasil, pode ostentar tal grau de preservação? Por que não importam o instituto da reserva legal?

Além do mais, o desmatamento anterior, se é que podemos utilizar esse nome, se deve à abertura de áreas para a agricultura e a pecuária, ou seja, para a produção de alimentos. Ou a humanidade não deverá doravante se alimentar? O Brasil, graças ao investimento em ciência e tecnologia e ao empreendedorismo dos produtores rurais, tornou-se um campeão da produção mundial de alimentos. A área cultivada do País cresce muito menos do que a sua produtividade, o que faz que o mundo hoje dependa da produção nacional de alimentos. E frise-se, isso nada tem que ver com a Amazônia, a produção concentra-se no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul. O que se exporta não é cultivado na Amazônia, salvo exceções, em áreas regularizadas.


Dito isto, a política governamental tem sido um desastre. Como disse o próprio presidente Bolsonaro, a comunicação é péssima, de onde logicamente deveria extrair a conclusão de uma mudança completa nessa área. Uma medida muito acertada foi a criação do Conselho da Amazônia, sob a coordenação do general Hamilton Mourão, pessoa inteligente e com compreensão do problema, capaz de estabelecer diálogos com ONGs e governos estrangeiros. A pauta deveria ser o diálogo. Acontece que o confronto continua a ser a regra do atual governo, embora tenha havido algum apaziguamento.

O governo tem sido, sim, omisso na questão ambiental, ora negligenciando-a, ora compactuando com garimpeiros, ora não supervisionando, ora criticando instituições científicas de monitoramento. Tampouco é de valia um ataque sistemático a governos estrangeiros e ONGs, piorando ainda mais a imagem nacional e criando obstáculos à vinda de investimentos. Se o Brasil está se tornando uma espécie de pária na cena internacional, isso se deve à política conduzida. Quando se erra, pede-se desculpa e não se persevera no erro.

Tampouco adianta os ambientalistas se oporem à regularização fundiária, quanto mais não seja pelo fato de a recusa perpetuar um status quo que é muito ruim. O Brasil dispõe de instrumentos para isso, graças ao Cadastro Ambiental Rural e ao Código Florestal, que podem ser amplamente utilizados e, se for o caso, aprimorados. O setor rural está também pronto para esse tipo de negociação, que deveria ser feito sem preconceitos e em espírito de diálogo. Fincar pé em posições intransigentes não interessa a ninguém. Se não houver regularização fundiária, não haverá responsabilização dos desmatamentos ilegais numa área superior à da Europa.

Evidentemente, não se pode fazer tudo in loco, é necessária a utilização de meios digitais. O Incra e o Ministério da Agricultura podem realizar essa tarefa. Responsabilizar implica reconhecer a propriedade, e não apenas uma posse eventual, que pode facilmente iludir a lei.

A mobilização da sociedade civil em prol do meio ambiente é uma expressão da modernização do País, embora haja muitas pedras pelo caminho, com boas intenções podendo ser apropriadas pelo “demo”. Uma delas é a defesa repentina da questão ambiental pelos bancos. De um lado, deve ser bem-vinda por exprimir uma pauta de interesse coletivo; de outro, deixa um problema fundamental em aberto. Estabelecerão eles “critérios” ambientais para a concessão de créditos agrícolas? Quem os elaborará? ONGs com vinculações com países e governos europeus? Essa experiência já foi tentada no governo Lula – que recuou logo depois –, com o Banco do Brasil elaborando critérios “sociais” para a concessão de crédito com o apoio do MST e de entidades empresariais. Por exemplo, algumas das ONGs operando no Brasil tiveram ou têm esse tipo de relação como a Oxfam, com o MST, o Instituto Socioambiental, a National Farmers Association – a que produziu o célebre documento Farmers here, forests there – e a Salvation. E ainda com entidades indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário, e com a Teologia da Libertação, ala esquerdista da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Salles passou outra boiada

O inferno ecológico do Brasil não se limita às queimadas na Amazônia e no Pantanal. Ontem o Conselho Nacional do Meio Ambiente revogou regras que protegiam manguezais, restingas e reservatórios de água. “Foi um descalabro”, resume a procuradora Fátima Borghi, que representou o Ministério Público Federal na reunião.

O Conama é presidido por Ricardo Salles, o ministro que prometeu aproveitar a pandemia para “ir passando a boiada” sobre a legislação ambiental. Sob o comando dele, o conselho derrubou quatro resoluções que vigoravam desde o governo Fernando Henrique Cardoso.


Salles não teve dificuldades para tocar o gado. No ano passado, um decreto de Jair Bolsonaro alterou a composição do Conama. O órgão tinha 96 integrantes e passou a ter apenas 23. O objetivo da mudança foi reduzir a participação da sociedade civil e ampliar a maioria do governo nas votações.

Mutilado, o conselho se tornou um carimbador das vontades do Planalto. Ontem suas decisões beneficiaram o setor hoteleiro e a especulação imobiliária, que pressionavam para construir condomínios e resorts em áreas protegidas.

“As regras do Conama não podem ser revogadas ao bel-prazer do governo, sem estudos prévios. Os conselheiros votaram sem levar em consideração as inconstitucionalidades que apontei. Estão acabando com tudo”, lamenta a procuradora Borghi.

Esta não é a primeira boiada que o antiministro consegue passar na pandemia. Em abril, ele anistiou desmatadores da Mata Atlântica e demitiu um diretor do Ibama que combatia a mineração ilegal. Em agosto, organizou um voo de garimpeiros em jatinho da FAB.

A Justiça poderia freá-lo, mas tem se recusado a fechar a porteira. Uma ação contra as mudanças no Conama repousa há mais de um ano no gabinete da ministra Rosa Weber. Em outro processo, o Ministério Público pediu ontem que Salles seja afastado do cargo. Os procuradores afirmam que sua permanência pode produzir danos irreversíveis à Amazônica. Pelo que se viu até aqui, não parece exagero.

Um presente envenenado da mãe natureza

Vivemos em tempos de exaltação da natureza. As catástrofes ambientais e climáticas produzidas pela voracidade humana e um modelo de progresso baseado no crescimento perpétuo persuadem cada vez mais gente a olhar para trás, para tempos remotos e legendários em que o Homo sapiens e o planeta que o viu nascer coexistiam em paz e harmonia em um paraíso terreno perfeito. O rótulo de “natural” e seus acólitos —bio, eco, orgânico, macrobiótico, detox— se tornou uma estratégia de marketing vencedora, apesar de ninguém saber muito bem o que esses adjetivos pomposos significam. Nossa única fuga, dizem os novos teólogos panteístas, é retornar àquele estado primigênio e impoluto de conexão íntima com a mãe Terra. Mas a natureza também nos deu a covid-19, um presente envenenado que, pela primeira vez, não merecíamos.

Steven Pinker costumava dizer que o mais pernicioso dos psicopatas pode assassinar 10 ou 20 pessoas, mas que para matar um milhão a psicopatia não é suficiente: também é preciso ideologia. Ele se referia a Hitler e Stalin, dois psicopatas assassinos não diagnosticados. Mas desta vez não precisamos da receita de Pinker para matar um milhão de pessoas. Bastou-nos o SARS-CoV-2, a última invenção nociva da mãe natureza “vermelha em dente e garra”, segundo a crua descrição de Tennyson. Foi também a natureza, o Deus dos panteístas, que criou a peste, a varíola, a gripe espanhola, a AIDS e as doenças genéticas, para citar outros exemplos marcantes. E a única ferramenta que temos contra a covid-19 é inteiramente um artifício do engenho humano, a ciência. A realidade não se ajusta às doutrinas teológicas.



Um milhão de mortos. Isso se diz rapidamente. Há poucos meses, essas pessoas viviam suas vidas angustiadas pela artrite, a hipoteca ou o desemprego, talvez afligidas por uma biografia sem muito sentido, talvez contentes por seus privilégios, eufóricas ou desesperadas. O que poucos esperavam é que um vírus iria matá-las, um mero punhado de átomos sem religião ou ideologia, um quase nada que só existe pelo mero fato de que pode existir, de que a física e a biologia o tornam possível, e que apesar de tudo matou um milhão de pessoas com uma eficácia portentosa e perturbadora. Parece incrível.

E exatamente isso, não acreditar, foi o que quase todo mundo fez em dezembro, e em janeiro, e em fevereiro e até bem entrado março. Digo “quase todo mundo” porque os virologistas, epidemiologistas e outros cientistas especializados vinham nos alertando há décadas que isso, ou algo muito parecido com isso, iria acontecer mais cedo ou mais tarde. É verdade que ninguém podia saber a data exata ou o vírus específico que causaria a próxima pandemia. O principal suspeito, na verdade, não era um coronavírus, mas um vírus de gripe, e havia boas razões para isso. A chamada gripe espanhola de 1918 matou 50 milhões de pessoas –mais do que a Grande Guerra que terminou naquele mesmo ano– e houve duas outras pandemias de gripe no século 20, embora não tão graves. O açougueiro acabou sendo finalmente um coronavírus, primo do SARS de 2002 (agora renomeado SARS-CoV-1), que era 10 vezes mais mortal do que o atual SARS-CoV-2, mas se propagava muito menos.

Poucos políticos que estavam no cargo em janeiro de 2020 deviam se lembrar daquele acontecimento de 18 anos atrás, não falemos da gripe espanhola de 1918, porque o fato é que os Governos ocidentais se fizeram de desentendidos diante dos alertas que emanavam de Wuhan, China, silenciados inicialmente por Pequim, mas logo apoiados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Quando a Itália já estava afetada a não mais poder, em Bruxelas continuavam discutindo sobre o 5G e a ética das redes sociais. Os Governos, incluindo o espanhol, começaram minimizando os riscos para o Ocidente, jogaram a experiência chinesa na gaveta de assuntos irrelevantes e a trancaram. Pouco depois se revelou o grande erro que isso significava. Um erro tão grande que pode ser medido em vidas humanas.

É possível que os políticos aprendam alguma vez que seu trabalho consiste em se colocar a serviço dos cidadãos. Até agora só aprenderam a dizer isso, não a fazer. Tivemos que suportar nesses meses alguns espetáculos vergonhosos, impertinentes e cansativos oferecidos por nossos governantes, diatribes tão desafinadas que dois segundos de escuta bastam para desligar a tela. Menção à parte merece a estupidez dos dois nacionalismos mais empedernidos na Espanha, o catalão e o madrilenho, que preferem antes ver o colapso dos seus sistemas de saúde pública do que admitir que precisam da ajuda do Governo e do resto das comunidades autônomas. Suas mentiras fazem corar de tão evidentes, exceto seus acólitos que vivem trancados em câmaras de eco, onde só ouvem o que querem ouvir. Olhar para outros países não melhora muito o quadro.

Também dá pena o nacionalismo em torno das vacinas, segundo o qual cada pedaço do mundo luta por suas doses com orelheiras tão espessas que os impedem de ver até mesmo seus vizinhos mais próximos. Dão pena os antivacinas, conscienciosamente desinformados por xamãs e vigaristas, e que nesse ritmo constituirão um sério obstáculo às campanhas de imunização. Dão pena os líderes que se gabam do poderio de sua saúde pública enquanto cortam seus recursos e a jugulam. Mas um milhão de pessoas morreram e, por enquanto, nossa dor deve ser reservada a elas. Que massacre. Que horror.